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INTRODUÇÃO

o liberalismo e o primado da justiça

Este livro constitui um ensaio sobre o liberalismo. Aquela de que me


ocupo é a versão do liberalismo dominante na filosofia política moral e jurí-
dica dos nossos dias: aquele liberalismo no qual as noções de justiça, equi-
dade e direitos individuais desempenham um papel nuclear e que encontra
em Kant muita da sua fundamentação filosófica. Enquanto ética que afirma a
prioridade do justo sobre o bom e que se define habitualmente em oposição
às concepções utilitaristas, pode definir-se melhor aquele que tenho em
mento como sendo um "liberalismo deontológico", um nome um tanto pre-
tencioso para uma doutrina que nos é familiar.
O "liberalismo deontológico" é, acima de tudo, uma doutrina acerca da
justiça, e, em particular, acerca da primado da justiça no quadro dos ideais
morais e políticos. A sua tese nuclear poderá ser apresentada da seguinte
forma: sendo a sociedade composta por uma pluralidade de pessoas, cada
uma com os seus objectivos, interesses e concepções do bem, estará mais
bem organizada quando for governada segundo princípios que, em si mes-
mos, não pressupõem uma qualquer concepção do bem. Aquilo que justifica
estes prinCípios de organização e de regulamentação social não é, acima de
tudo, o facto de maximizarem o bem-estar social ou promoverem o bem de
outro modo qualquer, mas o facto de partirem do conceito de justo, uma
categoria moral a que aqui é atribuída prioridade sobre o bem e que é pers-
pectivada como sendo independente dele.
Este é o liberalismo de Kant e de muita da filosofia moral e política
contemporânea, sendo este o liberalismo que me proponho desafiar. Contra
a primado da justiça, argumentarei em favor dos limites da justiça e, por
arrastamento, a favor dos limites do liberalismo também. Aqueles que tenho
em mente não são limites práticos, mas sim conceptuais. Não me limito a
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defender que, independentemente da sua nobreza, a justiça, enquanto prin- ocupa apenas do valor da lei moral, mas também dos meios pelos quais ela
cípio, dificilmente se poderá alguma vez concretizar por inteiro na prática; surge, daquilo que Kant apelidaria de "âmbito de determinação" (1788).
aquilo que afirmo é que os limites da justiça se situam no próprio ideal do Desde o ponto de vista plenamente deontológico, o primado da justiça
conceito. O problema que se coloca a uma sociedade inspirada na promessa descreve não apenas uma prioridade moral, mas também uma forma privi-
liberal não reside apenas no facto de a justiça estar sempre por realizar, mas legiada de justificação. O justo é anterior ao bom, não apenas na medida em
no facto de a própria visão que sustenta ser defeituosa, de as suas aspirações que as reivindicações do primeiro têm precedência sobre as do segundo, mas
estarem incompletas. Porém, antes de partimos para a exploração destes também na medida em que os princípios que o enformam são derivados
limites, temos primeiro de definir com clareza em que consiste esta reivindi- directamente. Quer isto dizer que, ao contrário de outras injunções práticas,
cação do primado da justiça.. os princípios da justiça se justificam de um modo que não depende de uma
qualquer visão específica do bem. Pelo contrário, em face do estatuto inde-
pendente que apresenta, é o justo que delimita o bem e que estabelece as
Os fundamentos do liberalismo: Kant vs. Mill suas fronteiras. "Os conceitos do bem e do mal não são determinados antes
da lei moral (à qual, na aparência, eles deveriam servir de fundamento), mas
Pode-se compreender o primado da justiça em dois sentidos diferentes, apenas (como também aqui acontece) segundo ela e por ela" ( Kant 1788: 65).
se bem que inter-relacionados. O primeiro é um sentido claramente moral. Portanto, na perspectiva da fundamentação moral, o primado da justiça
Afirma que a justiça é um valor primário na medida em que as suas exigên- resume-se a isto: a virtude da lei moral não reside no facto de promover um
cias têm maior peso do que outros interesses morais e políticos, indepen- objectivo ou um fim qualquer que se presume ser bom. Ela é, pelo contrário,
dentemente da urgência de que estes últimos se possam revestir. Nesta pers- um bem em si mesma, que precede todos os demais objectivos ou fins, sendo
pectiva, a justiça não se apresenta apenas como um valor entre outros, a ser igualmente responsável pela sua regulamentação. Kant distingue este sen-
pesado e avaliado consoante as ocasiões, mas como a mais alta de todas as tido fundacional, ou de segunda ordem, do primado da justiça em relação ao
virtudes sociais, que tem de ser assegurada antes de as outras poderem apre- sentido moral, ou de primeira ordem, nos seguintes termos:
sentar as suas reivindicações. Se, por acaso, a felicidade do mundo pudesse
ser promovida apenas através de meios injustos, então o que deveria preva- "Por primado entre duas ou mais coisas ligadas pela razão
lecer seria, não a felicidade do mundo, mas a justiça. E quando a justiça se entendo eu a prioridade de uma delas ser o primeiro princípio
defrontasse com certos direitos individuais, nem sequer o bem-estar geral se determinante da conexão com todas as ouúas. No sentido mais
poderia sobrepor a eles. estrito, prático, primado significa a superioridade do interesse de
No entanto, quando perspectivado apenas neste sentido moral, o pri- uma enquanto o interesse das outras está subordinado a esse
mado da justiça dificilmente é capaz de demarcar este liberalismo das suas interesse (que não pode estar subordinado a mais nenhum outro)"
outras versões mais conhecidas. Muitos autores liberais sublinharam a (1788: 124).
importância da justiça e insistiram na inviolabilidade dos direitos indivi-
duais. John Stuart Mill referiu-se à justiça como sendo "a parte principal e Este contraste poderia igualmente ser apresentado em termos de dois
incomparavelmente mais inviolável e mais obrigatória de toda a moral" sentidos diferentes de deontologia. No seu sentido moral, a deontologia
(1863: 465), e Locke defendeu que os direitos naturais de um homem são tão opõe-se ao consequencialismo, descrevendo uma ética de primeira ordem
fortes que nenhuma comunidade se pode sobrepor a eles (1690). Porém, que contém certos deveres e proibições categóricos que assumem uma
nenhum destes autores foi um liberal deontológico no sentido mais pro- precedência incondicional sobre as demais preocupações morais e práticas.
fundo de que aqui nos ocupamos. A ética deontológica mais profunda não se No seu sentido fundacional, a deontologia opõe-se à teleologia, descrevendo
ocupa apenas da moral, mas também dos fundamentos da moral. Não se um tipo de justificação nos termos do qual os primeiros princípios são
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derivados de um modo que não pressupõe qualquer finalidade ou propósito "Todas as acções são realizadas com vista a um objectivo qualquer, e será
humanos, nem são determinados por qualquer concepção do bem para o natural supor que o carácter e a tonalidade das regras de acção uecorrem.
homem. por inteiro, do objectivo ao qual se subordinam" (1863: 402). Na perspectiva
Destas duas vertentes da ética deontológica, a primeira será, sem utilitarista, o carácter e a tonalidade dos princípios da justiça decorrem do
dúvida, a mais familiar. Muitos liberais, e não só os deontológicos, atribuí- objectivo de felicidade, tal como acontece com todos os demais princípios
ram um peso muito particular à justiça e aos direitos individuais. O que sus- morais. "Perguntar pelo objectivo de uma acção é [... ] perguntar pelas razões
cita a questão de se saber como é que estes dois aspectos da deontologia se que fazem com que as coisas sejam desejáveis", e a felicidade é desejável
inter-relacionam. Poderá o primeiro tipo de liberalismo defender-se sem - na verdade, ela é "a única coisa desejável como fim" - precisamente por-
recurso ao segundo? Mill, por exemplo, pensava que sim, e defendeu a pos- . que "as pessoas a desejam de facto" (1863: 438). E aqui temos, com toda a
sibilidade, e até mesmo a necessidade, de os separar. clareza, os alicerces teleológicos e os pressupostos psicológicos do libera-
No dizer de Mill, possuir um direito é "deter algo cuja posse me deve lismo de Mill.
ser assegurada pela sociedade" (1863: 459). A obrigação da sociedade é tão Para Kant, pelo contrário, os dois aspectos da deontologia estão estrei-
forte que a minha reivindicação "assume um carácter absoluto, uma infini- tamente interligados. A sua ética e a sua metafísica constituem os argumen-
dade aparente e uma incomensurabilidade relativamente a todas as demais tos mais poderosos contra a possibilidade de os desligar um do outro. A con-
considerações, de tal ordem que se constitui como aquilo que separa o sen- cepção kantiana apresenta pelos menos duas objecções em relação a uma
timento de bem do sentimento de mal, tal como os sentimentos comuns de perspectiva como a proposta por Mill (e pelos utilitaristas contemporâneos
conveniente e de inconveniente" (1863: 460). Porém, ao perguntar-se por que privilegiam as regras). A primeira é a de que os alicerces do utilitarismo
que razão a sociedade tem o dever de cumprir esta obrigação, Mill esclarece não são fiáveis, lembrando a segunda que, em matéria de justiça, alicerces
não haver qualquer outra para além" da utilidade geral" (1863: 459). A justiça não fiáveis podem ser coercitivos e injustos.
emerge, então, em sentido estrito, como "a parte principal e incomparavel- O utilitarismo não é fiável na medida em que nenhum fundamento
mente mais sacrossanta e obrigatória de toda a moral", não em função de meramente empírico, seja ele utilitário ou outro, é capaz de assegurar o pri-
um direito abstracto, mas tão-só na medida em que as exigências da justiça mado da justiça e a inviolabilidade dos direitos individuais. Um princípio
"ocupam um lugar mais elevado na escala da utilidade social, razão pela qual que tenha de pressupor certos desejos e inclinações não pode deixar de se
possuem uma obrigatoriedade superior a todas as outras" (1863: 465, 469). encontrar tão condicionado quanto esses mesmos desejos. No entanto, uma
das características dos nossos desejos é dos meios de que dispomos para os
"É importante sublinhar que abdico de qualquer vantagem satisfazer é o facto de variarem, quer de pessoa para pessoa, quer, na mesma
que pudesse ser retirada do meu argumento a partir da ideia de pessoa, de um momento para outro. Consequentemente, todo e qualquer
um direito abstracto, independente da sua utilidade. Em meu princípio que deles dependa terá de ser igualmente contingente. Assim,
entender, a utilidade constitui a última instância de apelo de todas "todos os princípios [Prinzipien} práticos que pressupõem um objecto
as questões éticas. Trata-se, no entanto, de uma concepção de uti- [Objekt} (matéria) da faculdade de desejar, enquanto princípio determinante
lidade no sentido mais lato, assente sobre os interesses perma- da vontade, são sempre empíricos, não podendo fornecer nenhumas leis
nentes do homem enquanto ser em devir" (1849: 485). práticas" (Kant 1788: 19). Sempre que a utilidade for o fundamento determi-
nante - até mesmo a "utilidade no sentido mais amplo" - têm, em princípio,
A importância primordial da justiça e dos direitos torna estes últimos que existir casos em que o bem-estar geral se sobrepõe à justiça, em vez de a
"mais absolutos e mais imperativos" do que quaisquer outras reivindicações. assegurar.
Contudo, aquilo que faz com que sejam importantes é, em primeiro lugar, o Com efeito, Mill concede que assim seja, mas questionaria se a justiça
serviço que prestam à utilidade social. É este o seu fundamento último. deve deter um tal privilégio de se impor de forma tão incondicionada. Heco-
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nhece que a concepção utilitarista não afirma a prioridade absoluta da jus- suficiente para a alicerçar. Apenas uma união que se constitua como "um
tiça, na medida em que podem surgir casos particulares "no quadro dos fim em si mesmo, o qual deve ser partilhado por. todos e que, por isso, se
quais algum outro dever social pode assumir uma tal importância a ponto de afirme como um dever absoluto e primário em todas e quaisquer relações
se sobrepor a qualquer uma das máximas gerais da justiça" (1863: 469). externas entre seres humanos" será capaz de assegurar a justiça e de evitar a
Porém, se desta limitação decorrer a promoção da felicidade da humani- coerção exercida sobre alguns pela imposição sobre eles das convicções de
dade, que melhor fundamento poderia haver para defender o primado da outros. Apenas numa tal união é que ninguém me poderá "compelir a ser
justiça de forma mais efectiva1? feliz de acordo com a sua concepção do bem-estar de outros" (1793: 73-74).
Em resposta,Kant diria que até mesmo excepções em nome da felici- Só quando eu me governar por princípios que não pressupõem quaisquer
dade humana têm de ser rejeitadas, e que a não-afirmação, em absoluto, do fins particulares é que eu serei livre para perseguir os meus próprios fins,
primado da justiça conduz à injustiça e à opressão. Ainda que fosse parti- desde que igual liberdade seja assegurada para todos.
lhado universalmente, o desejo de felicidade não poderia constituir o fun- Na perspectiva kantiana, os dois aspectos da ética deontológica não são
damento da lei moral. As pessoas continuariam a ter concepções diferentes dissociáveis. A prioridade moral da justiça é viabilizada (e exigida) pela sua
acerca da natureza da felicidade. Instaurar como regra geral uma destas con- prioridade fundacional. A justiça não é apenas mais um valor entre outros,
cepções particulares significaria impor a alguns as concepções de outros. exactamente porque os seus princípios são derivados independentemente.
O que equivaleria a negar-lhes a liberdade de promoverem as suas concep- Ao contrário do que se passa com outros princípios práticos, a lei moral não
ções próprias. Conduziria à criação de uma sociedade na qual algumas pes- se vê implicada à partida na promoção dos vários interesses e fins contin-
soas se veriam coagidas a adoptar os valores de outras, em vez de uma outra gentes, na medida em que não pressupõe uma qualquer concepção parti-
na qual as necessidades de cada um se harmonizam com os objectivos de cular do bem. Uma vez que o seu fundamento é anterior a todos os fins
todos. "Os homens possuem pontos de vista diferentes relativamente ao empíricos, a justiça ergue-se numa posição privilegiada face ao bem, esta-
objectivo empírico de felicidade, aquilo que ele é e em que consiste. Por- belecendo os seus limites.
tanto, no que diz respeito à felicidade, a vontade não pode ser submetida a Porém, esta abordagem faz surgir a questão de saber qual poderá ser o
qualquer princípio comum, nem a qualquer lei externa harmonizável com a fundamento da justiça. Se tem de ser anterior a todos os demais objectivos e
liberdade de cada um" (Kant 1793: 73-74). fins, incondicionada até mesmo "pela circunstância peculiar da natureza
Para Kant, a prioridade do justo "deriva inteiramente do conceito de humana" (1785: 92), onde poderemos encontrar um fundamento para ela?
liberdade no inter-relacionamente externo mútuo de seres humanos, nada Perante as exigências rigorosas da ética deontológica, até parece que a lei
tendo a ver com o desiderato natural de todos os homens (o objectivo de moral não poderá ter qualquer fundamento, na medida em que qualquer
alcançarem a felicidade), nem com os meios disponíveis de alcançar esta requisito material prévio destruiria a sua prioridade. "Dever!", pergunta Kant
finalidade" (1793: 73). Nestes termos, o princípio da justiça exige um funda- no seu momento mais lírico, "Que origem é digna de ti e onde se encontra a
mento anterior a todas as finalidades empíricas. Nem sequer uma união raiz da tua nobre linhagem, que recusa orgulhosamente todo o parentesco
fundada num objectivo comum partilhado por todos os seus membros será com as inclinações?" (1788: 89).
A sua resposta é que o fundamento da lei moral se encontra no sujeito,
e não no objecto da razão prática, num sujeito que é capaz de possuir uma
1 De seguida, Mil! afirma que a justiça é simplesmente tudo aquilo que for exigido pela
vontade autónoma. Não é um fim empírico, mas "um sujeito de fins, a saber,
utilidade. Nos casos particulares em que as máximas gerais da justiça são' ultrapassadas, "dizemos
habitualmente, não que a justiça se viu forçada a ceder o lugar a outro princípio moral, mas que
o próprio ser racional, que se deve elevar à condição de fundamento de todas
aquilo que é justo, na generalidade, é, em função desse princípio moral, injusto nesses casos as máximas de acção" (1785: 105). Nada, para além do "próprio sujeito de
concretos. Através desta útil acomodação da linguagem, salvamos o carácter de irrevogabilidade todos os fins possíveis", pode dar lugar à justiça, na medida em que apenas
atribuído à justiça, ao mesmo tempo que nos livramos da necessidade de defender que a injustiça
pode ser louvável" (1863: 469).
ele é igualmente o sujeito de uma vontade autónoma. Só então nos depara-
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resse especial quando nos lembramos que o argumento em favor da priori-


mos com "aquilo que eleva o homem acima de si próprio enquanto parte do
dade do sujeito não é um argumento empírico. Caso contrário, dificilmente
mundo sensível" e lhe permite participar num universo ideal, não condicio-
seria capaz de cumprir a tarefa que lhe exige, logo à partida, uma ética
nado e totalmente independente das nossas inclinações sociais e psicológi-
deontológica.
cas. E apenas esta independência consumada nos o distanciamento
de que necessitamos para podermos escolher livremente por nós próprios,
sem sermos condicionados pelas contingências das circunstâncias. Na pers- o sujeito transcendental
pectiva deontológica, o que importa, acima de tudo, não são os fins que
Kant apresenta dois argumentos em favor da sua noção de sujeito: um
escolhemos, mas a nossa capacidade de os eleger. E, sendo anterior a qual-
epistemológico, o outro prático. Ambos são formas de argumentos "trans-
quer fim particular, é no sujeito que reside esta capacidade. Ela "não é outra
cen~entais" na medida em que se desenvolvem na procura dos pressupostos
coisa senão a personalidade, isto é, a liberdade e a independência relativa-
s~bJa.centes a certos aspectos aparentemente indispensáveis da nossa expe-
mente aos mecanismos de toda a natureza; ao mesmo tempo, porém, consi-
nenCla. O argumento epistemológico investiga os pressupostos do autoco-
derada como uma faculdade de um ser que está submetido a leis peculiares,
nhecimento. Parte do princípio de que eu não sou capaz de conhecer tudo o
a saber, às leis puras práticas promulgadas pela sua própria razão"
que há para conhecer a meu respeito apenas através da observação ou da
(1788:89).
introspecção. Quando recorro à introspecção, não vejo mais do que aquilo
O conceito de um sujeito que é anterior e independente dos seus atri-
que os sentidos me entregam. Sou capaz de me conhecer a mim mesmo
butos oferece-nos um fundamento para a lei moral que, ao contrário de fun-
apenas enquanto objecto da experiência, enquanto portador deste ou
damentações meramente empíricas, não depende da teleologia nem da psi-
daquele desejo, desta ou daquela inclinação, objectivo, disposição, etc.
cologia, completando, assim, e com vigor, a visão deontológica. Do mesmo
Porém, este tipo de auto conhecimento não pode deixar de estar limitado,
modo que o justo é anterior ao bom, assim também o sujeito é anterior aos
na medida em que jamais será capaz de me habilitar a ir para além do jogo
seus fins. Para Kant, estas prioridades paralelas explicam lide uma só vez a
das aparências no sentido de descortínar aquilo de que, justamente, são
causa de todos os erros dos filósofos quanto ao princípio supremo da moral.
aparências. "Na medida em que um homem se conhece a si mesmo através
Com efeito, eles buscavam um objecto da vontade para dele fazerem a
da sensação interior [... ] não poderá afirmar que se conhece naquilo que é
matéria e o fundamento de uma lei". Uma tal opção, porém, conduzia-os
em si mesmo" (Kant 1785: 119). Por si só, a introspecção, ou a "sensação
inevitavelmente a abandonarem, atolados em heteronomia, os seus primei-
interior" jamais seria capaz de fornecer conhecimento do que quer que seja
ros princípios. Em vez disso, deveriam ter "primeiramente buscado uma lei
que se situe para além destas aparências. Qualquer reenvio de um conheci-
que determinasse a priori e imediatamente a vontade e, em seguida, em
mento desta ordem dissolver-se-ia imediatamente numa nova aparência. No
conformidade com esta, o objectivo"(l788: 66). Se assim tivessem feito,
entanto, temos de presumir mais do que isto. "Um homem tem de assumir
teriam identificado a diferença entre um sujeito e um objecto da razão prá-
que, para além deste carácter de si mesmo enquanto sujeito composto de
tica e, deste modo, encontrado um fundamento para a justiça independente
meros fenómenos, existe algo mais que os fundamenta - ou seja, o seu Ego,
de qualquer objecto particular.
pois este deve constituir-se a si mesmo" (Kant 1785: 119).
Para o argumento em favor da prioridade da justiça ter êxito, para o
Este algo mais, que não somos capazes de conhecer empiricamente
justo ser anterior ao bom nos interligados sentidos moral e fundacional que
mas que, no entanto, temos de pressupor como condição para podermos
identificamos, torna-se necessário assegurar igualmente o sucesso de uma
conhecer o que quer que seja é o próprio sujeito. O sujeito é esse algo "sub-
qualquer versão do primado do sujeito. Isto deve ficar claro. No entanto,
jacente" que antecede toda e qualquer experiência particular, que reúne as
falta ainda demonstrar se este último argumento é defensável. Como pode-
nossas diversas percepções e que as mantém unidas num consciente único.
remos saber se existe um tal sujeito, capaz de ser identificado antes e inde-
Fornece o princípio de unidade, sem o qual as percepções que temos de nós
pendentemente dos objectivos que procura? Esta questão assume um inte-
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próprios não seriam mais do que um fluxo de representações desliga- fi~. A minha vontade nunca poderia ser uma causa primeira, mas apenas o
das, incoerentes e em constante mudança, as percepções de ninguém. efeIto de uma causa anterior, instrumento de um: ou outro impulso ou de
E enquanto não conseguirmos apreender este princípio empiricamente, uma ou outra inclinação. Na medida em que nos consideramos livres, jamais
temos que presumir a sua validade, se quisermos que o conhecimento que nos poderemos pensar como sendo seres meramente empíricos. "Quando
temos de nós próprios faça algum sentido. pensamos em nós próprios como seres livres, transportamo-nos para o
mundo inteligível, como seus membros, e reconhecemos a autonomia da
"A ideia de que as representações dadas na intuição me vontade" (Kant 1785: 121). E assim, a noção de um sujeito que é anterior à
pertencem todas é, por isso, equivalente à ideia de que eu as reúno e~eriência e independente dela, tal como o exige a ética deontológica, surge
numa auto-consciência, ou que, pelo menos, sou capaz de as reu- nao ap~~as como sendo possível, mas como indispensável, um pressuposto
nir. E apesar de esta ideia não ser em si a consciência da síntese necessano para a possibilidade de um auto conhecimento e da liberdade.
das representações, ela pressupõe a possibilidade dessa síntese. Podemos agora ver com maior clareza em que consiste a reivindicação
Por outras palavras, é só na medida em que sou capaz de apreen- do primado da justiça avançada pela ética deontológica. Na perspectiva
der a multiplicidade de representações numa só consciência que kantiana, a prioridade da justiça é simultaneamente moral e fundacional.
eu as identifico a todas sem excepção como sendo minhas. De O seu fundamento radica no conceito de um sujeito que é dado antes dos
outro modo, deveria apresentar-me como um sujeito tão colorido seus fins, considerado indispensável para o nosso conhecimento de nós
e tão variado quantas as representações de que tenho consciência próprios enquanto seres capazes de fazerem opções livres. E a sociedade
sobre mim mesmo" (Kant 1787: 154). encontrar -se-á melhor organizada quando for governada por princípios que
não pressupõem uma concepção particular do bem, uma vez que qualquer
A descoberta de que tenho que me conhecer a mim mesmo, quer como outro ordenamento seria incapaz de respeitar as pessoas enquanto seres
sujeito, quer como objecto da experiência, sugere dois modos diferentes de capazes de escolher. Em qualquer outro ordenamento, as pessoas seriam
conceber as leis que governam as minhas acções. Esta descoberta conduz- tratadas como objectos, em vez de sujeitos, como meios, em vez de fins em si
-nos do argumento epistemológico para um argumento suplementar, prá- mesmos.
tico, em favor da prioridade do sujeito. Enquanto objecto da experiência, eu Os temas deontológicos conhecem uma expressão muito semelhante
pertenço ao mundo sensível. Tal como os movimentos de todos os objectos, em grande parte do pensamento liberal contemporâneo. Assim, "os direitos
também as minhas acções são determinadas pelas leis da natureza e pelas garantidos pela justiça não estão dependentes do cálculo dos interesses
regularidades de causa e efeito. Em contrapartida, enquanto sujeito da sociais" (Rawls 1971: 4), pelo contrário, "funcionam como trunfos nas mãos
experiência, eu habito o mundo inteligível, ou supra-sensível, no qual sou dos indivíduos" (Dworkin 1978: 136) contra as políticas que pretendam
independente das leis da natureza e me apresento como sendo capaz de ser impor uma visão particular do bem sobre a sociedade, como um todo. "Uma
autónomo, isto é, capaz de agir de acordo com uma lei que me dou a mim vez que os membros de uma sociedade diferem nas suas concepções", o
mesmo. governo não os estará a respeitar como iguais se "preferir uma delas a expen-
Só a partir deste segundo ponto de vista é que eu me posso considerar sas das outras, seja porque os governantes acreditem que essa concepção é
livre, "uma vez que ser livre é não se encontrar sujeito às causas determi- inerentemente superior às demais, seja porque ela é partilhada pelo grupo
nantes do mundo sensível (precisamente aquilo que a razão tem sempre que mais numeroso ou mais poderoso" (Dworkin 1978: 127). Em comparação
se auto-atribuir)" (Kant 1785: 120). Se eu fosse um ser completamente empí- com o bem, os conceitos de justo e de injusto "possuem um estatuto inde-
rico, não seria capaz de atingir a liberdade, na medida em que cada exercício pendente e primordia:l na medida em que estabelecem a nossa posição
da minha vontade estaria condicionado pelo desejo de algum objecto. Todas básica enquanto entidades capazes de optarem livremente". Mais impor-
as escolhas seriam escolhas heterónomas, governadas pela procura de algum tante do que qua:lquer escolha, para o va:lor da condição de ser pessoa, "é a
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pressuposição e o substrato do próprio conceito de escolha. E é por isso que parte, defenderei que não somos capazes e que, é no carácter parcial desta
as normas relativas ao respeito pela pessoa de modo algum podem ser com- auto-imagem que se poderão encontrar os limites da justiça. Neste contexto,
prometidas, razão pela qual estas normas são absolutas relativamente aos são duas as questões que se colocam: identificar como é que estas falhas
vários fins que elegemos perseguir" (Fried 1978: 29). arruinam o primado da justiça e que virtude alternativa emerge quando nos
Em virtude da sua independência relativamente aos pressupostos psi- deparamos com os seus limites? Eis as questões a que esta obra procura res-
cológicos e teleológicos habituais, est~ liberalismo, pelo menos nas suas ponder. A título preliminar, convém ainda considerar outros dois desafios
versões contemporâneas, apresenta-se tipicamente como imune à maioria que se poderão erguer contra a perspectiva kantiana.
das controvérsias a que tradicionalmente as teorias políticas têm sido vul-
neráveis, especialmente no que respeita à natureza humana e ao significado
da vida boa. É por isso que se afirma que "o liberalismo não se apoia em A objecção sociológica
nenhuma teoria especial da personalidade" (Dworldn 1978: 142), que os seus
pressupostos de base não envolvem "nenhuma teoria particular das motiva- o primeiro destes desafios poderá ser apelidado de objecção socioló-
ções humanas" (Rawls 1971: 129), que "os liberais, enquanto tais, são indi- gica, na medida em que começa por sublinhar a influência penetrante das
ferentes" aos tipos de vida que os indivíduos possam eleger (Dworldn 1978: condições sociais na formulação dos valores individuais e das fórmulas de
143), e que, para aceitar o liberalismo, ninguém "necessita de tomar posição organização política. Argumenta-se que o liberalismo está errado na medida
relativamente a uma série de 'grandes questões',cujo carácter é extrema- em que a neutralidade não é possível, dado que, por mais que nos esforce-"
mente controverso" (Ackerman 1980: 361). mos, jamais seremos capazes de escapar por inteiro aos efeitos das nossas
Porém, se para o liberalismo deontológico certas "grandes questões" da condicionantes. Todos os ordenamentos políticos encarnam, por isso,
filosofia e da psicologia estão fora de discussão, isto apenas se deve ao facto alguns valores, contexto em que as questões que emergem são as de se saber
de ele reenviar para outros âmbitos a controvérsia que elas suscitam. Como de quem são os valores que prevalecem, e quem ganha e quem perde em
vimos, este liberalismo evita fazer fé numa qualquer teoria específica da pes- resultado da sua adopção. A apregoada independência do sujeito deontoló-
soa, pelo menos no sentido tradicional de atribuir a todos os seres humanos gico é uma ilusão liberal. Não ente~de a natureza fundamentalmente
uma natureza determinada, ou certos desejos e inclinações essenciais, tais "social" do homem, nem o facto de sermos seres condicionados "do princí-
como o egoísmo ou a sociabilidade, por exemplo. No entanto, e noutro sen- pio até ao fim". Não há nenhum ponto de isenção, nenhum sujeito trans-
tido, este liberalismo adopta, de facto, uma certa teoria da pessoa, preo- cendental capaz de se erguer fora da sociedade ou fora da experiência.
cupando-se não com o objecto dos desejos humanos, mas com o sujeito Somos em cada momento aquilo em que nos transformamos, um concate-
desses desejos e com a maneira como este sujeito se constitui. nado de desejos e de inclinações, sem que nada reste para habitar um domí-
Para que a justiça seja um valor primário, certos postulados acerca de nio numenal. A prioridade do sujeito só pode significar a prioridade do indi-
nós próprios têm que ser verdadeiros. Temos de ser criaturas de um certo víduo, influenciando assim a concepção em favor dos valores individualistas
tipo, relacionadas com as circunstâncias humanas de uma certa maneira. familiares à tradição liberal. A justiça parece ser primária apenas porque este
Em particular, temos que perspectivar a nossa circunstância sempre com um individualismo dá tipicamente lugar a reivindicações que colidem umas com
certo distanciamento, como condicionada, é certo, mas com uma parte de as outras. Os limites da justiça situar-se-ão, portanto, na possibilidade de se
nós a anteceder todas as condições. Só assim nos poderemos perspectivar cultivar as virtudes subjacentes à cooperação, tais como o altruísmo e a
simultaneamente como sujeitos e como objectos da experiência, como benevolência, as quais tornam o conflito menos dramático. No entanto,
agentes e não apenas como .instrumentos dos fins que perseguimos. Neste estas virtudes são precisamente aquelas que têm menores probabilidades de
sentido, o liberalismo deontológico pressupõe que somos capazes de - ou, desabrochar numa sociedade alicerçada sobre pressupostos individualistas.
melhor, que temos de - nos perspectivar como independentes. Pela minha Em resumo, a falsa promessa do liberalismo é o ideal de uma sociedade
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governada por princípios neutros. Afirma valores individualistas ao mesmo Se, por outro lado, o pI:opósito da objecção sociológica é desafiar esta
tempo que procura uma neutralidade que jamais poderá alcançar. pretensão epistemológica, não se percebe com que fundamento o poderá
Porém, em muitos aspectos, a objecção sociológica não consegue fazer. Talvez Hume se tenha aproximado mais da proposta de um eu total-
entender a força da perspectiva deontológica. Em primeiro lugar, não com- me~te, ~ondicionado de forma empírica, tal como o exige a perspectiva
preende a neutralidade que o liberalismo se propõe oferecer. A neutralidade soclOloglca, quando descreveu o eu como consistindo em "um feixe ou
que enforma os princípios da justiça não emerge do facto de admitir todos os colecção de percepções diferentes, as quais se sucedem, uma à outra, a uma
valores e todos os fins possíveis, mas antes do facto de tais princípios serem velocidade inconcebível, encontrando-se num fluxo e num movimento
derivados de um modo que não depende de quaisquer valores ou fins parti- permanentes" (1739: 252). Porém, e tal como Kant argumentaria mais tarde
culares. Com certeza que, uma vez que os princípios de justiça, assim deri- "nenhum eu fixo e duradoiro se pode apresentar num tal fluxo de aparência~
vados, sejam fixados, eles excluem certos fins - dificilmente poderiam regu- interiores". Para podermos dar sentido à continuidade do eu através do
lamentar o que quer que fosse se fossem incompatíveis com nada -, mas só tempo, temos de presumir algum princípio de unidade que "preceda toda a
aqueles que são injustos, isto é, aqueles fins que são inconsistentes com experiência, e que tome a própria experiência possível" (1781: l36). Na reali-
princípios cuja validade não depende da validade de um qualquer modo de dade, o próprio Hume havia antecipado esta dificuldade ao admitir que, no
vida particular. A sua neutralidade descreve o seu fundamento, não o seu limite, não era capaz de dar conta daqueles princípios "que reúnem as nos-
efeito. sas percepções sucessivas num só pensamento ou numa só consciência"
Porém, em muitos aspectos, até mesmo o seu efeito é menos restritivo (1739: 636). Por mais problemático que o sujeito transcendental kantiano
do que aquilo que a objecção sociológica sugere. O altruísmo e a benevolên- possa ser, a objecção sociológica não parece encontrar-se devidamente ape-
cia, por exemplo, são plenamente compatíveis com este liberalismo, e nada trechada para lhe dirigir uma crítica eficaz. A epistemologia que tem que
nos seus pressupostos desaconselha cultivá-los. A prioridade do sujeito não pressupor dificilmente se afigurará como mais plausível.
afirma que sejamos governados pelo egoísmo, mas apenas que quaisquer
interesses que tenhamos têm de ser os interesses de algum sujeito. Na pers- A deontologia com uma face·humeana
pectiva da justiça, eu sou livre de procurar o meu próprio bem, ou o bem de
outros, desde que não pratique a injustiça. E esta restrição não tem a ver O segundo desafio coloca uma dificuldade mais profunda ao sujeito
nem com o egoísmo nem com o altruísmo, mas apenas com o interesse pri- kantiano. Tal como o primeiro, tem uma proveniência empirista. Porém, ao
mordial de assegurar aos outros uma igual liberdade. As virtudes da coope- contrário do primeiro, procura proteger o liberalismo deontológico, em vez
ração não são, de modo algum, inconsistentes com· este liberalismo. de se opor a ele. Na verdade, este segundo desafio apresenta-se como uma
Por fim, não se percebe bem como é que a objecção sociológica se pro- reformulação compreensiva da perspectiva kantiana, ao contrário de se pro-
põe refutar a noção deontológica de independência. Se aquilo que propõe é por reformulá-Ia. Adopta a prioridade do justo sobre o bom, e até afirma a
uma objecção psicológica, então não conseguirá atingir a perspectiva deon- prioridade do sujeito sobre os seus fins. Onde se distancia de Kant é na nega-
tológica, na medida em que é num registo epistemológico que ela situa o seu ção de que só um sujeito transcendental ou numénico, a quem falte por
argumento. A independência do sujeito não acarreta que, enquanto um dado inteiro qualquer fundamento empírico, poderá ser um sujeito anterior e
psicológico, eu possa a qualquer momento convocar o distanciamento independente. Esta deontologia "revisionista" capta o espírito de muito
necessário para ultrapassar os meus preconceitos, ou situar-me para além liberalismo contemporâneo, encontrando a sua expressão mais plena no
das minhas convicções. Afirma antes que os meus valores e os meus fins não trabalho de John Rawls. "Para desenvolver uma concepção kantiana da jus-
definem a minha identidade, exigindo que eu me perspective como o porta- tiça que seja viável", escreve, "a força e o conteúdo da doutrina de Kant têm
dor de um eu distinto dos meus valores e dos meus fins, sejam eles quais de ser separadas da sua fundamentação no idealismo transcendental" e
forem. refundadas no "cânone de um empirismo razoável" (Rawls 1977: 165).
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Para Rawls, a concepção kantiana sofre de obscuridade e de um carác- Saber se a metafísica de Kant é um "contexto" destacável, ou antes um
ter arbitrário, na medida em que não se entende como é que um sujeito a pressuposto inelutável das aspirações morais e políticas partilhadas por Kant
quem se retirou o corpo poderia sem arbitrariedade produzir determinados e por Rawls - numa palavra, saber se o liberalismo político é possível sem um
princípios de justiça, ou, em qualquer caso, como é que as normas produzi- e~baraço metafísico - é uma das questões centrais colocadas pela concep-
das por um tal sujeito se poderiam aplicar a seres humanos concretos çao de Rawls. Neste livro defendemos que Rawls não tem sucesso nos seus
vivendo no mundo fenoménico. Apesar de todas as suas vantagens morais e propósitos, e que não é possível salvar o liberalismo deontológico das difi-
políticas, a metafísica idealista cede demasiado ao transcendente e, ao pos- culdades associadas ao sujeito kantiano. Ou a deontologia com uma face
tular um âmbito numenal, conquista para a justiça um lugar de primado, hu~e~na fracassa enquanto deontologia, ou então recria na posição original
mas a preço de lhe negar a sua condição humana. o SUjeIto sem corpo que se propunha evitar. A justiça não pode ser primária
Deste modo, Rawls assume como seu o projecto de preservar os ensi- no sentido deontológico, na medida em que nós não somos capazes de nos
namentos deontológicos de Kant, substituindo as obscuridades germânicas vermo~ a nós pr~prios como o tipo de seres que a ética deontológica exige
por uma metafísica domesticada, menos vulnerável à acusação de arbitra- ~ue se!amos - seja ela kantiana ou rawlsiana. Porém, prestar atenção a este
riedade e mais de acordo com o temperamento anglo-americano. O seu pro- lIberalIsmo tem mais do que um interesse meramente intelectual. A tentativa
pósito consiste em derivar os primeiros princípios a partir de uma situação de Rawls de situar o sujeito deontológico, devidamente reconstruído, trans-
hipotética de escolha (a "posição original"), caracterizada por condições porta-~os para além da deontologia,· em direcção a uma concepção de
destinadas a produzir um resultado determinável, adequado a seres huma- comumdade que fixa os limites da justiça e identifica as razões do carácter
nos concretos. Aqui, não é o reino dos fins que prevalece, mas as circunstân- incompleto do ideal liberal.
cias ordinárias da justiça - tal como pedidas de empréstimo a Hume. Não
um futuro moral que cada vez se afasta mais de nós, mas um presente fir-
memente ancorado na circunstâncias humanas, e que oferece a ocasião à
justiça. Se o resultado for a deontologia, ao menos que se trate de uma
deontologia com uma face humeana2 •

liA teoria da justiça tenta fazer uma apresentação natural, de


natureza processual, da concepção kantiana do reino dos fins,
bem como das noções de autonomia e de imperativo categórico.
Deste modo, a estrutura subjacente à doutrina de Kant é libertada
do contexto metafísico, de forma a poder ser vista com maior cla-
reza e apresentada relativamente livre de objecções" [264 (213)]3.

2 Agradeço a Mark Hulbert por me ter sugerido esta expressão.


3 Todos os números de páginas apresentados de forma isolada referem-se a Rawls, A Theory
ofJustice, Oxford, 1971. [Nota do Tradutor: A fim de facilitar a localização das citações desta obra
tanto no original inglês como na tradução portuguesa publicada com o título Uma Teoria da
Justiça pela Editorial Presença (lisboa, 1993), optamos, nesta tradução, pela apresentação, entre
parêntesis rectos, dos números de página correspondentes a uma e a outra. Assim, sempre que a
seguir a uma citação surgirem dois números entre parêntesis rectos, o primeiro corresponde ao de O Liberalismo Político de Rawls. Num caso como no outro, optamos pela tradução portuguesa
número de página da primeira edição desta obra e o segundo, entre parêntesis curvos, ao da de uma e de outra destas obras em todas as citações, introduzindo-lhes as correcções
tradução portuguesa. No último capítulo, adoptamos o mesmo critério relativamente às citações apropriadas.]
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A justiça e o sujeito moral

Tal como Kant, Rawls é um liberal deontológico. O seu livro adopta as


principais teses da ética deontológica como reivindicação central. Que esta
reivindicação tenha sido pouco discutida directamente na volumosa biblio-
grafia crítica dedicada a Uma Teoria da Justiça, dá bem conta da solidez do
lugar que essas teses ocupam nos pressupostos morais e políticos do nosso
tempo. Elas não dizem respeito aos princípios da justiça, mas ao seu próprio
estatuto. Trata-se da principal convicção que Rawls procura, acima de tudo,
defender, sendo com a sua afirmação que o texto abre e encerra. Trata-se da
reivindicação de que "a justiça é a primeira virtude das instituições sociais",
a consideração mais importante para a avaliação da estrutura básica da
sociedade e da direcção impressa à mudança social.

"A Justiça é a virtude primeira das instituições sociais, tal


como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria,
por mais elegante e parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou
alterada se não for verdadeira; da mesma maneira, as leis e as ins-
tituições, não obstante o serem eficazes e bem concebidas, devem
ser reformuladas ou abolidas se forem injustas [... ] Sendo as virtu-
des primeiras da actividade humana, a verdade e a justiça não
podem ser objecto de qualquer compromisso" [3-4 (27-28)].

"Tentei formular uma teoria que nos permita compreender e


apreciar estes sentimentos relativos ao primado da justiça. A teoria
da justiça como equidade é o resultado deste esforço; ela articula
estas opiniões e reforça o seu sentido geral" [586 (441)].

É esta reivindicação do primado da justiça que me proponho examinar.


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impede que a perda de liberdade para alguns seja justificada pelo


o primado da justiça e a prioridade do eu
facto de outros passarem a partilhar um bem maior. Não permite
Ora, o primado da justiça constitui uma reivindicação poderosa, exis- que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam compensados pelo
tindo por isso o perigo de a familiaridade com esta ideia nos fazer esquecer a aumento das vantagens usufruídas por um maior número. Assim
sua audácia. Para compreendermos a razão pela qual esta ideia é intuitiva- sendo, numa sociedade justa, a igualdade de liberdades e de
mente apelativa, mas ao mesmo tempo profundamente intricada e proble- direitos entre os cidadãos é considerada como definitiva; os direi-
mática, poderíamos considerar reconstruí-la do seguinte modo, a fim de tos garantidos pela justiça não estão dependentes da negociação
podermos captar simultaneamente a sua familiaridade e a sua força. A jus- política ou do cálculo dos interesses sociais" [3-4 (27)].
tiça não é apenas um valor importante entre outros, que deva ser ponderado
e considerado conforme as exigências da ocasião, mas antes o meio através No entanto, há ainda outro sentido em que a justiça "tem" que antece-
do qual todos os valores são ponderados e avaliados. Ela é, neste sentido, o der os valores que é chamada a avaliar - anteceder no sentido de ser deter-
"valor dos valores" " não estando, por assim dizer, sujeita ao mesmo tipo de minada independentemente deles - e este tem a ver com uma característica
ponderações dos outros valores, por ela regulados. A justiça é o padrão atra- problemática dos padrões de julgamento, em geral. Trata-se de uma exigên-
vés do qual valores em conflito são reconciliados e as distintas concepções cia epistemológica, e não moral, que surge a partir do problema suscitado
do bem são acomodadas, mesmo se nem sempre resolvidas. Como tal, ela pela separação dos padrões de avaliação dos próprios objectos que estão a
tem de possuir uma certa .prioridade sobre esses valores e esses bens. ser avaliados. Tal como Rawls insiste em afirmar, necessitamos de um
Nenhuma concepção do bem poderá derrubar as exigências da justiça, na "ponto de Arquimedes" a partir do qual possamos avaliar a estrutura básica
medida em que essas exigências são de uma ordem qualitativamente dife- da sociedade. O problema reside, então, em esclarecer onde é que se poderá
rente: a sua validade é estabelecida de um modo diferente. A justiça perma- encontrar um tal ponto. Duas possibilidades parecem apresentar-se, ambas
nece separada e à parte relativamente aos valores sociais, em geral, tal como igualmente insatisfatórias. Se os princípios de justiça são derivados dos
um processo justo de decisão terá de manter a distância relativamente às valores e das concepções do bem em vigor numa sociedade, então nada nos
partes que nele se apresentam. garante que a perspectiva crítica fornecida por eles detenha uma maior vali-
Porém, qual é o sentido exacto em que a justiça, enquanto árbitro dos dade do que aquela correspondente às concepções que deveriam ser regula-
valores, "tem" de ser anterior a todos eles? Um dos sentidos desta prioridade das por eles, desde logo na medida em que, enquanto produto de tais valo-
é o facto de ser um "dever" moral, tal como resulta da crítica de Rawls à ética res, a justiça se encontraria sujeita às mesmas contingências que eles.
utilitarista. Desde esta perspectiva, a prioridade da justiça é uma exigência A alternativa seria um critério de aferição de algum modo exterior aos valores
da pluralidade essencial da espécie humana e da essencial inviolabilidade e interesses dominantes na sociedade. Porém, se a nossa experiência for
dos indivíduos que a compõem. Sacrificar a justiça em proveito do bem- inteiramente desqualificada, como fonte de tais princípios, a alternativa
-estar geral é violar o inviolável, não respeitar a distinção entre as pessoas. será confiar em pressupostos apriorísticos cujas credenciais se afiguram
igualmente suspeitas, se bem que por razões opostas. A primeira é arbitrária,
"Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre
porque contigente; a segunda seria arbitrária, porque sem fundamento.
da justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da socie-
Quando a justiça decorre dos valores existentes, os padrões de avaliação
dade como um todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça
confundem-se com os objectos a avaliar, não havendo qualquer maneira de
os distinguir uns dos outros. Quando a justiça nos é fornecida por princípios
I A expressão é de Alexander Bickel, que atribui à lei uma primazia comparável ao estatuto

que aqui é consignado à justiça. "O valor irredutível, se bem que não exclusivo, é a ideia de lei. a priori, não dispomos de qualquer instrumento seguro para os sustentar.
A lei é mais do que apenas outra opinião; não porque encapsule todos os valores certos [...] mas Estas são algumas das difíceis perplexidades e exigências do ponto de
porque ela é o valor dos valores. A lei é a instituição principal através da qual uma sociedade
Arquimedes: encontrar uma perspectiva que não esteja nem comprometida
afirma os seus valores" (1975: 5).
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pelas suas implicações com o mundo, nem dissociada dele e, por isso Contrariamente ao que se verifica no utilitarismo, a justiça como equi-
mesmo, desqualificada pelo seu distanciamento. "Ê necessária uma concep- dade afirma incondicionalmente o direito individual a igual liberdade para
ção que nos permita distinguir o nosso objectivo à distância" [22 (840)], mas cada um face às preferências da maioria.
não a uma distância muito grande; o ponto de vista desejado "não é o de um
certo lugar para além do mundo, nem o ponto de vista de um ser tran.5cen- "Desde logo, as convicções intensas da maioria, se forem
dente; trata-se, antes, de uma forma de pensar e de sentir que os sujeitos efectivamente meras preferências sem qualquer apoio nos princí-
racionais podem adoptar no interior do mundo" [587 (441)]. pios da justiça anteriormente estabelecidos, não têm qualquer
Antes de considerarmos a resposta de Rawls a este desafio, valerá a peso. A satisfação destes sentimentos não tem qualquer valor que
pena sublinhar como o argumento que apresenta em defesa do primado da possa ser contraposto às exigências de igual liberdade para todos.
justiça está relacionado com vários argumentos paralelos dispersos por toda [... ] Contra estes princípios, nem a intensidade do sentimento, nem
a sua teoria, os quais, quando perspectivados no seu conjunto, revelam uma o facto de ele ser partilhado pela maioria tem qualquer relevância.
estrutura de argumento característica da ética deontológica na sua globali- Na visão contratualista, assim, os fundamentos da liberdade são
dade. A noção do primado da justiça está directamente ligada à noção mais completamente separados das preferências existentes" [450 (344)].
geral de prioridade do justo sobre o bom. Tal como o primado da justiça, a
prioridade do justo sobre o bom surge inicialmente enquanto reivindicação Apesar de, no início, Rawls esgrimir argumentos contra as concepções
moral de primeira ordem em oposição à doutrina utilitarista, mas tem vindo utilitaristas, no seu todo, o seu projecto é mais ambicioso, na medida em
ultimamente a assumir também um certo estatuto meta-ético, particular- que a justiça como equidade se apresenta não só contrária ao utilitarismo,
mente quando Rawls apresenta um argumento mais geral em favor de teo- mas ainda contrária a todas as teorias teleológicas, como tais. Enquanto
rias éticas deontológicas, em oposição a éticas teleológicas. reivindicação meta-ética de segunda ordem, a prioridade do justo significa
Enquanto reivindicação moral directa, a prioridade do justo sobre o que, dos "dois conceitos de ética", o justo é estabelecido independente-
bom significa que os princípios do justo prevalecem invariavelmente sobre mente do bom, e não ao contrário. Esta prioridade fundacional permite que
considerações de bem-estar ou de satisfação dos desejos, independente- o justo permaneça aparte dos valores e das concepções prevalecentes do
mente da sua intensidade, delimitando, de antemão, o conjunto dos desejos bem e faz com que a concepção de Rawls seja deontológica em vez de teleo-
e dos valores que merecem satisfação. lógica.
Uma das consequências de primeira ordem da ética deontológica con-
"Os princípios do justo, e, portanto, também os da justiça, siste em assegurar à igual liberdade de todos os indivíduos um alicerce mais
limitam os desejos cuja satisfação pode ter valor; impõem restri- sólido do que o que é disponibilizado pelos pressupostos teleológicos.
ções quanto ao que possam ser as concepções razoáveis do bem Ê neste contexto que a importância da deontologia para as preocupações
de cada um. [... ] Podemos expressar este facto afirmando que, na habituais do liberalismo emerge com maior clareza. Sempre que o justo for
teoria da justiça como equidade, o conceito do justo é anterior ao instrumental para a prossecução de um fim qualquer, considerado como
conceito de bom. [... ] A prioridade da justiça é reconhecida, em sendo anterior, a negação da liberdade de alguns pode justificar-se em nome
parte, através da afirmação de que os interesses que obrigam à do bem superior de outros. As liberdades de uma cidadania igual ficam,
violação da justiça são destituídos de valor. Não possuindo qual- então, em perigo "quando se baseiam em princípios teleológicos. Os argu-
quer mérito, as suas exigências não podem ser impostas" [31 (47)]. mentos a seu favor assentam em cálculos precários, bem como em premis-
sas controversas e incertas" [211 (174)]. Na perspectiva deontológica, "a
igualdade das liberdades tem uma base inteiramente diferente". Deixando
de ser meros instrumentos para a maximização da satisfação ou para a con-
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cretização de algum objectivo superior, "estes direitos são atribuídos que ser assegurada antes de qualquer um dos fins ou dos atributos que car-
para preencher os princípios da cooperação que os cidadãos aceitarão rego. Como Rawls escreve, "até mesmo um fim dominante tem de ser esco-
quando cada um deles se representar, de forma justa, como pessoa moral" lhido de entre numerosas possibilidades". E antes que um fim possa ser
[211 (175)], como um fim em si mesmo. escolhido, um eu tem de estar disponível para o seleccionar.
Porém, a incapacidade de assegurar os direitos de igual liberdade Mas, qual é exactamente o sentido em que um eu, enquanto agente
denuncia uma falha mais profunda na concepção teleológica. Na perspectiva capaz de escolher, tem de ser anterior aos fins que elege? Um sentido desta
de Rawls, a teleologia confunde-se na relação do justo com o bom na medida prioridade é o de um "dever" moral que reflecte o imperativo de respeito,
em que concebe de forma errada a relação do eu com os seus fins. O que acima de tudo da autonomia moral do indivíduo; um dever de considerar a
conduz Rawls a afirmar uma nova prioridade deontológica. Ao contrário do pessoa humana como portadora de uma dignidade que está para além dos
que afirma a teleologia, o que é mais importante na nossa condição de pes- papéis que desempenha e dos fins que persegue. Porém, existe ainda um
soa, não é os fins que escolhemos, mas a nossa capacidade de os eleger. outro sentido no qual o eu "tem" de ser anterior aos fins que prossegue,
E esta capacidade está localizada num sujeito que é necessariamente anterior no sentido de identificável independentemente deles; e esta é uma
anterior aos fins que adopta. exigência epistemológica.
Neste segundo sentido,. a explicação da prioridade do eu reproduz as
"A estrutura das doutrinas teleológicas sofre de erros básicos perplexidades queencontrámos no caso da justiça: Naquele contexto, neces-
de concepção: relacionam desde o início o justo e o bem de uma sitámos de um ponto de vista para podermos avaliar com independência os
forma errada. Não devemos tentar dar forma às nossas vidas valores sociais prevalecentes. No caso da pessoa, necessitamos de uma
olhando primeiro para o bem definido de forma independente. noção de sujeito independente do seu querer e dos seus fins. Tal como a
O que primeiramente r~vela a nossa natureza não são os objecti- prioridade da justiça emergiu da necessidade de distinção entre os padrões
vos, mas antes os princípios que aceitaríamos como regendo as de avaliação e a sociedade a ser avaliada, também a prioridade do eu emerge
condições de fundo sobre as quais estes objectivos devem ser for- . da necessidade paralela de distinção entre o sujeito e a sua situação. Apesar
mados, bem como o modo pelo qual eles são prosseguidos. O eu é de Rawls não nos oferecer esta explicação, creio que ela se encontra implícita
anterior aos objectivos que defende; mesmo um objectivo domi- na sua teoria, sendo uma reconstrução razoável das perplexidades que se
nante deve ser escolhido de entre numerosas possibilidades. [... ] propõe abordar.
Logo, devemos inverter a relação entre o justo e o bem proposta Se o eu não constituísse mais do que um concatenado de vários dese-
pelas doutrinas teleológicas, de modo a reconhecer a prioridade jos, necessidades e fins contingentes, não existiria nenhum modo não arbi-
do justo. A teoria moral é pois desenvolvida na direcção oposta" trário, seja para o eu, seja para algum observador do exterior, de identificar
[itálicos nossos, 560 (422)]. estes desejos, interesses e fins como sendo os desejos de um sujeito parti-
cular determinado. Em vez de serem do sujeito, eles seriam o sujeito. Mas
A prioridade do eu sobre os seus fins significa que não sou um mero então, o sujeito que seriam tomar-se-ia indistinguível do oceano de atribu--
receptáculo passivo dos objectivos, atributos e fins acumulados que me tos indiferenciados de uma situação desarticulada, o que equivaleria a dizer
foram despejados pela experiência, nem um simples produto dos caprichos que não conseguiríamos identificar nenhum sujeito, ou, pelo menos, não
das circunstâncias, mas sou sempre, irredutivelmente, um agente activo, seríamos capazes de reconhecer ou de distinguir um sujeito que se asseme-
volitivo, distinguível do meu ambiente, e capaz de escolher. Para identificar lhasse a uma pessoa humana.
um qualquer conjunto de características como sendo os meus objectivos, Qualquer teoria do eu do tipo" eu sou x, y e z", em vez de "eu tenho x, y
ambições, desejos, etc., tenho sempre que sugerir a existência de algum e z", (sendo x, y e z desejos, etc.) anula a distância entre sujeito e situação
sujeito, de um "eu" que se erga por detrás deles, tendo a forma deste "eu" necessária para qualquer concepção coerente de um sujeito humano
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particular. Este espaço, ou medida de distanciamento, é essencial para o ções teleológíca e deontológica darem conta da unidade do eu de maneiras
aspecto ineludivelmente possessivo de qualquer concepção coerente do eu. distintas. Enquanto que, de acordo com Rawls, as concepções teleológicas
O aspecto possessivo do eu significa que nunca poderei ser inteiramente assumem que a unidade do eu se constrói ao longo da experiência - no caso
constituído pelos meus atributos, que terão de existir sempre alguns do hedonismo, através da maximização da soma de experiências agradáveis
atributos que eu, em vez de ser, tenho. De outro modo, qualquer alteração da dentro dos seus "limites psíquicos" -, a justiça como equidade inverte esta
minha situação, por mais pequena que fosse, provocaria uma alteração na p.erspectiva e concebe a unidade do eu como sendo algo previamente esta-
pessoa que eu sou. Porém, tomada literalmente, e dado que em cada belecido, talhado antes das escolhas que ele faz no decurso da experiência.
momento que passa a minha situação se altera, pelo menos em algum
aspecto, isto significaria que a minha identidade se reduziria à "minha" "As partes [na posição original] consideram a personalidade
situação, sem dela se poder distinguir. Sem alguma distinção entre o sujeito moral, e não a capacidade para o prazer e para a dor, como o
e o objecto de posse, torna-se impossível distinguir entre aquilo que sou eu e aspecto fundamental do eu. [... ] A ideia principal é que, dada a
aquilo que é meu, contexto em que ficaria reduzido à condição que prioridade do justo, a escolha da nossa concepção do bem está
poderíamos apelidar de sujeito radicalmente situado. enquadrada dentro de limites definidos. [... ] A unidade essencial
Ora, um sujeito radicalmente situado não se adequa à noção de pessoa, do eu está já prevista pela concepção do justo" [itálicos nossos,
tal como um critério de avaliação completamente enredado nos valores 563 (424-5)].
dominantes não se adequa à noção de justiça; o impulso para a busca da
prioridade reflectido em ambos os casos na procura de um ponto de Arqui- Aqui, como nos casos da igualdade de liberdades e da prioridade do
medes é resposta a ambas as dificuldades. justo acima discutidos, os pressupostos deontológicos podem ser vistos
Porém, em ambos os casos, as alternativas, bem como as possíveis como produzindo as conclusões liberais a que estamos familiarizados, ali-
localizações desse ponto de Arquimedes, encontram-se seriamente limita- cerçando-as com mais solidez do que o permitido pela metafísica tradicional
das. No caso da justiça, a alternativa a uma concepção situada assemelhar- empiricista ou utilitarista. O tema comum partilhado por muita da doutrina
-se-ia a um apelo a princípios a priori, para além da experiência. Mas isto liberal clássica que emerge da versão deontológica da unidade do eu é a
equivaleria a afirmar com excessiva ênfase a prioridade desejada, e a arbi- noção do sujeito humano como um agente soberano dotado da faculdade de
trariedade seria o preço a pagar pela obtenção do distanciamento exigido. escolher, uma criatura cujos fins são seleccionados por ela, em vez de lhe
No caso do sujeito emerge uma dificuldade semelhante. Um eu totalmente serem dados, e que atinge os seus objectivos e os seus propósitos através de
separado das características que lhe são dadas empiricamente não seria actos da sua vontade, em oposição, digamos, a actos de cognição. "Assim,
mais do que uma espécie de consciência abstracta (consciente de quê?), um um sujeito moral é alguém que possui objectivos por si escolhidos, e cuja
sujeito radicalmente situado que cede o lugar a outro radicalmente despro- preferência fundamental se dirige para condições que lhe permitem cons-
vido de corpo. Mais uma vez, necessitamos aqui "de uma concepção que nos truir um modo de vida que expresse a sua natureza enquanto ser racional
permita distinguir o nosso objectivo à distância", mas não a uma distância livre e igual, de forma tão plena quanto as circunstâncias o permitam"
tão grande que o nosso objectivo venha a fugir de vista e a nossa visão se [561 (423)].
venha a dissolver na abstracção. A unidade prévia do eu significa que o sujeito, independentemente dos
Deste modo podemos verificar, pelo menos nas suas linhas gerais, condicionamentos que lhe possam ser impostos pelo ambiente em que está
como o argumento se desenvolve e se sustenta, como o primado da justiça, a inserido, é sempre, irredutivelmente, anterior aos seus valores e aos seus
rejeição da teleologia e a prioridade do eu se inter-relacionam, e como estas fins, e nunca completamente constituído por eles. Poderão vir tempos em
reivindicações apoiam a posição liberal mais usual. A conexão entre a pers- que os condicionantes serão enormes e as opções reduzidas; apesar disso, o
pectiva meta-ética e a concepção do eu pode ser vista no facto de as concep- agir soberano do homem, enquanto tal, permanecerá independente de
48 49

qualquer condição particular de existência e antecipadamente garantido. Na desejo a ser ponderado entre outros. Este sentimento revela aquilo
concepção deontológica, jamais nos poderemos encontrar de tal modo con- que o sujeito é, e o compromisso nesta matéria não permite ao eu
dicionados ao ponto de o nosso eu se tomar completamente constituído atingir a liberdade plena, antes cedendo aos acidentes e contin-
pela nossa situação, os nossos fins completamente determinados de tal gências do mundo" [575 (432-433)J.
modo que o eu deixe de ser anterior a eles. As consequências para a política e
para a justiça de uma tal perspectiva são consideráveis. Enquanto se assumir A conexão entre o primado da justiça e as outras características centrais
que o homem é por natureza um ser que elege os seus fins, e não, como o da concepção rawlsiana - a prioridade do justo, a meta-ética deontológica e
concebiam os antigos, um ser que descobre os seus fins, a sua preferência a unidade prévia do eu - é reveladora da estrutura global da teoria de Rawls e
terá necessariamente de se situar nas condições de escolha, em vez de indicativa de quão profunda e poderosa se destinava ser a reivindicação do
privilegiar, por exemplo, as condições de autoconhecimento. primado da justiça. Ela sugere igualmente como este conjunto de proposi-
Poderemos apreciar toda a força do argumento a favor do primado da ções' caso possam ser defendidas, fornece um alicerce impressionante,
justiça, nas suas dimensões moral e epistemológica, à luz da discussão do eu simultaneamente moral e epistemológico, para as principais doutrinas libe-
apresentada por Rawls. Uma vez que o eu deve a sua constituição, a sua rais. Procurámos compreender estas reivindicações e clarificar as suas inter-
condição de antecedente, ao conceito de justo, é apenas quando agimos em conexões, perspectivando-as como respostas às perplexidades colocadas por
função de um sentido de justiça que podemos exprimir a nossa verdadeira duas reconstruções inter-relacionadas. A primeira procura um critério de
natureza. É por isso que o sentimento de justiça não pode ser visto apenas avaliação que não esteja cOrriprometido com os critérios existentes, nem seja
como um desejo, entre outros, mas tem de ser perspectivado como motiva- fornecido arbitrariamente. E a segunda procura fornecer uma concepção do
ção de uma ordem qualitativamente superior; daí que a justiça não seja ape- eu que não o dê como radicalmente situado e por isso mesmo indistinguível
nas um valor importante, entre outros, mas seja, na verdade, a primeira vir- do seu meio-ambiente, nem seja radicalmente destituído de um corpo e por
tude das instituições sociais. isso mesmo puramente formal. Cada uma destas reconstruções coloca-nos
perante um conjunto de alternativas inaceitáveis, exigindo para a sua solu-
"O desejo de expressar a nossa natureza enquanto seres livres ção uma espécie de ponto de Arquimedes capaz de se conseguir libertar do
e iguais apenas pode ser satisfeito agindo como se os princípios do contingente sem cair na arbitrariedade.
justo e da justiça tivessem a primeira prioridade. [... ] É ao agir de Nesta matéria, o projecto de Rawls assemelha-se muito ao de Kant.
acordo com esta prioridade que expressamos a nossa liberdade Porém, apesar das intenções quase comuns e das afinidades deontológicas
relativamente às contingências e aos acasos. Assim, para realizar a que partilham, a solução proposta por Rawls afasta-se radicalmente da de
nossa natureza, não temos outra alternativa que não seja a de pla- Kant. A diferença que as demarca reflecte a preocupação de Rawls em
near a preservação do nosso sentido da justiça e fazê-lo dominar estabelecer as prioridades deontológicas exigidas - incluindo a prioridade do
os nossos restantes objectivos. Este sentimento não pode ser eu - sem recorrer a um sujeito transcendental, ou de qualquer outro modo
satisfeito se aceitarmos compromissos e se ponderarmos este incorpóreo. Este contraste assume um interesse especial, uma vez que o
objectivo relativamente aos restantes, como não sendo senão um idealismo de Kant - a dimensão que Rawls procura evitar acima de tudo -
de entre muitos desejos. Trata-se do desejo de, acima de tudo, nos orientou uma boa parte da filosofia eurocontinental dos séculos XIX e XX
conduzirmos de uma certa forma, constituindo um esforço que numa· direcção largamente alheia à tradição anglo-americana de pen-
contém em si mesmo a sua própria prioridade" [574 (432)]. samento moral e político, em que o trabalho de Rawls está firmemente
instalado.
"O que não podemos fazer é expressar a nossa natureza Para Kant, a prioridade do direito, ou a supremacia da lei moral, e a
seguindo um plano que veja o sentido da justiça como apenas um unidade do eu, ou a unidade sintética da percepção, apenas se poderiam
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estabelecer através de uma dedução transcendental e da afirmação de um justiça fique prejudicada por quaisquer ideias preconcebidas, ditadas pelas
domínio inteligível enquanto pressuposto necessário da nossa capacidade contingências das circunstâncias naturais e sociais, e garantir a eliminação
de sermos livres e de nos conhecermos a nós próprios. Rawls rejeita a metafí- de toda~ as considerações tidas por irrelevantes a partir de um ponto de vista
sica de Kant, mas acredita ser capaz de preservar a sua força moral "dentro moral: E o véu de ignorância que garante que os princípios da justiça serão
do âmbito de uma teoria empírica" (Rawls 1979: 18). Esta é a função da posi- selecclOnados em condições de igualdade e de equidade. Uma vez que as
ção original. partes do contrato não se distinguem por possuítem interesses diferentes,
uma consequência adicional do véu de ignorância é assegurar que o acordo
inicial seja unânime.
Liberalismo sem metafísica: a posição original O que as partes sabem, de facto, é que, como toda a gente, valorizam
certos bens sociais primários. Bens primários são "coisas que se presume
A posição original é a resposta de Rawls a Kant; é a sua alternativa ao que um homem racional deseje, independentemente de desejar mais o que
caminho apresentado na Crítica da Razão Pura e a 'chave para a solução pro- quer que seja", e incluem coisas como direitos e liberdades, oportunidades e
posta por Rawls para as perplexidades que temos vindo a analisar. É a posi- poderes, rendimento e riqueza. Independentemente dos valores, dos planos
ção original que "nos permite distinguir o nosso objectivo à distância", mas e dos objectivos últimos de uma pessoa, presume-se que existem certas coi-
não a uma distância tão grande que nos atire para o domínio do transcen- sas das quais se preferiria ter mais, em vez de menos, na medida em que são
dental. Ela procura satisfazer estas exigências descrevendo uma situação susceptíveis de serem úteis para a promoção de todos os seus fins, quaisquer
original de equidade e classificando de justos aqueles princípios que vierem que eles sejam. Por isso, se bem que as partes que integram a posição origi-
a contar com o acordo das partes, como seres racionais sujeitos às condições nal ignorem quais sejam os seus fins particulares, presume-se que todas se
por ela impostas. encontrem motivadas pelo desejo de certos bens primários.
Dois ingredientes cruciais habilitam a posição para resolver os dilemas O conteúdo preciso do rol de bens primários é dado por Rawls naquilo
descritos pelas reconstruções e para responder à necessidade de um ponto que apelida de teoria restrita do bem. Ela é restrita no sentido em que incor-
de Arquimedes. Cada um deles assume a forma de uma pressuposição pora pressupostos mínimos e amplamente partilhados acerca dos tipos de
acerca das partes da posição original. A primeira diz-nos aquilo que elas não coisas capazes de se provarem úteis em todas as concepções particulares do
conhecem; a segunda, aquilo que elas conhecem. Aquilo que não sabem bem e, por isso, susceptíveis de serem partilhados pelas pessoas, indepen-
decorre do facto de não disporem de qualquer informação que lhes permita dentemente dos seus desejos mais específicos. A teoria restrita do bem dis-
distinguirem-se uns dos outros enquanto seres humanos particulares que tingue-se da teoria plena pelo facto de a primeira não fornecer uma base
são. Trata-se do pressuposto do véu de ignorância. No quadro deste pressu- para se poder ajuizar ou escolher entre vários bens ou fins particulares. Por
posto, assume-se que as partes não possuem qualquer conhecimento do isso, enquanto o véu de ignorância assegura que as partes deliberam em
lugar que ocupam na sociedade: da sua raça, do seu sexo ou da classe social condições de equidade e de unanimidade, a concepção de bens primários
em que se inserem, do seu nível de bem-estar ou da sua fortuna, da sua inte- provoca as motivações mínimas necessárias para desencadear uma situação
ligência, da sua força física ou das suas outras qualidades ou capacidades de escolha racional, e para viabilizar uma solução precisa. Em conjunto,
naturais. Elas nem sequer conhecem as suas concepções do bem, os seus estes dois pressupostos asseguram que as partes actuam apenas sobre
valores, os seus objectivos ou os seus propósitos de vida. As partes sabem aqueles interesses que são comuns, isto é, comuns a todas as pessoas racio-
que de facto possuem estas concepções e consideram que merecem ser nais, o primeiro dos quais vem a ser um interesse no estabelecimento de
promovidas, sejam elas quais forem, mas vêem-se forçadas a seleccionar os termos de cooperação social de tal ordem que cada pessoa desfrute da maior
princípios da justiça numa situação de ignorância temporária em relação a liberdade para realizar os seus objectivos e os seus propósitos, compatível
elas. Esta restrição tem por propósito evitar que a escolha dos princípios da com a garantia de igual liberdade para os outros.
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Os princípios da justiça emergem da posição original num processo de Arquirnedes que nem está radicalmente situado, nem é radicalmente
que pode ser perspectivado em três estádios. Em primeiro lugar surge a teo- destituído de corpo; nem se encontra "à mercê dos desejos e dos interesses
ria restrita do bem, encarnada na descrição da situação de escolha inicial. existentes", nem depende de considerações a priorí.
A partir da teoria restrita, são derivados os dois princípios da justiça que, por
sua vez, definem o conceito de bem e fornecem uma interpretação de tais "O ponto essencial é que, apesar das características indivi-
valores como o de bem da comunidade. É importante notar que, apesar de a dualistas da teoria da justiça como equidade, os dois princípios da
teoria restrita do bem ser anterior à teoria do justo e aos princípios da justiça, justiça não dependem de forma contingente dos desejos existentes
ela não constitui uma teoria suficientemente substancial para derrubar a ou das condições sociais presentes. Podemos, assim, estabelecer
prioridade do justo sobre o bem responsável por conferir a esta concepção o uma concepção da estrutura básica justa e um ideal da pessoa que
seu carácter deontológico. A prioridade do justo da qual a teoria depende com ela seja compatível e que possa servir como padrão para ava-
insere-se na teoria plena do bem - a teoria que tem a ver com valores e fins liar as instituições e para orientar a direcção geral da mudança
particulares. E a teoria plena do bem surge apenas após os princípios da social. Para encontrar um ponto de Arquimedes, não é necessário
justiça e à luz deles. Conforme Rawls explica, apelar para princípios apriorísticos ou perfeccionistas. Assumindo
que certos desejos gerais são desejos de bens sociais primários e
"Para afirmar [os princípios do justo] é necessário assentar tomando como base os acordos que poderão ser obtidos numa
numa noção do bem, já que necessitamos de formular hipóteses situação inicial devidamente definida, podemos alcançar a neces-
quanto à motivação das partes na posição original. Dado que essas sária independência fàce às circunstâncias· existentes" [itálicos
hipóteses não devem sacrificar a posição prioritária do conceito de nossos, 263 (212)].
justo, a teoria do bem usada na argumentação em favor de princí-
pios da justiça é limitada ao estritamente essencial. A esta análise Este é, em resumo, o processo através do qual os dois princípios da jus-
do bem chamo teoria restrita: o seu objectivo é o de garantir as tiça são derivados. Conforme Rawls sublinha, a justiça como equidade, tal
premissas relativas aos bens primários que são necessários para como as outras perspectivas de contrato social, comporta duas partes.
atingir os princípios da justiça. Uma vez elaborada esta teoria e Aprimeira oferece uma interpretação da situação original e do problema de
analisados os bens primários, podemos utilizar os princípios da escolha que ali se coloca. A segunda, conforme se argumenta, envolve os
justiça para o desenvolvimento daquilo que designarei por teoria dois princípios da justiça susceptíveis de serem objecto dessa escolha.
plena do bem" [396 (305-6)]. "É possível aceitar a primeira parte da teoria, ou alguma das suas variantes,
sem aceitar a outra, e reciprocamente". [15 (36)]. Até mesmo antes de Rawls
Este processo em três estádios parece satisfazer as exigências deontoló- se ter dedicado aos princípios concretos da justiça que acredita seriam selec-
gicas de Rawls da seguinte forma. A prioridade do justo sobre (a teoria plena cionados, é possível identificar dois tipos de objecções que provavelmente
do) bem satisfaz o requisito de que o critério de avaliação seja anterior aos emergirão na passagem da primeira para a segunda metade da teoria.
objectos a serem avaliados e distinto deles, não se encontrando comprome- No quadro do primeiro conjunto de objecções poder-se-ia questionar
tido com as necessidades e os desejos existentes na medida em que não está se a posição original consegue, de facto, assegurar um distanciamento
implicado neles. E o facto de os princípios do justo derivarem, não de genuíno das necessidades e dos desejos existentes. Objecções deste tipo
nenhures, mas de uma teoria restrita do bem relacionada com os desejos centrar-se-iam provavelmente na lista dos bens primários, ou noutro
humanos concretos (se bem que muito gerais) imprime-lhe um fundamento aspecto qualquer da teoria restrita do bem, defendendo que ela se encontra
preciso e evita que sejam arbitrários e destacados do mundo. E assim, sem inquinada na medida em que apresenta uma predisposição a favor de certas
recurso a deduções transcendentais, torna-se possível encontrar um ponto concepções do bem, em detrimento de outras. Poder-se-ia também contes-
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tar a reivindicação de Rawls de que o elenco de bens primários detém de é, devemos examinar mais de perto as suas características, em parte de
facto o mesmo, ou praticam~nte o mesmo, valor para todos os estilos de modo a podermos compreender o tipo de reivindicação que encarnam. Não
vida. E poder-se-ia questionar o carácter limitativo da teoria restrita, argu- nos preocuparemos, por isso, com a questão de saber se a teoria restrita do
mentando que ele prejudica a equidade da situação inicial na medida em be~ é ~emasiado ampla ou demasiado restrita para produzir os princípios
que introduz pressupostos que não são partilhados universalmente, se de Justiça que Rawls afirma que ela produz. Em vez disso, procuraremos
encontra envolvido de forma excessivamente íntima com preferências con- identificar o que é que faz com que a teoria do bem seja restrita ou ampla, e
tingentes, por exemplo, dos projectos de vida da burguesia liberal ocidental, ~e ~ue ~anei~a ~ ~ue esta concepção se adapta àquilo que faz com que a
e que, ao fim e ao cabo, os princípios que dela resultam são o produto dos Justiça seja pnmana. Porém,. talvez seja conveniente proceder a um exame
valores dominantes. das condições que caracterizam a posição original, tal como Rawls as des-
Por outro lado, no quadro de um segundo conjunto de objecções, creve. Para isso, temos de dirigir a nossa atenção para as circunstâncias da
poder-se-ia argumentar que a posição original produz um distanciamento justiça'.
excessivo em relação às circunstâncias humanas, que a situação inicial por
ela descrita é demasiado abstracta para produzir os princípios que Rawls As circunstâncias da justiça: objecções empiristas
afirma ser capaz de produzir - esses ou quaisquer outros, aliás. Muito prova-
velmente, as objecções desta natureza questionariam o véu de ignorância, As circunstâncias da justiça são as condições que desencadeiam a vir-
alegando que exclui informações moralmente relevantes, necessárias para a tude da justiça. São as condições que prevalecem nas sociedades humanas e
produção de resultados com sentido. Defenderiam que a noção de pessoa que tornam a cooperação entre os homens simultaneamente possível e
proposta pela posição original é excessivamente formal e abstracta, encon- necessária. A sociedade é perspectivada como sendo um empreendimento
trando-se demasiado destacada da contingência para poder dar conta das cooperativo com vista à obtenção de benefícios mútuos, o que significa que
suas necessárias motivações. Enquanto que o primeiro conjunto de objec- se encontra essencialmente marcada tanto pelo conflito como por uma
I'
I
ções se queixa de que a teoria restrita do bem é demasiado ampla para ser identidade de interesses. Uma identidade de interesses, na medida em que
justa, o segundo mantém que o véu de ignorância é excessivamente opaco todos têm a ganhar com a cooperação mútua; um conflito, dado que em
para produzir uma solução precisa. função dos interesses e dos fins distintos que possuem, as pessoas têm pers-
Não nos dedicaremos aqui a nenhuma destas objecções. Dado que nos pectivas divergentes relativamente ao modo como os frutos da sua coopera-
ocupamos do projecto deontológico na sua totalidade, o nosso interesse pela ção deverão ser distribuídos. São necessários princípios para especificar os
posição original é mais geral. Em palavras simples, resume-se ao seguinte: dispositivos através dos quais estas perspectivas possam ser ordenadas. Pro-
sendo a posição original a resposta de Rawls a Kant, será que se trata de uma porcioná-los é o papel da justiça.
resposta satisfatória? Será que ela é bem sucedida nas suas aspirações de Seguindo Hume, Rawls observa que estas circunstâncias são de dois
reformular as reivindicações morais e políticas kantianas "no quadro de uma tipos: objectivas e subjectivas. As circunstânci~s objectivas da justiça
teoria empírica"? Poderá ela fornecer os alicerces para o liberalismo deon- incluem factos como, por exemplo, a moderada escassez de recursos,
tológico, evitando o "ambiente" metafisicamente contestável da teoria de enquanto que as circunstâncias subjectivas dizem respeito aos sujeitos da
Kant? Mais especificamente, poderá a descrição da posição original incor- cooperação, muito em particular ao facto de se caracterizarem por deterem
porar e apoiar o argumento em favor do primado da justiça no sentido forte
que Rawls procura promover? . . Nota do tradutor: Circumstances ofjustice, no original. O tradutor português da Teoria da
Numa leitura enformada por uma interpretação francamente empi- Justlça de Tohn Rawls traduz sistematicamente circumstances ofjustice por "contexto da justiça".
Pel~ nossa .parte, cremos que a expressão portuguesa "circunstâncias da justiça" exprime com
rista, tal como o próprio Rawls nos convida a fazer, a posição original não maIOr fidelidade o sentido do original- daí termos optado por ela na tradução quer do texto de
consegue sustentar o argumento deontológico. Para verificarmos que assim Sandel, quer dos textos de Rawls.
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interesses e fins distintos. Isto significa que cada pessoa possui o seu próprio No entanto, uma compreensão empirista da posição original parece
plano de vida, ou a sua própria concepção do bem, que considera merece- estar em profundo desacordo com as propostas deontológicas. Se a justiça,
dora de ser promovida. Rawls sublinha este ponto, assumindo que as partes, como virtude, dependesse de certas pré-condições empíricas, não é claro
pelo menos tal como concebidas na posição original, não se interessam como é que a sua prioridade se poderia afirmar incondicionalmente. Rawls
umas pelas outras, preocupando-se unicamente com a promoção da sua afirma que a sua versão das circunstâncias da justiça segue de perto Hume
própria concepção do bem, e, por outro lado, na promoção dos seus fins, [126-8 (114-115)]. No entanto, as circunstâncias de Hume não sustentam a
não têm quaisquer obrigações para com os outros resultantes de laços prioridade do justo no sentido deontológico. Afinal, elas são condições
morais anteriores. As circunstâncias da justiça são assim sumariadas: empíricas. Para estabelecer o primado da justiça no sentido categórico exi-
gido pelo postulado de Rawls, tornar-.se-ia necessário demonstrar não só
"Podemos dizer, em resumo, que as circunstâncias da justiça que as circunstâncias da justiça prevalecem em todas as sociedades, mas que
se verificam sempre que são formuladas exigências concorrentes isso acontece ao ponto de a virtude da justiça ser sempre mais completa ou
que incidem sobre a divisão das vantagens sociais em condições mais extensivamente invocada do que qualquer outra virtude. Caso contrá-
de escassez moderada. Se estas circunstâncias não se verificarem, rio, Rawls apenas teria legitimidade para concluir que a justiça é a primeira
não haverá condições para o exercício da virtude da justiça, da virtude de certos tipos de sociedade, nomeadamente daquelas em que a
mesma forma que, na ausência de ameaças à vida ou à integri- prioridade social mais urgente é constituída pela escolha entre as reivindica-
dade, não haverá lugar para a manifestação da coragem física" ções alternativas de partes mutuamente desinteressadas, em conflito umas
[128 (115)]. com as outras ...
Com certeza que um sociólogo poderá, por exemplo, argumentar que,
As circunstâncias da justiça são as circunstâncias que ocasionam a vir-
em face da escassez crescente de energia e de outros recursos básicos com
tude da justiça. Na sua ausência, a virtude da justiça tornar-se-ia vã; não
que se deparam as sociedades industriais avançadas modernas, aliada ao
seria necessária, nem possível sequer. "Mas as sociedades humanas são
colapso do consenso e à perda de propósitos comuns (respectivamente, as
caracterizadas pelas circunstâncias da justiça" [itálico nosso, 129-130 (116)].
circunstâncias objectiva e subjectiva), as circunstâncias da justiça acabaram
Por isso é que a virtude da justiça é necessária.
por prevalecer com uma intensidade tal que a justiça se transformou, para
As condições que proporcionam a virtude da justiça são condições
estas sociedades, na primeira virtude. Porém, se a intenção de Rawls é fazer
empíricas. Rawls é claro e explícito a este respeito: "A teoria moral deve ser
depender o primado da justiça de generalizações como esta, necessitaria,
livre para usar hipóteses contingentes e factos gerais da forma que lhe con-
pelo menos, de oferecer a fundamentação sociológica relevante. Não basta-
vier"[51 (60)]. Não pode proceder de outro modo. O essencial é que as pre-
ria ficar-se pela afirmação de que "uma sociedade humana se caracteriza
missas sejam "verdadeiras e suficientemente gerais" [158 (136)].
pelas circunstâncias da justiça" [itálico nosso, 129-130 (116)].
"Os princípios fundamentais da justiça dependem dos factos A noção de que o primado da justiça se poderia alicerçar empirica-
naturais sobre a vida dos homens em sociedade. Esta dependência mente torna-se ainda menos plausível ao considerarmos quão improvável
é declarada explicitamente na discussão da posição original: a será a generalização social exigida por um tal argumento, pelo menos
decisão das partes é tomada à luz de conhecimentos gerais. Além quando aplicável através de todo o espectro das instituições sociais.
disso, os elementos da posição original pressupõem diversos fac- E enquanto conseguimos admitir sem dificuldade que certas associações de
tos sobre as circunstâncias da vida humana. [... ] Se estas hipóteses larga escala, tais como o Estado-nação moderno, são capazes de satisfazer
de partida forem verdadeiras e adequadamente genéricas, tudo estes requisitos em muitas instâncias, podemos conceber prontamente uma
estará em ordem, já que, sem estes elementos, toda a estrutura gama de associações mais íntimas ou marcadas por fortes solidariedades,
será vazia e desprovida de sentido" [159-160 (136)]. nas quais os valores e os objectivos dos seus participantes coincidem muito
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estreitamente, fazendo com que as circunstâncias da justiça prevaleçam a verdade o é para as teorias, mas de forma condicionada, tal como a coragem
um nível relativamente, baixo. Tal como o próprio Hume observa, não física o é numa zona de guerra.
necessitamos de recorrer a visões utópicas ou à ficção dos poetas para Porém, esta formulação sugere ainda outro sentido em que o primado
podermos encontrar estas condições, uma vez que "podemos descobrir a da justiça é destruído pela perspectiva empirista das circunstâncias da jus-
mesma verdade através da experiência e da observação comuns" (1739: 495). tiça. Refere-se à ideia de que a justiça emerge como uma virtude terapêutica
cuja superioridade moral se situa na sua capacidade de reparar as condições
"Será, talvez, difícil encontrar instâncias completas de tais que se tenham degradado. Porém, se a virtude da justiça se mede pelas con-
afectos alargados na disposição actual do coração humano. No dições moralmente diminuídas que constituem um pré-requisito para o seu
entanto, podemos observar que as famílias se aproximam delas. surgimento, então a ausência destas condições, independentemente das
E quanto maior é a benevolência mútua entre os seus membros, características de que se possam revestir, tem necessariamente que encarnar
mais a família se aproxima desta condição, até ao ponto em que uma virtude rival, com uma prioridade pelo menos co mensurável; aquela
testemunhamos o desaparecimento de todas as diferenças relati- virtude que é desencadeada na medida em que a justiça não o é. Se a cora-
vamente à propriedade que, em boa parte, é simplesmente parti- gem física é uma virtude apenas quando nos encontramos na presença de
1hada por todos os seus membros. A própria lei pressupõe que o circunstâncias nocivas, então a paz e a tranquilidade que negariam à cora-
cimento do amor entre marido e mulher é tão forte que derruba gem a ocasião de se manifestar têm seguramente que ser virtudes de um
todas as divisões em matéria de propriedade. E na realidade ele grau pelo menos equivalente. E o mesmo se passa com a justiça. Tal como
tem com frequência esta força que lhe é atribuída" (1777: 17-18). confirma o argumento de Hume, o carácter terapêutico da justiça implica a
existência de outro conjunto de valores, de ordem pelo menos comparável.
A este propósito, enquanto que a instituição da família poderá consti-
tuir um caso extremo, podemos com facilidade identificar uma vasta gama "Na origem da justiça estão as convenções humanas [... ] e
de casos de instituições sociais intermédias, um contínuo de associações estas surgiram como remédio para um qualquer incómodo resul-
humanas, caracterizadas em graus diferentes pelas circunstâncias da justiça. tante da concorrência de certas qualidades da mente humana com
Esta gama de instituições incluiria, em vários pontos ao longo do espectro, a situação de objectos externos. As qualidades da mente são o
tribos, aldeias, vilas, cidades, universidades, sindicatos, movimentos de egoísmo e a generosidade limitada, e a situação dos objectos
libertação nacional, formas organizadas de nacionalismo, bem como uma externos decorre da facilidade com que se alteram, aliada à escas-
vasta gama de comunidades étnicas, culturais e linguísticas, todas elas com sez com que se apresentam, quando comparados com as necessi-
identidades comuns, definidas com maior ou menor clareza, e objectivos dades e os desejos dos homens. [... ] Aumente-se, a um nível sufi-
partilhados - precisamente os atributos cuja presença denota a ausência ciente, a benevolência do homem ou a generosidade da natureza e
relativa das circunstâncias da justiça. Apesar de as circunstâncias da justiça a justiça tornar-se-á inútil, e cederá o lugar a virtudes mais nobres
poderem estar presentes em todos estes casos, elas provavelmente não e a bênçãos bem mais favoráveis" (1739: 494-495).
seriaIIi predominantes - pelo menos não o seriam ao ponto de, em todas as
circunstâncias, se proceder ao recurso à justiça, acima de qualquer outra Invocar as circunstâncias da justiça é admitir, pelo menos implicita-
virtude. Na interpretação empirista da posição original, a justiça pode ser mente, as circunstâncias da benevolência, da fraternidade ou dos afectos,
primária apenas para aquelas sociedades caracterizadas por um nível de independentemente do modo como os queiramos descrever. São estas as
discórdia capaz de elevar a resolução de interesses e de objectivos díspares e circunstâncias que prevalecem na medida em que as circUnstâncias da jus-
em conflito à condição de consideração moral e política primordial. A justiça tiça não o fazem, e a virtude a que estas circunstâncias dão lugar tem de pos-
é a primeira virtude das instituições sociais, não em absoluto, como a suir um estatuto pelo menos correlativo.
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Deste aspecto terapêutico da justiça resulta, como consequência, não Imaginemos agora que num certo dia uma família harmoniosa se vê
podermos dizer à partida se, numa instância particular, a mais justiça atingida por um desentendimento. Os interesses dos seus membros come-
se associará um progresso geral da moralidade. Isto fica a dever-se ao çam a divergir e as circunstâncias da justiça tornam-se mais agudas. Os
facto de que se pode produzir mais justiça de duas maneiras. Ela pode afectos e a espontaneidade de outros tempos dão lugar a exigências de equi-
surgir onde dantes imperava a injustiça, mas pode emergir onde dantes da de e de respeito pelos direitos. Imaginemos ainda que a generosidade
não existia nem justiça, nem injustiça, mas uma medida suficiente de anterior é substituída por um temperamento sensato de excepcional integri-
benevolência e de fraternidade, ao ponto de a virtude da justiça não ser dade e que as novas exigências morais são plenamente satisfeitas segundo as
chamada a intervir. Sempre que a justiça substitui a injustiça, permane- exigências da justiça, de tal modo que não se vislumbra qualquer injustiça.
cendo tudo o mais como dantes, verificar-se-á com clareza um evidente Pais e filhos, equilibrados pela reflexão, cumprem com o maior respeito, se
progresso moral. Por outro lado, sempre que um incremento da justiça bem que taciturnamente, os dois princípios da justiça e até conseguem
reflectir uma transformação na qualidade das motivações das maneiras de alcançar as condições de estabilidade e de congruência, assegurando o cum-
ser anteriores, pode bem ser que se assista a uma redução do equilíbrio primento do bem da justiça dentro do lar. E agora, como poderemos enten-
moral total. der esta nova situação? Estaremos preparados para dizer que a chegada da
Quando a fraternidade se desvanece, pode bem fazer-se mais justiça, justiça, mesmo que plena, restaurou plenamente o carácter moral desta
mas poderá ser necessário muito mais para restabelecer o status quo moral. família e que a única diferença que persiste é de natureza psicológica? Ou,
Para além disso, nada garante que a justiça e as suas virtudes rivais sejam então, consideremos, de novo, o exemplo paralelo da coragem física. Imagi-
perfeitamente comensuráveis. O colapso de certos vínculos pessoais e cívi- nemos uma sociedade, outrora tranquila, mas pouco corajosa (não por
cos pode bem constituir uma perda moral de tal magnitude que nem uma cobardia, mas por quietude), agora violenta e incerta, na qual, porém, a
dose considerável de justiça a possa compensar. Será certo que uma ruptura virtude da coragem é exibida com vigor e até mesmo com exuberância. Será
no tecido dos entendimentos e dos compromissos implícitos de uma comu- óbvio que, do ponto de vista da moral, a segunda condição desta sociedade é
nidade ficará devidamente restaurada a partir do momento em que cada um preferível à primeira?
"cumpra o seu dever" daí em diante? Seguramente, a natureza não comensurável, caso exista, poderia
Pensemos, por exemplo, numa situação familiar mais ou menos ideal igualmente conduzir-nos na direcção oposta. Apesar da aspereza das cir-
na qual as relações que nela se desenvolvem se regem, em boa parte, pelos cunstâncias da coragem, poderá bem acontecer que uma certa nobreza flo-
afectos espontâneos, verificando-se correlativamente uma menor presença resça neste novo modo de vida - coisa a que o espírito humano não tinha
das circunstâncias da justiça. Direitos individuais e processos de decisão acesso no quadro de condições mais protegidas e que nem a mais abençoada
equitativos são invocados apenas raramente, não porque a injustiça esteja a paz será capaz de compensar. E se o desaparecimento da Gemeinshajtfami-
imperar, mas porque o apelo a uns e a outros é negado antecipadamente por liar ou comunal reflectir não o surgimento de uma condição de penúria
um espírito de generosidade em que raramente me sinto inclinado a reivin- material, mas o florescimento da diversidade, ou da emancipação dos filhos
dicar a parte que me é devida. Tão-pouco esta generosidade implica neces- relativamente ao modo de vida mais tacanho da casa dos pais, poder-nos-
sariamente que é por benevolência que eu recebo uma parte igual, ou maior, -íamos sentir inclinados a perspectivar o advento da justiça de modo mais
àquela a que teria direito segundo princípios equitativos de justiça. Pode favorável. O ponto principal, no entanto, permanece inalterado. Um pro-
bem ser que receba menos. O nó da questão prende-se não com o facto de gresso da justiça poderá não ser capaz de acarretar um progresso moral
receber tanto quanto receberia por outras vias, só que de forma mais espon- geral, pelo menos por duas razões: ou por não conseguir corresponder por
tânea, mas tão-só com o facto de as questões relativas ao que eu recebo e ao inteiro a um incremento nas circunstâncias da justiça, ou por não ser capaz
que me é devido não serem as mais importantes no contexto global deste de compensar devidamente a perda de certas "virtudes mais nobres e certos
modo de vida. bens mais valiosos".
62 63

Se um incremento da justiça não acarreta necessariamente um pro- que com isso se evoque necessariamente um incremento na incidência da
gresso moral incondicional, poderá igualmente demonstrar-se que, em justiça num mesmo grau.
certos casos, a justiça não é uma virtude, mas um vício. Isto mesmo se A exibição gratuita de coragem física durante condições de tranquili-
poderá constatar a partir da consideração daquilo que poderíamos apelidar dade pode vir a perturbar a própria tranquilidade que não se soube apreciar
de dimensão reflexiva das circunstâncias da justiçà. Esta dimensão reflexiva e que, muito possivelmente, não se poderá recompor. Com a justiça passa-se
reporta-se ao facto de que aquilo que as partes conhecem acerca da sua qlgo semelhante. Se, a partir de um sentido deslocado de justiça, um
condição é um ingrediente dela. Rawls reconhece esta característica amigo íntimo de longa data insistir repetidamente em calcular e pagar com
quando escreve: "parto evidentemente do princípio de que os sujeitos todo o rigor a parte que lhe cabe de cada despesa comum efectuada, ou
na posição original sabem que este conjunto de condições se verifica" recusar aceitar qualquer favor ou hospitalidade, a não ser debaixo de
[128 (115)]. enormes protestos e embaraços, eu não só me sentirei coagido a agir de
As circunstâncias da justiça e, mais especificamente, o aspecto subjec- forma igualmente escrupulosa, como também, a partir de algum momento,
tivo destas circunstâncias, reside, em parte, nas motivações dos participan- começarei a perguntar-me se não me terei enganado na minha aprecia-
tes e no modo como as perspectivam. Se um dia as partes olharem para as ção do nosso relacionamento. Na medida em que assim acontecer, as
suas circunstâncias de modo diferente, se chegarem a acreditar que as cir- circunstâncias da benevolência terão diminuído, e as circunstâncias da
cunstâncias da justiça (ou da benevolência) se dão numa medida maior ou justiça crescido. Isto é assim em consequência da dimensão reflexiva, do
menor do que dantes, esta alteração equivaleria precisamente a uma aspecto subjectivo, das circunstâncias da justiça. Porém, como já havíamos
mudança daquelas circunstâncias. Tal como Rawls assinala na sua discussão visto, nada nos garante que o novo sentido de justiça será capaz de substituir
acerca do bem da justiça, agir a partir de um sentido de justiça pode ser integralmente a espontaneidade anterior, até mesmo naqueles casos dos
contagioso. Reforça as suposições que pressupõem e consolidam a sua quais não decorre qualquer' injustiça. Dado que o exercício da justiça em
própria estabilidade, encorajando e afirmando idênticas motivações nos condições inapropriadas terá imprimido um declínio global no carácter
outros. moral da relação, a justiça, neste caso, em vez de uma virtude, terá sido um
No entanto, qual é o efeito deste "contágio" quando aplicado a uma vício.
situação na qual as circunstâncias da justiça não se verificam, ou na medida Quer isto dizer que as circunstâncias da justiça não se ajustam ao pri-
em que elas não se apresentam? Quando eu agir a partir de um sentido de mado da justiça nem aos temas deontológicos que lhe estão relacionados, e
justiça em circunstâncias inapropriadas, digamos que em circunstâncias que Rawls procura defender. Em face das diferentes filiações filosóficas das
onde as virtudes da benevolência e da fraternidade, e não as da justiça, duas perspectivas, não deverá ser surpresa para ninguém o surgir de incon-
seriam mais relevantes, as minhas acções não só poderão ser supérfluas sistências. As circunstâncias da justiça são explicitamente humeanas - "a
como poderão contribuir para uma re-orientação dos entendimentos e das análise que Hume faz a este respeito é especialmente clara e o sumário ante-
motivações dominantes, verificando-se assim de algum modo uma trans- rior nada de especial acrescenta à sua discussão, que é muito mais com-
formação das circunstâncias da justiça. E este poderá ser o caso até mesmo pleta" [127-128 (115)]; já a concepção deontológica que enforma a teoria de
quando o "acto" que realizo por uma razão de justiça é "o mesmo acto" que Rawls encontra a sua formulação primordial em Kant, cuja epistemologia e
realizaria se agisse de acordo com a benevolência e a fraternidade, só que ética se dirigiram em grande parte precisamente contra a tradição empirista
num espírito diferente. Tal como na versão rawlsiana da estabilidade, o meu e utilitarista que Hume representa. Para Kant, a noção de justo, deontologi-
acto e o sentido de justiça que o informa possuem o efeito de auto cumpri- camente fundada e que Rawls procura recapturar, deriva a sua força de uma
mento, na medida em que dão origem às condições segundo as quais teriam metafísica moral que exclui exactamente o apelo a circunstâncias humanas
sido os mais apropriados. Porém, no caso do acto inapropriado de justiça, o contingentes sobre as quais se baseia o argumento de Hume sobre a virtude
resultado é que as circunstâncias da justiça se tornam mais urgentes, sem da justiça.
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Para Hume, a justiça é o produto de convenções humanas e "deriva a cípio dado pela razão prática pura. Para Kant, as circunstâncias da justiça
sua existência inteiramente da necessidade do seu uso na convivência e na não se situam naquelas condições da sociedade humana que tornam a jus-
condição social da humanidade". tiça necessária, mas antes num domínio ideal, abstraído das sociedades
humanas, que possibilita a justiça e a moral em geral. Este domínio é o reino
"Assim, as regras da equidade ou da justiça dependem intei- dos fins. É o domínio que se situa para além do mundo fenoménico - e que,
ramente do estado e da condição particular em que os homens são como Kant reconhece, "é certamente apenas um ideal" -, no qual os seres
colocados, e devem a sua origem e a sua existência àquela utili- humanos são admitidos não como residentes permanentes, mas mais pro-
dade que decorre para o público da sua observância estrita e vavelmente como visitantes fugazes. A admissão a estas circunstâncias da
regular. Inverta-se, numa circunstância considerável qualquer, justiça não é uma condição prévia para a virtude moral, mas a medida do seu
a condição dos homens. Produza -se extrema abundância ou cumprimento, um local que os seres humanos alcançam apenas na medida
extrema escassez. Implante-se no peito do homem uma modera- em que são capazes de agir em conformidade com a lei moral dada autono-
ção e um humanismo perfeitos, ou então uma perfeita rapacidade mamente, isto é, na medida em que conseguem ir para além da sua situação
e malícia. Tornando a justiça completamente inútil, destruir-se-ia de modo a poderem querer e agir como seres não situados, a partir de um
por inteiro a sua essência, e suspender-se-ia a sua obrigatoriedade ponto de vista universal. É por isto que o imperativo categórico apenas pode
para a huinanidade" (1777: 20). ordenar ao homem que actue como se fosse um membro legislador do reino
dos fins.
Para Kant, em contraste,
"Se nos situarmos para além das diferenças pessoais que
"Princípios empíricos são sempre inapropriados para servi- individualizam os seres racionais e do conteúdo dos seus fins pri-
rem de fundamento de leis morais. A universalidade com que vados, seremos capazes de conceber como um todo todos os fins
estas leis devem valer para todos os seres racionais, sem excepção, em conjugação sistemática [... ] isto é, seremos capazes de conce-
a necessidade prática não condicionada que assim impõem, ber o reino dos fins, possível segundo os princípios já identifica-
perde-se se o seu fundamento decorrer da constituição peculiar da dos" (Kant, 1785: 100-101).
natureza humana ou das circunstâncias contingentes em que está
colocada" (1785: 109). "Ora, o reino dos fins tornar-se-ia efectivamente uma reali-
dade através de máximas que o imperativo categórico prescreve
Se, como parece, a perspectiva humeana das circunstâncias da justiça como regras para todos os seres racionais, caso essas máximas
não sustenta nem acomoda o estatuto privilegiado da justiça e do direito fossem respeitadas universalmente. No entanto, mesmo que um
exigido por Rawls e derivado de Kant, então a questão que se coloca de ime- ser racional seguisse escrupulosamente essas máximas, de modo
diato é a de saber por que razão Rawls adopta o argumento de Hume em vez algum poderia estar seguro de que, pelo facto de as acatar, todos
de recorrer a Kant. A resposta é que, em sentido estrito, Kant não oferece os outroslhes seriam fiéis [... ]. Apesar disso, a regra 'age de acordo
nenhuma concepção das circunstâncias da justiça, pelo menos, nenhuma com as máximas de um membro que produz leis universais para
que situe a virtude da justiça no plano de circunstâncias características das um possível reino de fins' conserva toda a sua força, uma vez que
sociedades humanas. Tão-pouco é óbvio que nos pudesse proporcionar o seu comando é categórico" (Kant, 1785: 106).
alguma. Fazê-lo seria contradizer o ponto essencial da sua ética, nos termos
da qual o homem apenas se afirma como ser moral na medida em que é Como já vimos, Rawls separa-se de Kant logo. que entram em cena
capaz de se erguer acima das influências heterónomas e das determinações domínios ideais e sujeitos transcendentais; a explicação do reino dos fins é
contingentes da sua condição natural e social, e agir de acordo com um prin- um destes registos. Rawls não considera que esta noção constitua uma base
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satisfatória para explicar a justiça humana, uma vez que parece aplicar-se a
Tal como o reino dos fins, a posição original, com o véu de ignorância,
seres humanos apenas na medida em que se desprendem das circunstân- garante a "abstracção das diferenças pessoais entre seres racionais, bem
cias humanas concretas, isto é, quando deixam de ser seres humanos. Uma como do conteúdo das suas finalidades privadas". Porém, ao contrário da
tal nocão é no mínimo obscura, podendo vir a ser alvo da crítica dirigida versão kantiana, possui a vantagem significativa de se aplicar a seres huma-
contr; padrões apriorísticos de avaliação e concepções de um eu radical- nos reais, sujeitos às condições ordinárias da circunstância humana.
mente incorpóreo. Rawls exprime estas preocupações, em particular relati-
vamente ao problema da m;bitrariedade, sugerindo, com Sidgwick, que a "A posição original pode assim ser vista como uma interpre-
doutrina de Kant -exigindo a abstracção de toda a contingência - poderá ser tação processual da concepção kantiana da autonomia e do
incapaz de distinguir a vida do santo da do vilão, na medida em que ambas imperativo categórico. Os princípios que regulam o reino dos fins
tenham sido vividas de acordo com um conjunto consistente de princípios são aqueles que seriam escolhidos naquela posição, e a descrição
eleitos livremente e conscientemente postos em prática. A escolha do eu desta situação permite-nos explicar em que sentido a acção com
numénico poderá, neste sentido, ser arbitrária - e, na n:alidade, poderá ter base nesses princípios expressa a nossa natureza enquanto pes-
necessariamente que o ser. "Kant não demonstrou que o agir a partir da lei soas racionais, livres e iguais. Estas noções deixam de ser pura-
moral expressa a nossa natureza por formas identificáveis e que o mesmo se mente transcendentes e destituídas de ligações explicáveis com a
não verifica se agirmos com base em princípios contrários [255, (206)]". Esta conduta humana, pois que a concepção processual da posição
crítica reflecte a diferença mais geral entre Rawls e Kant sobre o papel do original nos permite esclarecer estes vinculas" [itálicos nossos,
empírico e do a priori na teoria moral, em particular a perspectiva de Rawls 256 (207)].
de que "a análise dos conceitos morais e dos raciocínios apriorísticos, seja
qual for o seu entendimento tradicional, constitui certamente uma base A posição original tem por objectivo proporcionar um meio de estabe-
demasiado estreita" para uma teoria substantiva da justiça. A teoria moral lecer princípios de justiça capaz de se situar para além de influências sociais
deve ser livre para usar hipóteses contingentes e factos gerais da forma que e naturais contingentes e, por isso mesmo, moralmente irrelevantes _ a
lhe convier" [50 (60)]. aspiração kantiana -, sem no entanto ter de recorrer a um domínio numé-
Para ultrapassar estas dificuldades, preservando ao mesmo tempo a nico ou à noção de um sujeito transcendente totalmente situado para além
prioridade do justo, Rawls procura reformular a noção do reino dos fins de da experiência. A solução de Rawls consiste em restringir a descrição das
modo· que permita acomodar uma explicação empírica das circunstâncias partes na situação original àquelas características que são partilhadas por
da justiça, ao mesmo tempo que elimina as diferenças contigentes entre todos os seres humanos enquanto seres racionais, livres e iguais. Em sentido
pessoas que de outro modo nele prevaleceriam. lato, estas características são as que exprimem o facto de que cada um é um
ser que selecciona os seus objectivos, sejam eles quais forem, e que valoriza
"A descrição da posição original interpreta o ponto de vista certos bens primários enquanto instrumentais para a respectiva concretiza-
do eu numénico sobre o significado do ser-se um ser racional livre ção. Assume-se que estas características são partilhadas por todos os seres
e igual. A nossa natureza enquanto seres desse tipo revela-se humanos enquanto tal, não sendo neste sentido contingentes.
quando agimos com base nos princípios que escolheríamos
quando essa mesma natureza se reflecte nas condições que "Assim, dada a natureza humana, o facto de tais bens
determinam a escolha. Deste modo, os homens exibem a sua [primários] serem desejáveis fai parte do ser-se racional. [... ]
liberdade, a sua independência face às contingências da natureza Assim, a preferência pelos bens primários deriva das hipóteses de
e da sociedade, agindo pelas formas que reconhecem na posição partida mais gerais sobre a racionalidade e as condições da vida
original" [255-256 (206)]. humana. Agir com base nos princípios da justiça é agir com base
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em imperativos categóricos, no sentido em que nos são aplicáveis ções naturais. Assim, a teoria da justiça como equidade é uma
quaisquer que sejam, em particular, os nossos objectivos. Tal teoria da justiça humana e entre as suas premissas contam-se os
reflecte simplesmente o facto de que estas são contingências factos elementares relativos às pessoas e ao seu lugar na natureza"
que não surgem como premissas para a derivação de princípios" [257 (207)].
[253 (205)].
. Deste modo, toma-se perceptível a razão pela qual Rawls não pode
Rawls reconhece que, apesar das suas afinidades com Kant, a posição s:mplesmente adoptar uma concepção kantiana das circunstâncias da jus-
original afasta-se da perspectiva kantiana em vários aspectos [256 (206)]. tlça capaz de se acomodar convenientemente às demais posições kantianas
Entre eles surge seguramente a confiança que Rawls deposita em certas que perfilha. Porque é que, em vez disso, se sente pressionado a recorrer à
preferências ou certos desejos humanos generalizados para o estabeleci- noção de uma posição original que inclua como parte da sua descrição uma
mento dos princípios de justiça. Para Kant, basear a lei moral em preferên- versão empírica de circunstâncias caracteristicamente humanas. Ê esta
cias e desejos generalizados, independentemente do grau de difusão que combinação instável que dá lugar às objecções que temos vindo a apresen-
possam conhecer entre os seres humanos, mais não seria do que substituir tar. Tal como a concepção kantiana da lei moral e do reino dos fins parece
uma heteronomia alargada por outra mais restrita (1788: 25-28). Por essa via negar à justiça a sua situação humana, também a perspectiva humeana da
não se conseguiria escapar à contingência, no seu sentido mais exigente, situação humana parece não ter lugar para reivindicações fortes em favor do
aplicável à constituição da natureza humana bem como à constituição dos primado da justiça. Porém, compreender como as inconsistências emergem
seres humanos particulares. Até mesmo a "teoria restrita do bem" seria forte não é dissolvê-las, mas, quando muito, confirmá-las. E assim ficamos com a
de mais para satisfazer a concepção kantiana de autonomia. sensação de que as duas aspirações da teoria rawlsiana - evitar tanto a con-
Esta contingência mais global não representa um problema para tingência dos desejos existentes como o alegado carácter arbitrário e obs-
Rawls. Ele está mais interessado no desenvolvimento de uma teoria da jus- curo do transcendente - não são, ao fim e ao cabo, combináveis. E o ponto
tiça que seja imparcial entre pessoas; por isso, só necessita de excluir aque- de Arquimedes vê-se aniquilado numa litania de contradições.
las contingências que demarcam as pessoas umas das outras. Os atributos
contigentes comuns a todos os seres humanos enquanto tais, para além de
não constituírem um problema para Rawls, transformam-se em ingredientes As circunstâncias da justiça: réplica deontológica
essenciais para a sua teoria moral. "A teoria moral deve ser livre para usar
hipóteses contingentes e factos gerais da forma que lhe convier". Entre estes A tudo isto Rawls poderia responder argumentando o seguinte. As
factos gerais encontram-se os factos das circunstâncias da justiça. Apesar de incompatibilidades aparentes entre o primado da justiça e as circunstâncias
a perspectiva kantiana não os adrilitir, a teoria de Rawls depende deles; estes da justiça decorrem de uma má interpretação da posição original e do papel
factos garantem que os princípios da justiça produzidos pela teoria se apli- que esta desempenha na concepção como um todo. As objecções são dema-
cam a seres humanos no mundo real, e não a seres incorpóreos ou trans- siado apressadas. Elas não chegam a entender que a concepção das circuns-
cendentais situados para além do mundo. tâncias da justiça é uma narrativa dentro da narrativa da posição original, a
qual, convém lembrar, sempre foi hipotética. Aquelas que nela se descrevem
"Situadas num contexto de aplicação da justiça, [as partes] são as condições em que ás partes na posição. original desenvolvem as
vivem num mundo em que há outros sujeitos que, da mesma suas deliberações, e não as condições reais em que vivem seres humanos
forma, enfrentam as limitações resultantes da escassez moderada normais.
e da existência de exigências concorrentes. A liberdade humana As objecções dependem, em larga medida, do pressuposto, erróneo, de
deve ser regulada pelos princípios escolhidos à luz destas restri- que os factos das circunstâncias da justiça devem ser entendidos como os
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factos da vida no mundo real fenoménico no qual se aplicariam em concreto o juízo de que as pessoas sejam de facto mutuamente desinteressadas ou
os princípios da justiça, cuja validade dependerá, então, das mesmas consi- destituídas de laços morais.
derações empíricas de que dependem todas as reivindicações factuais ordi-
nárias. Mas a descrição das circunstâncias da justiça não pode ser perspecti- "Não necessitamos, evidentemente, de supor que as pessoas
vada como uma generalização empírica directa que possa ser estabelecida, nunca fazem sacrifícios substanciais umas pelas outras, já que,
ou refutada, pela melhor prova fornecida pela sociologia, pela psicologia, etc. movidas pelos laços da afeição e do sentimento, tal ocorre com
Dado que toda a narrativa das circunstâncias da justiça está situada dentro frequência [178 (149)].
da narrativa da posição original, as condições e as motivações que descreve
são atribuídas apenas àqueles que fazem parte da posição original e não Não há portanto incoerência em admitir que, uma vez
necessariamente a todos os seres humanos. Uma vez instalada como pre- removido o véu de ignorância, as partes descobrem que possuem
missa da posição original, a narrativa das circunstâncias da justiça deixa laços de sentimento e de afeição, que desejam promover os
de funcionar como uma simples narrativa empírica cuja exactidão pode interesses de outros e ver que os objectivos deles se concretizam"
ser verificada em face das condições humanas vigentes. A sua validade [129 (115-116)].
depende, pelo contrário, da capacidade de a concepção que integra produzir
princípios de justiça susceptíveis de captarem com sucesso as nossas Apesar de o pressuposto de desinteresse mútuo e de a presumida
convicções persistentes num equihôrio reflectido. "Parece melhor encarar preferência por bens primários serem as principais premissas de motivação
estas condições apenas como enunciados razoáveis que serão avaliados da posição original, isto não implica que permaneçam como motivações das
definitivamente pelo conjunto da teoria à qual pertencem [... ] a justificação pessoas na vida real, nem que continuem a aplicar-se a pessoas vivendo
depende do conjunto da concepção e da forma como ela se adequa e articula numa sociedade bem ordenada segundo os dois princípios da justiça.
com os nossos juízos ponderados obtidos em equilíbrio reflectido" [578-579
(436-437)]. "No que diz respeito ao alcance do pressuposto de motiva-
Quer isto dizer que a descrição das circunstâncias da justiça não neces- ção, deve ter-se presente que ele só se aplica às partes na posição
sita de ser verdadeira num sentido literal, empírico. Admite-se à partida que original, as quais devem deliberar como se preferissem mais, em
a posição original é uma ficção, um expediente heurístico, desenvolvida para vez de menos, bens primários. [... ] O pressuposto poderá, porém,
condicionar e dirigir numa determinada direcção o nosso raciocínio acerca não caracterizar as motivações generalizadas das pessoas em socie-
da justiça. A distinção entre as cláusulas das circunstâncias da justiça e as dade, e em particular poderá não ser aplicável a cidadãos de uma
motivações que, de facto, predominam nas sociedades humanas é, para sociedade bem ordenada (uma sociedade regulada eficazmente
Rawls, um tema recorrente. "Devemos ter presente que as partes na posição pelos princípios públicos adoptados na posição original)" [itálicos
original são indivíduos definidos teoricamente" [147 (128)]. "A análise nossos, Rawls, 1975, 543-544].
destas condições [isto é, das circunstâncias da justiça] não envolve qualquer
teoria particular relativa à motivação humana" [130 (116)]. "A motivação Esta poderia ser a réplica de Rawls, e com méritos consideráveis.
dos sujeitos na posição original não pode ser confundida com a motivação Renunciar à leitura claramente empirista das circunstâncias da justiça equi-
das pessoas no quotidiano, quando aceitam os princípios da justiça que valeria a resgatar a pretensão do primado da justiça, pelo menos das objec-
seriam seleccionados e possuem o correspondente sentido da justiça" ções empiristas mais óbvias. Contribuiria, igualmente, para lançar alguma
[14 (128-129)]. luz sobre expressões tão enigmáticas como "uma sociedade humana carac-
Rawls sublinha em particular que, na posição original, os pressupostos teriza-se pelas circunstâncias da justiça" [itálico nosso, 129-130 (116)], que,
de desinteresse mútuo e a ausência de laços morais anteriores não implicam no contexto da concepção rawlsiana, parecem ~er mais do que meras gene-
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ralizações empíricas, não chegando, porém, a ser definições estabelecidas. acerca da justiça nos víssemos forçados a apelar para premissas que nos
No entanto, a rejeição da interpretação empirista levanta uma questão ainda surpreendessem pela sua excentricidade, pela sua extravagância ou pelo seu
mais difícil. Se as premissas descritivas da posição original não estão sujeitas extremismo metafísico, sentir-nos-íamos justamente inclinados a questionar
a testes claramente empíricos, então a que tipo de verificação estão sujeitas? as convicções a que tais princípios se adequam. Ao fim e ao cabo, é com base
Se os constrangimentos dos pressupostos motivadores não são de natureza num raciocínio muito próximo deste que Rawls critica Kant, argumentando
empírica, então de que natureza são? que ele só foi capaz de estabelecer conclusões moralmente persuasivas a
Tudo o que fomos capazes de dizer até agora acerca dos fundamentos expensas de uma concepção da circunstância moral que tinha muito pouco a
de uma premissa da posição original foi que a sua validade decorre da ques- ver com algo que fosse plausivelmente humano.
tão de saber se, ou até que nível, a concepção que integra é capaz de produzir Resumindo, a validade da premissa da posição original não é fornecida
princípios de justiça que captem, com sucesso, os nossos juízos ponderados empiricamente, mas através de um método de justificação conhecido pelo
em equilíbrio reflectido. Mas isto não nos diz o suficiente. É a existência de nome de equilíbrio reflectido. Este método envolve dois tipos diferentes de
critérios independentes de juízo em cada extremo, mesmo que provisórios, à justificação que se combinam de modo a corrigirem-se e a apoiarem-se
luz dos quais possamos introduzir os ajustamentos e as correcções apropria- mutuamente. Um aspecto da justificação recorre às nossas -convicções pon-
dos, que evita que o método de equilíbrio reflectido se torne circular. No caso deradas sobre a justiça; o outro apela para um padrão descrito como sendo
da justiça, isto significa que necessitamos de uma maneira qualquer, inde- de plausibilidade, se bem que não estritamente empírico, ainda por definir.
pendente, mesmo que provisória, através da qual possamos julgar tanto a O próprio Rawls não é muito claro quanto àquilo que considera ser este
atracção dos princípios da justiça que uma descrição particular possa produ- padrão descritivo. Tanto nos seus comentários gerais sobre justificação como
zir como a plausibilidade e a razoabilidade dos pressupostos de motivação na sua defesa de premissas específicas da posição original, a sua linguagem
que os geraram. "Cada uma das conclusões deve em si mesma ser natural e reflecte os seus equívocos e justifica uma análise pormenorizada:
plausível" [18 (38)]. Os critérios independentes, se bem que provisórios, do
lado da atracção dos princípios são fornecidos pelas nossas intuições acerca "Mas como decidir qual é a interpretação preferível [da
do que é justo. Porém, qual é o fundamento correspondente do lado descri- situação inicial]? Parto do princípio de que há um consenso
tivo? O que procuramos é aquilo por referência ao qual se poderá avaliar da importante quanto ao facto de que a escolha dos princípios da
plausibilidade das premissas da posição original. Seríamos tentados a dizer, justiça deve ser feita sob certas condições. Para justificar o traçado
em sintonia com a vertente normativa, que os critérios de plausibilidade nos particular da situação inicial é preciso mostrar que ela incorpora
são fornecidos pelas "intuições" acerca do que é empiricamente verdadeiro. estes pressupostos amplamente partilhados. A argumentação parte
Mas, tal como vimos, a tentação empirista de pensar que as condições e as de premissas amplamente aceites, mas vagas, para atingir con-
motivações concretas dos seres humanos nos fornecem padrões de plausibi- clusões mais específicas. Cada um dos pressupostos deve em si
lidade produz consequências inaceitáveis. mesmo ser natural e plausível; alguns podem até parecer inócuos
Podemos apresentar o nosso problema de outra maneira. Tal como a ou até mesmo triviais" [itálicos nossos, 18 (38)].
concepção de equilíbrio reflectido nos mostra com clareza, as condições da
posição original não se podem encontrar tão imunes das circunstâncias Ao tentar descobrir a definição preferível desta situação,
humanas concretas ao ponto de sermos levados a aceitar qualquer pressu- trabalhamos desde os dois pólos. Começamos por defini-la de
posto capaz de produzir princípios de justiça atractivos. A não ser que as modo a incluir condições que são geralmente partilhadas e, de
premissas de tais princípios apresentem alguma semelhança com as condi- preferência, pouco exigentes. Averiguamos em seguida se estas
ções de criaturas plausivelmente humanas, o sucesso do equilíbrio encon- condições são suficientemente fortes para 'que delas se possa
trar-se-á de algum modo debilitado. Se para justificar as nossas convicções extrair um conjunto significativo de princípios. Se assim não for,
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tentamos outros pressupostos que sejam igualmente razoáveis" descritiva. Nenhuma delas, porém, nos leva longe. A primeira é que esse
[itálicos nossos, 18 (38)]. pressuposto seja amplamente aceite e comumente partilhado, e a segunda
que seja uma suposição débil, em vez de forte, e, se possível, natural, razoá-
Na sua defesa específica dos pressupostos de desinteresse mútuo, vel, inócua e até mesmo trivial. No entanto, não se percebe com clareza qual
Rawls apela para critérios semelhantes. o alcance destas considerações, ou, em qualquer caso, como nos podem
ajvdar a decidir se descrevemos ou não as partes como sendo mutuamente
"O postulado de desinteresse recíproco na posição original desinteressadas ou benevolentes uma para com as outras.
visa assegurar que os princípios da justiça não estão dependentes Em primeiro lugar, não se entende que aspectos de um pressuposto de
de hipóteses muito exigentes. Recorde-se que a posição original motivação devem ser comumente partilhados ou amplamente aceites, nem
visa incorporar condições geralmente partilhadas mas que, no por que razão estas características devem ser contabilizadas a seu favor.
entanto, são condições fracas. Uma concepção da justiça não deve Deveremos procurar o motivo que é mais comumente partilhado (caso em
pressupor, portanto, laços extensos de sentimentos naturais. Na que teríamos de generalizar acerca das motivações das pessoas)? Deveremos,
base da teoria, tentamos introduzir o menor número possível de em alternativa, fixar a nossa atenção naquele que é considerado mais gene-
pressupostos" [itálicos nossos, 18 (38)]. ralizadamente como sendo o motivo dominante (caso em que teríamos de
generalizar acerca das generalizações que as pessoas fazem sobre os motivos
Ao argumentar a favor do desinteresse mútuo em detrimento da bene- dos outros)? Ou, então, atender àquele que é aceite por um número maior de
volência enquanto premissa de motivação adequada, Rawls afirma que os pessoas como constituindo uma condição adequada relativamente aos prin-
pressupostos combinados do desinteresse mútuo e do véu de ignorância cípios da justiça (caso em que teríamos de generalizar acerca do modo como
possuem "os méritos da simplicidade e da clareza", ao mesmo tempo que as pessoas provavelmente interpretarão a exigência de acordo comum que
asseguram os aspectos favoráveis de motivações aparentemente mais gene- nos temos vindo a esforçar por interpretar)? Porém, estas interpretações ou
rosas. Caso se pergunte porque não postular benevolência sob o véu de são empíricas, ou assentam sobre pressupostos que urge explicar, ou ambas
ignorância, "a resposta é que não há qualquer necessidade de uma exigência as coisas. Em qualquer caso, a sua relevância para a validade de premissas
tão forte. Para além disso, uma tal solução faria fracassar o objectivo de ali- tais como as que se prendem com o desinteresse mútuo ou a benevolência
cerçar a teoria da justiça sobre cláusulas débeis, sendo ao mesmo tempo enquanto condições da posição original não é óbvia.
incongruente com as circunstâncias da justiça" [itálicos nossos, 149(. Por A exigência de que o pressuposto seja débil, em vez de forte, nada nos
último, nas suas considerações finais sobre justificação, Rawls afirma o diz acerca daquilo a que procuramos responder: débil ou forte em relação a
seguinte: "Observei por diversas vezes a natureza mínima das condições quê? Podemos afirmar que um pressuposto é débilsob o ponto de vista con-
relativas aos princípios quando consideradas isoladamente. Por exemplo, o ceptual, e que, portanto, será provavelmente inócuo ou trivial, não susci-
pressuposto da existência de uma motivação baseada na indiferença mútua tando quaisquer objecções, quando a sua validade depender da validade de
não constitui uma condição exigente. Ela não só nos permite basear a teoria um número reduzido de proposições que com ele estejam relacionadas, e
numa concepção da escolha racional razoavelmente precisa, mas é também quando aquelas de que de facto depende são, elas mesmas, débeis e incon-
pouco exigente para com as partes" [itálicos nossos, 583 (438)]. testadas. Nos mesmos termos, um pressuposto será forte quando, para ser
Rawls parece oferecer duas respostas básicas' à questão de saber como verdadeiro, muitas outras coisas também terão. que ser verdadeiras,
se pode justificar um pressuposto da posição original a partir da perspectiva incluindo muitas que são controversas. Porém, seguramente que os pressu-
postos de desinteresse mútuo e de benevolência não se poderão distinguir a
partir da avaliação de que um deles constitui uma hipótese mais débil ou
Nota do tradutor: Estes períodos não constam da tradução portuguesa considerada. mais forte do que o outro no sentido conceptual. Nenhum deles depende de
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uma premissa que seja conceptualmente mais controversa ou mais proble- ele fenoménico ou outro. Necessitamos de saber o que é a posição original,
mática do que a do outro. ao fim e ao cabo.
Se nenhum deles é conceptualmente mais exigente do que o outro,
então a alternativa que nos resta parece ser recorrer às probabilidades esta- Em busca do sujeito moral
tísticas. Quando os economistas do Estado de Bem-Estar, por exemplo, se
referem a pressupostos de motivação, apelidando-os de débeis e de fortes, o Creio que estas questões podem ser respondidas, se não na linguagem
que fazem é descrever a probabilidade de essas motivações se aplicarem a explícita de Rawls, pelo menos em termos consistentes com a sua teoria
parcelas alargadas da população. Muita da linguagem de Rawls parece suge- como um todo. Para lhes responder e tornar o texto inteligível poderá ser
rir esta utilização probabilística generalizada. A que mais se poderia referir necessário, por vezes, algum distanciamento do argumento rawlsiano.
quando afirma que, ao assumir o desinteresse mútuo entre as partes, está a Encontraremos a justificação de uma tal interpretação em pistas e rastos de
assumir "menos" do que faria caso assumisse a prevalência de laços extensos evidência espalhados pelo texto e, com maior relevância ainda, no facto de
de sentimentos naturais entre elas? Como pode saber que o pressuposto de nos permitir fazer sentido da teoria de Rawls como um todo, e, em particular,
desinteresse mútuo não é uma condição forte já que "exige pouco das par- na capacidade que evidencia para resolver certas características problemáti-
tes"? Será que se estará assim a assumir que nos encontramos por natureza cas que, de outro modo, não temos podido resolver.
mais inclinados para o egoísmo do que para a benevolência? Talvez seja mais O nosso ponto de partida, porém, está solidamente ancorado no texto
difícil para algumas pessoas adoptar comportamentos egoístas em vez de de Rawls, na noção de equilíbrio reflectido enquanto método de justificação
benevolentes. O modo como as pessoas se encontram naturalmente inclina- que governa a sua concepção como um todo. A chave está na compreensão
das a comportar-se é, então, uma questão de probabilidade estatística? da posição original enquanto sustentáculo do equilíbrio reflectido, tanto
E como se poderia sequer formular esta questão com precisão suficiente para quanto ele se pode alcançar. A posição original é o sustentáculo do processo
se poder obter uma estimativa razoável, sem especificarmos a gama de situa- de justificação, na medida em que constitui o mecanismo através do qual
ções em causa? Em todo o caso, se através desta distinção entre pressupostos toda a justificação deve passar, o local de chegada de todos os argumentos e
débeis e fortes, Rawls apenas quer defender que as premissas devem ser mais o ponto de onde todos devem partir. É por isto que uma premissa da posição
realistas, em vez de menos, então, encontramo-nos, uma vez mais, perante original pode ser defendida, ou atacada, a partir de qualquer uma de duas
uma leitura meramente empírica das condições da posição original, a qual já direcções, seja com base na sua plausibilidade (num sentido ainda por
havíamos rejeitado. determinar), seja com base na sua adequação às nossas convicções reflecti-
Apesar de a perspectiva do próprio Rawls sobre a posição original ser das sobre a justiça.
pouco clara, tal como o estatuto das suas premissas descritivas, é essencial
ter-se uma qualquer concepção destas matérias para que a sua teoria possa "Ao tentar descobrir a definição preferível desta situação,
fazer sentido. A menos que sejamos capazes de ultrapassar os obstáculos consideramos ambas as perspectivas [... ]. Assim, umas vezes avan-
aparentes que se colocam a uma explicação da posição original e das suas çando e outras recuando, alterando por vezes as condições em
premissas, a coerência de toda a concepção será posta em causa. Necessita- que o contrato se realiza e, por outras, alterando as nossas posi-
mos, para isso, de dar conta exactamente do que é que está a constranger os ções e adequando-as aos princípios, acredito que acabaremos por
pressupostos descritivos adequados à situação inicial, isto é, necessitamos de obter uma definição da situação original que, simultaneamente,
dar conta do que é que os está a constranger para além dos constrangimen- seja a expressão de condições razoáveis e permita a obtenção de
tos impostos pela vertente normativa, que consistem nas nossas convicções princípios que se adequem aos nossos juízos ponderados, devi-
reflectidas acerca da justiça. De uma maneira geral, necessitamos de saber damente podados e ajustados. Designo esta situação por 'equilí-
algo mais, com maior precisão, acerca do estatuto da posição original, seja brio reflectido'" [20 (39)].
78 79

A descrição da posição original é o produto de dois ingredientes bási- cione de facto nos dois sentidos, então, uma vez alcançado, uma explicação
cos: por um lado, os nossos melhores juízos de "razoabilidade e de plau- da circunstância humana que emerge como produto incidental de um artifí-
sibilidade" (ainda por explicar) e, por o:utro, as nossas convicções reflectidas do fictício será tão dispensável quanto o será uma explicação dos próprios
sobre a justiça. A partir das matérias-primas fornecidas pelas nossas intui- princípios da justiça. Em face da simetria metodológica da posição original,
ções, devidamente filtradas e enformadas pela posição original, emerge um não podemos ver num dos seus momentos a espiga que se deitará fora para
produto final. No entanto, trata-se de um produto final de dimensões duais, se chegar ao grão do quô.l se obterá a farinha. Temos de estar preparados
e é aqui que se encontra a chave da nossa concepção já que o que emerge para viver com a visão contida na posição original, incluindo o desinteresse
numa extremidade como uma teoria da justiça tem necessariamente que mútuo e tudo o mais; preparados para viver com ela no sentido de aceitar-
emergir na outra como uma teoria da pessoa ou, com maior precisão, como mos a descrição que nos oferece como sendo um reflexo preciso da circuns-
uma teoria do sujeito moral. Olhando numa direcção, vemos através das tância moral humana consistente com a ideia que temos de nós próprios.
lentes da posição original dois princípios da justiça; perscrutando na outra,
vemos um reflexo de nós próprios. Se o método de equilíbrio reflectido fun- "Para terminar, recordemos que a natureza hipotética da
ciona com a simetria que Rawls lhe atribui, então·a posição original tem de posição original convida à seguinte questão: porque é que
produzir não só uma teoria moral, mas também uma antropologia filosófica. devemos ter interesse nessa posição, seja ele moral ou outro?
Rawls preocupa-se primariamente, através da maior parte do seu livro, Recordemos a resposta: as condições incluídas na descrição dessa
com a primeira destas vertentes. O seu objectivo é produzir uma teoria da situação são aquelas que, de facto, aceitamos. Ou, se o não fazemos,
justiça, por isso a sua atenção tem de incidir privilegiadamente sobre o podemos ser persuadidos a aceitá-las através de considerações
argumento que parte da posição original para os princípios da justiça, pro- filosóficas do género das que eu invoquei ocasionalmente"
curando oferecer uma descrição da posição original capaz de antecipar de [itálicos nossos, 587 (441)].
forma adequada os requisitos da justiça. Compreensivelmente, está menos
preocupado em desenvolver o argumento na direcção inversa, e portanto é As condições incorporadas na posição original desempenham na teoria
menos explícito sobre o que lá se poderia encontrar. Isto poderá explicar, em da justiça de Rawls os mesmos papéis que os conceitos de razão prática pura
parte, a maior clareza que imprime ao fundamento das nossas intuições na teoria moral de Kant. "Não são como as estacas e os contrafortes que fre-
morais, relativamente à sua concepção sobre as nossas intuições "descriti- quentemente têm de ser colocados a amparar um edifício erguido apressa-
vas" (aquilo que as toma razoáveis ou irrazoáveis, fortes ou débeis, etc.). Se damente, mas antes membros verdadeiros que explicam a estrutura do sis-
esta reconstrução estiver correcta, então o padrão independente, se bem que tema" (Kant 1788: 7).
provisório, através do qual se pode aferir a razoabilidade dos nossos pressu- Estas considerações sugerem fortemente que a teoria da justiça de
postos descritivos ser-nos-á fornecido não pelas leis empíricas da psicologia Rawls tem implícita uma concepção do sujeito moral que enforma os princí-
ou da sociologia, mas antes pela natureza do sujeito moral tal como o conhe- pios da justiça ao mesmo tempo que é enformada pela sua imagem por
cemos, o que equivale a dizer que nos será dado pelo conhecimento consti- intermédio da posição original. É esta concepção que me proponho iluminar
tutivo que temos de nós próprios. e explorar. Se puder ser explicitada de alguma forma, ajudaria não só a
Uma vez que o objectivo da concepção rawlsiana se prende com a pro- resolver as perplexidades relativas ao estatuto da posição original, mas tam-
dução de uma teoria da justiça, verifica-se uma tendência para rejeitar os bém a avaliar as reivindicações centrais da concepção rawlsiana como um
pressupostos motivadores, por vezes pouco atractivos, da posição original, todo. Assim, enquanto que a argumentação principal de Rawls se inclina
enquanto parte de um mecanismo meramente heurístico, sem qualquer para perspectivar a natureza do sujeito moral como um dado e demonstrar
interesse independente ou continuado, a partir do momento em que termina os princípios da justiça através da posição original, pela minha parte propo-
a produção dos princípios da justiça. Porém, caso o equilíbrio reflectido fun- nho-me trabalhar no sentido contrário, assumindo os princípios da justiça
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como dados provisoriamente, e dirigindo o meu argumento de volta até ao po~quanto se reporta à natureza do sujeito humano nas suas várias formas
sujeito moral. Ao fazê-lo, sinto estar a traçar os contornos de um argumento de Identidade possíveis.
do seguinte tipo: assumindo que somos capazes da justiça e, mais precisa-
mente, que somos seres para quem a justiça é primária, temos que ser cria- O eu e o outro: a prioridade da pluralidade
turas de um certo tipo, relacionadas de uma certa forma com as circunstân-
cias humanas. O que se pode dizer, então, e que tenha de ser verdade, acerca Partindo destas qualificações, e com algumas referências à nossa dis-
de um sujeito para quem a justiça é a primeira virtude? E como é que a con- cussão anterior sobre o problema do eu, poderemos proceder à reconstrução
cepção de um tal sujeito se encontra incorporada na posição original? do raciocínio de Rawls acerca da natureza do sujeito moral da seguinte
Ora, a descrição deste sujeito deterá um estatuto lógico distintivo. Será, ~or~a. Para Rawls, a primeira característica de qualquer criatura capaz da
nalgum sentido, necessária, não contingente e anterior a qualquer experiên- Justlça.p~ende-se com o facto de ser plural em número. A justiça não poderia
cia particular. O "ter de ser" apresentado na formulação não é apresentado ser aplicavel num universo onde existisse apenas um sujeito. Apenas poderia
em vão. Mas não constituirá, no entanto, uma exigência analítica. Num certo ter lugar numa sociedade de seres de algum modo distinguíveis uns dos
sentido terá um carácter empírico, mas não "meramente" empírico. Dado o outros. "Os princípios da justiça ocupam-se das reivindicações conflituais
carácter reflectido de tais descrições, elas não serão meramente descritivas, que incidem sobre os benefícios adquiridos pela cooperação social; aplicam-
sendo antes parcialmente constitutivas do tipo de seres que somos. O facto -se às relações entre diversas pessoas ou grupos. A palavra 'contrato' sugere
de as conhecermos é parte do que faz com que sejam verdadeiras, e faz de esta pluralidade" [16 (36)]. Para que haja justiça, tem de existir esta possibili-
nós as criaturas que somos: reflexivas e que se interpretam a si mesmas. dade de se produzirem reivindicações que colidem umas com as outras e
Poderemos apresentar uma descrição geral destas características cons- para isso, tem de haver mais do que um requerente. Deste modo, a plurali~
titutivas da nossa autocompreensão através de uma variedade de nomes: ~a~~ de pess~as pode ser vista como um pressuposto necessário para a pos-
uma teoria da pessoa, uma concepção do eu, uma epistemologia moral, uma SIbIlIdade de Justiça.
teoria da natureza humana, uma antropologia filosófica. Estas descrições Rawls insiste na pluralidade essencial do sujeito humano ao censurar o
apresentam conotações diferentes, por vezes até mesmo conflituais, associa- utilitarismo por estender à sociedade como um todo os princípios de escolha
das habitualmente às tradições filosóficas das quais derivam. Falar de natu- raci~nal específicos do homem individual. Isto é uma falácia, argumenta, na
reza humana, por exemplo, equivale com frequência a sugerir uma concep- medIda em que equivale a fundir diversos sistemas de justiça num único
ção teleológica clássica, associada à noção de uma essência humana univer- sistema de interesses, e por isso mesmo não leva a sério a distinção entre as
sal, invariável, tanto no tempo como no espaço. O discurso do eu, por outro pessoas. No quadro do utilitarismo, "muitas pessoas são fundidas numa só"
lado, apresenta habitualmente uma predisposição para situar o tema num e "indivíduos separados são perspectivados como outras tantas linhas dife~
registo de noções individualistas, bem como para sugerir que a auto- rentes". Porém, o utilitarismo erra uma vez que "não há razão para se supor
compreensão em causa se reduz à tomada de consciência de uma pessoa que os princípios que devem regular uma associação de homens são apenas
individual, como acontece numa sessão de psicoterapia, por exemplo. Estas uma extensão do princípio da escolha que se aplica a um homem isolado.
associações colocam-nos certas dificuldades, na medida em que evitam as Pelo contrário; se partirmos da ideia de que o princípio regulador de deter-
próprias questões a que procuramos responder, nomeadamente: Como é minado objecto depende da respectiva natureza e de que a pluralidade de
que o sujeito se constitui? Em que termos? Em que escala pode ser concebido sujeitos distintos, com distintos sistemas de objectivos, é uma característica
adequadamente? Para evitar confusões a este respeito, devo dizer à partida essencial das sociedades humanas, não devemos esperar que os princípios da
que a explicação que tenho em mente constitui uma antropologia filosófica escolha social sejam utilitaristas" [itálicos nossos, 28-29 (45)].
no sentido mais amplo; filosófica, na medida em que se chega a ela de forma Levar a sério "a pluralidade e o carácter distintivo dos indivíduos" sig-
reflectiva, em vez de por meio de generalizações empíricas, e antropológicas, nifica mais do que defender a independência e a liberdade de pensamento,
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ou do que sustentar que o bem da sociedade consiste nas vantagens de que ~este ponto, poderemos razoavelmente perguntar se, na concepção
os indivíduos usufruem, como os utilitaristas haviam feito. Fazê-lo significa rawlsIana de pessoa, a unidade, tal como a pluralidade, emergirão como
compreender a pluralidade das pessoas como sendo uma característica características essenciais do sujeito moral, pressupostos igualmente neces-
essencial de qualquer explicação do sujeito moral, um postulado da antro- sários para a perspectiva do homem como criatura capaz da justiça. De facto,
pologia filosófica. Neste sentido, o "utilitarismo não é individualista, pelo Rawls descreve as circunstâncias da justiça como "condições normais em
menos quando resultar de reflexão que siga a via mais natural", na medida . cujo quadro a cooperação entre os homens é simultaneamente possível e
em que, ao fundir todos os sistemas de interesses num só, contradiz o seu necessária", e a partir disto poderá pensar-se que, enquanto que a plurali-
próprio postulado essencial [29 (46)]. dade essencial do sujeito moral toma a cooperação humana uma necessi-
Porém, para que os sujeitos possam ser plurais, tem de existir algo que dade, alguma unidade essencial das pessoas toma a cooperação entre os
os diferencie, alguma maneira de os distinguir uns dos outros, algum princí- homens possível. Mas isto seria desvirtuar a lógica da concepção de Rawls, e
pio de individuação. Para Rawls, as nossas características de individuação ameaçaria minar as prioridades de que depende a ética deontológica. Creio
são-nos dadas empiricamente, pela concatenação distintiva de necessidades que a sua resposta seria aproximadamente a seguinte.
e desejos, objectivos e atributos, propósitos e fins que acabam por caracteri- Se por um lado é verdade que o princípio de unidade ocupa um lugar
zar os seres humanos nas suas particularidades. Cada indivíduo encontra-se importante na justiça como equidade (veja-se em particular a explicação da
localizado de uma forma única no tempo e no espaço. Nasce numa família e ideia de união social, secção 79), por outro seria um erro atribuir-lhe uma
numa sociedade particulares. E é a contingência destas circunstâncias, em prioridade idêntica àquela correspondente à pluralidade; a primeira não é
conjunto com os interesses, os valores e as aspirações por elas originados, essencial para a nossa natureza da mesma maneira que a segunda. Isto é
que diferencia as pessoas, fazendo com que sejam as pessoas particulares assim na medida em que qualquer explicação da unidade da subjectividade
que são. humana tem de pressupor a sua pluralidade, de um modo que não é aplicá-
Dentro de qualquer grupo de pessoas, especialmente as de níveis vel ao inverso. Isto poderá comprovar-se se considerarmos a noção de uma
semelhantes, encontraremos provavelmente certas características sobre- sociedade humana como um empreendimento cooperativo desenvolvido
postas, certos interesses adoptados em comum. No entanto, e apesar até para o benefício mútuo, empreendimento esse caracterizado, como habi-
mesmo das maiores semelhanças de condições, jamais se poderá dizer que tualmente acontece, tanto pelo conflito como pela identidade de interesses.
duas pessoas se encontram em situação idêntica, nem poderemos dizer que Ora, o conflito de interesses emerge, conforme vimos, do facto de os sujeitos
duas pessoas quaisquer tenham objectivos e interesses idênticos relativa- cooperantes terem interesses e objectivos diferentes, e este facto decorre da
mente a tudo, pois, se os tivessem, deixaria de ser claro como as poderíamos natureza de um ser capaz da justiça. A identidade de interesses, porém,
identificar como sendo duas pessoas distinguíveis uma da outra. Deste exprime o facto de acontecer que as partes têm necessidades e interesses de
modo, a pluralidade essencial das pessoas fica assegurada ou, talvez melhor, tal modo similares que a cooperação entre elas se apresenta como mutua-
definida. Para Rawls, o facto da nossa pluralidade fundamental é um pressu- mente vantajosa. E este facto, de acontecer que as suas necessidades e inte-
posto necessário da nossa condição de criaturas capazes da justiça. Aquilo resses coincidam desta maneira, não decorre da natureza da sua subjectivi-
em que consiste de facto a individualidade de cada pessoa é, porém, uma dade, mas apenas do feliz acidente das suas circunstâncias. O facto de serem
questão empírica. A caract~rística fundamental do sujeito moral é a sua capazes de se unir e de cooperar com vantagens mútuas pressupõe um
pluralidade e, dados os meios de individuação, o número da sua pluralidade pluralismo antecedente. Pela sua própria natureza, a cooperação é sempre
corresponde ao número de seres humanos individuados empiricamente no entre agentes, cuja pluralidade tem portanto de anteceder a constatação da
mundo. Tudo isto equivale a dizer que, na perspectiva de Rawls acerca do identidade de interesses que cumprem através da associação cooperativa.
sujeito moral, cada ser humano individual é um sujeito moral, e cada sujeito
moral é um ser humano individual.
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"A ideia essencial é que os valores sociais, o bem intrínseco o eu e os seus objectivos: o sujeito da posse
das actividades comunitárias institucionais e associativas, são
analisados mediante uma concepção da justiça que, nas suas
Na ética deontológica, "o eu é anterior aos objectivos que defende" [560
bases teóricas, é individualista. Por razões de clareza, entre outras,
(422)]. Para Rawls, oferecer uma explicação desta prioridade coloca-lhe um
não quero apoiar-me num conceito indefinido de comunidade,
desafio particular, uma vez que o seu projecto descarta a noção de um
nem supor que a sociedade é um todo orgânico com uma vida
sujeito que alcança a sua preeminência pelo facto de habitar um universo
própria distinta e superior à de todos os seus membros nas
transcendental ou numenal. Na perspectiva rawlsiana, qualquer explicação
relações que estabelecem entre si. Assim, a concepção contratual
das noções de sujeito e de fins tem que nos dizer, não uma, mas duas coisas:
da posição original é estabelecida em primeiro lugar. [... ] É a partir
como o eu se distingue dos seus fins, e como se encontra ligado a eles. Sem a
desta concepção, por mais individualista que possa parecer, que primeira, ficamos com um sujeito radicalmente situado, e sem a segunda
temos eventualmente de explicar o valor da comunidade". [264- com um sujeito radicalmente destituído de um corpo.
-265 (213)].
A solução de Rawls, implícita no projecto da posição original, prende-se
com a concepção do eu enquanto sujeito de posse, já que no quadro da
o facto de sermos pessoas distintas, caracterizadas por sistemas separa- posse o eu se distancia dos seus fins, sem contudo se desligar completa-
dos de fins, constitui um pressuposto necessário de um ser capaz de justiça.
mente deles. Podemos localizar a noção do eu enquanto sujeito de posses no
Em que consistem em concreto os nossos objectivos e se eles, por acaso,
pressuposto de desinteresse mútuo. À superfície, este pressuposto asseme-
coincidem ou se sobrepõem aos dos outros, são já questões empíricas que
lha-se a um pressuposto psicológico - diz-nos que as partes não se ocupam
não podemos determinar à partida. É neste sentido - epistemológico, em vez
minimamente com interesses umas das outras -, mas, dado o lugar que
de psicológico - que a pluralidade de sujeitos é anterior à sua unidade. Pri-
ocupa na posição original, funciona antes como uma reivindicação episte-
meiro, somos indivíduos distintos, só depois (caso as circunstâncias o per-
mológica, a saber, uma reivindicação acerca das formas de auto conheci-
mitam) estabelecemos relações e desenvolvemos dispositivos de cooperação
mento de que somos capazes. É por isso que Rawls consegue defender, com
com os outros. Aqui, o fundamental não é que as pessoas cooperem apenas
coerência, que o pressuposto de desinteresse mútuo constitui "a principal
por motivos egoístas, mas antes que o nosso conhecimento dos fun-
condição de motivação da posição original" [1891' e, no entanto, "não envolve
damentos da pluralidade nos seja dado antes da experiência, enquanto que o qualquer teoria particular relativa à motivação humana" [130 (116)].
conhecimento que detemos dos fundamentos da unidade ou da cooperação
Podemos constatar como é que isto é assim. O pressuposto de desinte-
apenas pode emergir à luz da experiência. Em qualquer caso particular,
resse mútuo não é um pressuposto acerca daquilo que motiva as pessoas,
resta-nos verificar se nos deparamos, ou não, com condições que permitam
mas um pressuposto geral acerca da natureza dos sujeitos que possuem
a cooperação.
motivações. Diz respeito à natureza do eu (isto é, ao modo como ele se cons-
A preeminência da pluralidade relativamente à unidade, ou a noção da titui, como se apresenta relativamente à sua situação em geral), não à natu-
individuação antecedente do sujeito, descreve os termos da relação entre o reza dos desejos e dos objectivos do eu. Reporta-se ao sujeito dos interesses e
eu e o outro, que tem de se verificar para que a justiça possa ser primária.
dos fins, não ao conteúdo desses interesses e desses fins, quaisquer que pos-
. Mas, antes da nossa reconstrução da concepção rawlsiana de pessoa poder
sam vir a ser. Tal como Kant defende que toda a experiência tem de ser uma
estar concluída, temos de analisar uma questão paralela, a saber, a relação
experiência de algum sujeito, também o pressuposto rawlsiano de desinte-
do eu com os seus objectivos.
resse mútuo postula que todos os interesses têm de ser interesses de algum
sujeito.

Nota do tradutor: Este período não consta da tradução portuguesa considerada.


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"Embora os interesses prosseguidos nesses objectivos não maneira - eles são meus, e não teus -, bem como a dizer que estou de algum
sejam interesses relativos ao próprio eu, são interesses de um eu modo distanciado deles - eles são meus, não são eu próprio. Este último
que olha a sua concepção do bem como merecendo reconheci- ponto significa que se perder alguma das coisas que possuo, continuarei a
mento" [itálicos nossos, 127 (114)]. ser o mesmo "eu" que era quando a tinha. É neste sentido, à primeira vista
paradoxal, mas inevitável quando se reflecte sobre a matéria, que a noção de
"Não formulo quaisquer restrições quanto às concepções do posse é uma noção de distanciamento. Este aspecto distanciado r é essencial
bem que as partes possuem, excepto na medida em que as consi- para a continuidade do eu. É ele que preserva uma certa dignidade e uma
dero como constituindo planos racionais a longo prazo. Embora certa integridade para o eu, na medida em que o resguarda de ter de se
estes planos determinem os objectivos e interesses de um eu, tais transformar perante a mais ligeira contingência. A preservação desta distân-
objectivos e interesses não se presumem ser egoístas ou voltados cia, e da integridade que implica, exige tipicamente um certo autoconheci-
para o interesse próprio. O facto de tal vir a acontecer dependerá mento. Para poder preservar a distinção entre aquilo que eu sou e aquilo que
do tipo de fins que uma pessoa perseguir. Se a riqueza, a posição, é (meramente) meu, tenho que conhecer, ou pelo menos ser capaz de iden-
a influência e as honras do prestígio social são os objectivos tificar sempre que a ocasião o exija, algo acerca de quem sou. Foi assim que
finais de alguém, a sua concepção do bem será certamente Ulisses foi capaz de sobreviver à sua viagem perigosa de regresso a casa utili-
egoísta. Os seus interesses dominantes estarão em si próprio e não zando vários disfarces; e a sua capacidade para o fazer pressupõe, desde
apenas como têm sempre de ser, interesses de um eu" [itálicos logo, que soubesse quem era. Uma vez que o seu auto conhecimento era
nossos, 129 (115)]. neste sentido, anterior à sua experiência, foi capaz de regressar a casa send~
exactamente a mesma pessoa que dela tinha partido e de ser reconhecido
Encontramos a chave para a concepção rawlsiana do sujeito no pressu- por Penélope, inalterado pela sua jornada, contrariamente a Agamenón, que
posto "de desinteresse mútuo, o qual nos apresenta o quadro daquilo que regressou transfigurado num estrangeiro para os seus, tendo conhecido uma
temos de ser para sermos sujeitos para quem a justiça é primária. Porém, sorte diferente 2•
tomada isoladamente, a noção do eu como sujeito de posse não completa Uma consequência deste aspecto dualista da posse prende-se com o
este panorama. Tal como foi sugerido pela explicação da pluralidade, para o facto de ela se poder enfraquecer ou diminuir de duas maneiras diferentes.
fazer não é um qualquer sujeito de posse que serve, antes se exige um sujeito Perco gradualmente posse de uma coisa não só na medida em que ela se
antecipadamente dotado de individualidade, cujo eu tenha sido delimitado afasta da minha pessoa, mas também na medida em que a distância que me
antes da experiência. Para constituir um eu deontológico, tenho de ser um separa dela se reduz e nos aproximamos de uma colisão. Perco a posse de
sujeito cuja identidade é fornecida independentemente das coisas que pos- um desejo ou de uma ambição na medida em que o meu empenho neles se
suo, isto é, independentemente dos meus interesses, dos meus objectivos e desvanece, e à medida que em que o meu domínio sobre eles se atenua. Mas
das relações que estabeleço com os outros. Associada à ideia de posse, esta perco-a igualmente, a partir de um certo ponto, na medida em que a minha
noção de individuação completa consideravelmente a teoria rawlsiana de ligação a eles cresce e eles ficam gradualmente ligados a mim. Na medida em
pessoa. Podemos apreciar plenamente as suas consequências comparando e que um desejo ou uma ambição se tomam cada vez mais constitutivos da
contrastando dois aspectos da posse - duas maneiras diferentes de um inte- minha identidade, fundem-se cada vez mais comigo, transformando-se cres-
resse ser de um eu - e observando como a noção de individuação antece- centemente em mim e cada vez menos em algo que é meu. Ora, como pode-
dente compromete o eu deontológico com uma delas. ríamos dizer em certos casos, quanto menos os possuo, mais sou possuído
Na medida em que possuo alguma coisa, estou ao mesmo tempo rela- por eles. Imaginemos que um desejo, de início apenas sentido de forma inci-
cionado com essa coisa e distanciado dela. Dizer que possuo um certo traço,
desejo ou ambição equivale a dizer que estou relacionado com eles de certa , Fico a dever este exemplo a Allen Grossman.
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piente, se torna gradualmente cada vez mais central no quadro dos meus mente num todo coerente, lhe fornecem uma firmeza de propósito, formam
objectivos globais, até que, por fim, se transforma na consideração primor- um plano de vida e, por isso, explicam a continuidade do eu com os seus
dial determinante de tudo o que penso e de tudo o que faço. Na medida em fins. Na medida em que o eu é perspectivado como um dado anterior aos
que cresce de desejo para obsessão, possuo-o cada vez menos, sendo esse seus fins, com os seus limites fixados de uma vez para todo o sempre, de tal
desejo que me possui a mim cada vez mais, até que por fim deixa de ser pos- forma que se tomam impermeáveis e invulneráveis à transformação a partir
sível distingui -lo da minha identidade. da experiência, uma tal continuidade permanecerá perpétua e inerente-
Tomemos um exemplo de outro tipo. Na medida em que a Declaração mente problemática. A única maneira de a afirmar exige que o eu seja capaz
de Independência dos Estados Unidos estiver correcta e os homens tenham de ir para além dele próprio, de modo a agarrar os fins que virá a possuir
recebido do Criador certos direitos inalienáveis, entre os quais se encontram enquanto objectos da sua vontade, e a mantê-los, como sempre terá de fazer,
os direitos à vida, à liberdade e à procura da felicidade, aquilo que esta lita- como algo exterior a si própri0 3 •
nia descreve não é aquilo que possuímos enquanto homens livres, mas O segundo tipo de perda de posse acarreta uma perda de poder noutro
aquilo que somos. Este legado, mais do que uma posse, exprime uma natu- sentido ainda. Aqui, o problema não consiste em superar a distância criada
reza de certo tipo. Para aquele que renunciasse à sua liberdade ou que pro- pelo distanciamento do fim relativamente ao eu, mas antes na recuperação e
curasse uma existência miserável, estes legados não constituiriam uma na preservação de um espaço que cada vez mais ameaça desmoronar-se.
posse, mas sim um constrangimento. Na medida em que estes direitos são Empurrado pelas reivindicações e pelas pressões de vários propósitos e fins
verdadeiramente inalienáveis, um homem está tão autorizado a desfazer-se possíveis, todos eles invadindo indiscriminadamente a minha identidade,
deles no seu caso particular, como o está a apropriar-se dos de outros. tomo-me incapaz de os distinguir e de os ordenar, incapaz de traçar os limi-
O suicídio está ao nível do assassinato, e vender-se a si mesmo como escravo tes ou as fronteiras do meu eu, incapaz de asseverar onde termina a minha
é moralmente equivalente a escravizar outro. identidade e onde começa o universo dos atributos, objectivos e desejos.
Como estas imagens sugerem, a posse está associada ao agir humano e Perco poder no sentido em que me falta uma compreensão clara de quem
a um sentido de autocontrolo. A partir de um e de outro destes pontos de sou eu em concreto. Muitas coisas são essenciais para a minha identidade.
vista, a privação de posses poderá ser entendida como um tipo de desautori- Na medida em que os fins sejam fornecidos antes do eu que constituem, os
zação ou de perda de poder. Quando a minha posse de um objecto se desva- limites do sujeito permanecem abertos, a sua identidade infinitamente mol-
nece, seja porque ele se escapa para além do meu alcance, seja porque se dável e, em última análise, fluida. Incapaz de distinguir o que é meu daquilo
eleva e se agiganta diante de mim, assumindo proporções tais que, perante que eu sou, encontro-me permanentemente em risco de me afogar num mar
ele, eU me sinto esmagado e sem qualquer poder, diminui igualmente o meu de circunstâncias.
agir relativamente a esse objecto. Cada desafio está associado a uma noção Poderemos compreender o agir humano como sendo a faculdade atra-
diferente de agir, implicando, por sua vez, uma explicação diferente da rela- vés da qual o eu realiza os seus fins. Isto confirma a relação estreita deste
ção do eu com os seus fins. Podemos pensar as duas dimensões do agir como conceito com a noção de posse, sem iludir a questão da respectiva dimensão,
meios distintos de travar o desvio no sentido de perda de poder, e distingui- nem a da prioridade relativa do eu face aos seus fins. Se sou um ser com fins,
-las pelo modo como funcionam no restauro de um sentido de autoco- existem pelo menos duas maneiras de os "adquirir;'. Uma é por eleição, a
mando. outra, por descoberta, "encontrando-os". Podemos apelidar o primeiro des-
O primeiro tipo de perda de posse envolve o distanciamento do fim tes sentidos de dimensão voluntarista do agir, e o segundo de dimensão cog-
relativamente ao sujeito a quem chegou a pertencer. À medida que assim
J Compare-se com Kant (1797, 62). "Por isso, a relação entre possuir algo exterior a si
acontece, torna-se cada vez mais obscuro em que sentido este fim é meu em
mesmo como sendo seu (sua propriedade) consiste de uma união puramente de jure da Vontade
vez de teu, de qualquer outro ou de ninguém. O eu perde poder na medida do sujeito com esse objecto, independentemente da sua relação com ele no espaço e no tempo e
em que se vê dissociado daqueles fins e desejos que, entrelaçados gradual- de acordo com o conceito de posse inteligível".
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nitiva. Cada um destes modos de agir poderá ser perspectivado como repa- "Quem sou eu.2" ( uma vez que a resposta a esta questão nos é fornecida
rador de um tipo distinto de perda de posse. antecipadamente), mas antes "Que fins devo eu eleger?", e esta é uma ques-
Na medida em que o eu perde poder por se destacar dos seus fins, a tão dirigida à vontade.
perda de posse é reparada pela faculdade de agir no seu sentido voluntarista, Para o eu cuja identidade é constituída à luz dos fins que são fornecidos
contexto em que o eu se relaciona com os seus fins do mesmo modo que um antecipadamente, a faculdade de agir consiste menos em convocar a von-
sujeito provido de vontade se relaciona com os objectos que elege. O agir tade do que em procurar o auto conhecimento. A questão relevante que aqui
relevante envolve o exercício da vontade, uma vez que é a vontade que é se coloca não é a de saber que fins devo eleger, uma vez que o meu problema
capaz de transcender o espaço que separa o sujeito dos seus objectos, sem reside precisamente no facto de a resposta a esta questão me ser dada
exigir que seja um espaço fechado. antecipadamente, mas antes a de saber quem eu sou, como poderei distin-
Na medida em que o eu perde poder por não ser possível diferenciá-lo guir o que eu sou daquilo que é meu dentro desta barafunda de fins possí-
dos seus fins, a perda de posse é reparada pela faculdade de agir no sentido veis. Neste contexto, os limites do eu não são dados fixos, mas possibilida-
cognitivo, pelo qual o eu se relaciona com os seus fins do mesmo modo que des; os seus contornos, em vez de serem evidentes por eles próprios,
um sujeito capaz de conhecimento se relaciona com os objectos do seu encontram-se pelo menos parcialmente por enformar. Torná-los claros e
entendimento. Quando os fins do eu são fornecidos antecipadamente, o agir definir os limites da minha identidade são uma e a mesma coisa. O autoco-
relevante não é voluntarista, mas cognitivo, uma vez que o sujeito adquire o mando que, no primeiro caso, é aferido em termos do âmbito e do alcance
auto controlo não através da escolha daquilo que lhe havia sido já dado (o da minha vontade, no segundo é determinado pela profundidade e pela
que não faria qualquer sentido), mas reflectindo sobre si próprio e inda- clareza da minha auto consciência.
gando sobre a sua natureza constitutiva, discernindo as suas leis e os seus Podemos agora verificar como é que o aglomerado de pressupostos
imperativos e reconhecendo como seus os propósitos com se depara. Na associado à noção voluntarista de agir e o aspecto distanciado r da posse
medida em que a faculdade da vontade procura inverter a separação do eu completam a teoria da pessoa de Rawls. A noção de um sujeito de posse,
relativamente aos seus fins, restaurando uma certa continuidade entre eles, individualizado antecipadamente e dado anteriormente aos seus fins, parece
a reflexão apresenta-se como uma faculdade de distanciamento e desem- constituir precisamente a concepção necessária para redimir a ética deon-
boca numa certa separação. É bem sucedida uma vez que restaura o espaço tológica, sem cair na transcendência. Deste modo, o eu torna-se distinto dos
diminuído que separa o eu dos seus fins. Através da reflexão, o eu ilumina o seus fins - ergue-se por detrás deles, a uma distância, com uma certa priori-
seu interior, fazendo-a incidir sobre ele próprio, transformando o eu no seu dade - porém, está também relacionado com eles, tal como um sujeito
próprio objecto de investigação e de reflexão. Quando sou capaz de reflectir detentor de uma vontade e capaz de a exercer está para os objectos que
sobre as minhas obsessões, de as identificar e de fazer delas o objecto da elege.
minha reflexão, estabeleço, assim, um certo espaço entre elas e eu e, por essa A noção voluntarista de agir torna-se assim um ingrediente-chave na
via, sou capaz de diminuir o seu domínio. Elas transformam-se cada vez concepção de Rawls, desempenhando um papel central na ética deontoló-
mais em atributos, tornando-se cada vez menos elementos constituintes da gica como um todo. "O que primariamente revela a nossa natureza não são
minha identidade, e assim desfazem-se, deixando de ser uma obsessão e os nossos objectivos" [560 (422)), mas antes a nossa capacidade de eleger
passando a ser meros desejos. aqueles que são mais importantes para nós, e esta capacidade encontra
Uma vez que o sujeito é perspectivado como sendo anterior aos seus expressão nos princípios da Justiça. "Assim, um sujeito moral é alguém que
fins, o autoconhecimento, neste sentido, não é uma possibilidade, uma vez possui objectivos por si escolhidos, e a sua preferência fundamental dirige-se
que as balizas que definiria são fornecidas à partida, de forma não reflectida, para condições que lhe permitam construir m)l;l modo de vida que expresse a
através dos princípios de individuação antecedente. Os limites do eu são sua natureza enquanto ser racional livre e igual, de forma tão plena quanto
fixos e dentro deles tudo é transparente. A questão moral relevante não é as circunstâncias o permitam" [561 (423)]. Esta é, em última instância, a
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razão pela qual não podemos perspectivar a justiça como apenas mais um de. ~otivação de desinteresse mútuo e de ausência de inveja. [... ] A posição
valor entre outros. "Para realizar a nossa natureza, não temos outra alterna- ongmal parece pressupor, não apenas uma teoria neutral do bem, mas tam-
tiva que não seja a de planear a preservação do nosso sentido da justiça e bém uma concepção liberal individualista, nos termos da qual o melhor que
fazê-lo dominar os nossos restantes objectivos" [574 (432)]. se pode desejar a alguém é que possa seguir o seu caminho próprio sem
impedimentos, desde que não interfira com os direitos de outros" (Nagel
1973: 9-10).
o individualismo e as exigências da comunidade Porém, tal como Rawls insiste acertadamente, a sua não é a "doutrina
estritamente individualista" assumida pela objecção empirista. "Uma vez
Na nossa reconstrução do sujeito deontológico encontramos por fim o que se compreenda a importância do pressuposto de desinteresse mútuo, a
padrão com o qual poderemos aferir as premissas descritivas da posição objecção deixa de ser pertinente" [584 (439)]. Não obstante a sua dimensão
original, o contrapeso das nossas intuições morais, capaz de fornecer um individualista, a justiça como equidade não defende a sociedade privada
teste para as duas extremidades do equilíbrio reflectido de Rawls. É esta con- enquanto ideal [522 (395)], nem pressupõe motivações egocêntricas ou
cepção do sujeito que o pressuposto de desinteresse mútuo nos fornece, e egoístas [129 (115-116)], nem se opõe a valores comunitaristas. "Embora na
não uma explicação particular das motivações humanas. teoria da justiça como equidade as pessoas comecem por ser consideradas
Podemo-nos recordar de que, na concepção de Rawls, "o postulado de enquanto indivíduos [... ] isso não obsta a que se explanem os sentimentos
desinteresse mútuo na posição original visa assegurar que os princípios de morais de ordem superior utilizados para manter unida uma comunidade de
pessoas" [192 (159)].
justiça não estejam dependentes de hipóteses muito exigentes" [129 (116)], e
a razão para se evitar hipóteses muito exigentes tem por objectivo viabilizar a Rawls tem vindo a sublinhar, em particular, que o pressuposto de
derivação de princípios que não pressuponham uma qualquer concepção desinteresse mútuo não constitui um preconceito em favor da selecção de
particular do bem. "A liberdade na adopção de uma concepção do bem é princípios favoráveis aos valores individualistas, a expensas dos comunita-
apenas limitada pelos princípios que se deduzem de uma doutrina que não ristas. Aqueles que lêem na teoria um tal preconceito ignoram o estatuto
impõe limites prévios a essa mesma concepção. A presunção da existência especial da posição original, assumindo, erradamente, que os motivos con-
de indiferença mútua na posição original desenvolve esta ideia" [254 (205)]. signados às partes se aplicani igualmente a seres humanos reais ou a pessoas
Pressupostos fortes ou controversos ameaçariam impor uma concepção numa sociedade bem organizada. Porém, não é este o caso. Os motivos atri-
particular do bem, o que influenciaria assim à partida a escolha daqueles buídos às partes na posição original não só não reflectem as motivações reais
princípios. que se verificam numa sociedade, nem determinam directamente as razões
Quão débeis, ou fortes, são, então, os pressupostos que enformam a que levam as pessoas a agir numa sociedade bem organizada.
teoria rawlsiana da pessoa? ·Com que gama de valores e de fins é que são Dado o alcance restrito destes pressupostos, Rawls defende que "à
compatíveis? São suficientemente débeis e inocentes para evitar excluir à partida, não parece existir qualquer razão para que os fins das pessoas
partida quaisquer concepções do bem? Já vimos que a leitura empirista da numa sociedade bem organizada sejam predominantemente individua-
posição original produz, sobre esta matéria, um rol de objecções. As cir- listas" (1975, 544). Os valores comunitaristas poderão existir, ou até mesmo
cunstâncias da justiça, e em particular o pressuposto de desinteresse mútuo, florescer, numa sociedade bem governada pelos dois princípios da jus-
são perspectivadas como introduzindo um preconceito em favor do indivi- tiça, tal como quaisquer outros valores, aliás, que os indivíduos possam
adoptar.
dualismo, ao mesmo tempo que excluem, ou de qualquer modo desvalori-
zam, motivos como a benevolência, o altruísmo e os sentimentos comunitá-
rios. Tal como um crítico escreveu, a posição original contém "um precon- "Não existe qualquer razão para que uma sociedade bem
ceito individualista forte, o qual é reforçado ainda mais pelos pressupostos organizada encoraje primariamente valores individualistas, se
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com isto queremos dizer modos de vida que conduzam os indiví- alterações que, com o tempo", a minha concepção do bem possa vir a
duos a seguir os seus próprios caminhos, sem qualquer preocupa- conhecer (Rawls 1980: 544-545)4.
ção pelos interesses dos outros (ainda que respeitando os seus Porém, um eu assim tão completamente independente como este
direitos e liberdades). Normalmente, esperar-se-ia que a maioria exclui qualquer concepção do bem (ou do mal) ligada à posse no sentido
das pessoas pertencesse a uma ou mais associações, detendo constitutivo. Exclui a possibilidade de qualquer afecto, ligação (ou obsessão)
assim, neste sentido, pelo menos alguns fins colectivos. As liber- capaz de penetrar para além dos nossos valores e dos nossos sentimentos e
dades fundamentais não têm o propósito de manter as pessoas de comprometer a nossa própria identidade. Põe de parte a possibilidade de
isoladas umas das outras, ou de as persuadir a manterem as suas uma vida pública na qual possam ver-se implicados, para o bem ou para o
vidas privadas, mesmo que alguns, sem dúvida, assim o façam. mal, quer a identidade, quer os interesses dos participantes. E descarta a
Antes visam assegurar o direito de liberdade de movimentos entre possibilidade de propósitos e fins comuns poderem inspirar uma auto com-
as associações, bem como entre as comunidades mais pequenas" preensão mais ou menos expansiva, definindo assim a comunidade num
(1975: 550). sentido constitutivo, uma comunidade que descreve o sujeito e não apenas
os objectos de aspirações partilhadas. De uma maneira mais geral, a concep-
Na concepção rawlsiana da pessoa, os meus fins serão benevolentes ou ção de Rawls exclui a possibilidade daquilo que poderemos apelidar de for-
comunitaristas quando tomam como propósito o bem de outro, ou de um mas de auto compreensão "intersubjectivas" or "intra-subjectivas", modos
grupo de outros com quem eu me possa ter associado. E, de facto, nada na de conceber o sujeito que não pressupõem que os seus limites nos são dados
sua perspectiva exclui fins comunitaristas, neste sentido. Todos os interes- à partida. Ao contrário da de Rawls, as concepções intersubjectivas e intra-
ses, valores e concepções do bem estão abertos ao eu rawlsiano, desde que -subjectivas não assumem que falar do eu desde um ponto de vista moral
possam ser apresentados co·mo os interesses de um sujeito individuado à seja necessária e indiscutivelmente falar de um eu antecipadamente indivi-
partida a dado anteriormente aos seus fins, isto é, desde que descrevam os dualizado.
objectos que procuro, em vez do sujeito que eu sou. Só os limites do eu estão As concepções intersubjectivas permitem que, em certas circunstâncias
fixados à partida. morais, a descrição relevante do eu abarque mais do que um único ser
Mas isto sugere um sentido mais profundo em que a concepção de humano individual, como acontece, por exemplo, quando atribuímos res-
Rawls é individualista. Podemos localizar este individualismo, e identificar as ponsabilidades à família, à comunidade, à classe ou à nação, em vez de a um
concepções do bem por ele excluídas, lembrando que o eu rawlsiano não é ser humano particular, ou quando reconhecemos termos obrigações para
apenas um sujeito de posses, mas um sujeito que já antes havia sido indivi- com elas. Presumivelmente, serão estas concepções que Rawls tem em
duado, permanecendo sempre a uma certa distância dos interesses que mente quando rejeita, "por razões de clareza, entre outras", aquilo que ape-
adopta. Uma consequência desta distância é colocar o eu para além do lida de "conceito indefinido de comunidade" e a noção de que "a sociedade é
alcance da experiência, torná-lo invulnerável, fixar a sua identidade de uma um todo orgânico" [264 (213)], já que elas sugerem o lado metafísico per-
vez por todas. Nenhuma obrigação me poderia prender tão profundamente turbador de Kant, que Rawls anseia substituir.
ao ponto de não ser capaz de me compreender sem ela. Nenhuma transfor- Por outro lado, as concepções intra-subjectivas permitem, para certos
mação dos meus objectivos e planos de vida poderá ser tão perturbadora ao propósitos, que uma descrição apropriada do sujeito moral se possa reportar
ponto de despedaçar os contornos da minha identidade. Nenhum projecto a uma pluralidade de eus dentro de um mesmo ser humano individual.
pode ser de tal modo essencial para mim que afastar-me dele seja equiva- Assim acontece quando explicamos as nossas deliberações interiores em
lente a colocar em questão a pessoa que eu sou. Em face da minha indepen-
dência dos valores que possuo, sou sempre capaz de me distanciar deles. 4 A determinado momento, Rawls sugere que a minha identidade privada enquanto pessoa

A minha identidade pública enquanto pessoa moral "não está afectada pelas moral poderá não se encontrar igualmente imune de laços constitutivos (1980,545). Cf. p. 239.
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termos da força que identidades ou momentos de introspecção, em compe- mais ou menos expansiva e, em particular, contra a possibilidade de comu-
tição uns com os outros, exercem sobre nós. Quando perspectivamos certos nidade no sentido constitutivo. Na perspectiva de Rawls, um sentido de
momentos de introspecção em termos de um auto conhecimento nos termos comunidade descreve um objectivo possível de um eu individuado antecipa-
do qual se verifica um encaixe ou uma harmonia entre as nossas múltiplas damente, não um ingrediente ou um elemento constituinte da sua identi-
características. Ou quando absolvemos alguém de responsabilidades pelas dade enquanto tal. Isto garante o seu estatuto subordinado. Uma vez que "a
crenças heréticas que teve antes da sua conversão religiosa. No quadro das urüdade essencial do eu está já prevista pela concepção do justo" [563 (425)],
concepções intra-subj e ctivas , quando falamos de eus dentro de um eu a comunidade terá de encontrar a virtude que lhe é própria como um com-
(empírico e previamente individuado), não é apenas metaforicámente que o petidor, entre outros, dentro do quadro definido pela justiça, e não como
fazemos, mas, por vezes, com um alcance moral genuíno e prático. uma justificação alternativa do próprio quadro em si. A questão que se
Ainda que Rawls não rejeite estas noções explicitamente, nega-as impli- coloca, então, é a de saber se os indivíduos que, por acaso, adoptem objecti-
citamente ao assumir que a cada pessoa individual corresponde um sistema vos comunitaristas os podem tentar concretizar dentro de uma sociedade
de desejos único, e que o utilitarismo, enquanto ética social, fracassa na bem organizada, antecipadamente definida pelos princípios da justiça, e não
medida em que aplica à sociedade os princípios de escolha adequados ao se uma sociedade bem organizada é, ela própria, uma comunidade (no sen-
homem individual. Uma vez que assume que cada indivíduo consiste num tido constitutivo). "Existe, sem dúvida, um objectivo colectivo para uma
sistema de desejos, e apenas um, o problema dos desejos compósitos não se sociedade bem organizada, enquanto um todo, o qual é sustentado pelo
coloca ao nível individual, e a conduta de uma pessoa para consigo mesma poder do Estado, uma sociedade justa no seio da qual uma concepção par-
pode ser devidamente governada pelo princípio de prudência racional. "Age- tilhada de justiça é reconhecida publicamente. Porém, dentro deste quadro
-se de forma inteiramente correcta, pelo menos quando não há terceiros podem adoptar-se objectivos comunitaristas, até mesmo muito possivel-
afectados, quando se visa atingir o maior bem e quando se prosseguem mente pela vasta maioria das pessoas" (Rawls 1975: 550).
objectivos racionais da melhor forma possível" [23 (41)]. A sociedade consiste Podemos agora verificar com maior clareza a relação entre a teoria
numa pluralidade de sujeitos, exigindo~se, por isso, a justiça; mas já no qua- rawlsiana da pessoa e a sua reivindicação a favor do primado da justiça. Na
dro da moral privada, o utilitarismo parece bastar. Nainedida em que outros medida em que os valores e os fins de uma pessoa são sempre atributos e
não estejam envolvidos, eu disponho de plena liberdade para maximizar o nunca elementos constitutivos do seu eu, assim também um sentido de
meu bem, sem referência ao princípio do just0 5 • Aqui, Rawls afasta-se mais comunidade é apenas um atributo, e nunca um elemento constituinte de
uma vez de Kant, que havia sublinhado o conceito de "dever necessário para uma sociedade bem organizada. Tal como o eu é anterior aos objectivos que
consigo mesmo"e aplicado a categoria do justo tanto à moral privada como apresenta, assim também uma sociedade bem organizada, definida pela
à pública (Kant 1785: 89-90, 96-97, 101, 105). justiça, é anterior aos objectivos - comunitaristas, ou outros- que os seus
Os pressupostos da posição original erguem-se, assim, como oposição membros possam professar. É este o sentido, simultaneamente moral e
avançada a qualquer concepção do bem que exija uma auto compreensão epistemológico, em que a justiça é a primeira virtude das instituições
sociais.
Tendo completado a nossa reconstrução da concepção da pessoa de
5 Na sua discussão da racionalidade deliberativa, Rawls queda-se no limiar do
reconhecimento de uma dimensão "intra-subjectiva" e de admitir o conceito do justo como Rawls, resta-nos aferi-la, bem como a ética deontológica que a sustenta. Já
constrangimento em matéria de eleição moral: "Aquele que rejeita de modo igual as exigências do vimos que os pressupostos contidos na posição original são fortes e de largo
seu eu futuro e os interesses dos outros é não só irresponsável perante estes mas também
alcance, em vez de débeis e inócuos, se bem que não pelas razões sugeridas
relativamente à sua própria pessoa, já que não se considera a si próprio como um sujeito que
permanece idêntico ao longo do tempo. Ora, visto desta forma, o princípio da responsabilidade pela objecção empirista. Estes pressupostos não admitem todos os fins; pelo
para consigo próprio é semelhante a um princípio do justo. [... ] A pessoa, em certo momento, por contrário, excluem à partida qualquer: fim cuja adopção, ou prossecução,
assim dizer, não deve poder queixar-se das acções da pessoa num outro momento" [itálicos
possa comprometer ou transformar a identidade do eu, rejeitando, em parti-
nossos, 423 (325)].
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cular, a possibilidade de o bem da comunidade se poder afigurar como uma


dimensão constituinte deste tipo.
Por isso, ainda que não se possa afirmar que os princípios de Rawls
derivam "de uma doutrina que não impõe quaisquer restrições antecipada-
mente" sobre as concepções do bem, ainda assim, poder-se-á argumentar
que as concepções por ele excluídas são de algum modo dispensáveis, sendo 2
possível explicar a justiça e chegar a uma concepção de sociedade bem orga-
nizada sem elas. A teoria da justiça de Rawls é precisamente uma tentativa A posse, o mérito e a justiça distributiva
deste tipo. Para a podermos aferir, temos de descer do universo da meta-
-ética deontológica para uma análise dos princípios de primeira ordem. Nos
capítulos que se seguem, argumentarei no sentido de que não só a concep- Depois de termos clarificado o estatuto dos pressupostos de motivação
ção da pessoa de Rawls não consegue sustentar a sua teoria da justiça, como de Rawls, podemos agora colocar lado a lado a sua teoria da pessoa e a sua
também não é capaz de explicar, com plausibilidade, as nossas capacidades teoria da justiça, a fim de procurar a· conexão entre ambas. Deste modo,
de agir e de auto-reflexão. A justiça não pode ser primária no sentido exigido poderemos operar dentro do argumento que parte do equilíbrio reflectido,
pela deontologia, na medida em que não nos podemos perspectivar coeren- indagando se a teoria da pessoa expressa na posição original corresponde
temente a nós próprios como o tipo de seres que a deontologia ética exige aos princípios da justiça que tem simultaneamente de enformar e de
que sejamos. reflectir. Para este propósito, um princípio assume um interesse especial.
Trata-se do princípio de diferença, nos termos do qual apenas são permitidas
aquelas desigualdades que funcionem em benefício dos membros mais des-
favorecidos da sociedade. Veremos neste capítulo que uma defesa adequada
do princípio de diferença tem necessariamente que pressupor uma concep-
ção de pessoa que não está ào alcance de pressupostos deontológicos, uma
vez que não podemos simultaneamente ser sujeitos para quem a justiça é
primária, e sujeitos para quem o princípio de diferença é um princípio de
justiça. Um ponto central incidirá sobre o papel do mérito na justiça distri-
butiva, bem como sobre a concepção de posse que exige. Para explorar estes
temas, começaremos contrastando as perspectivas de Rawls com várias teo-
rias distributivas alternativas, em particular com a teoria rival, se bem que
em alguns aspectos espantosamente semelhante, defendida por Robert
Nozick (1974).

Do pensamento libertário ao pensamento igualitário

A partir de um ponto de vista político prático, as posições de Rawls e de


Nozick opõem-se com clareza. Rawls, o liberal, defensor do Estado de bem-
-estar, e Nozick, o conservador libertário, definem entre si as alternativas
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mais claras que a agenda política norte-americana tem para oferecer, pelo de justificar que ela lhe possa ser retirada com vista à obtenção de
menos naquilo que à justiça distributiva diz respeito. E, no entanto, a partir um bem social global maior. Nada justifica que se sacrifique
de um ponto de vista filosófico, têm muito em comum. Um e outro definem alguns de nós pelos outros" (1974: 33).
as suas posições em oposiçao explícita ao unluarismo, que ambos rejeitam
com o fundamento de este negar a distinção entre pessoas. Alnbos Os dois filósofos sublinham aquilo que Rawls apelida de "pluralidade e
em alternativa, uma ética baseada em direitos, proposta com vista a assegtl- singularidade das pessoas" e aquilo que Nozick apelida de "facto das nossas
rar de forma mais completa a liberdade dos indivíduos. Apesar de a concep- existências separadas". Este é o facto moral central negado pelo utilitarismo
ção de direitos de Nozick ficar a dever muito a Locke, ambos apelam para o e que é afirmado por uma ética individualista, baseada nos direitos do
preceito de Kant nos termos do qual cada pessoa deve ser tratada como um homem. Sobre este facto moral, bem como sobre a importância dos direitos,
fim, e não apenas como meio, e procuram os princípios da justiça que Rawls e Nozick estão enfaticamente de acordo. Contudo, Rawls chega a uma
correspondam a esta posição. Ambos negam que exista qualquer entidade teoria da justiça no quadro da qual se aceitam desigualdades económicas e
social acima ou para além dos indivíduos que a compõem. Conforme Nozick sociais apenas na medida em que beneficiem os mais desfavorecidos,
escreve, ecoando Rawls, tanto nos princípios como na retórica, enquanto que, para Nozick, a justiça se situa unicamente nas trocas e nas
transferências voluntárias, o que exclui todas e quaisquer políticas redistri-
"Os constrangimentos colaterais à acção (isto é, as proibições butivas. Como é que, então, as suas teorias da justiça acabam por divergir de
não qualificadas) reflectem o princípio kantiano fundamental de forma tão vincada? Afortunadamente, o ponto em que ambos se separam
que os indivíduos são fins e não apenas meios. [... ] Os constrangi- pode ser localizado com alguma precisão, na medida em que Rawls, ao
mentos colaterais exprimem a inviolabilidade de outras pessoas. desenvolver o seu segundo princípio da justiça (aquele que contém o princí-
Mas, por que razão não se poderão violentar os direitos das pes- pio de diferença), apresenta uma linha de raciocínio que parte de uma posi-
soas com vista a um bem social maior? Cada um de nós, indivi- ção semelhante à de Nozick, mas termina na sua.
dualmente, escolhe por vezes submeter-se a algum trabalho ou Rawls considera três princípios possíveis segundo os quais a distribui-
sacrifício com vista seja à obtenção de um benefício, seja a evitar ção dos benefícios sociais e económicos pode ser regulada ou aferida: a
um prejuízo ainda maior. [... ] Porém, não existe qualquer entidade liberdade natural (semelhante à "teoria dos direitos" de Nozick), a igualdade
social com um bem privativo que se disponha a suportar algum liberal (aparentada com uma meritocracia-padrão), e a igualdade democrá-
sacrifício para o seu próprio bem. Apenas as pessoas individuais tica (baseada no princípio de diferença). O sistema de liberdade natural
existem, pessoas individuais diferentes, com as suas próprias vidas define como sendo justa qualquer distribuição que decorra de uma econo-
individuais. Utilizar uma dessas pessoas para o benefício de outras mia de mercado eficiente na qual prevaleça uma igualdade de oportunidades
é usá-la a ela e beneficiar as outras. Nada mais. [... ] Utilizar uma formal (isto é, jurídica), de tal ordem que os postos sociais possam ser
pessoa deste modo não respeita o suficiente, nem leva em ocupados por aqueles que possuírem os talentos relevantes para o efeito.
consideração o facto de ela ser uma pessoa separada, cuja vida é a Para Rawls, este princípio é inadequado, na medida em que a organização
única que tem para viver" (1974: 30-33). social que sanciona tende simplesmente a reproduzir a distribuição inicial de
talentos e de recursos; aqueles que forem substancialmente mais dotados
"Os constrangimentos morais colaterais sobre aquilo que arrecadarão quinhões maiores, e aqueles que se virem com menores posses
possamos fazer, afirmo, reflectem o facto de termos existências obterão resultados também menores. Onde quer que os resultados tiverem a
separadas. Reflectem o facto de que a actuação sobre uns não tendência para simplesmente reproduzir a distribuição inicial, apenas
pode ser moralmente equilibrada pela actuação sobre outros. Não poderemos apelidar uma tal circunstância de justa, caso se verifique o pres-
há nada que supere o valor moral da vida de uni de nós ao ponto suposto adicional de a distribuição inicial de talentos ter sido, já ela, justa.
102 103

Porém, este pressuposto não pode ser estabelecido como princípio, "Inde- pelos resultados da lotaria natural, resultado esse que é arbitrário
pendentemente do período de tempo a que nos reportarmos, a distribuição do ponto de vista moral. Não há mais razões para admitir que a
inicial de talentos e capacidades é fortemente influenciada pelas contingên- distribuição do rendimento e da riqueza dependa da distribuição
cias naturais e sociais"; como tal, não será de talentos e qualidades naturais do que para aceitar que ela
mente arbitrária. E uma vez que nada há que recomende a justiça das depende do acaso histórico e social" [73-74 (77)].
dotações iniciais, implantá-las em nome da justiça equivalerá a incorporar a
arbitrariedade da sorte, nada mais. "Intuitivamente, a injustiça mais evidente A partir do momento em que nos sentimos chocados pelo facto de a
do sistema de liberuade natural está em que ele permite que a parte que cabe repartição inicial de legados naturais determinar as nossas perspectivas de
a cada um na distribuição seja influenciada por estes factores, os quais são vida em geral, somos levados pela reflexão a sentir-nos tão chocados pela
perfeitamente arbitrários de um ponto de vista moral" [72 (76)]. influência das contingências naturais como pela influência das suas congé-
O princípio de igualdade liberal procura remediar as injustiças da liber- neres sociais e culturais. "De um ponto de vista moral, umas e outras são
dade natural, indo para além da igualdade formal de oportunidades e corri- igualmente arbitrárias" [75 (78)]. O mesmo raciocínio que nos conduz a pre-
gindo, sempre que possível, as desvantagens sociais e culturais. O objectivo é ferir uma "meritocracia equitativa" (como no quadro da igualdade liberal)
uma espécie de "meritocracia equitativa" na qual as desigualdades sociais e sobre uma igualdade puramente formal de oportunidades (como no para-
culturais são mitigadas por iguais oportunidades educativas, certas políticas digma de liberdade natural), conduz-nos naturalmente a procurar aquilo que
redistributivas e outras reformas sociais. O ideal do princípio de igualdade Rawls apelida de concepção democrática. Torna-se, contudo, claro que a
liberal prende-se com a oferta a todos de "um mesmo ponto de partida", a concepção democrática não constitui uma mera extensão do princípio de
fim de que aqueles com talentos e capacidades inatas semelhantes e com igualdade de oportunidades. Quanto mais não seja porque seria virtualmente
uma vontade também semelhante de os exercer possam, então, ter "as impossível alargar as oportunidades de forma tão completa a ponto de erra-
mesmas perspectivas de sucesso, sem olhar ao seu lugar inicial no sistema dicar até mesmo aquelas desigualdades que decorrem exclusivamente de
social, isto é, independentemente do rendimento auferido pela classe social condições sociais e culturais. Por si só, a instituição da família já torna "na
em que nasceram. Em todos os sectores da sociedade deve haver aproxima- prática impossível assegurar iguais possibilidades de sucesso e cultura a
damente as mesmas perspectivas de cultura e de sucesso para todos aqueles todos aqueles que são dotados de modo semelhante" [74 (77)]. Mas até
que têm motivações e capacidades semelhantes. As expectativas daqueles mesmo se a educação compensatória e outras reformas pudessem suprir por
que têm as mesmas capacidades e aspirações não devem ser afectadas pela completo, ou até mesmo de modo aproximado, as carências sociais e cultu-
classe social a que pertencem" [73 (76)]. rais, torna-se difícil, se não mesmo em geral impossível, imaginar que tipo de
Porém, enquanto que a igualdade liberal constitui um progresso em políticas sociais seriam necessárias para que se pudesse proceder a uma
comparação com o sistema de liberdade natural, "intuitivamente, continua a "correcção" comparável das contingências naturais do acaso. Daquilo que
aparecer insatisfatória". Igualdade de oportunidades, mesmo que total, con- necessitamos, portanto, é de uma concepção que anule o efeito destas con-
tinua a representar um ataque demasiado débil ao carácter arbitrário da tingências, ao mesmo tempo que reconhece a sua inevitabilidade.
sorte. Alguns pensadores, em particular aqueles que se apresentam hostis ao
princípio de igualdade democrática, descrevem o passo lógico que se segue
"Ainda que consiga eliminar totalmente a influência das como constituindo um salto, do domínio da igualdade de oportunidades
contingências sociais, ela continua a permitir que a distribuição para o domínio da igualdade de resultados. Na sua perspectiva, qualquer
da riqueza e do rendimento seja determinada pela distribuição teoria da justiça que rejeite uma concepção assente sobre o mérito devido ao
natural de capacidades e talentos. Dentro dos, limites impostos carácter moralmente arbitrário das consequências que dela decorrem ao
pelas instituições de enquadramento, a distribuição é decidida nível da distribuição tem necessariamente de se encontrar empenhada numa
104 105

espécie de igualdade de nivelamento, exigindo reajustamentos constantes melhorem a situação dos que não tiverem sido igualmente bafeja-
dos quinhões que são distribuídos, a fim de corrigir as diferenças que possam dos. Os que forem favorecidos pela natureza não deverão poder
persistir no que toca a talentos e capacidades naturais (Bell 1973: 441-443). retirar ganhos apenas pelo facto de terem sido mais dotados, mas
Porém, a igualdade de resultados não é, de modo unicamente para cobrir os despesas envolvidas com o treino e a
democrática a um regime de meritocracia, nem é, tão-pouco, o princípio educação dos demais, bem como para utilizar os seus dons de
adoptado por Rawls. O princípio de diferença não é sinónimo de igualdade maneira a melhorar também a sorte dos menos favorecidos. Nin-
de resultados, nem exige o nivelamento de todas as diferenças entre as pes- guém merece as suas maiores capacidades naturais, tal como não
soas. "Daqui não decorre que se deva eliminar estas distinções [escreve merece uma melhor posição inicial na sociedade" [10 1-2 (97)].
Rawls]. Há outra maneira de lidar com elas" [102 (96)]. E essa maneira pro-
posta por Rawls não aponta para a erradicação de dotes desiguais, mas para Ao considerar a distribuição de talentos e de atributos como um bem
o desenvolvimento de um estratagema de distribuição de benefícios e de comum, e não como posses individuais, Rawls evita a necessidade de "nive-
fardos de tal modo que os menos favorecidos possam beneficiar dos recursos lar" as aptidões para remediar o carácter arbitrário das contingências sociais
dos mais afortunados. É este o estratagema que o princípio de diferença e naturais. "Quando os homens concordam em partilhar os destinos uns dos
procura concretizar, definindo como justas apenas aquelas desigualdades outros", o facto de os seus destinos enquanto indivíduos poderem variar
sociais e económicas que funcionem para o benefício dos membros menos torna-se menos importante. Por isso é que, apesar de o princípio de
favorecidos da sociedade. Perspectivado em conjunto com o princípio de diferença ter tendência para "corrigir o desequilíbrio das contingências em
livre acesso de todos aos postos de trabalho e às posições, em condições de direcção à igualdade [... ] não exige que a sociedade procure nivelar as
uma leal igualdade de oportunidades, o princípio de diferença define a desvantagens, como se todos devessem tomar parte da mesma competição
concepção de igualdade democrática de Rawls. numa base equitativa" [100-101(95)].
O princípio de diferença não constitui uma mera versão mais acabada Rawls reconhece que o princípio de diferença, e em particular a noção
do princípio de igualdade de oportunidades, já que ataca o problema da de aptidões entendida como "bens comuns", colide com as concepções tra-
arbitrariedade de um modo fundamentalmente diferente. Em vez de trans- dicionais de mérito individual. "Existe uma inclinação natural para objectar
formar as condições em que exerço os meus talentos, o princípio de dife- que aqueles que estão melhor situados merecem' as vantagens que detêm,
rença transforma o fundamento moral com base no qual eu reivindico os quer delas decorram benefícios para outros, ou não" [103 (97)]. A resposta de
benefícios que deles decorrem. Deixo de ser considerado o único proprietá- Rawls é que esta concepção de mérito individual está errada, tal como já é
rio dos níeus activos, ou o beneficiário privilegiado das vantagens que me sugerido pelo argumento geral de arbitrariedade. "Parece-me ser um dos
trazem. "O princípio de diferença representa, com efeito, um acordo no sen- pontos assentes dos nossos juízos reflectidos que ninguém merece o lugar
tido de se encarar a distribuição dos talentos natur~is como um bem comum, que lhe cabe na distribuição de atributos inatos, tal como ninguém merece a
e de partilhar os benefícios desta distribuição, qualquer que ela venha a ser" posição inicial que ocupa na sociedade" [104 (97)]. A reivindicação de que
[101 (96)]. Deste modo, o princípio de diferença reconhece o carácter arbi- uma pessoa merece pelo menos aquilo que consegue obter através dos seus
trário da sorte quando afirma que eu não sou exactamente o proprietário, esforços é intuitivamente mais plausível, mas até mesmo a vontade de se
mas apenas o guardião ou o depositário, dos talentos e das capacidades que esforçar com afinco pode ser determinada em larga medida por contingên-
venham a residir na minha pessoa e, como tal, não possuo qualquer direito cias sociais e naturais. "A afirmação de que um homem merece o carácter
moral especial sobreos frutos do seu exercício. superior que lhe permitiu desenvolver os esforços necessários para cultivar
as suas capacidades é igualmente problemática, na medida em que o seu
"Aqueles a quem a natureza favoreceu, sejam eles quem carácter depende em larga medida de circunstâncias familiares e sociais
forem, podem beneficiar da sua sorte apenas em termos que favoráveis, relativamente às quais esse homem não pode pretender ter qual-
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quer crédito. A noção de mérito não parece poder aplicar-se a casos como que, no quadro das regras de cooperação, eu tenha um direito à minha justa
este" [104 (97)]. parte, não tenho qualquer direito que sejam estas as regras em vigor para que
Isto não equivale a negar qualquer papel aos direitos individuais. Certos se premeiem estes atributos, e não outras quaisquer. Por estas razões, aquele
tipos de direitos são compatíves com o de que tiver sido mais favorecido "não pode dizer que merece e, por isso, tem
aqui necessário estabelecer uma distinção entre mérito e expectativas legíti- um direito ao quadro de cooperação no contexto do qual lhe é permitido
mas. Uma vez que é no interesse geral que cultivo e exerço (alguns dos) adquirir benefícios por vias que não contribuem para o bem-estar dos
talentos e dos dons que me foram confiados, em vez de os deixar inactivos, a outros. Uma tal reivindicação não tem qualquer fundamento" [104 (97)].
sociedade está habitualmente organizada de modo a fornecer-me os recur-
sos que me permitam cultivá-los, assim como me incentiva para que os
exerça. Tenho, com certeza, direito à minha parte desses benefícios sempre A meritocracia us. o princípio de diferença
que me encontre habilitado para os receber nos termos especificados.
Porém, aquilo que é importante sublinhar é que esse direito se dirige a Antes de passarmos à análise da resposta que Nozick tem para dar a
honrar as expectativas legítimas criadas pelas instituições desenhadas para a Rawls, e à exploração da sua defesa da liberdade natural, poderá ser útil cla-
materialização dos meus esforços, não correspondendo a um direito primor- rificar ainda alguns aspectos do contraste entre o princípio de diferença (tal
dial ou uma reivindicação de mérito baseada nas qualidades que possuo. como apresentado na concepção de igualdade democrática de Rawls) e a
concepção meritocrática (tal como proposta na concepção de igualdade
"É absolutamente verdade que, dado um sistema de coope- liberal). Talvez a diferença mais notória entre ambas se situe no papel reser-
ração justo, perspectivado como um quadro de regras públicas, e vado ao mérito individual- central numa concepção meritocrática e ausente,
dadas as expectativas criadas por ele, aqueles que, com o objectivo ou pelo menos significativamente debilitado, na justiça como equidade)'.
de melhorarem a sua condição, tiverem feito aquilo que o sistema Numa "meritocracia equitativa", isto é, naquela em que apenas a discrimina-
anuncia que recompensará têm direito a receber essa recom- ção e os preconceitos de classe não são ultrapassados, aqueles que alcançam
pensa. É neste sentido que os mais afortunados têm direito à posições mais favorecidas ganharam o seu estatuto, merecendo assim os
situação melhor em que se encontram. As exigências constituem prémios que dele decorrem. São atribuídos quinhões desiguais em reconhe-
expectativas legítimas estabelecidas pelas instituições sociais e a cimento de um desempenho superior, não apenas para a satisfação de
comunidade tem a obrigação de as satisfazer. Porém, esta concep- expectativas legítimas. Tal como explica um defensor da ética da meri-
ção de mérito pressupõe a existência de um acordo de coopera- tocracia,
ção, sendo portanto irrelevante para a questão de saber se o
acordo inicial se deverá forjar segundo o princípio de diferença ou "Uma meritocracia integra aqueles que conquistaram a sua
nos termos de outro critério qualquer" [103-104 (97)]. autoridade. [... ] No contexto em que utilizo o conceito, uma meri-
tocracia constitui uma ênfase nos empreendimentos realizados e
Ainda que eu tenha um direito aos benefícios que correspondem às no estatuto conquistado pelos indivíduos é confirmados pelos
minhas expectativas, não os mereço, por duas razões. Em primeiro lugar, em seus pares. [... ] Enquanto que todos os homens têm o direito a
face do pressuposto de activos comuns, eu na realidade não possuo os atri- serem respeitados, nem todos têm direito a serem elogiados.
butos que estiveram na origem desses benefícios. Ou então, se os possuo,
será apenas num sentido débil e acidental, e não no sentido forte e consti-
I Não me reporto às versões de meritocracia que propõem a atribuição de quinhões a
tuinte. Neste contexto, a posse torna-se inadequada para o estabelecimento serem distribuídos, unicamente com vista à criação de incentivos e à atracção de talentos
de mérito no sentido pré-institucional forte. E, em s~gundo lugar, se bem relevantes, sem qualquer referência ao mérito dos receptores.
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me~os irrelevantes. Desde o momento em que se rejeita a noção de mérito


A meritocracia, no melhor significado da palavra, é composta por
individual e de "oportunidade equitativa" como fundamentos primordiais
aqueles que merecem ser enaltecidos" (Bell1973: 453-454).
dos quinhões a serem distribuídos, a distinção entre obstáculos genéticos e
culturais ao êxito perde muito do seu interesse moral. A partir do momento
Uma segunda diferença, relacionada com a
em que concordarmos em perspectivar a distribuição de talentos como um
distinção entre vantagens genéticas e vantagens culturais. Para Rawls, esta
património comum, pouco importa como é que alguns deles acabam por
distinção é virtualmente irrelevante, no que diz respeito à justiça. Já para os
residir em ti e outros em mim.
pressupostos meritocráticos, ela é crucial. Daí o intenso debate que se
Os defensores das concepções subjacentes à meritocracia nem sempre
desenvolve entre aqueles que se encontram comprometidos com os ideais da
são explícitos acerca dos fundamentos da distinção que estabelecem entre
meritocracia relativamente ao impacto dos factores genéticos e dos factores
vantagens sociais e vantagens naturais. Porém, podemos imaginar pelo
culturais na determinação da inteligência e das perspectivas de vida das pes-
menos dois argumentos possíveis: um moral e o outro prático. No quadro do
soas, em geral. Na medida em que se entende que a justiça dos dispositivos
primeiro, defender-se-ia que os atributos genéticos são invioláveis num sen-
distributivos depende de "oportunidade equitativa" de todos concorrerem
tido em que as características sociais e culturais não o são; que os atributos
entre si por prémios (em última instância) desiguais em igualdade de cir-
naturais de uma pessoa são de algum modo mais essencialmente dela, mais
cunstâncias, a distinção entre obstáculos genéticos, por um lado, e sociais e
profundamente constitutivos da sua identidade do que os seus atributos
culturais, por outro, torna-se central para qualquer avaliação do esquema.
socialmente condicionados. As diferenças inatas, por mais arbitrárias que
Quanto mais o sucesso for identificado como decorrendo de factores here-
possam ser, não são descartáveis, do mesmo modo que as sociais e culturais.
ditários, menos serão as desigualdades que as instituições sociais serão capa-
São elas, e não o resultado das condicionantes sociais e culturais, que assi-
zes (ou inculIlbidas) de corrigir, e menor será igualmente a esfera disponível
nalam os traços sem os quais eu não seria a pessoa particular que sou. Nesta
para o tipo de esforço individual do que se presume depender o mérito.
perspectiva, o mais importarite não é saber se mereço, ou não, a inteligência
com que nasci, por exemplo. O que interessa é que a minha inteligência inata
"Na natureza da meritocracia, tal como tem vindo a ser con-
é um facto irredutível a meu respeito, e a integridade da minha pessoa exige
cebida tradicionalmente, aquilo que é nuclear para a avaliação de
que se lhe não toque, independentemente do propósito social mais alargado
uma pessoa é a relação que nela se verifica entre aquilo que ela faz
que isso possa significar.
e a inteligência que possui, tal como aferida pelo lugar que ocupa
Porém, este argumento parece-nos improcedente a partir do momento
na escala do Quociente de Inteligência. Por isso, a primeira
em que consideramos que aquelas qualidades mais razoavelmente pers-
quéstão a ser colocada é a de saber o que é que determina a
pectivadas como sendo essenciais para a identidade de uma pessoa - o seu
inteligência. "
carácter, os seus valores, as suas convicções mais nucleares, as suas lealda-
des mais profundas, por exemplo - são com frequência fortemente influen-
"Tudo isto torna a questão da relação da inteligência com a
ciadas por factores sociais e culturais, enquanto muitas características físicas
herança genética muito melindrosa. A inteligência é sobretudo
- tais como a cor do cabelo e outras de índole trivial - são mais facilmente
herdada? Poderá ser desenvolvida através da educação? Como
tidas como irrelevantes. Até mesmo perante a validade da distinção entre as
se poderão separar as nossas capacidades e motivações inatas
característica~ essenciais e características meramente acidentais de uma
das competências que adquirimos através da educação ? (Bell
pessoa, não nos deparamos com qualquer razão óbvia para qu~ esta
1973: 411)
clivagem corresponda à distinção entre atributos naturais e sociais. E certo
que a objecção de Rawls a este argumento seria mais forte ainda, na medida
Para a justiça como equidade, o debate acerca d<;lquilo que determina a
em que a sua teoria da pessoa implica a inexistência de características essen-
inteligência e a extensa bibliografia científica por ele produzida são mais ou
llO III

ciais neste sentido, sejam elas sociais ou naturais. Até mesmo aqueles atri- ria com propriedade ser elevada à. condição de fundamento para a definição
butos que intuitivamente mais se aproximam da condição de constituírem de 9uinhões diferenciados. Com certeza que, se se assume que o objectivo da
elementos de definição de um eu essencial- tais como o carácter e os valores instituição social é fixo - por exemplo, que consiste na maximização do pro-
de uma pessoa - são relegados para um estatuto contingente. Do mesmo duto social global -, então os defensores de uma "meritocracia equitativa"
modo que o carácter de uma pessoa" dépende em boa de beneficiar de têm razão. Neste contexto, a única questão em matéria de justiça que per-
circunstâncias familiares e sociais favoráveis relativamente às quais não manecerá será a de saber se as pessoas se encontram devidamente equipa-
pode reivindicar qualquer crédito" [104 (97)], também os nossos valores são das pela sociedade para poderem contribuir para aquele objectivo e recolher
igualmente acidentais. "Numa perspectiva moral, não é relevante que os benefícios da sua contribuição. O que nos leva imediatamente a questio-
tenhamos uma concepção do bem em vez de outra. Ao adquiri-la, fomos nar por que razão aquele objectivo deve ser primário, mesmo quando reco-
influenciados pelo mesmo tipo de contingências que nos levaram a descartar nhecemos que ele só é capaz de prevalecer a expensas da injustiça social.
o conhecimento do nosso sexo e da nossa classe social" (Rawls 1975: 537). Numa palavra, para além de fornecer ou não aos seus membros os dons rele-
Um argumento prático distinguiria as desigualdades naturais das vantes para a prossecução do seu propósito colectivo, uma sociedade define
sociais com base no critério de que as primeiras são insuperáveis, num grau a natureza desse propósito através do seu complexo institucional, bem como
em que as segundas não o são e que, por isso, a soçiedade poderá ser incum- os atributos que devem ser considerados positivos e apresentados como
bida da correcçãodas desigualdades sociais, mas não das naturais. Quanto fundamento dos quinhões que serão objecto de distribuição. Numa passa-
mais as desigualdades decorrerem de condições de natureza genética em vez gem de alguma eloquência, Rawls escreve:
de serem induzidas culturalmente, menor será a capacidade de a sociedade
"fazer alguma coisa" com vista à sua superação. Dado um sistema equitativo, "Face a estas observações, podemos rejeitar a afirmação de
alguns progredirão com maior sucesso do que outros, e chegar-se-á a um que a ordenação das instituições é sempre deficiente porque a
ponto em que nem sequer a sociedade mais ilustrada poderá fazer o que distribuição natural de talentos e as circunstâncias sociais são
quer que seja para alterar este facto. Chegará uma altura em que até mesmo injustas, estendendo-se estas injustiças, inevitavelmente, às estru-
o reformador mais obstinado terá de reconhecer que a vida é injusta num turas concebidas pelo homem. Por vezes, esta reflexão surge como
grau que nenhuma instituição social poderá aspirar a corrigir. As pessoas são uma desculpa para ignorar a injustiça, como se a recusa em
diferentes, e, mais tarde ou mais cedo, essas diferenças virão ao de cima, até aceitar a injustiça fosse da mesma natureza que a impossibilidade
mesmo - e talvez mais seguramente aí - numa sociedade em que prevaleça em aceitar a morte. A distribuição natural não é nem justa nem
uma igualdade de oportunidades. "O fundamental é que a sociedade seja injusta, tal como não é injusto que se nasça numa determinada
genuinamente aberta, tanto quanto for possível" (BeII1973: 454). posição social. Trata-se de simples factos naturais. A forma como
A tudo isto Rawls responderia provavelmente dizendo que o papel da as instituições lidam com estes factos é que pode ser justa ou
sociedade se encontra naturalmente limitado desta forma, apenas quando se injusta" [102 (96)].
assume que a única função que pode desempenhar na promoção da justiça
consiste nos seus esforços no sentido de nivelar as desvantagens dos menos Estas considerações conduzem naturalmente a uma terceira diferença
afortunados para que possam competir de forma mais equitativa. Mas este entre as concepções da meritocracia e da democracia, referente à relação
pressuposto ignora a escolha social igualmente importante que está implícita entre o valor de vários activos e atributos, por um lado, e as instituições que
nos objectivos prosseguidos pelas instituições e nos atributos que esta esco- os consideram positivos e os recompensam, por outro. Na concepção da
lha premeia no processo. Até mesmo quando a grande maioria das diferen- meritocracia, as instituições sociais têm a obrigação de premiar certos atri-
ças entre as pessoas é de origem genética em vez de cultural, a sociedade butos em vez de outros. As qualidades procuradas por um conjunto de ins-
teria sempre que decidir qual destas diferenças, se é que alguma delas, deve- tituições detêm um mérito que é anterior à sua valorização institucional,
112 113

razão pela qual oferecem um teste independente da justiça das próprias ins- Em defesa do acervo comum
tituições. Os dispositivos institucionais que encorajam as qualidades nobres,
em vez das mais inferiores, são por isso mais meritórios, independentemente Para o desenvolvimento da nossa apreciação da teoria da pessoa e do
de outras considerações relevantes para a Justiça, tais como os propósitos princípio de diferença de Rawls, cada um deles à luz do outro, tomaremos
que possam promover. como ponto de partida dois aspectos da crítica que Nozick dirige à justiça
Na perspectiva de Rawls, as instituições não estão limitadas desta como equidade. O primeiro ataca o princípio de diferença, em particular a
maneira, uma vez que as virtudes que as poderi2.m limitar têm, elas próprias, noção de posse sobre a qual se baseia, e o segundo defende uma versão de
que aguardar uma definição institucional. "O conceito de valor moral não liberdade natural, a partir das noções de mérito e de direito a algo. Recorrer
fornece um primeiro princípio de justiça distributiva" na medida em que não desta maneira a Nozick e aos seus argumentos contra Rawls permitir-nos-á
pode ser introduzido até que se disponha de princípios de justiça [312 (246)]. aferir o pensamento do primeiro, bem como clarificar algumas das seme-
Uma vez que nenhuma virtude possui um estatuto moral antecedente ou lhanças e das diferenças entre as teorias distributivas de um e de outro.
pré-institucional, a configuração das instituições está aberta no que toca às A objecção nuclear de Nozick ao argumento que produz o princípio
qualidades que deverá premiar. Daqui decorre que o valor intrínseco dos de diferença incide sobre a noção rawlsiana de que a distribuição de talentos
atributos que uma sociedade procura e premeia não pode fornecer uma naturais deve ser perspectivada como uma posse "comum" ou "colectiva", a
medida de aferição da justiça, porquanto, desde logo, o seu valor apenas qual deverá ser partilhada pela sociedade como um todo. Conforme Rawls
emerge à luz dos dispositivos institucionais. A rejeição, por parte de Rawls, escreve,
de noções pré-institucionais de virtude reflecte a prioridade que atribui ao
justo sobre o bom, e a recusa de escolher antecipadamente entre concepções "O princípio de diferença representa, com efeito, um acordo
diferentes do bem. Uma sociedade de caçadores que premeie a rapidez na po sentido de se encarar a distribuição de talentos naturais como
corrida acima da eloquência (tal como esta é apreciada numa sociedade um acervo comum e de participar dos benefícios desta distribui-
litigiosa, por exemplo) não será menos justa nem menos virtuosa por causa ção, qualquer que ela venha a ser" [101 (96)].
disso, uma vez em que não existem fundamentos antecedentes com base nos
quais se possa demonstrar que a agilidade nos pés é mais ou menos virtuosa "Os dois princípios são equivalentes, como afirmei, a um
do que a sua congénere na língua. A prioridade das instituições justas relati- compromisso de encarar a distribuição de capacidades naturais
vamente à virtude e ao valor moral fornece uma segunda razão pela qual não como um património colectivo, por forma a que os mais afortuna-
se pod€ dizer que eu mereço os benefícios decorrentes dos meus atributos dos beneficiem apenas na medida em que os benefícios que
naturais. Para que eu pudesse merecer os benefícios associados à minha recolhem revertam em vantagem para os que o ficaram a perder
inteligência superior, por exemplo, seria necessário, simultaneamente, que na lotaria natural" [179 (150)].
eu possuísse a minha inteligência (nalgum sentido não arbitrário de posse), e
que eu tivesse um direito (num sentido forte, pré-institucional do conceito) Rawls acredita que a noção de acervo comum, tal como está incorpo-
a que a sociedade valorize a inteligência em vez de valorizar outra coisa rada no princípio de diferença, exprime o ideal de respeito mútuo que o
qualquer. Mas, na concepção de Rawls, nenhuma destas condições é proce- liberalismo deontológico procura afirmar.
dente. O argumento que parte da arbitrariedade para um conceito de acervo
comum arruina o primeira, ao passo que a precedência das instituições sobre "Ao disporem as desigualdades de forma a produzirem van-
o valor moral nega a segunda. tagens recíprocas e ao absterem-se da exploração das contingên-
cias da natureza e das circunstâncias sociais, num quadro de
liberdades iguais, as pessoas exprimem o seu respeito recíproco ao
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nível da própria constituição da sociedade. [... ] Outra forma de outros, mas apenas os "seus" atributos. Dizer que eu sou de algum modo
apresentar este facto consiste em afirmar que os princípios da jus- viqlado ou abusado quando a "minha" inteligência ou até mesmo o meu
tiça manifestam, na estrutura básica da sociedade, os desejos de esforço é utilizado para o benefício comum equivale a confundir o eu com os
os homens se tratarem uns aos outros, não como meios, mas atributos que lhe são fornecidos de forma contingente e que em nada são
como fins em si mesmos" [179 (150)]. essenciais (não são essenciais, quero dizer, para que seja o tipo de ser
particular que sou). Só no quadro de uma teoria da pessoa que considerasse
Nozick, pelo contrário, alega que perspectivar os dons naturais de uma estes dons como sendo essencialmente constitutivos, em vez de atributos
pessoa como constituindo propriedade comum equivale precisamente a alienáveis do eu, se poderia afirmar que, com a partilha de activos, eu estaria
contradizer tudo aquilo que o liberalismo deontológico afirma ao sublinhar a a ser usado como um instrumento para fins alheios. Mas, na perspectiva de
inviolabilidade do indivíduo e as diferenças entre as pessoas. Rawls, todos os dons são contingentes e, em princípio, separáveis do eu, cuja
prioridade está assegurada pela sua capacidade constante de retroceder
"As pessoas discordarão umas das outras relativamente ao perante o remoinho das circunstâncias. Esta é a característica através da qual
modo como vêem o princípio segundo o qual os talentos naturais se preserva a sua identidade, assegurando a sua invulnerabilidade perante a
constituem um acervo comum. Ecoando Rawls, algumas quei- experiência, que não é capaz de o transformar.
xar-se-ão do utilitarismo, e dirão que isto equivale a 'não levar a Se bem que esta defesa iluda a inconsistência, ela convida rapidamente
sério as diferenças entre as pessoas'. E perguntar-se-ão se uma outras objecções de incoerência do mesmo tipo. Perante uma distinção tão
reconstrução de Kant que trate as capacidades e os talentos das acabada entre o eu e as suas posses, a questão que se impõe imediatamente é
pessoas como recursos para os outros pode alguma vez ser ade- a de saber se, ao evitar um sujeito radicalmente situado, Rawls não cai no
quada. 'Os dois princípios da justiça [... ] excluem até mesmo a extremo oposto, propondo um sujeito radicalment~ incorpóreo. Tal como
tendência para considerar os homens como meios para o bem- Nozick argumenta, "insistir desta forma nesta distinção equivale a convidar
-estar uns dos outros'. Só quando insistir muito em distinguir os questão de saber se, ao fazê-lo, subsiste alguma concepção coerente de
homens dos seus talentos, dotes, capacidades e traços especiais" pessoa. Tão-pouco se entende por que razão é que nós, repletos como
(1974: 228). estamos de traços particulares, nos devemos contentar em que não sejam
perspectivados como meio (apenas) aqueles que se virem assim purificados"
Nozick atinge aqui o âmago da teoria do sujeito de Rawls. Como vimos, (1974: 228).
Rawls, na realidade, insiste muito na diferença entre o eu e as suas várias Deste modo, Nozick antecipa a defesa de Rawls e mostra que ela é
posses. O rigor desta distinção, independentemente do seu carácter proble- demasiado especiosa para poder redimir a teoria. A noção de que só os meus
mático, é talhado cuidadosamente de modo a adaptar-se às exigências do atributos é que são usados como meio, e não eu, ameaça pôr em causa a
projecto deontológico como um todo. E é ela que permite a prioridade do eu plausibilidade, e até mesmo a coerência, da própria clivagem que invoca. Ela
sobre os seus fins, a qual, pelo seu lado, sustenta a prioridade do justo e a sugere que, perante o princípio de diferença, podemos tomar seriamente a
primazia da justiça. Outra característica desta concepção prende-se com o distinção entre pessoas apenas quando recorremos à metafísica e à distinção
facto de permitir a defesa que se expõe de seguida em relação às objecções entre uma pessoa e os seus atributos. Mas isto tem uma consequência: deixa-
apresentadas por N ozick ao princípio da diferença. -nos com um sujeito de tal modo desprovido de características empiri-
Perspectivar a distribuição de talentos naturais como um acervo camente verificáveis (tão "purificado", na linguagem de Nozick) que acaba
comum não viola a diferença entre as pessoas, nem equivale a considerá-las por se assemelharem tudo ao sujeito kantiano transcendente ou destituído
como meios a serem usados para o bem-estar de outros, uma vez que não de um corpo que Rawls se propôs evitar. Parece mesmo que Rawls consegue
são as pessoas que estão a ser usadas como meios para o bem-estar de escapar à acusação de inconsistência, apenas a preço de incoerência, e que
116 117

a objecção apresentada por Nozick ao princípio de diferença é, assim, característica essencial das sociedades humanas oferece algum apoio a este
procedente. pressuposto; porém, apenas poderá estabelecer que algum princípio de
No entanto, Rawls tem à sua disposição uma defesa alternativa, não pluralidade ou de diferenciação é essencial para uma concepção do sujeito
antecipada por Nozick. Trata-se, porém, de uma defesa que, apesar de evitar humano, que não necessariamente de natureza física e corporal. E tão pouco
que o princípio de diferença dependa de uma do aparen- consegue demonstrar que o número desta pluralidade corresponde necessa-
temente incorpóreo, fá-lo a expensas de outros aspectos da doutrina de riamente, e em todos os casos, ao número de seres humanos individuais no
Rawls, pelo que é provável que o próprio Rawls se oponha a ela. Em todo o mundo.
caso, procurarei d8monstrar que só através dela o princípio de diferença se Em todo o caso, aquele é o pressuposto que terá que ser sacrificado,
poderá manter. Para esta segunda defesa, Rawls poderia negar que o princí- caso se pretenda ultrapassar a objecção apresentada por Nozick relativa ao
pio de diferença conduz a que eu seja usado como meio para o serviço dos acervo comum. Pretendendo-se que o princípio de diferença seja capaz de
fins de outros da seguinte forma. Em vez de propor que são os meus activos evitar que alguém seja usado como meio para o serviço dos fins de outros,
que estão a ser usados, e não a minha pessoa, Rawls poderia questionar o isso só será possível em circunstâncias em que o sujeito de posse seja um
sentido em que aqueles que partilham dos "meus" atributos podem com "nós" em vez de um "eu", implicando estas circunstâncias, pelo seu lado, a
propriedade ser considerados "outros". Enquanto que a primeira defesa existência de uma comunidade em sentido constitutivo.
sublinha a distinção entre o eu e os seus atributos, a segunda qualifica a A conclusão de que a teoria de Rawls se baseia implicitamente nunca
diferença entre o eu e o outro, permitindo que, em certas circunstâncias concepção intersubjectiva que ele rejeita formalmente encontra ainda apoio
morais,a descrição relevante do eu possa abarcar mais do que um único ser adicional nas discussões sobre o mérito e a justificação, de que trataremos a
humano individuado empiricamente. Esta segunda defesa liga a noção de seguir, adivinhando-se em vários traços de linguagem intersubjectiva que
acervo comum à possibilidade de um sujeito de posse também ele comum. podemos encontrar ao longo do texto. Uma tal linguagem surge inicialmente
Apela, em resumo, a uma concepção intersubjectiva do eu. na apresentação do princípio de diferença quando, como vimos, a distribui-
Aceitar que o princípio de diferença o compromete com uma perspec- ção dé talentos naturais é descrita alternadamente como um acervo
tiva intersubjectiva que ele, por outro lado, rejeita parece-nos constituir a "comum", "colectivo" ou "social", a ser usado em "proveito comum" [101,
única forma de Rawls ultrapassar as dificuldades levantadas por Nozick. 179,107 (96, 150, 100)]. "Na justiça como equidade os homens acordam em
E serve ainda para sublinhar um pressuposto da teoria do sujeito de Rawls, partilhar o destino uns dos outros" [102 (96)]. Isto é, decidem não aceitar que
ainda por tratar. Como vimos, Rawls concebe o eu como um sujeito de posse, as diferenças entre as pessoas constituam a base para que tenham pers-
limitado~ partida, e dado antes dos seus fins, ao mesmo tempo que assume pectivas de vida diferenciadas, já que estas diferenças decorrem de factores
ainda que os limites do sujeito correspondem sem qualquer problema aos arbitrários do ponto de vista moral.
limites corporais dos seres humanos individuais. Porém, Rawls nunca Ao discutir a ideia de união em sociedade, Rawls transporta a sua lin-
defende esta pretensão - assume-a simplesmenté. A possibilidade de ser guagem intersubjectiva do domínio de um acervo comum para o domínio de
contestada encontrar-se-á, talvez, dissimulada pela sua afinidade com fins e propósitos comuns, falando igualmente, numa retórica que se apro-
as nossas perspectivas não reflectidas de senso comum sobre a matéria2 • xima perigosamente da teleologia, de seres humanos que concretizam a sua
Poderá pensar-se que a ênfase que Rawls coloca na pluralidade enquanto natureza comum. Nesta explicação da união em sociedade, Rawls abandona
as questões distributivas para se preocupar com a auto-realização, pro-
2 Ainda assim, a crítica de Rawls ao utilitarismo torna particularmente surpreendente que
curando demonstrar que a justiça como equidade é capaz de fornecer uma
ele não tenha sido capaz de defender o seu princípio de individuação de forma mais completa, na
medida em que, segundo argumenta, é precisamente sobre esta matéria que o utilitarismo se
interpretação da sociabilidade humana que não é nem trivial, nem pura-
equivoca, não sendo capaz de reconhecer ou, pelo menos, não sepdo capaz de levar a sério, a mente instrumental. "Com efeito, os seres humanos possuem de facto
distinção entre as pessoas. objectivos finais partilhados e consideram as suas instituições e actividades
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comuns como bens em si mesmas" [522 (396)]. As características da união o fundamento do mérito
em sociedade incluem "objectivos finais partilhados e actividades comuns
valorizadas por si mesmas" [522 (396)1. Seguindo Humboldt, um liberal do A noção de posse conduz naturalmente a reivindicações de mérito e de
século XIX da tradição idealista alemã, Rawls escreve direitos. O debate acerca de o que é que as pessoas possuem, e em que ter-
em sociedade, fundada sobre as necessidades e as dos seus mos, tem um impacto directo sobre a questão de saber o que é que merecem,
membros, que cada pessoa pode participar da soma total daquilo que vier a ou a que é que têm direito, em termos de justiça. É para as questões de
ser realizado a partir dos valores naturais dos outros. [... ] Só numa união em mérito e daquilo a que se tem direito que nos dirigimos agora, de modo a
sociedade o individuo se torna completo" [itálico nosso, 523, 525n (396- podermos apreciar o segundo elemento da crítica de Nozick à justiça como
-397n)]. A sociedade assume uma variedade de formas e de dimensões: "[ ... ] equidade. Rawls rejeita os princípios de liberdade natural e de igualdade
tanto abrangem as famílias e os grupos de amigos, como associações muito liberal com o fundamento de que premeiam dons e atributos que, sendo
mais amplas. Também não existem limites de tempo e de espaço, já que as arbitrários de um ponto de vista moral, de modo algum se poderá dizer com
comunidades, ainda que separadas pela história e pelas circunstâncias, propriedade que as pessoas os merecem, adoptando o princípio de diferença
podem, apesar disso, colaborar na realização da sua natureza comum" precisamente na medida em que ele anula esta arbitrariedade. Nozick ataca
Iitálico nosso, 527 (399)]. esta linha de pensamento, argumentando, primeiro, que a arbitrariedade
Por força das suas dimensões intersubjectivas, o princípio de diferença não destrói o mérito, e, em segundo lugar, que mesmo que o fizesse, o resul-
e a ideia de união em sociedade contrapõem-se aos pressupostos individua- tado preferível que emergiria seria uma versão da liberdade natural e não o
listas de duas maneiras diferentes. O princípio de diferença, anulando a princípio de diferença.
arbitrariedade que surge quando os dons naturais são perspectivados como Apresentada em termos de posse, a objecção de Rawls à liberdade
posse individual. A ideia de· união em sociedade,. ultrapassando o carácter natural e à igualdade liberal prende-se com o facto de, no quadro destes
parcial das pessoas que emerge quando os indivíduos são considerados princípios, se permitir que as pessoas beneficiem (ou sofram) injustamente
como seres fechados e completos em si mesmos. Numa união em sociedade, por dons naturais e sociais que de facto não lhes pertencem, pelo menos no
"os membros de uma comunidade participam da natureza uns dos outros sentido forte, constitutivo do termo. Com certeza que se poderá dizer que os
[... e] o eu realiza-se nas actividades de múltiplos eus" [itálico nosso vários atributos naturais com que eu nasci me "pertencem" no sentido débil,
565 (426)]. contingente, em que acidentalmente residem em mim. Porém, deste sentido
de propriedade ou de posse não se pode estabelecer que eu detenha quais-
~ "É característica da sociabilidade humana que, por nós pró- quer direitos especiais sobre esses activos ou qualquer título privilegiado
prios, não somos senão partes daquilo que poderíamos ser. Temos sobre os frutos do seu exercício. Neste sentido atenuado de posse, eu não
de nos voltar para os outros para podermos obter as excelências sou, em sentido estrito, o proprietário, mas tão-só o guardião ou o repositório
que não conseguimos realizar ou de que estamos destituídos. do conjunto de dons e de atributos que foram instalados "aqui". Os princípios
A actividade colectiva da sociedade, as múltiplas associações e a de liberdade natural e de igualdade liberal transviam-se na medida em que
vida pública da comunidade mais ampla que as governa, apoia os não reconhecem o carácter arbitrário do destino, assumindo que os "meus"
nossos esforços e provoca a nossa contribuição. No entanto, o activos me pertencem no sentido forte, constitutivo, do termo, e permitindo
bem que é atingido pela cultura comum excede em muito o nosso que seja deles que dependam os quinhões que me deverão ser atribuídos.
trabalho, no sentido em que deixamos de ser meros fragmentos: a Expressa em termos de mérito, a objecção de Rawls aos princípios de
parte de nós próprios que realizamos directamente associa-se a liberdade natural e de igualdade liberal decorre do facto de premiarem dons
um sistema mais justo e mais vasto, cujos objectivos defendemos" e atributos que não se pode dizer que as pessoas mereçam. Apesar de alguns
[itálico nosso, 529 (400-401)]. poderem pensar que os afortunados merecem as coisas que conduziram à
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vantagem superior de que usufruem, "esta perspectiva é seguramente Para o efeito, será talvez útil considerar um estudo recente de Ioel Fein-
incorrecta" . berg, sobre a justiça e o mérito pessoal, que explora os fundamentos do
mérito com uma clareza admirável e em termos sugestivos para o argumento
"Parece ser ponto assente dos nossos de que agora nos ocupamos (1970). Feinberg parte da observação de que
não merecemos o lugar que ocupamos na ninguém merece nada, a não ser que exista um fundamento para esse
naturais, tal como não merecemos a nossa posição inicial na mérito. "Mérito, sem uma base, simplesmente não é mérito". Porém, a
sociedade. A afirmação de que um homem merece o carácter questão que se coloca de imediato é a de identificar o tipo de fundamento
superior que lhe permite desenvolver os esforços adequados com que é necessário. Tal como Feinberg escreve, "não basta um fundamento
vista ao cultivo das suas capacidades é igualmente problemática, qualquer". Uma vez mais, a noção de posse fornece-nos a chave. "Se uma
na medida em que o seu carácter depende em boa parte das cir- pessoa é merecedora de algum tipo de tratamento, tem necessariamente de o
cunstâncias sociais e familiares afortunadas em que nasceu, pelas ser em virtude de alguma característica que possui ou de alguma actividade
quais não pode reivindicar qualquer crédito: A noção de mérito anterior" (itálico nosso, 1970: 48).
não parece aplicar-se a estes casos" [104 (97)].
"Uma característica minha não pode ser o fundamento de
Uma vez que ninguém merece a boa sorte que possa ter tido na lotaria um mérito teu, a não ser que, de algum modo, revele ou espelhe
genética, ou a sua posição inicial mais favorável na sociedade, ou até mesmo alguma das tuas características. Em geral, os factos que consti-
o carácter superior que o motiva a cultivar as suas capacidades de forma tuem o fundamento do mérito de um sujeito têm de ser factos
conscienciosa, não se poderá dizer de quem quer que seja que mereça os acerca desse sujeito. Se um estudante merece uma nota mais ele-
benefícios que estes atributos possam vir a produzir. É esta dedução que vada numa disciplina, por exemplo, o seu mérito tem de decorrer
Nozick disputa. "Não é verdade", argumenta, "que uma pessoa ganhe Y(o de algum facto acerca dele - o seu desempenho anterior, ou as
direito de conservar um quadro que tenha pintado, louvor por ter escrito suas capacidades actuais. [... ] É necessário que o mérito de uma
Uma Teoria da Justiça, etc.) apenas na medida em que tenha conquistado pessoa tenha um fundamento, e que esse fundamento consista em
(ou de outro modo qualquer mereça) tudo aquilo que possa ter utilizado algum facto acerca dessa pessoa" (1970: 58-59! 61).
(incluindo os seus dons naturais) durante o processo de criar Y. Pode dar-se
o caso de muito simplesmente possuir, de forma não ilegítima, algumas das A análise de Feinberg, ligando o mérito de uma pessoa a algum facto
coisas que utiliza no processo. Não se torna necessário que os fundamentos acerca dela, parece apoiar o argumento de Nozick nos termos do qual "os
subjacentes ao mérito tenham de ser, eles também, merecidos, desde o fundamentos subjacentes ao mérito não têm de ser, eles também, merecidos,
início" (1974: 225). desde o início". De facto, fazer depender o mérito de uma característica que a
Ora, como devemos entender este argumento? Se não tenho necessa- pessoa possua sugere uma tese ainda mais forte do que a de Nozick, já que
riamente de merecer tudo aquilo que utilizo na produção de alguma coisa os fundamentos subjacentes ao mérito não podem também eles ser mereci-
para a poder merecer, então o meu mérito depende de quê? Nozick afirma dos, desde o início, do mesmo modo que os fundamentos subjacentes à posse
que algumas das coisas que uso, posso "tê-las d~ forma não ilegítima" (e, não podem ser igualmente possuídos desde o início. Já vimos como a noção
presume-se, possivelmente arbitrária). Mais uma vez, a noção de posse entra de posse exige que, algures "no processo", exista um sujeito de posse que não
em cena. Para vermos se o facto de ter uma coisa, de forma não ilegítima, me seja, ele também, possuído (uma vez que isso negaria a sua faculdade de
habilita a merecer aquilo que essa coisa me ajuda a produzir, necessitamos agir), um sujeito "assegurando a posse", por assim dizer. A analogia com o
de explorar em maior pormenor a relação entre a posse e o mérito, e selec- mérito aponta para a necessidade de um fundamento desse mérito, que em
cionar uma vez mais o sentido de posse a que nos reportamos. última instância lhe é anterior. Considere-se o seguinte. Se o mérito pressu-
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põe a posse de alguma característica, e se as características possuídas pres- cípio, esta condição jamais se poderia cumprir. Na concepção de Rawls, as
supõem algum sujeito de posse que não se encontre, também ele, possuído, características que eu possuo não estão associadas ao eu, mas apenas rela-
então o mérito tem de pressupor algum sujeito de posse que não se encontre cionadas com ele, permanecendo sempre a uma certa. distância. É isto que
ele também possuído e, por isso, algum fundamento faz com que sejam atributos, Fc~m vez de partes constituintes da minha pes-
também ele merecido. Tal como tem de exi.stir sujeíto de posse antes soa. Elas são minhas, em vez de eu próprio, coisas que eu possuo, em vez de
que esta se verifique, também tem de existir uma base para o mérito anterior coisas que eu sou.
a este. É por isto que a questão de saber se alguém merece (ter) o seu carácter A esta luz, podemos constatar como é que o argumento desenvolvido
sólido, de confiança, por exemplo, é notoriamente difícil (uma vez que, por Rawls a partir da arbitrariedade corrói a noção de mérito, não directa-
quando lhe retiramos o carácter, fica-se sem saber quem poderá ser julgado, mente, reivindicando que eu não posso merecer aquilo que me foi dado
ou o quê). E é também por isto que, para além de um certo ponto, a questão arbitrariamente, mas indirectamente, demonstrando que eu não consigo
mais geral de saber se alguém merece ser a pessoa (ou o tipo de pessoa) que é possuir aquilo que me foi dado arbitrariamente, isto é, que "eu", enquanto
se torna perfeitamente incoerente. Algures "no processo" tem de existir um sujeito de posse, não o poderei deter, no sentido constitutivo e não distan-
fundamento do mérito que não é também ele merecido. Os fundamentos ciado necessário para me fornecer um fundamento para o mérito. Um bem
subjacentes ao mérito não podem ser merecidos desde o início do processo. que me tenha sido dado de forma arbitrária não pode ser um elemento
Este resultado pareceria confirmar plenamente o argumento de Nozick constituinte essencial da minha pessoa, mas apenas um atributo acidental;
contra Rawls de que não é necessário que eu mereça tudo aquilo que utilizo caso contrário, a minha identidade dependeria de meras contingências, a sua
na produção de alguma coisa, bastando que "tenha obtido de forma não continuidade encontrar-se-ia vulnerável, sujeita a transformação pela expe-
ilegítima" parte daquilo que uso no processo. E se esta pretensão puder ser riência e o meu estatuto enquanto agente soberano dependeria das condi-
demonstrada, então a sensação que nos fica é a de que o argumento desen- ções da minha existência, em vez de me ser garantido epistemologicamente.
volvido por Rawls a partir da arbitrariedade afinal não chega a destronar o Na concepção de Rawls, não se pode dizer de ninguém que, em sentido
mérito. Afirmar, como o faz Rawls, que eu não mereço o carácter superior estrito, mereça o que quer que seja, uma vez que, em sentido estrito, nin-
que me conduziu à concretização das minhas capacidades, deixa de ser sufi- guém possui o que quer que seja, pelo menos no sentido forte, constitutivo,
ciente. Para negar o mérito, ele terá de demonstrar que eu não possuo o exigido pela noção de mérito.
carácter adequado ou, em alternativa, que o tenho, mas não no sentido Uma teoria da justiça sem mérito seria uma ruptura dramática com as
exigido. concepções tradicionais, mas Rawls esforça-se por demonstrar que isso não
Mãs este é precisamente o argumento que a teoria da pessoa de Rawls acontece. Nas suas páginas de abertura, Rawls reconhece que a sua aborda-
lhe permite desenvolver. Em face da distinção viva que estabelece entre o eu, gem "poderá parecer não estar de acordo com a posição tradicional"; porém,
perspectivado como sujeito puro de posse, e os objectivos e atributos que procura assegurar-nos que não é esse o caso.
possui, o eu fica destituído de traços substantivos ou de características que
pudessem constituir fundamentos para o mérito. Dado o aspecto distancia- "O sentido mais específico que Aristóteles dá do termo 'jus-
dor da posse, o eu em si mesmo é destituído de posse. No quadro da teoria da tiça', e do qual a maioria das formulações correntes derivam é o de
pessoa de Rawls, o eu, em sentido estrito, não tem nada, nada pelo menos no recusa da pleonexia, isto é, da obtenção de uma vantagem para si
sentido forte, constitutivo, exigido pelo mérito. Numa manobra semelhante através da apropriação do que pertence a outrem, quer seja a pro-
à invocada para demonstrar que o princípio de diferença não usa uma pessoa priedade, a recompensa, a função ou qualquer outra coisa, ou
como meio, mas apenas os seus atributos, Rawls consegue aceitar que o através do negar a outrem aquilo que lhe é devido [... ] No entanto,
mérito exige algum fundamento, ele mesmo não merecido, apenas para a definição de Aristóteles pressupõe claramente, segundo creio, uma
reivindicar que, a partir de Uma compreensão adequada da pessoa, em prin- análise daquilo que pertence apropriadamente a uma pessoa e
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justiça tenha a ver com dar às pessoas aquilo que elas merecem, a justiça
daquilo que lhe é devido. Estes direitos, segundo creio, derivam com? equidade, afinal de contas, afasta-se de forma decisiva da noção
muitas vezes das instituições sociais e das legítimas expectativas a tradicional.
que elas dão Não h3 rW7i'ío rar'1 pen8ar que Aristóteles A perspectiva que Rawls aparenta possuir, de que não se pode dizer de
estaria em desacordo com esta e ninguém que mereça o que quer que seja, e a inter-relação desta ideia com a
cepção da justiça social explica estas reivindicações. lH'] Não há noção do eu como sendo "essencialmente destituído de conteúdo", emerge
pois qualquer conflito com a concepção tradicional" [itálicos de forma mais plena na sua discussão de expectativas legítimas e do mérito
nossos, 10-11 (32)]. moral. Começa reconhecendo que, ao rejeitar o mérito, a justiça como equi-
dade vai ao arrepio do senso comum.
Ao comparar a justiça como equidade com as concepções tradicionais,
Rawls confirma a sua novidade, em vez de a negar. Aquilo que apresenta "Há uma tendência de senso comum para supor que o
como sendo uma qualificação incidental da justiça, tal como apresentada na rendimento e a riqueza, e em geral as coisas boas da vida, devem
concepção clássica, acaba na realidade por assinalar uma clara divergência ser distribuídos em função do mérito moral. A justiça é a feli-
com ela. Tal como Rawls sugere, as noções tradicionais r@ferem-se apenas cidade em acordo com a virtude. Embora se reconheça que este
"àquilo que apropriadamente pertence a uma pessoa", deixando de lado, ideal nunca poderá ser inteiramente executado, ele constitui uma
presume-se, as instituições. Pressupõem pessoas densamente situadas, com concepção apropriada da justiça· distributiva, pelo menos como
uma fixidez de carácter, determinadas características do qual são tidas como princípio prima facie, e a sociedade deveria tentar realizá-lo, de
sendo totalmente essenciais, "desde o início". Porém, a concepção de Rawls acordo com o que as circunstâncias permitam. Porém, a teoria
não conta com nenhum destes conceitos. Apesar de uma teoria da justiça da justiça como equidade rejeita esta concepção. Esse princípio
"pressupor uma explicação daquilo qúe apropriadamente pertence a uma não seria escolhido na posição original. Parece não haver forma
pessoa" (no sentido forte de pertencer), Rawls reconhece efectivamente que de definir o critério correspondente a esta situação" [310-311
não tem nenhuma para oferecer. E até parece propor implicitamente que, (244-245)].
em face da precedência da pluralidade, a prioridade do justo e a teoria da
pessoa que ela exige, tão-pouco se torna razoável pensar que uma tal teoria Parece não existir maneira de definir os critérios exigidos para a identi-
da justiça possa ser verdadeira. Na nossa essência, não somos suficiente- ficação da virtude ou do valor moral de uma pessoa na posição original, por-
mente densos para podermos carregar direitos e merecimentos antes que as que não contamos com uma teoria substantiva da pessoa anterior às
instituiçÕes os definam. Em face destes constrangimentos, a única alterna- instituições sociais. Para que o mérito moral possa fornecer um critério
tiva que resta é a opção por uma teoria da justiça fundamentada exclusiva- independente de justiça, tem de existir uma teoria substantiva da pessoa, ou
mente nos direitos decorrentes de expectativas legítimas, excluindo o mérito do valor das pessoas, na qual se apoie e cumpra a tarefa que lhe é consig-
por inteiro. De início, Rawls evita comprometer-se sobre a matéria, dizendo nada. Mas, para Rawls, o mérito das pessoas é subsequente às instituições,
apenas que "estes direitos, segundo creio, derivam muitas vezes das institui- em vez de ser independente delas. E, assim, as pretensões morais de uma
ções sociais e das legítimas expectativas a que elas dão origem" [itálicos nos-
pessoa têm de esperar. .
sos, 10 (32)]. Po~ém, à medida que as consequências plenas da perspectiva O que nos conduz à distinção entre mérito moral e legítimas expectatI-
de Rawls emergem, "muitas vezes" transforma-se em "sempre", uma vez que vas. Desde que uma pessoa faça todas as coisas que as instituições estabele-
se torna claro que "tais direitos" não podem emergir de mais qualquer outra cidas a encorajam a fazer, ela adquire certos direitos, mas não antes. Ela
maneira. Se bem que Aristóteles possa não discordar de que possam emergir tem o direito que as instituições cumpram aquilo que prometeram,
direitos por esta via, estará bem longe da sua mente afirmar que eles não honrando as pretensões que anunciaram que premiariam. Porém, não tem
podem também surgir através de qualquer outro processo. Ao negar que a
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o direito de exigir que premeiem à partida uma pretensão qualquer que aquilo que elas merecem, mas antes convocar os recursos e os talentos
possa apresentar. necyssários para o serviço do interesse comum.

"Assim, uma estrutura justa responde "Nenhum dos preceitos da justiça visa recompensar a vir-
homens têm direito; satisfaz as suas expectativas que se tude, A melhor remuneração obtida por talentos naturais raros,
baseiam nas instituições sociais. Mas aquilo a que têm direito não por exemplo, visa cobrir os custos da formação e encorajar o
é proporcional ao seu valor intrínseco, nE:m depende dele. Os esforço de aprendizagem, bem como dirigir as capacidades natu-
princípios da justiça que regulam a estrutura básica e especificam rais para os sectores que melhor promovam o interesse comum.
os deveres e as obrigações dos sujeitos não mencionam o mérito A distribuição que daí resulta não está correlacionada com o valor
moral e a distribuição não tem qualquer tendência para lhe cor- moral" [311 (245)].
responder" [311 (245)].
Para ilustrar esta prioridade das instituições justas relativamente à vir-
Os princípios da justiça não mencionam o mérito moral na medida em tude e ao valor moral, Rawls sugere uma analogia com a relação entre o
que, em sentido estrito, não se pode dizer de ninguém que mereça o que direito de propriedade e a legislação relativa ao roubo e ao furto.
quer que seja. De forma semelhante, a razão pela qual os direitos das pessoas
não são proporcionais ao seu valor intrínseco, nem dependem dele, prende- "Estas ofensas e o demérito que acarretam pressupõem a
-se com o facto de que, na perspectiva de Rawls, as pessoas não têm qualquer instituição da propriedade, estabelecida com objectivos sociais
valor intrínseco, nenhum valor que seja intrínseco no sentido de ser delas anteriores e independentes. Se uma sociedade se organizasse
antes, independentemente, ou para além daquilo que instituições justas lhes tendo como seu primeiro princípio o objectivo de compensar o
tenham atribuído. mérito moral, seria como criar a instituição da propriedade com o
objectivo de punir os ladrões. O critério 'a cada um segundo a
"A questão essencial é que o conceito de valor moral não sua virtude' não seria,· portanto, escolhido na posição original"
fornece um primeiro princípio de justiça distributiva. Tal ocorre [313 (246)].
porque ele não pode ser introduzido até que os princípios da
justiça, do dever e da obrigação natural tenham sido escolhidos. A analogia é estimulante, mas resta saber se funcionará inteiramente a
[... ]~O conceito de valor moral é secundário face aos conceitos favor de Rawls. À primeira vista, a instituição da propriedade assume uma
de justo e de justiça e não desempenha qualquer papel na certa prioridade relativamente às ofensas que lhe são correlativas. Porém,
definição substantiva dos quinhões a serem distribuídos" [312-313 não se entende porque é que a dependência tem de funcionar apenas numa
(246)]. direcção, em particular dado o empenho demonstrado pelo próprio Rawls
em relação- ao método de equilíbrio reflectido. Será que a nossa defesa da
Rawls poderia concordar com Feinberg em que "o mérito é um conceito instituição da propriedade, por exemplo, não se vê de algum modo reforçada
moral no sentido em que é logicamente anterior e independente das institui- pela nossa convicção de que o roubo e o furto são males? Será que a con-
ções públicas e das respectivas regras", mas negaria a existência de qualquer fiança que nela depositamos não seria de algum modo abalada se, por acaso,
"padrão independente para a respectiva definição [313 (246)], discordando aqueles que viessem a ser classificados como ladrões fossem invariavelmente
de que "um dos objectivos [de um sistema de concessões públicas] é dar a homens bons e virtuosos? Se bem que as normas e as regras que protegem a
cada pessoa aquilo que ela merece" (1970: 86). Para Rawls, os princípios da vida humana possam, sem dúvida, ser defendidas a partir de uma plurali-
justiça não têm por objectivo nem premiar a virtude, nem dar às pessoas dade de fundamentos, tais como manter as pessoas vivas, evitar o sofrimento
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e por aí adiante, será um erro lógico pensar que castigar os assassinos mero sistema não moral de incentivos e de dissuasão postos em prática para
constitui uma justificação da proibição do assassinato? encor,ajar algumas formas de comportamento e desencorajar outras. Para
A posição adoptada por Rawls neste contexto toma-se pa:..rticularmente Rawls, as noções morais pré-institucionais excluídas da justiça distributiva
surpreendeme em face do contraste que estabelece entre justiça distributiva encontram de algum modo significado em propósitos retributivos, verifi-
e justiça retributiva, sugerindo que, para a afInal justificar- cando-se uma tendência para que os castigos lhes correspondam.
-se alguma noção de mérito moral. A perspectiva de que os quinhões a serem O que nos coloca de imediato perante a perplexidade de saber como é
distribuídos a cada um devem corresponder, na medida do possível, ao res- que esta explicação se poderá alguma vez ajustar à analogia da propriedade e
pectivo valor moral, escreve Rawls, "pode decorrer do facto de se conceber a do roubo. Na medida em que a justiça retributiva difere da justiça distribu-
justiça distributiva como uma espécie de oposto da justiça retributiva". tiva exactamente devido à sua base moral anterior, toma-se difícil entender
Porém, a analogia assenta sobre um equívoco. "Numa sociedade razoavel- como é que o exemplo da propriedade e do roubo demonstra a prioridade
mente bem ordenada, aqueles que são punidos pela violação de leis justas das instituições sociais relativamente à virtude e ao valor moral, se esta prio-
fizeram normalmente algo de errado. Tal assim é porque o objectivo do ridade. se aplica unicamente à justiça distributiva. Porém, e deixando de
direito penal é o de garantir os deveres naturais básicos [... ] e as penas devem parte este equívoco menor, a questão mais fundamental que se coloca é
servir este objectivo" . como pode Rawls admitir o mérito em matéria de justiça retributiva sem
contradizer a teoria do eu e Os respectivos pressupostos que o eliminam para
"Elas não constituem simplesmente um sistema de tributos e efeitos de justiça distributiva? Se noções como reivindicações morais pré-
encargos concebidos para atribuir um preço a certas formas de -institucionais e valor moral intrínseco são excluídas de uma teoria de justiça
conduta e, desta forma, para orientar o comportamento humano distributiva devido a um eu destituído de conteúdo, excessivamente " magro
com vista à obtenção do benefício mútuo. Seria muito melhor se para as poder suportar, toma-se difícil entender como é que, no caso da jus-
os actos proibidos pela lei criminal nunca fossem praticados. 3
tiça retributiva, as coisas podem ser diferentes, no sentido da sua relevância ?
Assim, a propensão para cometer tais actos é sinal de um mau Será que os mesmos argumentos de arbitrariedade que excluem o
carácter e, numa sociedade justa, a punição legal atingirá apenas mérito ao nível da distribuição não o deverão excluir também enquanto fun-
aqueles que exibem tais deficiências. damento para punições? A propensão para cometer crimes decorrerá de
É evidente que a distribuição das vantagens económicas e factores que são menos arbitrários do ponto de vista moral do que aqueles
sociais é inteiramente diferente. Esta não é apenas um inverso, que conduzem a uma propensão para o bem? E, se assim não é, então o que
• por assim dizer, do direito criminal, de modo que, da mesma poderá levar as partes na posição original a não serem capazes de chegar a
forma que um pune certas ofensas, o outro recompensa o valor acordo no que toca à partilha dos destinos uns dos outros em matéria de
moral. A função da distribuição desigual é cobrir os custos da for- responsabilidade penal, como o fazem ao nível da distribuição? Uma vez que
mação e da educação, atrair os sujeitos para os lugares e grupos sob o véu de ignorância ninguém pode saber se irá ter a má sorte de nascer
em que eles são mais necessários do ponto de vista social, etc. [... ] em circunstâncias familiares e sociais desfavoráveis que o conduzirão a uma
Conceber a justiça distributiva e a retributiva como simétricas e
inversas uma da outra é inteiramente errado e sugere uma justifi-
3 Numa nota de rodapé, Rawls [315 (248)J cita Feinberg, aparentemente em defesa da sua
cação da distribuição diferente daquela que de facto se verifica"
pretensão. Porém, Feinberg atribui um papel ao mérito, tanto em matéria de justiça distributiva
[itálicos nossos, 314-315 (247-248)]. como em matéria de justiça retributiva. O argumento de Feinberg é que a justiça retributiva
envolve aquilo a que chama "mérito polar" (onde cada um merece o bem ou merece o mal), ao
passo que a justiça distributiva envolve um mérito não polar (contexto em que, tal como num
Ao contrário dos benefícios decorrentes dos acordos distributivos, os
prêmio, alguns merecem e outros não). Porém, ambos os casos envolvem o mérito num sentido
castigos e as proibições associados ao direito Criminal não constituem um moral pré-institucional (Feinberg 1970: 62).
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vida de crime, o que poderá levar as partes a não adaptarem uma espécie de passar os seus defeitos é igualmente problemática, na medida em que o seu
princípio de diferença para os castigos, como haviam feito para a distribui- caJ;ácter depende, em larga medida, de circunstâncias familiares e sociais
ção dos quinhões sociais, e chegarem efectivamente a acordo no sentido de desafortunadas pelas quais ele não pode ser culpado. A noção de mérito não
perspectivarem a distribuição de responsabilidades naturais e sociais parece poder aplicar-se a casos como este. Nada disto implica que, em ter-
um fardo comum? mos gerais, uma teoria não moral da justiça distributiva seja incompatível
Rawls considera que "aqueles que são punidos pela violação de leis com uma teoria moral do castigo, ou com uma teoria do castigo baseada no
justas fizeram, normalmente, algo de errado" [314 (246)]. Mas suponhamos mérito, mas tão-só que, em face das razões que apresenta para a rejeição de
que, através de um acto de vandalismo, eu privo a minha comunidade de dispositivos distributivos baseados no mérito, Rawls parece encontrar-se
certas medidas de bem-estar, digamos que atirando um tijolo contra uma claramente comprometido também com a rejeição de mecanismos retribu-
janela. Por que razão é que eu mereço suportar os custos do meu acto de tivos assentes em igual fundamento.
destruição dessa janela, mais do que a pessoa que a produziu merece usufruir A inconsistência aparente entre as teorias distributiva e retributiva de
de todos os benefícios decorrentes da sua actividade produtiva? Rawls Rawls não acarreta necessariamente danos graves para a sua teoria como um
poderá retorquir dizendo que "a minha propensão para cometer tais actos é todo. Em face do método de equilíbrio reflectido, "a justificação decorre do
um sinal de mau carácter". Porém, se o carácter laborioso do carpinteiro que apoio mútuo de diversos aspectos, que .se devem articular em conjunto para
construiu a janela não é um sinal de bom carácter (no sentido moral pré- permitir uma visão coerente" [21 (40)]. Na perspectiva da teoria geral, muito
-institucional), porque é que a minha malícia em quebrá-la há-de ser um pouco depende da concepção retributiva de Rawls, para além da medida de
sinal de mau carácter (sempre no sentido moral pré-institucional)? Com plausibilidade que empresta à justiça como equidade para aqueles que se
certeza, seguindo Rawls, [p. 103 (97)], no quadro de um sistema justo de encontram comprometidos com uma noção forte de castigo, baseada no
direito criminal, aqueles que praticarem aquilo que o sistema anunciou que mérito. Se a distinção estabelecida por Rawls estiver correcta, não necessi-
punirá são tratados adequadamente quando o sistema os pune como havia tarão de escolher entre as suas intuições retributivas e o princípio da dife-
anunciado e, neste sentido, "merecem" a pena que lhes é atribuída. "Mas, rença. Caso contrário, uma desta duas convicções terá de ceder. Se, após
interpretada neste sentido, a noção de merecer pressupõe a existência do reflexão, uma teoria não moral do castigo nos parecer inaceitável, até mesmo
sistema [de retribuição], sendo irrelevante para a questão de saber se este à luz do carácter arbitrário de características e disposições criminosas, então
sistema deve, à partida, ser concebido de acordo com o princípio da o princípio de diferença - uma vez que rejeita a noção de mérito - ver-se-ia
diferença ou com qualquer outro critério [103 (97)]. fortemente debilitado. Se, por outro lado, a nossa intuição de que o
Alguns poderão pensar que o criminoso merece o seu castigo num sen- criminoso merece o castigo não se vier a provar ser mais indispensável do
tido moral forte, na medida em que merece o mau carácter reflectido pela que a nossa intuição de que a virtude merece ser premiada (uma intuição de
sua criminalidade. Talvez seja isto que Rawls tem em mente ao escrever que senso comum que Rawls rejeita explicitamente), então poderemos ajustar as
"a propensão para cometer tais actos é um sinal de mau carácter", e os casti- nossas intuições numa direcção que afirma o princípio de diferença, em vez
gos são bem aplicados quando se abatem sobre aqueles que demonstram de se opor a ele. E o mérito será rejeitado enquanto fundamento para dispo-
possuir estas faltas. Neste sentido, na medida em que o transgressor é menos sitivos retributivos e distributivos, resolvendo-se assim a inconsistência.
digno, ele merece o infortúnio que lhe caiu em cima. No entanto, seguindo Porém uma tal solução traz-nos de volta para as dificuldades mais
Rawls [p. 104 (97-98)], esta perspectiva está seguramente errada. Parece ser profundas de uma teoria da justiça sem lugar para o mérito e de uma noção
um dos pontos assentes dos nossos juízos reflectidos que ninguém merece o de um eu essencialmente destituído de posses, ou estéril de traços consti-
lugar que lhe cabe na distribuição de atributos ou de defeitos inatos, tal tuintes. Nozick argumenta contra Rawls que os fundamentos subjacentes ao
como ninguém merece a posição inicial que ocupa na sociedade. A afirma- mérito não necessitam, eles próprios, de ser merecidos desde o início. Mas,
ção de que um homem merece o seu carácter inferior que o impede de ultra- como vimos, a rejeição do mérito por parte de Rawls não decorre da tese
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refutada por Nozíck, mas antes de uma noção do eu como um sujeito de recolher os benefícios decorrentes dessa sua participação. O sistema de
posse puro, não adulterado, "essencialmente destituído de conteúdo". RawIs liberdade natural repara a arbitrariedade das sociedades hierárquicas deslo-
não se encontra comprometido com a perspectiva de que uma pessoa ape- cando o fundamento das expectativas do estatuto para o contrato, e adop-
nas é capaz de merecer algo que tenha produzido, caso mereça ');,"W"J.lcUÇU
tàndo, assim, uma perspectiva mais estreita da pessoa, por assim dizer, em
tudo aquilo que utilizou na produção dessa coisa, mas com a perspectiva de que ela se torna distinta e separável do ambiente em que se situa. Permanece
que ninguém possui o que quer que seja, no sentido forte, constitutivo, ainda alguma arbitrariedade, muito em particular no que diz respeito às
necessário para um fundamento do mérito. Não se poderá dizer de ninguém contingências sociais e familiares de cada um. Num regime de liberdade
que mereça o que quer que seja (no sentido forte, pré-institucional), na natural, as perspectivas de vida de uma pessoa são determinadas por facto-
medida em que não se poderá dizer de" ninguém que possui o que quer que res que são tão imputáveis às pessoas (no sentido forte, constitutivo) como
seja (no sentido forte, constitutivo). Esta é a força filosófica do argumento o estatuto que herdaram. O princípio de liberdade natural alivia, portanto, a
desenvolvido a partir da arbitrariedade. pessoa da bagagem hierárquica que transportava; não obstante, continua a
Que o argumento de arbitrariedade funciona assim pode ser observado perspectivar oeu como sendo densamente constituído, oprimido pelo peso
ao considerar os passos que nos levam da liberdade natural para a igualdade dos acidentes das contingências sociais e culturais. Daí o salto para a igual-
de oportunidades e, depois, para a concepção democrática, tal como Rawls dade de oportunidades, em cujo contexto o eu se liberta dos acidentes
os descreve, como sendo estádios no processo de expropriação da pessoa. sociais e culturais, para além do estatuto que havia herdado. Já numa
Com cada transição, o eu substantivo, carregado de traços particulares, é "meritocracia equitativa", os efeitos do estatuto de classe, bem como as des-
progressivamente desprovido de características até então tidas por essen- vantagens culturais, são perspectivados como reflectindo mais a sociedade do
ciais para a sua identidade. E à medida que mais características são pers- que as pessoas. Aqueles que apresentam talentos comparáveis e "a mesma
pectivadas como tendo-lhe sido atribuídas arbitrariamente, elas vêem-se vontade de os aplicar devem ter as mesmas perspectivas de sucesso, sem
desalojadas da condição de elementos presumivelmente constituintes para a olhar ao seu lugar inicial no sistema social, isto é, independentemente da
categoria de meros atributos do eu. Nos termos da nossa formulação ante- classe sócio-económica em que nasceram" [73 (76)]. Deste modo, a concep-
rior, cada vez mais elementos tornam-se meus, e cada vez menor é o número ção meritocrática prolonga a lógica da liberdade natural atribuindo ainda
daqueles que permanecem sendo eu; até que, em última instância, o eu se vê menos ao eu e mais à sua situação.
completamente purgado de elementos constituintes empíricos, transfor- Mas, ao premiar o esforço individUal, mesmo o princípio de igualdade
mando-se assim em condição do agir, situada para além dos objectos da sua de oportunidades concebe o domínio do eu de forma excessivamente
posse. A lógica do argumento de Rawls poderá ser reconstruída da seguinte expansiva, já que até "o esforço que uma pessoa está disposta a fazer é
maneira. influenciado pelas suas capacidades e talentos naturais e pelas alternativas
Num extremo do espectro, mesmo antes do surgimento da liberdade que se lhe oferecem. Os mais dotados tenderão, em igualdade de circunstân-
natural, encontramos as sociedades aristocráticas e de castas. Nessas socie- cias, a aplicar-se conscienciosamente e não parece haver forma de não ter
dades, as perspectivas de vida de uma pessoa encontram-se ligadas à hierar- em conta a sua vantagem sobre os outros" [312 (246)]. O eu permanece
quia em que se nasceu e da qual a pessoa não se pode separar. Neste con- sobrecarregado. Perante a arbitrariedade, nem sequer o carácter que deter-
texto, o eu encontra-se completamente preenchido, amalgamado com a sua mina as motivações de uma pessoa pode ser perspectivado como um ele-
condição de forma quase indissociável, encravado na sua situação. O sistema mento constituinte da sua identidade. Daí o passo terminal para a concepção
de liberdade natural elimina o estatuto fixo do nascimento do rol de democrática, no quadro da qual, liberto de todos os atributos que lhe possam
elementos que se pressupõe serem constitutivos da pessoa, perspectivando, ser consignados de forma contingente, o eu assume uma espécie de estatuto
então, cada um como ser livre, detentor de capacidades e de recursos que lhe supra-empírico, essencialmente destituído de conteúdo, delimitado à par-
permitem competir no mercado da melhor maneira que pode e, bem assim, tida e dado com prioridade relativamente aos seus fins, um sujeito puro do
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agir e de posse, reduzido ao mínimo possível. Não só o meu carácter, mas até a teoria de Rawls pressupõe e sobre o qual repousa alguma vez
mesmo os meus valores e as minhas convicções mais profundas, são relega- possa ser harmonizado com a perspectiva da dignidade humana a
dos para a contingêncÍé'1, perspectivados como características da minha con- que se propõe conduzire incorporar" (1974,214).
dição, em vez de elementos constituintes da minha
um ponto de vista moral, o facto de termos uma em vez Bell resume a objecção a um epigrama: "A pessoa desapareceu, apenas
de outra, não é relevante. Quando a adquirimos, somos influenciados por restam atributos" (1973, 419). Enquanto que Rawls procura garantir a auto-
contingências do mesmo tipo daquelas que nos conduzem a excluir um nomia do eu libertando-o do mundo, os seus críticos alegam que, para o
conhecimento do nosso sexo ou da classe social a que pertencemos" (Rawls preservar, ele acaba por dissolvê-lo.
1975: 537). Só assim é possível instalar o eu numa' posição de invulnerabili- Chegou a altura de recapitular a nossa versão reconstruída do debate
dade, assegurar a sua soberania de uma vez por todas num mundo que entre Rawls e Nozick a propósito do tema do mérito. Nozick começa por
constantemente o ameaça submergir. Só na medida em que o destino do eu argumentar que a arbitrariedade dos atributos não destrói o mérito, na
se destaca, assim, do destino dos seus atributos e dos seus objectivos, sujei- medida em que este poderá depender não apenas das coisas que eu mereço,
tos como estão aos caprichos das circunstâncias, é que a sua prioridade mas de coisas que eu simplesmente detenho de forma não ilegítima. Rawls
poderá ser preservada e o seu agir assegurado. responde invocando a distinção entre o eu e as suas posses na versão
Esta é a visão da pessoa que Nozick e Bell, enquanto defensores da mais forte desta distinção, afirmando assim que, em sentido estrito, não
liberdade natural e da meritocracia, respectivamente, rejeitam enfatica- há nada que "eu", enquanto sujeito de posse, possua - não há nada que
mente, mesmo que não apresentem em grande pormenor a concepção do eu esteja ligado a mim, em vez de relacionado comigo - nada, pelo menos no
alternativa em que se baseiam. Um e outro discordam de que, quando sentido constitutivo forte de posse necessário para fundamento do mérito.
devidamente aplicado, o argumento de arbitrariedade conduza inelutavel- A réplica de Nozick é que esta defesa tem um sucesso limitado, uma vez
mente à dissolução da pessoa e à abnegação da responsabilidade individual e que nos deixa com um sujeito tão desprovido de características empi-
da escolha moral. "Esta linha de argumentação é capaz de bloquear, com ricamente identificáveis que se aproxima uma vez mais do sujeito trans-
sucesso, a introdução das opções e das actividades autónomas de uma pes- cendental ou incorpóreo kantiano que Rawls tanto se esforçou por evitar. Ela
soa (bem como os respectivos resultados), apenas através da atribuição, por torna o indivíduo inviolável, mas apenas porque o torna invisível, pondo em
completo, de tudo o que de relevo há acerca da pessoa a certos tipos de fac- causa a dignidade e a autonomia que este liberalismo procura assegurar
tores 'externos"', afirma Nozick. Recuperando o seu argumento contra a acima de tudo.
noção de acervo comum, Nozick questiona ainda se, na explicação de Rawls,
resta alguma concepção coerente da pessoa e, em caso afirmativo, se ela
continua a apresentar o tipo de pessoa que merec~ a inquietação moral que Exigências individuais e exigências sociais: a quem pertence o quê?
o liberalismo deontológico tem vindo a desenvolver em seu favor.
Porém, Nozick tem mais uma objecção, independente da primeira, que
"Denegrir deste modo a autonomia da pessoa e a responsa- poderemos formular mais ou menos da seguinte forma. Mesmo que Rawls
bilidade primordial que detém sobre as suas acções constitui uma tenha razão e a arbitrariedade destrua a posse e, por essa via, também o
opção arriscada para uma teoria que, de outro modo, procura for- mérito individuais, daqui não decorre que o princípio de diferença seja ine-
tificar a dignidade e o auto-respeito de seres autónomos. Muito vitável, uma vez que até mesmo em tais circunstâncias algo semelhante ao
em particular tratando-se de uma teoria que alicerça tanta coisa princípio de liberdade natural poderia permanecer adequado - e aqui N ozick
(incluindo uma teoria do bem) sobre as escolhas das pessoas. prefere utilizar a terminologia da sua própria versão, que denomina "teoria
Duvida-se de que o quadro pouco elevado dos seres humanos que dos direitos". Mesmo se ninguém merecesse os seus atributos naturais, as
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pessoas poderiam continuar a ter direito a eles, bem como àquilo que deles cristãos, nos termos da qual aquilo que um homem possui, tem-no na quali-
derivar. dacj.e de guardião de bens que na verdade apenas pertencem a Deus, e é esta
Segundo este ponto de vista, e na melhor das hipóteses, o argumento a concepção que encontramos também subjacente às várias noções comuni-
4
partir da arbitrariedade não é capaz de assegurar devidamente a dE'feS3 do taristas de propriedade •
princípio de diferença de Rawls. Demonstrar que os indivíduos, enquanto Na terceira concepção, eu não sou nem proprietário, nem guardião,
tal, não merecem, nem possuem os ((seus" atributos não equivale necessa- mas apenas o depositário dos bens e dos atributos localizados acidental-
riamente a demonstrar que a sociedade como um todo, essa sim, os merece e mente na minha pessoa. A noção de indivíduo enquanto depositário de
os possui. Ainda que os atributos localizados em mim de forma acidental não recursos não pressupõe a existência de outro sujeito de posse a quem esses
sejam meus, por que razão daqui deverá decorrer, como Rawls parece afir- recursos pertencerão em última instância, mas elimina por completo a
mar, que eles são comuns, em vez de pertencerem a outra pessoa qualquer? posse. Na medida em que eu sou o depositário de atributos naturais, não há
Se não se pode afirmar com propriedade que eles me pertencem, porquê qualquer necessidade de colocar a questão de saber a quem pertencem em
assumir automaticamente que pertencem à comunidade? Do ponto de vista última instância. O facto de estarem localizados em mim não acarreta quais-
moral, será a sua localização na esfera da comunidade menos acidental ou quer consequências relativamente às reivindicações que eu, ou qualquer
menos arbitrária? E, em caso negativo, porque não perspectivá-Ios como outro, possa apresentar sobre eles.
bens sem dono, não vinculados à partida a qualquer sujeito de posse, tanto Ora, quanto a estas distinções, Nozick alega, com efeito, que o argu-
individual como colectivo? mento de arbitrariedade apresentado por Rawls, mesmo que seja capaz de
Neste contexto, torna-se necessário um maior rigor acerca dos termos destruir o conceito de posse individual e, assim, o de mérito também, fá-lo
da relação entre a pessoa e os dotes que apresenta. Três concepções parecem apenas no quadro da terceira descrição (em que os indivíduos são depositá-
cobrir todos os casos possíveis. Dependendo do sentido de posse que se ele- rios dos seus bens) e não no da segunda. Porém se é só isto que o argumento
ger, eu posso ser descrito como o proprietário, o guardião ou o depositário de arbitrariedade é capaz de estabelecer, então ele não conduz ao princípio
dos bens que possuo. Na sua acepção mais forte, a noção de propriedade de diferença, uma vez que este princípio pressupõe necessariamente a
implica que tenho direitos absolutos sobre os meus bens, os quais não segunda descrição - que eu sou o guardião dos bens sobre os quais a comu-
conhecem qualquer qualificação. Na sua versão mais moderada, que eu nidade como um todo possui um título ou um direito anterior. Se todo o
detenho certos direitos privilegiados sobre eles, um conjunto de direitos que, significado da arbitrariedade se esgota na afirmação de que eu sou o deposi-
apesar de não serem ilimitados, são pelo menos mais amplos relativamente tário de bens que não pertencem a ninguém em particular, então não se
aos meus tttributos do que quaisquer outros conjuntos de direitos que qual- pode assumir que a comunidade os possua mais do que eu. Seria então como
quer outra pessoa possa deter sobre eles. É este o sentido de posse individual
contra qual se dirige o argumento de arbitrariedade de Rawls, e que é por ele 4 O Reverendo Vernon Bartlet (1915: 97-98) escreve que "segundo 'a atitude cristã

derrubado, caso venha a afirmar-se com sucesso. essencial', os direitos de propriedade de qualquer indivíduo são 'puramente relativos, não só
quando comparados com os direitos absolutos de Deus enquanto Produtor e Proprietário, tanto
Se Rawls tiver razão e eu não puder ser adequadamente descrito como de todas as coisas como de todas as pessoas, mas também em comparação com o direito humano
proprietário dos meus dons e dos meus atributos, restam-me duas explica- supremo ou os direitos derivados da sociedade enquanto representante do bem comum. O bem
individual é apenas uma parte dependente do bem comum, devendo ser limitado pelos direitos
ções alternativas. Uma é a noção de tutoria, que nega a propriedade indivi-
de todos os outros às condições de bem-estar pessoal. [... ] Os princípios práticos que daqui
dual em favor de um proprietário mais distante ou de um sujeito de posse do resultam, a saber, a administração da propriedade em favor de Deus e da Sociedade e o dever
qual a pessoa individual é um mero agente. Dizer que eu sou o guardião dos moral de fidelidade nesta relação enquanto condição prévia para a existência de quaisquer
bens que detenho equivale a dizer que eles são propriedade de outra pessoa, direitos privados de usufruto da propriedade em causa, estão implantadas tão profundamente
nos ensinamentos de Cristo, notoriamente nas suas parábolas" que dispensam demonstração".
em cujo proveito, em cujo nome ou por cuja graça eu os cultivo e uso. Esta Bartlet cita São Paulo, I Coríntios, iv, 71: "Pois, quem é que te faz superior? Que tens tu que não
noção de posse é um resíduo da noção de propriedade entre os primeiros hajas recebido? E, se o recebeste, porque te glorificas como se não tivesses recebido?".
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se os bens, e os benefícios que deles decorrem, caíssem do céu como o maná guém. "Independentemente de os recursos naturais das pessoas assumirem
(a imagem é de Nozick), sem qualquer sinal de reivindicações anteriores e um,carácter arbitrário de um ponto de vista moral, elas têm um direito a eles,
sem se encontrarem vinculados a qualquer sujeito de posse, tanto individual bem como àquilo que deles decorrer" (1974: 226).
como colectivo. Para Rawls) em contrapartida, a ausência de mérito individual cria uma
Então, como deverão ser distribuídos? Com que base se iden- presunção favorável a uma distribuição de talentos concebidos como um
tificar e avaliar as reivindicações em conflito que possam ser apresentadas património comum. A ausência de mérito ou de um conceito pré-institucio-
sobre tais dádivas geradas espontaneamente? Da perspectíva do mérito, não nal de virtude significa que,' na sua procura da virtude primária de justiça
se afiguram existir quaisquer razões para optar entre deixar que estes bens social, as instituições não se encontram determinadas por exigências morais
permaneçam onde tiverem caído e procurar distribuí-los de outra forma anteriores. Neste sentido, a analogia do maná do céu é apropriada. O rol de
qualquer. A não ser que, nestes pressupostos, a distribuição seja perspecti- atributos oferecido pelo acaso não é nem justo, nem injusto. "Trata-se de
vada como um empate, como uma questão moralmente indiferente, os simples factos naturais. A forma como as instituições lidam com estes factos
direitos das pessoas terão de depender de outras considerações que não as é que pode ser justa ou injusta" [102 (96)]. Não há qualquer razão para per-
noções de posse ou de mérito. Sobre isto, Rawls e Nozick parecem estar pre- mitir que os atributos e os benefícios que deles decorrem permaneçam onde
parados para concordar. Mas, que considerações poderão ser estas? Aqui, os caírem. Isto mais não seria do que incorporar e reafirmar a arbitrariedade da
seus caminhos separam-se. Cada um pensa ser capaz de aduzir considera- natureza. A descoberta de que a virtude e o direito decorrem das instituições
ções não relacionadas com o mérito capazes de ultrapassar o empate a favor sociais, em vez de as constrangerem constitui um motivo para que se pro-
da sua concepção. cure a justiça ainda com maior insistência, e não uma razão para se congelar
Para Nozick, a ausência de mérito cria uma presunção a favor de deixar a arbitrariedade no local.
que os bens fiquem onde caírem, pelo menos a partir do momento em que se Como deveremos, então, entender estas tentativas de superação do
aceita que as coisas não chegam a este mundo como o maná que caiu do céu, impasse moral aparente criado pela presunção de ausência de mérito?
mas chegam já apropriadas, ligadas a pessoas particulares. Nozick está disposto a aceitar que as pessoas podem não merecer os seus
atributos naturais, mas defende que, não obstante, têm direito a eles. "Se
"Uma vez que as coisas surgem já na posse de alguém (ou uma pessoa tiver X e a sua posse de X (independentemente de ser merecida)
com acordos já feitos sobre como deverão ser apropriadas), não há não violar o direito (lockeano) que outros poderão ter sobre X, e se Y derivar
qualquer necessidade de procurar algum regra para a atribuição (decorrer, etc.) de X através de um processo que, em si mesmo, não viola os
das toisas não possuídas. [... ] Esta não é uma situação apropriada direitos (no sentido lockeano) de quem quer que seja, então essa pessoa tem
para se perguntar: 'Afinal, o que irá acontecer a essas coisas? um direito a Y" (1974: 225). Porém, Nozick não nos mostra por que razão é
O que devemos fazer com elas?' No mundo que não aquele onde o que assim é, nem nos apresenta com clareza em que consiste a diferença
maná cai do céu, em que as coisas têm de ser feitas, produzidas ou entre o direito e o mérito. Rawls e Feinberg estão de acordo em que "o mérito
transformadas por pessoas, não há qualquer processo separado de é um conceito moral no sentido em que é logicamente anterior e indepen-
distribuição que permita o desenvolvimento de uma teoria que dente das instituições públicas e das suas regras" (Feinberg 1970: 87). Direi-
desencadeie e viabilize essa distribuição" (1974: 219). tos, em contrapartida, são reivindicações que podem surgir apenas no
contexto de regras ou de condições de qualificação produzidas por institui-
Nozick defende de seguida que, se uma pessoa apresentar um atributo ções já existentes - aquilo que Rawls descreve como expectativas legítimas
relativamente ao qual mais ninguém detiver qualquer direito, então, apesar baseadas nas instituições sociais. Uma consequência desta perspectiva é
de poder não o merecer, tem, no entanto, um direito a ele, bem como a tudo que, na medida em que os direitos das pessoas derivam das instituições
o que dele retirar através de um processo que não lese os direitos de nin- sociais, eles não se revestem de qualquer valor moral ou força crítica, quer
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para o desenvolvimento, quer para a aferição destas instituições. Aferir a sentido forte de posse, capazes de constituírem um fundamento do mérito, o
justiça de uma instituição à luz dos direitos das pessoas seria como julgar a qUe, pelo seu lado, exigiria uma teoria da pessoa nos termos da qual eu seja
validade de uma regra à luz das reivindicações a que ela dá lugar. Recupe- capaz de possuir algumas coisas, pelo menos, enquanto elementos consti-
rando a nossa discussão anterior, seria como apelar para um tuintes e não apenas enquanto meros atributos do eu. Porém, a teoria da
ção completamente implicado no objecto dessa avaliação. É por isso que o pessoa de Nozick não é fácil de discernir. Ele queixa-se de que o eu "purifi-
conceito de direito não é capaz de fornecer um primeiro princípio de justiça. cado" implícito na teoria de Rawls parece estar radicalmente afastado da
Como nos explica Rawls, "pressupõe a existência de um sistema cooperativo, noção mais familiar que temos de nós próprios enquanto seres "cheios de
sendo portanto irre12vante para a questão de se saber se este sistema deve traços particulares" (1974: 228), argumentando ainda que um eu tão "purifi-
em primeiro lugar ser concebido de acordo com o princípio da diferença ou cado", ainda que seja coerente, parece ameaçar não só o mérito individual,
com qualquer outro critério" [103 (97)]. mas também noções indispensáveis como as de autonomia e de responsabi-
Nozick nunca chega a lidar devidamente com esta dificuldade. Ao lidade individual, bem como a própria dignidade humana e o auto-respeito
desenvolver o seu pensamento, adopta explicitamente a linguagem dos que o liberalismo deontológico se propõe afirmar (1974: 214). Estas são, com
direitos, em vez da linguagem do mérito, sem no entanto reconhecer que certeza, objecções de peso. Porém, pouco avançam no sentido da articulação
detém uma força moral menor. Na concepção de Nozick, o conceito de de uma teoria substantiva da pessoa capaz de a deixar "cheia de traços parti-
direito desempenha o mesmo tipo de papéis que o mérito, sem que alguma culares", ao mesmo tempo que evita as dificuldades morais e epistemológi-
vez se estabeleçam as suas credenciais pré-institucionais. Parte da premissa cas identificadas por Rawls relativamente à concepção em que o eu se
de que "as pessoas têm direito aos seus atributos naturais", bem como apresenta carregado de contingências. Uma coisa é afirmar meramente
- defende logo de seguida - aos benefícios que deles decorrem (1974: 225- aquilo que num certo sentido é inegável, que nós nos encontramos "repletos
-226). No entanto, nunca explica porque é que as pessoas têm direito aos de traços particulares". Porém, demonstrar como é que isto pode ser verdade
seus atributos em qualquer sentido que seja suficientemente forte para pôr de um modo que escape às incoerências rivais associadas a um eu radical-
em marcha o seu argumento. mente situado, indefinidamente condicionado por tudo aquilo que o cir-
A determinada altura, Nozick parece defender que as pessoas têm cunda e constantemente sujeito a ser transformado pela experiência, isso é já
direito às coisas que "possam simplesmente ter obtido de forma não ilegí- outra coisa muito diferente. Por esta razão, a solução proposta por Nozick
tima", presumindo-se que os respectivos atributos naturais se encontrem para o impasse só se pode revestir de um interesse estritamente crítico.
entre estas coisas. Porém, obter alguma coisa de forma não ilegítima não é a O que fazer, então, da proposta de Rawls? Se, por um lado, Nozick não
mesma cóisa que ter um direito a ela. É simplesmente tê-la, num qualquer consegue demonstrar que a ausência de mérito individual conduz a uma
sentido não especificado de posse. Enquanto que a minha inteligência, a presunção a favor de deixar que os atributos naturais permaneçam onde
minha força física ou a minha boa saúde podem integrar o conjunto daque- caírem, com que sucesso é que Rawls apresenta uma presunção a favor de
las coisas que eu obtive de forma não ilegítima, daqui não decorre que eu uma reivindicação social geral sobre eles? De acordo com Nozick, a perspec-
tenha um direito a elas, uma vez que os direitos dependem, como vimos, de tiva de Rawls é de que "cada um tem algum direito sobre a totalidade dos
um esquema de cooperação previamente estabelecido. atributos naturais (perspectivados como um todo), sem que ninguém dete-
Noutros momentos, Nozick parece defender, pelo contrário, que as nha um direito diferenciado sobre eles" (1974: 228); e, de facto, a noção de
pessoas têm direito aos seus atributos naturais e aos benefícios que deles atributos comuns parece apontar para esta perspectiva. A questão que se
decorrem, num sentido em que o direito antecede as instituições sociais, isto coloca é a de saber que tipo de "direitos ou de reivindicações" estão aqui em
é, um sentido de direito equivalente ao mérito. ("Não se torna necessário que causa, e como é que poderão ser estabelecidos. São duas as possibilidades
os fundamentos subjacentes ao mérito tenham de ser, eles também, mereci- que se insinuam. A reivindicação social geral sobre a totalidade dos atributos
dos desde o início. ") Isto exigiria que possuísse os at~ibutos relevantes, no naturais pode assentar sobre um argumento de mérito, ou então constituir
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uma reclamação de um direito ou de uma expectativa legítima. Caso assente mente seu para repartir. O argumento de Nozick desenvolve-se ao longo de
sobre um argumento de mérito, então tratar-se-á, no mínimo, de uma rei- idei,as semelhantes:
vindicação que não encontra sustentação na teoria de Rawls, uma vez que,
como vimos, o argumento de arbitrariedade se limita a destruir o mérito "Será que as pessoas na posição original alguma vez se ques-
individual, não procedendo necessariamente à de urn mérito tionaram se têm o direito de decidir como tudo deve ser repartido
social. Para além disso, para que a comunidade como um todo pudesse entre elas? Talvez pensem que têm de assumir que possuem o
merecer os atributos naturais que nela se situam, bem como os benefícios direito de o fazer, uma vez que estão a decidir a questão. E assim
que deles decorrem, tornar-se-ia necessário assumir que a sociedade detém uma pessoa particular não pode ter direitos privados sobre o que
algum tipo de estatuto pré-institucional que falta aos indivíduos, pois só quer que seja, pois, se os pudesse ter, então as partes não teriam o
deste modo se poderá dizer que a comunidade possui os seus atributos no direito de decidir em conjunto como repartir os haveres disponí-
sentido forte, constitutivo de posse necessário corrio fundamento do mérito. veis" (1974: 199n).
Porém, uma perspectiva desta natureza apresentar-se-ia ao arrepio dos pres-
supostos individualistas de Rawls, em particular da sua noção de que a Rawls poderia replicar dizendo que não está em causa qualquer reivin-
sociedade não é "um todo orgânico com uma vida própria distinta e dicação social antecedente, já que, em sentido estrito, as partes na posição
superior à de todos os seus membros nas relações que estabelecem entre si" original não se encontram perante a questão moral de determinar como
[264 (213) l. deverão repartir os quinhões a serem distribuídos entre si (o que de facto
A alternativa seria olhar as reivindicações da sociedade relativamente à implicaria que tivessem o "direito" de ofazer), mas apenas perante a questão
distribuição de atributos como um direito fornecido por expectativas legíti- prudencial de, em face dos constrangimentos relevantes que lhes são
mas alicerçadas em instituições sociais "estabelecidas com objectivos sociais impostos em matéria de informação, etc., e partindo da perspectiva do seu
anteriores e independentes" [313 (246)], anteriores e independentes, quer interesse próprio, fixar a sua preferência quanto ao modo como os quinhões
dizer, aos próprios direitos em causa. Seguindo este raciocínio, Rawls poderá individuais devem ser repartidos. A posição original - Rawls poderia recor-
argumentar que o princípio de diferença não presume que a sociedade dete- dar-nos - não é um local concreto de distribuição, mas uma maneira de
nha um estatuto pré-institucional qualquer, de que os indivíduos não usu- pensar.
fruam, mas tão-só que as partes na posição original chegariam a acordo no Ainda assim, continuamos a querer saber por que razão é que esta
sentido de olharem a distribuição de talentos naturais como um acervo maneira de pensar é apropriada em matéria de justiça distributiva, e se a sua
comum e- de partilharem os benefícios decorrentes desta distribuição. correcção não depende, em si mesma, de as partes da posição original pos-
A noção de sociedade enquanto proprietária dos atributos naturais dos quais suírem alguma reivindicação anterior sobre a totalidade dos atributos natu-
os seres humanos são os guardiões seria vista, então, como o resultado da rais. Até mesmo se, por uma razão de prudência racional, as partes na
posição original, e não como uma das suas premissas. posição original raciocinassem da maneira que Rawls nos diz que o fariam,
No entanto, permaneceríamos curiosos acerca dos "fins sociais ante- não se torna imediatamente claro por que razão, na ausência de uma qual-
riores e independentes", sem saber qual a fonte da sua prioridade e da sua quer reivindicação social anterior, a sua escolha colectiva deveria determinar
independência. De alguma maneira, as reivindicações da sociedade sobre a a distribuição justa destes atributos. O que nos conduz ao tema da justifica-
distribuição de atributos têm de se afirmar antes do estabelecimento das ção e à questão de determinar como é que o argumento da posição original
instituições. Um pressuposto necessário do acordo a alcançar na posição serve para justificar os princípios que dela decorrem. Caso se consiga
original seria então a existência prévia de algumas reivindicações sociais demonstrar que a reivindicação da sociedade sobre a distribuição de atribu-
sobre a distribuição dos activos; caso contrário, as partes estariam a deliberar tos naturais é um produto do acordo original, em vez de uma das suas pre-
acerca do modo como repartir quinhões de algo que (arnda) não é legitima- missas, então Rawls terá resolvido o impasse em favor do princípio de
144

diferença, sem ter de reivindicar para a sociedade como um todo um pressu-


posto anterior de mérito. Por outro lado, caso a noção de acervo comum se
apresente como um pressuposto do acordo original, então Rawls terá
superado o impasse apenas a expensas de uma dependência implícita numa
reivindicação de mérito social e, por essa via, de uma dependência num
sujeito de posse mais vasto, presumivelmente a comunidade tida, então,
como proprietária dos atributos que apresentamos individualmente. Uma
vez mais, a dimensão intersubjectiva intrometer-se-ia no projecto individua- 3
lista de Rawls. Se bem que um tal resultado cause danos consideráveis à ética
deontológica que Rawls procura defender, proponho-me demonstrar que a A teoria contratualista e a justificação
sua versão de teoria de contrato não o consegue evitar.

A apreciação da validade do princípio de diferença leva-nos, em última


instância, à questão da justificação e, em particular, à questão de saber,
desde logo, em que medida é que a posição original nos oferece uma via
adequada para a reflexão sobre a justiça. Até mesmo assumindo, para efeito
do argumento, que as partes na posição original escolheriam de facto os
princípios que Rawls diz que escolheriam, por que razão é que isto nos
deverá fazer acreditar que eE;tes princípios são justos? Rawls escreve que os
princípios da justiça são aqueles princípios "que seriam aceites por pessoas
livres e racionais, colocadas numa situação inicial de igualdade e interessa-
das em prosseguir os seus próprios objectivos" [11 (33)], e que a posição ori-
ginal é "o status quo inicial adequado, o qual garante que os acordos funda-
mentais nele alcançados são equitativos" [17 (37)]. "Assim entendida, a
questão da justificação é resolvida através do recurso a um problema de deli-
beração: temos de identificar quais os princípios que seria racional adoptar
na situação contratual dada. Por aqui se liga a teoria da justiça à teoria da
escolha racional" [17 (37)].
Porém, não se torna imediatamente evidente como é que a posição ori-
ginal confere um estatuto moral aos resultados de um exercício de escolha
racional, nem emerge com clareza a eficácia justificativa do argumento da
posição original. Este último aspecto torna-se ainda mais difícil pelo facto de
Rawls parecer simultaneamente depender de dois tipos de justificação: o
primeiro, apelando para um método de equilíbrio reflectido; o segundo, para
a tradição de contrato social. E a separação dos papéis que cada um deles
é chamado a desempenhar coloca algumas dificuldades (Lyons, Reading
Rawls, 141-168).
146 147

Para já, no entanto, colocaremos de parte estas dificuldades, de modo a Neste sentido, a teoria de Rawls é duplamente hipotética. Ela aponta para
centrar a nossa atenção no aspecto contratualista da justiça como equidade. um evento que na realidade nunca se verificou, envolvendo um tipo de seres
Na medida em que os princípios da justiça dependem, para a sua justifica- que na realidade nunca existiram.
ção, de um apelo contratualista, torna-se necessário identificar em que con- No entanto, isto não afectará a analogia moral que imprime à teoria do
siste a força moral deste apelo. A exploração desta questão deverá fornecer- contrato muita da atracção intuitiva de que se reveste? A partir do momento
-nos ainda um teste adicional da coerência interna da concepção de Rawls, e em que o contrato social se torna hipotético, o acordo original deixa de ser
da harmonia entre a teoria da justiça e a teoria correlativa da pessoa. Pro- um contrato jurídico, passando a ser apenas um contrato que poderia ter
curarei demonstrar que o argumento desenvolvido a partir da posição origi- assumido um carácter jurídico, embora isso nunca se tenha dado. E tal como
nal apenas poderá ser considerado como justificação dos resultados que Ronald Dworkin escreveu, "não é que um contrato hipotético seja apenas
apresenta caso estejamos dispostos a pagar um preço considerável, isto é, a uma pálida imagem de contrato real; é antes que ele não é contrato algum"
expensas de certos pressupostos voluntaristas e individualistas, centrais do (1997a, 17-18). Como poderá, então, ser invocado para justificar os princípios
projecto deontológico. que dele derivam, ou para atestar a sua condição de princípios da justiça?
Para responder a esta questão convirá, talvez, começar pela exploração
de uma questão mais simples e perscrutar qual a força moral dos contratos e
A moralidade do contrato dos acordos em geral. A partir do momento em que pudermos dizer alguma
coisa sobre o modo como funciona a justificação no quadro de contratos
Rawls situa a sua teoria da justiça na tradição da teoria do contrato reais, poderemos identificar com maior clareza como é que ela funciona no
social que remonta a Locke, Rousseau e Kant. A "ideia de base" é a de que os âmbito de congéneres hipotéticos.
princípios da justiça são objecto de um acordo original. "Assim, somos con- Quando duas pessoas celebram um acordo, podemos tipicamente aferir
vocados a imaginar que aqueles que estabelecem relações de cooperação a sua justiça a partir de duas perspectivas. Poderemos fixar a nossa atenção
social escolhem em conjunto, num acto comum, os princípios segundo os nas condições em que o acordo foi celebrado e indagar se as partes se
quais se procederá quer à atribuição de direitos e deveres básicos, quer à encontravam em liberdade ou se foram de algum modo coagidas, ou então
divisão dos benefícios da vida em sociedade" [11 (33)]. Ao desenhar o con- podemo-nos centrar nos termos desse acordo e verificar se cada uma das
trato social, "um conjunto de pessoas deve decidir, de uma vez por todas, o partes retirou dele a sua justa parte. Apesar de estas duas perspectivas se
que é para elas considerado justo ou injusto", e os princípios que elegerem poderem encontrar relacionadas entre si, elas não são de modo algum sinó-
determinarão "todas as críticas das instituições e as respectivas possibilida- nimas e, não obstante alguns pressupostos filosóficos de que trataremos
des de reforma ulteriores" [11-12 (33-34)]. Neste aspecto, o contrato original mais adiante, não podem normalmente ser reduzidas uma à outra. Em ter-
assemelha-se a um contrato jurídico ordinário. mos práticos, um contrato negociado livremente poderá ser mais susceptível
Porém, para Rawls, tal como para alguns dos seus antecessores con- de produzir termos equitativos do que outros, e uma inter-relação (substan-
tratualistas, o contrato original não é um contrato factual histórico, mas ape- cialmente) equilibrada poderá ser indicativa de um contrato negociado
nas hipotético [12 (34)]. A sua validade não está dependente de os seus livremente, em vez de sob coerção; porém, não há qualquer conexão neces-
termos terem de facto sido acordados, mas antes da ideia de que assim sária entre a justiça dos termos de um contrato e as condições em que foi
aconteceria nas condições hipotéticas exigidas. Na realidade, o contrato celebrado.
social hipotético de Rawls é ainda mais imaginário do que a maior parte Relativamente a qualquer acordo contratual, e independentemente da
deles. Não só o contrato jamais se celebrou, como se imagina que ele tem liberdade que as partes conheceram ao celebrá-lo, torna-se sempre inteligí-
lugar entre uma espécie de seres que na realidade nunca existiu, isto é, seres vel, e é com frequência razoável, colocar a seguinte questão adicional: "Mas é
afectados pelo tipo de amnésia complexa exigida pelo véu de ignorância. justo, aquilo que as partes acordaram?". E esta questão não pode ser redu-
149
148

retiro; os contratos obrigam, não por serem celebrados livremente, mas por-
zida àquela outra, destituída de conteúdo: "Porém, aquilo que as partes
que (ou na medida em que) tendem a produzir resultados que são justos.
acordaram é aquilo que acordaram?". a que torna os termos de um contrato
Na explicação que oferecem da obrigação, cada um destes ideais pode
justos não é apenas o facto de terem sido acordados, mas algo mais.
ser visto como sublinhando o carácter moralmente incompleto do outro.
De forma semelhante, e independentemente da justiça de que se possa
A partir da perspectiva da autonomia, as minhas obrigações estão limitadas
revestir, qualquer transacção ou acordo está igualmente exposto à seguinte
àquilo a que eu me expus voluntariamente, mas podem abarcar provisões
questão adicional: "Mas este acordo justo foi negociado liVremente ?". E esta
onerosas e severas. A partir da perspectiva da reciprocidade, os acordos difí-
questão de modo algum se poderá reduzir à sua congénere trivial: "Mas este
ceis têm uma obrigação menor; porém, a exigência de consentimento dilui-
acordo justo é um acordo justo?" Aquilo que faz com que um acordo seja livre
-se e eu posso deter obrigações em virtude de benefícios que não desejei ou
não é o facto de ele acabar por ser um acordo justo. a facto de sermos
de dependências situadas para além do meu controlo. Nos termos da pri-
tratados com justiça não nos torna livres, nem implica que sejamos livres.
meira destas perspectivas, posso estar obrigado a termos injustos; nos
Também aqui nos encontramos perante algo adicional.
A distinção entre estes dois tipos de questões sugere que podemos pen- termos da segunda, posso está-lo de maneiras que não elegi.
sar a moralidade de um contrato como consistindo em dois ideais inter- Por fim, cada uma destas explicações da obrigação moral relaciona o
contrato com a justificação de um modo diferente. Para o ideal de autono-
-relacionados, se bem que distintos. Um é o ideal de autonomia, no quadro
do qual um contrato é perspectivado como um acto de vontade cuja morali- mia, o contrato fornece a justificação. Na medida em que é livre, o próprio
processo justifica o resultado, "qualquer que ele venha a ser". Para o ideal de
dade reside no carácter voluntário da transacção. a outro é o ideal de reci-
reciprocidade, em contraste, o contrato aproxima-nos da justiça, em vez de a
procidade, que vê num contrato um instrumento de benefício mútuo cuja
outorgar. a processo é instrumental para um resultado justo, em vez de o
moralidade depende da equidade subjacente à trocaI.
definir. No primeiro caso, um resultado justo define-se como sendo o pro-
Cada um destes ideais sugere um fundamento distinto para a obrigação
duto de um processo que é livre. No segundo, um processo livre não é mais
contratual. A partir da perspectiva de autonomia, a força moral de um con-
do que um meio para se alcançar um resultado justo (independentemente
trato deriva do facto de ser um acordo voluntário. Quando celebro livre-
dele).
mente um acordo, comprometo-me com os seus termos, sejam eles quais
Ao contrário de obrigações assumidas voluntariamente, as obrigações
forem. Quer as suas cláusulas sejam justas ou injustas, favoráveis ou cruéis,
emergentes no quadro do ideal de reciprocidade pressupõem necessaria-
fui eu que as procurei, e o facto de serem auto-impostas fornece pelo menos
mente um critério de justiça independente do contrato, seja ele qual for,
uma razão para a obrigação de ter que as cumprir.
alguma maneira de aferir a justiça objectiva de uma transacção. Tais obriga-
a ideal de reciprocidade, pelo outro lado, deriva a obrigação contratual
ções não são, assim, contratuais no sentido estrito de serem criadas pelo
dos benefícios mútuos decorrentes dos acordos de cooperação. Ao passo que
contrato, mas antes no sentido limitado, epistemológico ou heurístico, de
a autonomia identifica a fonte da obrigação no próprio, a reciprocidade
que o contrato nos ajuda a identificar ou a clarificar uma obrigação que já
aponta, para além do contrato, para uma exigência moral anterior de cum-
existia (Atiyah 1979: 143-146). Uma consequência desta concepção das
primento de disposições equitativas, implicando, por conseguinte, a existên-
cia de um princípio moral independente através do qual se pode aferir a obrigações baseada nos benefícios que delas decorrem é que a celebração de
um contrato não é essencial para a existência da obrigação. Pelo menos em
justiça de um intercâmbio. Com a reciprocidade, sublinha-se menos o facto
princípio, podem existir maneiras de identificar estas obrigações sem ser
de se ter chegado a acordo, para se sublinhar mais os benefícios que dele
através do recurso a contratos.
Já as obrigações decorrentes do ideal de autonomia, no entanto, não
1 Podem encontrar-se abordagens valiosas dos fundamentos morais do direito contratual, presumem qualquer qualidade de justiça intrínseca a determinados resulta-
sublinhando os ideais de autonomia e de reciproddade, respectivamente em Fried (1981) e Atiyah
dos passíveis, em princípio, de serem identificados de forma independente
(1979).
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ou antecipadamente ao processo que as produziu. Em relação a este tipo de à luz do qual se podem qualificar ou aferir as obrigações deles decorrentes.
obrigações, não é possível identificar nenhum resultado como sendo justo, Ainda que possa ser justo, em certas circunstâncias, amarrar uma pessoa
fora de uma referência ao processo que de facto se desencadeou. Não é pos- àquilo com que previamente concordou, do facto de ter dado o seu acordo
sível conhecer aquilo que é justo de forma imediata, na medida em que ele é, não decorre que os termos em que o fez sejam, eles próprios, justos. O senso
até mesmo por definição, o produto de um processo de um certo tipo. Na comum sugere várias razões pelas quais, na prática, contratos reais podem
medida em que tem de ser criado, e até à sua criação, não é possível yir a ser injustos. Uma ou ambas as partes podem ter sido coagidas, ou então
conhecê-lo; o justo não pode ser conhecido directamente. prejudicadas por uma posição negocial desfavorável, enganadas, ou de
As formas contrastantes como os dois ideais relacionam o contrato com algum modo iludidas acerca do valor dos objectos da transacção, ou equivo-
a justificação podem ser esclarecidas através da distinção feita por Rawls cadas a propósito das suas necessidades e dos seus interesses. Mas até
entre justiça processual pura e justiça processual perfeita (ou imperfeita). No mesmo quando um acordo é justo (como se verifica, por exemplo, quando os
quadro da justiça processual pura, "não há um critério independente para efeitos destes factores se anulam mutuamente) e a equidade do acordo for-
identificar o resultado justo: em vez disso, existe um processo correcto ou nece a razão para o seu cumprimento, não se pode assumir que é o facto de
equitativo, de tal ordem que o resultado dele decorrente, seja ele qual for, ter sido acordado que faz com que seja justo. Os contratos reais são instân-
será igualmente correcto ou equitativo, desde que o processo tenha sido cias típicas de justiça processual imperfeita. A justiça processual pura rara-
devidamente respeitado" [86 (86)]. Por outro lado, no quadro da justiça pro- mente emerge neste mundo, se é que alguma vez assim acontece.
cessual perfeita e imperfeita; "temos um padrão independente para decidir
qual o resultado justo", e a questão que se coloca reside simplesmente em
saber se é possível, ou não, encontrar um processo que garanta um tal resul- c.ontratos vs. argumentos contratualistas
tado [85-86 (86)].
Ora, na medida em que concretiza o ideal de autonomia, um contrato Provavelmente, Rawls não discordaria desta formulação. Apesar do
aproxima-se do âmbito da justiça processual pura, uma vez em que o resul- fundamento contratualista da sua teoria, ele não pressupõe que o mero facto
tado que produz, seja ele qual for, é justo em virtude do contrato que o pro- de existir um acordo constitua prova da sua equidade, que os contratos reais
duziu. No caso do ideal de reciprocidade, um contrato constitui um exemplo sejam instrumentos morais auto-suficientes capazes de justificar os seus
de justiça processual imperfeita, procurando, como de facto acontece, apro- próprios resultados, ou que as obrigações assumidas voluntariamente este-
ximar-se de um padrão de justiça definido de forma independente. Tal como jam imunes à crítica à luz de princípios de justiça pré-existentes. Compreen-
Rawls nos mostra, "uma característica própria da justiça processual pura é a der o sentido em que a teoria de Rawls não depende da noção de contrato
necessidade de que o processo para determinar o resultado justo tenha efec- enquanto instrumento de justificação é essencial para se compreender o
tivamente lugar, porque, nestes casos, não há qualquer critério indepen- sentido em que isso de facto acontece.
dente por referência ao qual um resultado concreto possa ser considerado Neste contexto, convém sublinhar, em primeiro lugar, que o acordo
justo. [... ] Um processo equitativo transporta a sua equidade para o resultado alcançado na posição original não dá lugar a quaisquer obrigações (pelo
que produz, apenas quando é efectivamente posto em prática" [itálico menos não de forma directa), mas antes a princípios de justiça. Ora estes
nosso, 86 (87]. princípios são de dois tipos: "princípios destinados a instituições", aplicáveis
A resposta, então, à nossa questão preliminar de saber como é que os à estrutura básica da sociedade, e "princípios destinados a indivíduos", que
contratos reais se justificam parece ser que só o fazem de forma "incom- estabelecem os deveres e as obrigações das pessoas perante as instituições e
pleta". Tal como o atesta a coerência não trivial da questão adicional ("Mas entre si. Os primeiros definem aquilo que torna uma instituição ou uma
será justo, aquilo que ficou acordado?"), os contratos reais não constituem prática social justa, enquanto os segundos especificam os termos em que os
instrumentos morais auto-suficientes, antes pressupõem um quadro moral indivíduos se encontram obrigados a manterem-se fiéis a eles.
152 153

Os princípios destinados a indivíduos especificam dois tipos diferentes e seja qual for a forma por que se manifestem. Os vínculos obriga-
de obrigações a que as pessoas podem estar sujeitas: as que decorrem do cionais pressupõem instituições justas ou, pelo menos, atendendo
dever natural e as que decorrem de uma obrigação. Deveres naturais são às circunstâncias concretas, razoavelmente justas" [112 (104)].
aquelas reivindicações morais aplicáveis às pessoas independentemente do
seu consentimento. É o caso, por exemplo, dos deveres de aUXl1io àqueles Nem sequer as promessas, por si sós, dão lugar a obrigações. Rawls
que dele necessitarem, de não agir com crueldade, de fazer justiça, etc. Estes apresenta neste contexto uma distinção entre a regra relativa à promessa e o
deveres são "naturais" no sentido em que não estão ligados a qualquer ins- princípio de fidelidade, argumentando que a obrigação de respeitar a pro-
tituição particular ou a qualquer dispositivo sodal, devendo antes ser asse- messa feita não é uma consequência dessa promessa, mas de um princípio
gurados a todas as pessoas em geral [114-15 (105-106)]. nioral que lhe é anterior e que deriva da teoria da justiça. "É essencial [... ]
Por contraste, as obrigações descrevem os vínculos morais que assu- distinguir entre a regra da promessa e o princípio de fidelidade. A regra é
mimos voluntariamente, seja por contrato, por promessa ou por qualquer apenas uma convenção constitutiva, enquanto que o princípio de fidelidade
outra manifestação de consentimento. As obrigações decorrentes do cargo é um princípio moral, consequência do princípio de equidade [... ] A obriga-
pÚblico que se procurou voluntariamente são disto um exemplo. Porém, até ção de cumprir uma promessa é uma consequência do princípio de equi-
mesmo com este tipo de obrigações, o consentimento não é suficiente para a dade" [346 (270)]. Enquanto prática ou convenção constitutiva, a regra rela-
criação do vínculo. É necessário uma condição suplementar, designada- tiva à promessa é análoga às regras legais ou às regras de um jogo. Saber se
mente que a instituição ou a prática acordadas sejam justas (ou se aproxi- são justas ou injustas é sempre uma questão adicional, à qual não se pode
mem da justiça), isto é, torna-se necessário que operem em conformidade responder a não ser pelo recurso a um padrão moral independente daquilo
com os dois princípios da justiça. Rawls realça que, apesar da dimensão que estiver em causa. "Há muitas variantes da promessa, tal como da lei do
voluntária de que se revestem, as nossas obrigações reais nunca nascem contrato. A questão de se saber se uma prática concreta [... ] é justa será
exclusivamente do nosso consentimento, mas antes pressupõem inevitavel- determinada pelos princípios da justiça" [345-346 (270)].
mente um quadro moral anterior, derivado de forma independente, à luz do Em sentido estrito, portanto, não são as promessas que obrigam, mas o
qual é sempre possível uma pessoa questionar-se se devia ter consentido princípio de fidelidade que nos vincula a (algúmas das) nossas promessas,
nelas, ou não. derivando este princípio da posição original.

"As obrigações surgem apenas se certas condições de fundo "Mesmo a regra da promessa não dá origem, por si só, a obri-
estiverem cumpridas. A aceitação, ou mesmo o consentimento, de gações morais. Para justificar as obrigações fiduciárias, temos de
instituições claramente injustas não dá origem a obrigações. tomar como premissa o princípio de equidade. Assim, tal como a
É geralmente aceite que as promessas obtidas por extorsão são maioria das outras teorias éticas, a teoria da justiça como equi-
nulas ab initio. Da mesma forma, as estruturas sociais injustas dade defende que os deveres e obrigações naturais surgem apenas
constituem, elas próprias, uma espécie de extorsão, ou até mesmo em virtude de princípios éticos. Estes princípios são aqueles que
de violência, e o consentimento que se lhes preste não é vincula- seriam escolhidos numa posição original" [348 (271)].
tivo" [343 (268)].
No entanto, se para Rawls os contratos e as promessas reais não são
"Em particular, não é possível ter uma obrigação para com vinculativos, pelo menos em si mesmos, então em que sentido é que a sua
uma forma de governo autocrática e arbitrária. Em tais casos, não teoria é contratualista? Aqui torna-se importante estabelecer uma distinção
existe o enquadramento necessário para que os actos dos sujeitos entre o papel do consentimento na vida real e aquele que ele desempenha na
dêem origem a obrigações, sejam ou não esses actos consensuais posição original. Enquanto que o consentimento é decisivo na posição origi-
154 155

nal, já relativamente aos nossos deveres e às nossas obrigações reais ele nado é justo. Sobre a força deste pressuposto fundamental des-
desempenha um papel menos central. Apesar da sua origem contratualista, cansa a força do argumento contratual. Seguramente, então,
os deveres naturais são aplicáveis sem referência aos nossos actos voluntá- nenhum argumento contratual deverá ser estruturado de forma a
rios e, em todo o caso, o consentimento exigido pelas nossas obrigações é excluir que princípios processuais possam ser os princípios fun-
diferente daquele a que se refere a posição original. damentais da justiça distributiva através dos quais se possa aferir
as instituições de uma sociedade. Nenhum argumento contratual
"Ainda que os princípios do dever natural derivem de um deverá ser estruturado de forma a tornar impossível que os
fundamento contratualista, não pressupõem um acto de consen- resultados que produz possam ser do mesmo tipo dos pressupos-
timento expresso ou tácito, nem sequer qualquer acto voluntário, tos em que se baseia. Se os processos são suficientemente bons
para que sejam aplicáveis. Os princípios aplicáveis aos indivíduos, para fundamentarem uma teoria, então são também suficien-
tal como os aplicáveis às instituições, são aqueles que seriam temente bons para serem os resultados possíveis da teoria. Não
reconhecidos na posição original. Tais princípios são entendidos pode ser de outra maneira" (1974, 208-209).
como sendo o resultado de um acordo hipotético. Se a sua formu-
lação mostra que a respectiva aplicação não pressupõe qualquer Mas esta objecção ignora a distinção entre a justiça processual imper-
acção vinculativa, consensual ou não, então eles aplicam-se de feita, que descreve tipicamente os nossos acordos reais, e a justiça processual
forma incondicional. A razão pela qual as obrigações, pelo contrá- pura, que se obtém - ou que, pelo menos, se supõe que se obtenha - na
rio, dependem de actos voluntários é dada pela segunda parte do posição original. Por outras palavras, a objecção confunde contratos com
princípio da equidade, que afirma essa condição. Não há qualquer argumentos contratualistas. Tal como Rawls observa, os contratos reais não
relação entre esta afirmação e a natureza contratual da teoria da são argumentos, mas sim factos sociais cujas consequências morais
justiça como equidade" [115-116 (106)]. dependem de alguma teoria moral, contratualista ou de outra índole. Se
pretendermos ou explicar a coerência da "questão adicional" ("Mas aquilo
Os contratos reais produzem intercâmbios ou dispositivos cuja justifi- que acordamos é justo?"), ou que a questão correlativa de saber se
cação tem de esperar por um princípio de justiça; o contrato hipotético pro- deveríamos ter consentido ou não faça algum sentido, ou ainda dar espaço,
duz princípios de justiça capazes de avaliar esses dispositivos e de definir a nos argumentos acerca da justiça, às pretensões, rivais mas inter-relacio-
importância moral dos acordos em geral. Como resultado, o papel que as nadas, de autonomia e de reciprocidade, torna-se essencial estabelecer uma
partes decidem atribuir aos acordos (reais) é diferente daquele que é distinção deste tipo entre o facto de um acordo e os fundamentos que o
desempenhado pelos seus acordos (hipotéticos) em termos de justificação. justifícam.
Nozick discorda, dizendo que é de alguma forma inconsistente que Vistas as coisas a esta luz, não há qualquer contradição no facto de um
uma teoria contratualista produza princípios de justiça que não imprimem argumento contratualista produzir princípios que limitam o papel que os
uma força justificativa plena às transacções voluntárias. Se os contratos são contratos desempenham, em termos de justificação. De facto, faz muito sen-
vinculativos, sugere Nozick, então a teoria de Rawls está errada, na medida tido que os resultados de mn argumento contratualista não possam ser "da
em que produz princípios que, em muitos casos, negariam a sua própria mesma índole" que os pressupostos sobre os quais assentam. Se, como
força; e se não o são, então a teoria de Rawls está debilitada, na medida em Nozick defende, "os argumentos contratualistas incluem o pressuposto de
que assenta sobre um contrato. que tudo aquilo que emergir de um determinado processo é justo [itálico
nosso, [(1974: 208)], parece-nos ser pouco verosímil supor que qualquer
"Os argumentos contratualistas assentam sobre o pressu- acordo, negociado e celebrado em quaisquer circunstâncias, possa produzir
posto de que tudo aquilo que emergir de um processo determi- resultados necessariamente justos. Desde logo, as circunstâncias de um
156 157

acordo são consideradas como sendo relevantes para a sua justificação, não demais concepções rivais da igualdade que ficam aquém da "concepção
se podendo reivindicar que o acordo em si mesmo assegura toda a justifica- democrática" de Rawls. No caso da justificação, parte da observação de que,
ção. Reconhecer a relevância das circunstâncias é já reconhecer uma sanção na prática, os acordos podem ser injustos por uma vasta gama de razões,
moral independente do acordo através da qual são identificadas as necessá- conforme já se sugeriu. Uma ou outra das partes pode ter sido coagida, ou
rias características morais da situação. atirada para uma posição negociaI desfavorável, induzida em erro, ou de
Como Rawls nos mostra na análise que faz das promessas, a fonte desta qualquer outro modo enganada relativamente ao valor dos objectos a serem
sanção não pode ser uma promessa adicional, ou outro acordo (como, por transaccionados, confundida ou equivocada a propósito das suas próprias
exemplo, a promessa de cumprir as promessas que se faz), uma vez que as necessidades ou dos seus interesses, ou então, estando em causa proveitos
credenciais desta promessa de fundo estariam igualmente expostas a ques- futuros incertos, poderá ter sido um mau juiz dos riscos envolvidos na
tionação. O suporte de uma promessa (ou de um contrato) tem de ser algo transacção, e por aí adiante. Nalguns destes casos, nomeadamente naqueles
mais do que outra promessa (ou outro contrato). Tem de ser uma premissa que envolvem abertamente um elemento de coerção ou de decepção,
de outro tipo. Esta premissa que, no quadro da teoria contratualista, "é muito podemos ser tentados a dizer que o intercâmbio não foi verdadeiramente
semelhante a um acordo relativo ao respeito dos acordos efectuados e que, voluntário, ou que o "contrato" é inválido, imputando, desta forma, a
no entanto, em rigor não pode sê-lo" [349 (272)), é precisamente aquilo que o iniquidade do resultado a uma imperfeição do consentimento. Os libertários
acordo hipotético desenvolvido na posição original procura fornecer. Rawls e todos aqueles que argumentam que os acordos voluntários se justificam a
acredita que este dispositivo pode fornecer uma tal premissa de um modo si mesmos por inteiro apressam-se a excluir estes casos invocando a
que preserve a atracção da teoria de contrato, sem cair na regressão contí- distinção entre influências coercitivas e influências não coercitivas, tácticas
nua, que ignora o que na verdade se encontra em causa, associada a um negociais legítimas e ilegítimas, ameaças e estímulos, e por aí adiante
mero acordo de chegar a acordo. Antes, porém, de se proceder a uma avalia- (Nozick 1972; Kronman 1980).
ção da solução proposta por Rawls, será talvez útil sumariar o problema da Porém, Rawls negaria que uma tal distinção fosse capaz de assinalar um
justificação a que procura dar resposta e considerar em traços largos as duas conjunto de acordos capazes de se justificarem asi próprios, desde que se
alternativas que ele rejeita. Deste modo, será talvez possível estabelecer permitisse a presença de certas influências moralmente arbitrárias. Indepen-
algumas ligações entre a concepção de justificação de Rawls e certas carac- dentemente do rigor que se imprimir à definição das exigências de um
terísticas centrais do seu projecto deontológico. acordo voluntário, o facto de pessoas diferentes se encontrarem em situa-
ções diferentes bastará para garantir que as diferenças de poder e de conhe-
cimento entre as partes continuarão a fazer-se sentir, o que permitirá que os
o liberalismo e a prioridade do processo acordos, até mesmo os "voluntários", sejam influenciados por factores arbi-
trários, do ponto de vista moral. "Temos de algum modo de anular os efeitos
Para justificar uma troca ou um dispositivo institucional, não basta das contingências específicas que levam os sujeitos a oporem-se uns aos
demonstrar que ele decorreu de um acordo voluntário entre as partes envol- outros e que os fazem caír na tentação de explorar as círcunstâncias naturais
vidas, pelo menos por razões de duas grandes ordens: moral e epistemoló- e.sociais em seu benefício" [136 (121)].
gica. Apesar de Rawls não distinguir estes argumentos de forma explícita, Provavelmente, até mesmo os acordos voluntários permanecerão aquém
encontramo-los a ambos implícitos no seu texto, e um e outro reforçam-se do ideal de autonomia, no quadro do qual as obrigações assumidas são auto-
mutuamente. Poderemos apelidar o primeiro de argumento baseado na -impostas no sentido estrito de um "eu" definido como sendo anterior aos
contingência, e o segundo de argumento baseado no convencionalismo. seus atributos e aos seus fins e, por isso, livre de determinações heteróno-
O primeiro faz-nos lembrar o argumento de arbitrariedade utilizado em mas. Apenas este sentido do eu, e a noção de autonomia que permite, exclui
apoio do princípio de diferença contra a meritocracia, a aristocracia e as por completo influências arbitrárias. Por si só, a exclusão da coerção não é
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158

capaz de justificar um contrato, tal como, por si só, a exclusão, digamos, Se a justificação dos resultados produzidos pelos contratos reais pres-
dos privilégios de classe, não chega para justificar a meritocracia. Num supõe necessariamente um princípio antecedente, a questão que se coloca
caso como no outro, são muitas as variáveis que permanecem sujeitas com toda a naturalidade é a de saber como e de onde poderemos derivar um
a contingências arbitrárias, vistas de uma perspectiva moral. A partir tal princípio. Poderemos ser tentados a procurar um princípio desta natureza
do momento em que nos sentirmos inquietos pelos obstáculos mais num acordo anterior, ou mais geral, que estabeleça os termos mediante os
notórios que se colocam à autonomia individual, seremos levados pela refle- quais um acordo particular possa ser identificado como sendo justo. Porém,
xão a rejeitar as influências heterónomas, de onde quer que elas possam esta solução afunda-se rapidamente, logo que nos apercebemos de que ela
emergu.
• 2 mais não faz do que simplesmente adiar os problemas de contingência e de
Para além da dificuldade moral associada à noção de que os contratos convencionalismo. A partir do momento em que reconhecemos estes proble-
se justificam por si mesmos, permanece ainda uma dificuldade de natureza mas, não há qualquer razão para pensarmos que contratos de segunda
epistemológica. Esta dificuldade diz respeito ao estatuto dos contratos ordem se possam justificar a si mesmos de uma maneira a que os contratos
enquanto "convenções constitutivas", no dizer de Rawls, assemelhando-se particulares não são capazes de aceder. Um contrato não pode ser sancio-
ao problema que surgiu relativamente ao ponto de Arquimedes, isto é, o nado por um acordo anterior de respeitar os acordos estabelecidos, outro
problema da distinção entre o padrão de avaliação e o objecto a ser aferido. tanto como uma lei não pode procurar justificação numa lei acerca da legis-
No caso dos contratos, a distinção paralela que se impõe é entre o princípio lação. Num caso como no outro, a "questão adicional" não é resolvida, mas
moral, por um lado, e a regra, a prática ou a convenção, por outro. Indepen- apenas adiada. Uma convenção acerca das convenções não produz um prin-
dentemente do teor normativo, digamos, da prática de efectuar promessas, cípio moral, mas tão-só um facto social adicional.
ou das regras de um jogo, ou das leis que regem os contratos, por si sós, estas Se, devido ao seu envolvimento com as práticas e as convenções de
práticas, regras e leis não são capazes de justificar o que quer que seja, antes, uma sociedade particular, e independentemente da generalidade de que se
as consequências morais que operam dependem necessariamente de algum revista, nenhum contrato real é capaz de justificar os contratos, então a
princípio independente delas. "A doutrina contratualista afirma que não há alternativa parece ser o recurso a um princípio de justiça de algum modo
exigências morais decorrentes da simples existência de instituições" [348 anterior às práticas e às convenções particulares. Esta é, de facto, a solução
(271)]. Dado o estatuto de convenção constitutiva de que se reveste, um adoptada pelos defensores tradicionais das teorias do contrato, que alicerça-
intercâmbio não é mais capaz de se justificar, apelando para o facto de ter vam o Contrato Social apelando para o Direito Natural (Barker 1948: x-xi).
sido acordado voluntariamente, do que uma lei é capaz de se justificar, Assim, para Locke, é "a lei de Deus e da Natureza" que sanciona o contrato
demonstrando que a sua adopção obedeceu a todas as formalidades ade- original e estabelece os limites dos poderes da comunidade política por ele
quadas. Caso se verifique a existência das normas de fundo relevantes, o produzida.
facto de uma transacção ter sido acordada ou· de uma lei ter sido aprovada
poderão ser suficientes para o estabelecimento de uma exigência legal ou "Assim, o direito natural ergue-se como uma regra eterna
institucional de que sejam obedecidas, porém, "se estas exigências estão, ou para todos os homens, tanto para os legisladores como para os
não, ligadas aos deveres e obrigações morais é uma questão distinta" [349 demais. As regras que os legisladores adoptam para as acções dos
(272)]. Continuamos a necessitar de saber se as partes deviam ter oferecido o outros homens, bem como para as suas, têm de ser conformes à
seu consentimento, ou se os legisladores deviam ter votado do modo como lei natural, isto é, à vontade de Deus, da qual constituem uma
votaram. declaração. E uma vez que a lei fundamental da natureza se
prende com a preservação da humanidade, nenhuma sanção
humana se pode erguer ou ser válida contra ela" (1690: 90).
2 Compare-se com a discussão de Rawls a propósito do princípio de diferença (1971: 74-75).
160 161

Porém, esta solução tradicional não está disponível para Rawls, pelo dominante específico, elevando-o à condição de premissa dos princípios
menos por duas razões. A mais óbvia é a de que a dependência da "lei de que dele decorrem. "Portanto, o grande e principal fim que conduziu à
Deus e da natureza" envolve um comprometimento teológico e metafísico união dos homens em sociedade e à sua submissão a um governo foi a
mais substancial do que aquele que Rawls está preparado para assumir. Um preservação das suas propriedades. Tarefa para a qual o estado de natu-
pressuposto tão controverso colidiria com a sua determinação em desenvol- reza se apresentava profundamente· inadequado em muitos aspectos"
ver o seu argumento a partir de "condições que são geralmente partilhadas e (1690: 90).
de preferência pouco exigentes" [20 (39)] e de "assegurar que os princípios Porém, fundar os princípios da justiça em fins ou em desejos tidos por
de justiça não estão dependentes de hipóteses muito exigentes [... ] Na base nos serem dados pela natureza, sejam eles a procura da felicidade ou a pre-
da teoria, tentamos introduzir o menor número de pressupostos possível" servação da propriedade ou da própria vida, equivaleria, para Rawls, a colo-
[129 (116)]. car o bom antes do justo, a negar a pluralidade essencial dos fins humanos,
A ideia de fundar a justiça numa premissa de direito natural como a substituindo-a por um fim único dominante, a fundamentar a justiça em
invocada por Locke coloca aos objectivos de Rawls uma dificuldade certas contingências e a inverter a relação entre o eu e os seus fins, conce-
adicional, na medida em que surge ao arrepio dos pressupostos centrais do bendo o homem como um sujeito de fins que lhe são fornecidos antecipa-
projecto deontológico. Como vimos, uma aspiração central do liberalismo damente, em vez de um ser dotado de vontade e da capacidade de se dotar
deontológico é conseguir produzir um conjunto de princípios reguladores dos fins que ele próprio eleger.
q~e não pressupõem qualquer concepção particular do bem, nem depen- A partir do momento em que se admitir como premissa do contrato ori-
dem de qualquer teoria particular das motivações humanas. Interligadas a ginal a existência de um fim dominante dado pela natureza, as partes deixa-
este objectivo, encontramos as perspectivas de que as concepções do bem rão de se poder "pensar a si próprias como seres capazes de eleger os seus
são diversas, de que não existe um objectivo humano individual que seja próprios fins últimos, e que de facto os elegem", uma vez que se encontram
dominante sobre todos os demais, de que o homem é um ser que elege os antecipadamente definidos e direccionados. A dimensão voluntarista da sua
seus fins, em vez de estes lhe serem dados e de que a sociedade bem saga extingue-se, e os termos do contrato deixam de ser uma questão de
ordenada é, por isso, aquela em que as pessoas se encontram livres para eleição, uma vez que se encontram determinados à partida, fornecidos pelas
perseguirem os seus próprios fins, sejam eles quais forem, desde que em exigências da lei natural que se situa face a eles como o seu pré-requisito
termos justos. "A liberdade na adopção de uma concepção do bem é apenas (Pitkin 1965: 990-999).
limitada pelos princípios que se deduzem de uma doutrina que não impõe A percepção de que um liberal deontológico rejeitaria a solução loc-
limites prévios a essa mesma concepção" [253 (205)]. Para enfatizar a keana nesta base é reforçada pelo facto de Kant dirigir uma objecção seme-
concepção voluntarista do agir subjacente a este princípio, Rawls presume lhante às perspectivas contratualistas tradicionais. Apesar de a crítica
que as partes na posição original não estão sob a alçada de quaisquer laços kantiana se dirigir contra Hobbes, as suas objecções parecem ser igualmente
morais anteriores, e "vêem-se a si próprias como seres que podem escolher aplicáveis a Locke.
os seus objectivos finais (que são sempre plurais)" [563 (424)]. Kant apresenta uma distinção entre, por um lado, aqueles acordos
Ao recorrer à lei da natureza enquanto premissa do contrato original, sociais celebrados entre seres humanos com vista à promoção de determina-
Locke alicerça a justiça em determinados pressupostos acerca dos fins e das dos fins comuns que possam partilhar e, por outro, aqueles dedicados a um
motivações humanas que uma ética deontológica dificilmente admitiria. único fim que todos devem partilhar, designadamente o princípio do justo.
Quando assume que os homens se reuniram em sociedade uns com os Só os contratos do segundo tipo constituem um Estado civil no qual a liber-
outros "com o fim de se unirem de modo a assegurarem a preservação mútua dade de cada um é ajustada de modo a poder ser harmonizada com a liber-
das suas vidas, das suas liberdades e dos seus haveres, que identifico com dade dos demais no quadro de termos regidos pelo justo. Porém, um tal
o nome geral de propriedade", Locke atribui aos seres humanos um fim dispositivo não se pode basear numa qualquer perspectiva particular da
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natureza humana, nem ser motivado por fins humanos meramente con- essa via seriam assegurados a todos. E este é o princípio mais ele-
tingentes. vado, que não pode ser qualificado por qualquer outro, e do qual
todas as máximas relativas à comunidade política devem decorrer.
"O conceito completo de uni direito externo é derivado por Nenhum princípio de legislação com validade geral se pode basear
inteiro do conceito de liberdade nas relações externas mútuas de na felicidade. Tanto as circunstâncias do momento como as con-
seres humanos, e nada tem a ver com a finalidade que todos os cepções tão conflituosas e diversas que temos sobre aquilo que ela
homens possuem por natureza (isto é, o objectivo de alcançarem a e(e ninguém pode prescrever aos outros como alcançá-la) tornam
felicidade), nem com os meios conhecidos para atingir este objec- impossível fixá-la em quaisquer princípios rígidos, de tal modo
tivo. E, por isso, este último fim não deve de modo algum que, por si só, a felicidade jamais poderá constituir um princípio
interferir, como elemento determinante, com as leis que gover- adequado para a legislação [itálicos nossos]" (Kant 1793: 80).
nam o direito externo" (Kant 1793: 73).
Enquanto que Locke fundamenta o contrato original na lei de Deus e da
Para Kant, o princípio que sanciona o contrato original não é "o grande Natureza, Kant assenta-o num princípio de justiça fornecido não pela natu-
e principal fim de preservação da propriedade", ou a conquista da felicidade, reza, mas pela razão pura. Destas duas soluções, a de Kant é mais conve-
mas o dever em si, isto é, "a condição formal mais elevada de todos os niente à concepção de Rawls, na medida em que evita derivar o justo do
demais deveres externos, os direitos que os homens detêm, garantidos num bom, preservando assim os pressupostos deontológicos. Porém, e como se
quadro de leis públicas coercitivas através do qual cada um recebe aquilo viu, Rawls resiste à solução kantiana na medida em que ela parece depender
que lhe é devido ao mesmo tempo que fica em segurança face a eventuais de pressupostos metafísicos considerados censuráveis. Rawls duvida da
ataques de quaisquer outros" (1793: 73). E este dever, em vez de decorrer da metafísica idealista em cujo contexto opera a razão pura, sentido-se incomo-
natureza, apresenta-se como "uma exigência da razão pura, que legisla a dado com aquilo que parece ser ri carácter arbitrário da origem a priori da lei
priori, independentemente de quaisquer fins empíricos (que podemos, moral kantiana. Daí que, em vez de adoptar directamente a solução kantiana
resumidamente, identificar sob o cabeçalho geral de felicidade)". Uma vez para o problema da justificação, Rawls procure antes reformular os ensina-
que os homens apresentam perspectivas diferentes sobre aquilo que ela é, mentos deontológicos de Kant, contexto em que "a estrutura subjacente à
enquanto fim empírico, e em que consiste, a felicidade não é capaz de sub- doutrina de Kant é liberta do contexto metafísico, de forma a poder ser vista
meter a vontade humana a uma lei externa capaz de se constituir em harmo- com maior clareza e apresentada relativamente livre de objecções" [264
nia com a liberdade de todos. Por esta razão, o estado civil só pode ser esta- (213)]. O que nos traz de volta à missão da posição original, na senda de um
belecido através de "princípios puros racionais de direito externo dos ponto de Arquimedes, na busca de um meio termo entre o convencionalismo
homens" dados a priori. Tem de se basear em princípios a priori, na medida . e a arbitrariedade, na procura de um padrão de aferição que não esteja nem
em que nem a natureza, nem a experiência são capazes de nos fornecer o comprometido com o mundo, pelo seu envolvimento nele, nem dissociado
conhecimento daquilo que é justo (Kant 1793: 73-74, 86). O resultado é um dele, e por isso desqualificado pela separação.
liberalismo que se afasta significativamente daquele proposto por Locke, e O desafio colocado pelo princípio do ponto de Arquimedes assume
que contém o essencial da ética deontológica adoptada por Rawls. Nas pala- uma forma mais determinante com a teoria contratualista. Manifestamente,
vras de Kant, a justificação envolve alguma forma de interpenetração entre contratos e
princípios. Os contratos reais pressupõem princípios de justiça, os quais,
"Não nos ocupamos aqui de qualquer tipo de felicidade que pelo seu lado, derivam de um contrato original hipotético. No entanto, como
o sujeito possa esperar obter das instituições ou da administração é que a justificação funciona nestes casos? Será que se exige o recurso ainda a
da comunidade política, mas primariamente dos direitos que por mais um estrato de princípios anteriores? Ou será que o contrato se apre-
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senta a este nível como sendo moralmente auto-suficiente, justificando-se e destituídas de ligações explicáveis com a conduta humana, pois que a con-
plenamente a si mesmo? A procura de uma sanção última surge por vezes cepção processual da posição original nos permite esclarecer estes vínculos"
como uma dança infinitamente elusiva de processos e de princípios, retroce- [256 (207)].
dendo alternadamente uns por detrás dos outros. Tendo em conta os pres- A prioridade do processo na concepção de justificação de Rawls faz
supostos da teoria contratualista, nenhum deles parece ser capaz de oferecer lembrar as prioridades paralelas do justo sobre o bom e do eu sobre os seus
um alicerce sólido no qual o outro possa assentar. Se as partes do contrato . fins. Por esta via, ela liga a concepção de justificação com a teoria da pessoa
original escolherem os princípios da justiça, o que é que nos permite dizer que a justiça como equidade parece vincular, ao mesmo tempo que sugere a
que os escolheram bem? E se escolheram à luz de princípios que lhes haviam importância da teoria contratualista para o projecto deontológico em geral.
sido fornecidos antecipadamente, em que sentido se poderá dizer que aquilo Tal como o eu é anterior aos fins que se propõe, também o contrato antecede
que fizeram foi de facto escolher? A questão de justificação torna-se assim os princípios que produz. Com certeza, aquele que é anterior aos princípios
uma questão de prioridade; o que veio primeiro - realmente primeiro -, o da justiça não é um contrato qualquer; como vimos, os contratos reais nada
contrato ou o princípio? podem justificar exactamente na medida em que se encontram tipicamente
N o caso de Kant, não se entende com clareza se o princípio da justiça é situados nas práticas e nas convenções que a justiça tem de avaliar. De igual
o produto ou a premissa do contrato original; mas a confiança que deposita modo, as pessoas reais, tal como normalmente as concebemos, "cheias de
na "razão pura que legisla a priori" (1793: 73) parece sugerir a última destas traços particulares", não são, em sentido estrito, anteriores relativamente aos
hipóteses. Em todo o caso, é neste ponto que Rawls procura reformular a seus fins, encontrando-se, antes, imbuídas e condicionadas pelos valores,
posição kantiana, de modo a assegurar a prioridade do contrato e, assim, a pelosinteresses e pelos desejos a partir dos quais o eu "soberano", enquanto
sublinhar a conexão da justiça com a teoria de escolha racional. "O mérito da sujeito de posse, toma os seus propósitos. Ora, para afirmar a prioridade do
terminologia do contrato está em que ela nos transmite a ideia de que os eu cujo agir soberano se garante, havia sido necessário identificar um eu
princípios da justiça podem ser concebidos como os princípios que seriam "essencialmente destituído de conteúdo", concebido como um sujeito puro
escolhidos por sujeitos racionais, e que assim se pode justificar e explicar as de posse, distinto dos seus .objectivos e atributos contingentes, permane-
concepções da justiça" [16 (36)]. cendo sempre por detrás deles.
Ao alicerçar a justiça no contrato social, Rawls procura exprimir aquilo Relativamente aos contratos, a prioridade do processo depende do
que entende ser uma das concepções mais perspicazes de Kant, "a ideia de reconhecimento do caso especial da justiça processual pura, uma versão
que os princípios morais são objecto de escolha racional" [252 (203)]. Tanto purificada, pré-situada, dos processos ordinários, que não dispõem de
assim é que descreve a posição original como sendo "uma interpretação quaisquer critérios de equidade independentes. A condição de actor sobe-
processual da concepção kantiana da autonomia e do imperativo categórico rano apenas é garantida ao eu purificado, e apenas a justiça processual pura
[... ] uma versão natural, de natureza processual, da concepção kantiana do nos oferece a garantia de produzir resultados justos. É esta noção de pro-
reino dos fins, bem como das noções de autonomia e de imperativo categó- cesso que Rawls invoca na posição original.
rico" [itálicos nossos, 256-264 (207-213)].
Porquê uma versão processual? Porque é que se torna necessário "A ide ia da posição original é a de estabelecer um processo
emendar Kant para fornecer a estes princípios uma origem explicitamente equitativo, de forma a que quaisquer princípios que sejam esco-
processual ou contratual? A resposta de Rawls só pode ser que, ao projectar a lhidos sejam justos. O objectivo é usar a noção de justiça proces-
lei moral como sendo o produto de um determinado processo de escolha sual pura como base para a teoria" [136 (121)].
racional, por mais hipotético que possa ser, se torna possível estabelecer as
suas pretensões sobre a experiência humana de um modo que por outra via "A justiça processual pura [... ] aplica-se quando não há crité-
não se vislumbraria. "Estas noções deixam de ser puramente transcendentes rio independente para o resultado justo, mas, em vez disso, existe
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um processo correcto ou equitativo que permite que o resultado, comigo mesmo, a não ser num sentido metafórico em que numa parte
seja ele qual for, será igualmente correcto ou equitativo, desde que da metáfora "eu" sou perspectivado como se fosse duas pessoas em vez de
o processo tenha sido devidamente respeitado" [86 (86)]. uma, uma pluralidade de eus dentro de um mesmo ser humano individual.
Como Rawls observa, os princípios da justiça "aplicam-se às relações entre
Dois paralelos adicionais ligam a concepção de justificação de Rawls diversas pessoas ou grupos. A palavra «contrato» sugere esta pluralidade"
com a sua teoria da pessoa. O primeiro sublinha o papel da escolha na ética [16 (36)].
deontológica; o segundo realça o pressuposto de pluralidade. Na nossa dis- Tendo procedido à reconstrução do problema de justificação a que
cussão do eu, detivemo-nos sobre duas perspectivas do agir através das quais Rawls procura dar resposta, e considerado o tipo de solução que apresenta,
o eu poderá alcançar os seus objectivos: uma perspectiva voluntarista, nos resta agora determinar se esta solução é de facto capaz de fornecer os alicer-
termos da qual o eu se relaciona-com os seus fins tal como um sujeito volitivo ces exigidos pela ética deontológica. E assim dirigimo-nos, por fim, em direc-
se relaciona com os objectos que elege; e uma perspectiva cognitiva, em que ção ao contrato hipotético na posição original, de modo a podermos fixar
o eu se relaciona com os seus fins do mesmo modo que um sujeito dotado de exactamente o que nele se passa e como se justifica, se é isso que assegura.
compreensão se relaciona com os objectos do seu conhecimento. E enten- Correndo o risco de reiterar o que é já por demais familiar, torna-se necessá-
deu-se que a prioridade do eu sobre os seus fins exigia uma concepção rio explorar o texto com algum cuidado, para que a fenomenologia do acordo
voluntarista. original possa ser perspectivada com clareza.
A partir do momento em que imaginarmos as partes na posição original
procurando princípios de justiça, seremos igualmente capazes de conceber
duas perspectivas distintas de justificação. Uma perspectiva voluntarista, no O que se passa, de facto, sob o véu de ignorância?
contexto da qual as partes chegam aos princípios através de um acto de elei-
ção ou de um acordo. E uma perspectiva cognitiva, em que os atingem atra- O que se passa na posição original é, acima de tudo, uma escolha, ou
vés de um acto de descoberta colectiva. Verifica-se com a justificação aquilo mais precisamente um escolher em conjunto, um acordo entre as partes.
que já se havia constatado a propósito do agir. Para que o contrato possa ser Aquilo em que as partes acordam são os princípios da justiça. Ao contrário
anterior aos princípios, torna-se necessário que as partes elejam os princí- da maior parte dos contratos reais, que não são capazes de o fazer, o contrato
pios de justiça, em vez de simplesmente os descobrirem. Tanto a prioridade hipotético acordado pelas partes é capaz de se justificar a si mesmo. Os prin-
do eu como a prioridade do processo exigem noções voluntaristas do agir e cípios adoptados pelas partes são justos em virtude de terem sido escolhidos
da justificação, respectivamente. Para o eu ser anterior, torna-se necessário pelas partes. Como a concepção voluntarista da justificação nos sugeriria, os
que os seus objectivos sejam escolhidos, em vez de dados; tal como para o princípios da justiça decorrem de uma eleição.
contrato ser anterior, os princípios da justiça têm de ser produto do acordo,
em vez de objecto de uma descoberta. "A ideia condutora é antes a de que os princípios da justiça
Na perspectiva contratualista, e para além da ênfase na eleição, aplicáveis à estrutura básica formam o objecto do acordo original"
também o pressuposto de pluralidade é comum quer à teoria da pessoa, quer [itálico nosso, 11 (33)].
à concepção de justificação. Tal como "a pluralidade de sujeitos distintos,
com distintos sistemas de objectivos" [29 (45)], é essencial para a noção "Assim, somos convocados a imaginar que os sujeitos que
de sujeito de Rawls, também a pluralidade antecedente das partes na estabelecem uma forma de cooperação em sociedade escolhem
posição original é essencial para a noção de acordo hipotético que são em conjunto, num acto comum, os princípios que devem orientar
convocadas a celebrar. Para haver um contrato é necessário uma plurali- a atribuição de direitos e deveres básicos e a divisão dos benefícios
dade de pessoas. Eu não posso celebrar um contrato ou chegar a um acordo da vida em sociedade. Decidem antecipadamente o modo como
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vão resolver as pretensões que tiverem uns contra os outros" [itáli- A justiça como equidade difere .das teorias contratualistas tradicio-
cos nossos, II (33)]. nais na medida em que "o acordo relevante não diz respeito à adesão
a uma determinada sociedade ou à adopção de uma certa forma de governo,
"Da mesma forma que cada pessoa deve decidir, através de mas à aceitação de certos princípios morais" [16 (36)]. O resultado do acordo
uma análise racional, o que é que constitui o seu bem, isto é, o não é um conjunto de obrigações aplicáveis aos indivíduos, pelo menos de
sistema de objectivos que lhe é racional prosseguir, também um {orma directa, mas princípios da justiça aplicáveis à estrutura básica da
conjunto de pessoas deve decidir, de uma vez por todas, o que é sociedade. Em todo o caso, o aspecto voluntarista da justificação cor-
que para elas deverá ser considerado justo ou injusto. É a escolha responde de algum modo à noção de sociedade enquanto assente sobre um
que seria feita por sujeitos racionais nesta situação hipotética em acordo voluntário. Rawls escreve que viver numa sociedade governada pelos
que todos beneficiam de igual liberdade - aceitando por agora que princípios da justiça derivados de uma concepção voluntarista da justi-
os problemas colocados pela escolha têm solução - que determina ficação é, com efeito, a melhor opção, superada apenas pela possibili-
os princípios da justiça" [itálicos nossos, ll-12 (33)]. dade de se viver numa sociedade que seja na realidade produto da nossa
opção.
"Uma vez que todos os participantes estão em situação
semelhante, e que ninguém está em posição de designar princí- "É evidente que nenhuma sociedade pode ser um sistema de
pios que beneficiem a sua situação particular, os princípios da cooperação à qual se adira de forma literalmente voluntária; pelo
justiça são o resultado de um acordo ou de uma negociação equi- nascimento todos estamos situados numa sociedade concreta e
tativa" [itálicos nossos, 12 (34)]. numa posição determinada e a natureza dessa posição afecta
naturalmente as nossas perspectivas de vida. No entanto, uma
"A teoria da justiça como equidade inicia -se, como ficou dito, sociedade que satisfaça os princípios da justiça como equidade
com uma das escolhas de âmbito mais geral que pode ser feita está tão próxima quanto é possível de um sistema voluntário, uma
por pessoas em conjunto, nomeadamente, com a escolha dos vez que satisfaz os princípios que sujeitos livres e iguais consenti-
primeiros princípios de uma concepção da justiça" [itálicos nossos, riam em circunstâncias equitativas. Neste sentido, os seus mem-
13 (34)]. bros são autónomos e as obrigações que reconhecem são auto-
-impostas" [itálicos nossos, 13 (34)].
"Os princípios da justiça são os que seriam escolhidos na
posição original. São o produto de uma determinada situação em Tal como a nossa reconstrução sugere, a natureza voluntarista da
que a escolha é efectuada" [itálicos nossos, 41-42 (54)]. perspectiva contratualista de Rawls está comprometida com a pluralidade
essencial dos sujeitos humanos e com a necessidade de resolver pretensões
"Os princípios da justiça não são considerados como evidên- que colidem umas com as outras. Fora da pluralidade, quer os contratos,
cias, antes a sua justificação decorre do facto de que seriam esco- quer os princípios da justiça não seriam nem possíveis nem necessários. "Os
lhidos" [itálicos nossos, 42 (54)]. princípios da justiça lidam com as reivindicações conflituais que incidem
sobre os benefícios decorrentes da cooperação em sociedade; aplicam-se às
"Numa doutrina contratualista, os factos morais são deter- relações entre diversas pessoas ou grupos. A palavra «contrato» sugere esta
minados pelos princípios que seriam escolhidos na posição origi- pluralidade, bem como a condição de que a divisão apropriada dos benefí-
nal [... ]. Cabe aos sujeitos colocados na posição original escolher cios deve ser feita de acordo com princípios aceitáveis por todas as partes"
estes princípios" [itálicos nossos, 45 (57)]. [16 (36)].
170 171

Como vimos anteriormente, a justiça como equidade difere do utilita- sociedade particular, o acordo alcançado na posição original não está impli-
rismo pela ênfase que coloca na pluralidade e no carácter distinto dos indiví- cado na convenção da mesma maneira. Não se trata de um contrato real,
duos, e esta diferença está bem patente no papel desempenhado pelo con- mas tão-só de um contrato hipotético. Uma vez que se imagina que a sua
trato na justificação. celebração tenha lugar antes que os princípios da justiça entrem em cena,
poderá ser perspectivado como sendo um contrato "pré-situado" no sentido
"Enquanto o utilitarismo estende à sociedade o princípio da relevante, contexto em que se apresenta, então, como um status quo que é
escolha que é aplicado a um sujeito isolado, a justiça como equi- anterior à chegada da justiça, de tal modo que não existem quaisquer princí-
dade, sendo uma teoria contratualísta, parte da ideia de que os pios morais disponíveis através dos quais os seus resultados possam ser
princípios da escolha social e, portanto, os princípios da justiça, impugnados. Deste modo, é capaz de realizar os ideais da justiça pura pro-
são eles próprios objecto de um acordo inicial" [itálicos nossos, cessual. (Ironicamente, apesar de, no início, parecer enfraquecer a respectiva
28 (45)]. capacidade de justificação, a natureza hipotética do acordo original constitui
agora uma vantagem positiva, talvez indispensável. Se bem que Rawls subli-
"Na perspectiva da teoria contratualísta, não é possível obter nhe que "nada semelhante [à posição original] tem de ocorrer de facto" [120
um princípio da escolha social apenas mediante o alargamento do (110)], poderá dar-se o caso de que um tal acordo jamais possa ter lugar,
princípio da prudência racional ao sistema de desejos elaborado s~ndo possível, mesmo assim, ultrapassar o problema do convencionalismo).
pelo espectador imparcial. Tomar esta opção significa não levar a
"Uma vez que todos os participantes estão em situação
sério a pluralidade e a individualidade dos indivíduos, nem reco-
semelhante e que ninguém está em posição de designar princípios
nhecer como base da justiça aquUo em que os homens consenti-
que beneficiem a sua situação particular, os princípios da justiça
riam" [itálicos nossos, 29 (45)].
são o resultado de um acordo ou negociação equitativa" [itálicos
nossos, 12 (34)].
Ao basear os princípios da justiça num acordo entre as partes, Rawls
sublinha duas características que o contrato hipotético partilha com os reais: "Pode dizer-se que a posição original constitui o status quo
a escolha e a pluralidade. Porém, já vimos que os ingredientes da escolha e inicial adequado, pelo que os acordos fundamentais estabelecidos
da pluralidade não são suficientes para produzir justiça. Apesar de incluírem em tal situação são equitativos. Isto explica a propriedade da
uma e outra, os contratos reais não se justificam a si mesmos. Isto fica-se a designação 'justiça como equidade': ela transinite a ideia de que o
dever ao problema que descrevemos relativamente à contingência e ao con- acordo sobre os princípios da justiça é alcançado numa situação
vencionalismo. Os contratos reais acabam muitas vezes por ser injustos inicial que é equitativa" [itálicos nossos, 12 (34)].
devido às múltiplas contingências (coercitivas e não coercitivas) associadas
às inevitáveis diferenças de poder e de conhecimento entre pessoas diferen- "É uma situação em que as partes estão representadas
temente situadas. Porém, estas diferenças são eliminadas na situação origi- igualmente como pessoas morais e o resultado não é condicionado
nal. Devido ao véu de ignorância e a outras condições igualizadoras, todos por contingências arbitrárias ou pelo equilíbrio relativo das forças
estão situados de forma semelhante, razão pela qual ninguém se pode sociais. Assim, a teoria da justiça como equidade pode desde o iní-
aproveitar, mesmo que inadvertidamente, de uma posição negocial mais cio utilizar a ideia da justiça processual pura" [itálicos nossos, 120
favorável. (109-110)].
A posição original é igualmente desenhada para ultrapassar o problema
do convencionalismo. Enquanto que os contratos reais se encontram inevi- Através da imposição do véu de ignorância, torna-se possível "anular os
tavelmente incrustados nas práticas e nas convenções de uma qualquer efeitos das contingências específicas que levam os sujeitos a oporem-se uns
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aos outros e que os fazem cair na tentação de explorarem as circunstâncias 1em aceitáveis do ponto de vista moraI. A posição original é defi-
naturais e sociais em seu benefício" [136 (121)]. nida de tal forma que representa um status quo no qual quaisquer
acordos alcançados são justos" [itálicos nossos, 120 (109)].
"Se for permitido introduzir o conhecimento de característi-
cas particulares, o resultado será influenciado por contingências "A ideia da posição original é a de estabelecer um processo
arbitrárias. Como atrás se observou, a ideia de distribuir recursos equitativo, de form~ a que quaisquer princípios escolhidos sejam
de acordo com a lei do mais forte não constitui um princípio de justos. O objectivo é usar a noção de justiça processual pura como
justiça. Para que a posição original possa produzir acordos que são base para a teoria" [itálicos nossos, 136 (121)].
justos, as partes devem estar colocadas numa situação equitatíva e
ser tratadas como sujeitos morais iguais. A arbitrariedade do Porém, neste ponto surge uma ambiguidade crucial, na medida em que
mundo tem de ser corrigida mediante o ajustamento das circuns- não se entende com clareza o que significa exactamente "usar a noção de
tâncias da situação contratual inicial" [itálicos nossos, 141 (124)]. justiça processual pura como base para a teoria". Rawls reivindica que
a partir do momento em que a situação for caracterizada de forma adequada,
A partir do momento em que se assume que as partes de um acordo se os princípios escolhidos, sejam eles quais forem, serão aceitáveis de um
encontram situadas de forma semelhante em todos os aspectos relevantes, as ponto de vista moral. A partir do momento em que a posição original for
diferenças de poder e de conhecimento entre elas desaparecem, e as fontes devidamente definida, quaisquer acordos alcançados nela serão justos.
possíveis de injustiça são erradicadas. Uma vez que ninguém é capaz de fazer A partir do momento em que se estabelecer um processo e quitativo ,
as suas opções baseado em atributos fornecidos de forma contingente, cum- quaisquer princípios escolhidos serão justos.
pre-se o ideal de autonomia, implícito, se bem que de forma imperfeita, nos A falta de clareza está em saber quão generosas são estas provisões para
contratos reais; concretiza-se o ideal de reciprocidade com naturalidade, ao as partes chamadas a escolher. Numa primeira leitura, os termos parecem de
mesmo tempo que se elimina a vulnerabilidade do contrato à "questão adi- facto ser bastante generosos, apontando para nada menos do que a adopção
cional" de saber se ele "é de facto justo". "O véu de ignorância priva as pes- das provisões voluntaristas acima sugeridas. Desde que as partes se encon-
soas na posição original dos conhecimentos que lhes permitiriam escolher trem numa situaçãoequitativa, tudo vale. O alcance da sua escolha é ilimi-
princípios heterónomos. As partes efectuam a sua escolha conjuntamente, tado. Os resultados das suas deliberações serão moralmente aceitáveis
como pessoas racionais livres e iguais que conhecem apenas as circunstân- "sejam eles quais forem". Quaisquer princípios que venham a adoptar serão
cias que originam a necessidade dos princípios da justiça" [252 (204)]. considerados justos.
A partir do momento em que a "questão adicional" de equidade perder Mas existe outra leitura, menos expansiva, da sua situação, que limita
a sua força moral independente devido ao facto de as partes se encontrarem significativamente o alcance do empreendimento das partes. Nesta inter-
situadas de tal modo que seja inconcebível poderem produzir qualquer pretação, dizer que os princípios que adoptarem serão justos "sejam eles
injustiça, qualquer acordo que alcancem torna-se num caso de justiça pro- quais forem" equivale simplesmente a afirmar que, dada a situação em que
cessual pura. Os resultados que daí advierem serão equitativos "sejam eles se encontram, as partes escolherão garantidamente os princípios certos. Se
quais forem", apenas em virtude de decorrerem de um acordo desta natu- bem que seja verdade que, em sentido estrito, as partes podem eleger os
reza. Nestas circunstâncias, um contrato deixa de ser uma convenção cons- princípios que entenderem, a situação em que se encontram foi desenhada
titutiva, transforma-se, antes num instrumento de justificação. por forma a garantir que elas apenas desejam escolher determinados princí-
pios. Nesta perspectiva, "quaisquer acordos alcançados na posição original"
"O objectivo é caracterizar esta situação de forma a que os serão justos, não porque o processo santifique qualquer resultado, mas por-
princípios que seriam escolhidos, sejam eles quais forem, se reve- que a situação garante um resultado específico. No entanto, se os princípios
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acordados são justos porque apenas princípios justos são susceptíveis de ser "Daqui decorre a consequência muito importante de que as
acordados, então o aspecto voluntarista do empreendimento não é tão partes não têm base para negociarem, no sentido corrente da
amplo como poderia parecer à primeira vista. A distinção entre justiça pro- expressão. Ninguém conhece a sua situação na sociedade nem os
cessual pura e perfeita extingue-se, e não se entende se é o processo que seus dons naturais e, portanto, ninguém está em posição de traçar
"traduz a sua equidade para o resultado", ou se a equidade do processo lhe é os princípios por forma a retirar benefícios deles" [139 (123)].
conferida pelo facto de conduzir necessariamente ao resultado certo.
Rawls confirma a leitura menos voluntarista ao escrever que "a aceita- "O véu de ignorância torna possível efectuar a escolha unâ-
ção destes princípios não é postulada como lei psicológica ou como proba- nime de uma concepção particular da justiça. Sem estas limita-
bilidade. Idealmente, em todo o caso, gostaria de demonstrar que a escolha ções relativas ao conhecimento, o problema da negociação na
dos mesmos é a única opção [sic] que está de acordo com a descrição com- posição original complicar-se-ia sem remédio" [140 (123)].
pleta da posição original. O argumento pretende em definitivo ser estrita-
mente dedutivo" [121 (110)]. A noção de que a descrição completa da posição Uma vez que as partes se encontram "colocadas em plano similar",
original determina uma única "escolha" que as partes não podem deixar de raciocinarão seguramente da mesma maneira, e não dispõem de qualquer
reconhecer parece introduzir, afinal de contas, um elemento cognitivo na base que lhes permita negociar "no sentido corrente da expressão". Isto
justificação, bem como questionar a prioridade dos processos sobre os parece implicar que dispõem de uma base que lhes permite negociar noutro
princípios que a perspectiva contratualista - e o projecto deontológico em sentido qualquer. "Os princípios da justiça são o produto de um acordo ou
geral - parecem exigir. Para além disso, uma consequência mais imediata de uma negociação equitativos" [12 (34)]. Porém, não é fácil imaginar que
desta leitura é que ela complica a nossa explicação do que de facto se passa sentido poderá ser este. Uma negociação, em qualquer sentido do conceito,
na posição original. Rawls mantém que aquilo que se passa debaixo do véu exige alguma diferença nos interesses, nas preferências, no poder ou no
de ignorância é que uma pluralidade de pessoas chegam a um acordo conhecimento dos negociadores. Contudo, na posição original não existem
unânime sobre uma concepção particular de justiça. Vale a pena examinar quaisquer diferenças entre as partes. Nestas condições, não é fácil imaginar
de perto a sua descrição. como se poderia proceder a uma negociação, em qualquer sentido.
Se nenhuma negociação poderia ter lugar, então surge igualmente a
"Para começar, é evidente que, dado que as partes desconhe- questão de saber se na posição original se poderia desencadear algum
cem o que as diferencia e que todas são igualmente racionais e debate. Rawls sugere que várias alternativas poderiam ser apresentadas antes
colocadas em plano similar, todas serão convencidas pelos mesmos que se chegue a um acordo final. No entanto, ao presumirmos que as partes
argumentos. Assim, poder-se-á ver o acordo a efectuar na posição raciocinam da mesma forma e são convencidas pelos mesmos argumentos, é
original na perspectiva de uma pessoa escolhida ao acaso. Se, após pouco provável que uma ideia determinada possa ocorrer a uma delas e não
a necessária reflexão, alguém preferir uma concepção da justiça a às outras. O debate, tal como a negociação, pressupõe a existência de algu-
uma outra, é porque todos a preferirão e pode obter-se um acordo mas diferenças nas percepções ou nos interesses, no conhecimento ou nas
unânime" [itálicos nossos, 139 (122)]. preocupações dos participantes. Mas na posição original nenhuma destas
diferenças se verifica. Temos portanto que assumir que as "deliberações" das
Para tornar as circunstâncias mais vívidas, Rawls sugere que imagine- partes decorrem em silêncio e produzem uma única concepção, que é acor-
mos que as partes comunicam entre si através de um árbitro, que transmite dada de forma unânime.
as alternativas apresentadas, informa as partes quando tiverem chegado a Porém, isto torna a concepção do acordo celebrado na posição original
um acordo, e por aí adiante. "Mas se admitirmos que a deliberação das par- ainda mais desnorteante. Se não existe qualquer base a partir da qual se
tes tem de ser semelhante, um tal árbitro é na verdade supérfluo" [139 (123)]. possa proceder a uma negociação ou a um debate, não se compreende como
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pode existir um fundamento, qualquer que ele seja, para um acordo, muito me aperceba da sua validade, como acontece quando concordo com a
menos para um acordo unânime. Rawls postula que "se, após a necessária proposição que 2 + 2 = 4 (a aceito ou a reconheço). Concordar, neste sentido,
reflexão, alguém preferir urna concepção de justiça a uma outra, é porque é apanhar o significado de algo que já existia. Posso dizer que "decidi" que a
todos a preferirão e pode obter-se um acordo unânime [itálico nosso, 139 resposta a este problema difícil de matemática é "x"; porém, não se trata de
°
(122)]. Mas, qual a razão para o "e"? O que é que acordo nos traz de adicio- uma decisão que decida o que quer que seja, a não ser que a minha resposta
nal, a partir do momento em que se faz a descoberta? Suponhamos que, após está certa ou errada. Uma vez que, neste segundo sentido, o acordo é mais
a devida reflexão, cada um descobre que prefere uma concepção particular uma questão de conhecimento do que uma questão de vontade, podemos
de justiça, e suponhamos ainda que cada um sabia que todos preferiam a descrevê-lo como sendo um acordo no sentido cognitivo.
mesma. Será que continuariam e celebrariam um acordo relativamente a A partir do momento em que tivermos presente esta distinção, a con-
esta concepção? Que significado teria para eles, primeiro fazer a descoberta, cepção da posição original de Rawls assume uma perspectiva nova. Passa-
e depois prosseguir e celebrar um acordo acerca dela? Mesmo que consiga- gens que num momento inicial pareciam descrever um acordo no sentido
mos imaginar o que significaria avançar e fazer um acordo em tais circuns- voluntarista podem agora ser lidas como admitindo igualmente uma inter-
tâncias, o que é que o acordo adicionaria à descoberta de que todos prefe- pretação cognitiva. Enquanto que, de início, Rawls escreve que "a escolha [... ]
riam a mesma concepção? Será que a concepção se justificaria mais depois determina os princípios da justiça" [itálico nosso, 12 (33)], noutros momen-
de as partes "prosseguirem e terem chegado a acordo" do que quando elas tos argumenta como se as partes mais não fizessem do que reconhecer prin-
apenas constataram que todos preferiam a mesma concepção e ainda não "o cípios já existentes.
tinham celebrado"?
Chegados a este ponto, é importante estabelecer uma distinção entre "O acordo relevante não se prende com a adesão a uma
dois sentidos diferentes de "acordo". O primeiro envolve o acordo com uma determinada sociedade ou com a adopção de uma certa forma de
pessoa (ou com várias pessoas) relativamente a uma proposição; o segundo governo, mas com a aceitação de certos princípios morais" [itálico
diz respeito ao acordo com uma proposição. O primeiro tipo de acordo é nosso, [16 (36)].
uma espécie de "escolha em conjunto", e exige uma pluralidade de pessoas.
"Argumentarei que os dois princípios seriam reconhecidos"
(Uma só não chegará, excepto no sentido metafórico em que eu faço um
[na posição original] [itálico nosso, ll8 (108)].
acordo comigo mesmo). É este tipo de acordos que se verifica essencial-
mente quando eu nego ceio e celebro um acordo, quando parte do acordo "Estes princípios são os que seriam aceites por pessoas livres
envolve a formação de uma intenção. Apesar de podermos dizer que duas e racionais colocadas numa situação inicial de igualdade e interes-
pessoas acordam na celebração de um contrato, aquilo que queremos dizer é sadas em prosseguir os seus próprios objectivos" [itálico nosso,
que essas duas pessoas concordam uma com a outra no cumprimento de II (33)].
certos termos. O acordo e os termos, em conjunto, constituem o contrato.
Uma vez que o acordo neste sentido exige um acto intencional, ou um "Todos [os membros de uma sociedade bem organizada]
exercício da vontade, podemos descrevê-lo como sendo um acordo no poderiam considerar que os seus acordos satisfazem as condições
sentido voluntarista. que reconheceriam numa situação original comportando limites
O segundo tipo de acordo, isto é, o acordo com uma proposição, não razoáveis e geralmente aceites quanto à escolha dos princípios"
exige mais do que uma pessoa, e não envolve um exercício da vontade. Neste [itálico nosso, 13 (34)].
sentido de acordo, concordar com uma proposição não exige o envolvimento
de outros, nem tão-pouco que eu considere a validade da proposição como "Deste modo os homens exibem a sua liberdade, a sua inde-
sendo uma matéria susceptível de ser escolhida. Pode ser suficiente que eu pendência face às contingências da natureza e da sociedade,
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agindo pelas formas que reconheceriam na posição original" tivemos oportunidade de verificar, a própria teoria da pessoa de Rawls
[itálico nosso, 256 (206)]. reconhece que dois sujeitos jamais poderão ser perspectivados como
encontrando-se numa situação idêntica ao mesmo tempo que continuam a
Ironicamente, a interpretação kantiana da justiça como equidade ser duas pessoas distintas. A noção de que não se poderá encontrar por
sublinha a transição da interpretação voluntarista para a cognitiva. Apesar de detr~s ~o véu de ignorância mais ninguém para além de um único sujeito
permanecerem algumas referências à escolha, as partes são descritas menos explIcana por que razão nenhuma negociação, ou discussão, pode ali ter
como agentes voluntários do que como sujeitos que vêem o mundo de uma lugar. E explicaria ainda por que razão ali não se pode chegar a qualquer
certa maneira. contrato ou acordo no sentido voluntarista, na medida em que os contratos,
tal como os debates, exigem uma pluralidade de pessoas e, quando o véu de
"A minha sugestão é a de que pensemos a posição original ignorância cai, esta pluralidade dissolve-se.
como sendo o ponto de vista a partir do qual o eu numénico vê o No início da sua obra, e novamente no final, Rawls pergunta por que
mundo. Cada uma das partes enquanto eu numénico tem liber- razão, .sendo a posição original meramente hipotética, nos devemos interes-
dade completa para escolher quaisquer princípios que deseje; sar por ela, ao nível moral ou a qualquer outro. Em ambos os casos responde
mas têm também o desejo de expressar a sua natureza como dizendo que "as condições incorporadas na descrição da posição original
membros racionais e iguais do domínio inteligível que dispõem são, de facto, aceites por nós·. Ou, se o não forem, talvez a reflexão filosófica
precisamente desta liberdade para escolher, isto é, como seres nos leve a aceitá-las" [21 (40) e de novo 587 (441)]. As considerações filosófi-
que podem olhar o mundo desta forma e expressar esta cas através das quais Rawls se propõe persuadir-nos assentam na tradição
perspectiva nas suas vidas como membros da sociedade" [itálico contratualista. A sociedade bem organizada que nos recomenda "está tão
nosso, 255 (206)]. próxima quanto é possível de um sistema voluntário" [13 (34)]. No entanto,
aquilo que começa por ser uma ética da escolha e do consentimento acaba,
Quer na teoria da pessoa de Rawls, quer na sua explicação da justifica- mesmo que inconscientemente, por ser uma ética do discernimento e
ção, os pressupostos da escolha e da pluralidade permaneceram juntos como do auto conhecimento. Na passagem final da obra, a linguagem da escolha
características centrais da concepção. E tal como a interpretação voluntarista e da vontade é substituída pela linguagem da vista e da percepção, do
da posição original cede o lugar a uma interpretação cognitiva, também o mesmo modo que a linguagem de Kant cede lugar à imagem cognitiva de
pressuposto de pluralidade é posto em causa. Rawls fala sempre das partes Espinosa.
na posição original e na sua interpretação kantiana refere-se a eus numéni-
coso No entanto, o véu de ignorância produz o efeito de privar as partes, "A partir do momento em que captarmos esta concepção,
enquanto partes da posição original, de todas as características que as pos- podemos olhar a qualquer momento o mundo social a partir do
sam distinguir umas das outras, tomando-se, portanto, difícil perceber em ponto de vista exigido. [... ] Ver o nosso lugar na sociedade a partir
que poderia consistir a sua pluralidade. da perspectiva oferecida por esta posição é pois vê-lo sub species
Em parte, Rawls reconhece esta condição quando argumenta que aeternitatis: é olhar a situação humana não apenas de todos os
"todos os participantes estão em situação semelhante" [12 (34)], contexto em pontos de vista sociais, mas também de todos os pontos de vista
que fica garantido um acordo unânime. Porém, a partir do momento em que temporais. A perspectiva da eternidade não é a perspectiva de um
se excluam todas as características individualizantes, as partes não se encon- certo lugar para lá do mundo, nem o ponto de vista de um ser
trarão apenas numa situação semelhante (como acontece com as pessoas na transcendente; trata-se ·antes de uma forma de pensar e de sentir
vida real quando apresentam circunstâncias de vida semelhantes e certos que os sujeitos racionais podem adoptar no interior do mundo.
interesses que se sobrepõem) - elas estarão numa situação idêntica. Como já [... ] A pureza de coração, se a pudéssemos atingir, consistiria em
180

ver claramente e em agir, com graça e domínio de si, a partir deste


ponto de vista" [itálicos nossos, 587 (441)].

O segredo da posição original - e a chave da sua cap~cidade ~e justifi-


cação _ não está naquilo que as partes aJifazem, mas naquil~ que a~ apree.n-
demo O que importa não é aquilo que elegem, mas o que veem, nao aquilo
4
que decidem, mas o que descobrem. Ao fim e ao cabo, o que s: passa na
posição original não é a celebração de um contrato, mas a ascensao ao auto-
A justiça e o bem
conhecimento por parte de um ser inter-subjectivo.

Iniciámos a nossa discussão com o propósito de aferir a reivindicação


rawlsiana de primazia da justiça, e chegámos à conclusão de que ela exigia
uma certa concepção do sujeito moral. Procurámos então examinar esta
concepção à luz da teoria moral de Rawls, como um todo, e averiguar da sua
consistência com esta teoria, bem como da sua plausibilidade em geral. Por
esta via, esperávamos vir a ser finalmente capazes de aferir, em primeiro
lugar, a teoria do sujeito de Rawls e, depois, a reivindicação de primazia da
justiça que esta teoria é chamada a sustentar.
Até agora, perscrutámos a. teoria do sujeito de Rawls fundamentalmente
na relação com a sua teoria da justiça, ou com a sua concepção do justo.
Porém, e tal como foi assinalado pelo próprio Rawls, uma teoria moral
completa tem de oferecer alguma explicação não só do justo, mas também
do bom; e é isso que a terceira parte do seu livro procura fornecer. Na
verdade, a primazia da justiça constitui, em si mesma, uma reivindicação
não só acerca da justiça, mas também acerca da sua relação com aquelas
virtudes que se inserem no conceito do bem. Por isso, antes de podermos
aferir esta última reivindicação, temos de nos debruçar igualmente sobre a
relação da teoria do sujeito com a teoria do bem propostas por Rawls.

A unidade do eu

Podemos começar recuperando os pontos principais de intercomuni-


cação entre, por um lado, a teoria moral de Rawls e, por outro, a sua teoria
do sujeito. Enquanto que a moralidade do justo se reporta aos limites do eu,
dirigindo-se àquilo que nos distingue, a moralidade do bom reporta-se à
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unidade da pessoa e dirige-se àquilo que nos une. Numa ética deontológica, pleta do) bem, a noção de que o princípio de diferença depende "à partida"
em que o justo antecede o bom, isto significa que aquilo que nos separa é, de uma teoria da comunidade negaria estas prioridades com argumentos
num sentido importante, anterior àquilo que nos une - tanto num sentido importantes. Enquanto que, para Rawls, uma teoria do bem é um comple-
epistemológico como num sentido moral. Primeiro somos individuos dis- mento e não um pré-requisito da justiça, desenhado para demonstrar a sua
tintos e depois é que estabelecemos relações entre nós e desenvolvemos estabilidade e a sua tendência para gerar os seus próprios apoios, a noção
acordos de cooperação uns com os outros. Daí a prioridade da pluralidade mais alargada de posse implícita no princípio de diferença parece exigir cer-
sobre a unidade. Primeiro somos sujeitos de posse estéreis, elegendo depois tas teorias da comunidade e do agir no âmago da justiça, e não apenas no seu
os fins que nos propomos adaptar. Daí a prioridade do eu sobre os seus fins. perímetro.
Estas são, em resumo, as reivindicações combinadas da teoria moral e Necessitamos, portanto, de nos debruçar sobre a teoria do bem de
da antropologia filosófica de que vimos depender o liberalismo deontológico. Rawls, e em particular sobre as concepções de comunidade e do agir que
Ao considerar a teoria do sujeito de Rawls na perspectiva do justo, centrámos propõe, não só em termos da sua plausibilidade geral, mas também em ter-
a nossa investigação no carácter distinto do eu e no desenvolvimento dos mos da sua capacidade para nos fornecer o tipo de explicação de que a teoria
seus limites. Agora, procuraremos explorar a teoria do sujeito de Rawls na da justiça necessita para se completar. Procurarei demonstrar que a concep-
perspectiva do bem. Desviaremos a nossa atenção para a unidade do eu e ção de Rawls falha num e noutro destes aspectos, e por razões semelhantes.
para a questão de saber como poderão os seus limites ser negociados ou Porém, antes de nos ocuparmos directamente da sua teoria do bem, será
atravessados. Esta questão contém duas partes. A primeira é relativa à teoria conveniente apresentar um exemplo concreto daquilo que na realidade uma
da comunidade de Rawls e à explicação que nos oferece de como é que pes- teoria da comunidade traz para a justiça e reflectir sobre o que se passa de
soas anteriormente individuadas acabaram por se congregar numa união errado com a posição liberal quando ela se propõe prescindir de uma tal
social. A segunda diz respeito à sua teoria do agir e à sua explicação de como teoria. Para o efeito, proponho recuperar um argumento de Ronald Dworkin
é que sujeitos de posse previamente delimitados adquirem propósitos e a favor da discriminação positiva, ou do tratamento preferencial de minorias
objectivos. na admissão às universidades. O argumento de Dworkin, se bem que não
Já tratámos dos dois traços centrais do eu - o seu carácter distinto e a seja idêntico àquele que Rawls poderia apresentar, tem muito em comum
sua unidade - como se cada um deles fosse, em certo sentido, auto-suficiente com a perspectiva geral de Rawls relativamente ao valor, ao mérito e à
e pudesse ser perspectivado independentemente do outro. No entanto, na natureza do sujeito moral, servindo igualmente para sublinhar os pressu-
prática, torna-se difícil observar a diferença entre estas duas características postos deontológicos de que nos ocupamos.
do eu sem atendermos à sua interligação interna. Até mesmo quando subli-
nhámos os limites do eu e a concepção do justo, tivemos ocasião de referir
um princípio de unidade e de antecipar uma teoda de comunidade que o O argumento a favor da discriminação positiva
possa fornecer. Até mesmo a partir da perspectiva do justo, pudémos obser-
var o recuo dos limites do eu, tal como são propostos por Rawls. Dworkin defende políticas de discriminação positiva na admissão a
N a medida em que o princípio de diferença, como se viu, exige um certas faculdades, como as de Medicina e de Direito, por exemplo, na medida
sujeito de posse mais alargado, os princípios da justiça estendem-se para em que constituem um mecanismo eficaz, pelo menos potencialmente, para
além dos limites de sujeitos antecipadamente individuados, por assim dizer, se atingir um objectivo social desejável, a saber, o aumento da presença de
contexto em que dependem à partida de um tipo de unidade que Rawls havia negros e de outras minorias nestas profissões que em termos sociais são
reservado para o domínio do bem. Enquanto que Rawls fixaria a identidade estratégicas, e, deste modo, finalmente, "reduzir o nível em que a sociedade
das pessoas independentemente das características ou dos atributos comuns norte-americana é, em termos globais, uma sociedade em que o tema do
que possuam e definiria o justo fora de qualquer referência à (teoria com- racismo se faz sentir" (l977b, ll). O argumento adoptado é fundamental-
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mente o da utilidade social. Neste contexto, a discriminação positiva justi- tiva não o são por desdém, mas apenas pelo mesmo tipo de cálculo instru-
fica-se não por aqueles que são favorecidos terem direito a uma vantagem mental que justifica os critérios que nos são mais familiares. Se bem que seja
sobre os outros, ou como compensação por terem sido discriminados nega- verdade que um branco que obtenha resultados baixos nos exames de acesso
tivamente no passado, ou por qualquer outra razão, mas tão-só porque seria admitido se fosse negro, "também é verdade, e exactamente no mesmo
"ajudá-los neste momento constitui um mecanismo eficaz para combater sentido, que ele teria sido admitido se fosse mais inteligente, ou se tivesse·
um problema nacional" (l977b, 12). causado uma impressão melhor na sua entrevista. [... ] A raça, no seu caso,
Porém Dworkin, tal como Rawls, defende que, por mais que contribua não assume um papel diferente do desempenhado por estes outros factores;
para o bem-estar geral, nenhuma política sodal pode ser justificada se todos estão igualmente para além do seu controlo" (l977b, 15).
violar direitos individuais. Neste sentido, examina, portanto, o argumento Outra versão do argumento abordado por Dworkin é a reivindicação de
segundo o qual a discriminação positiva viola os direitos daqueles brancos que, ao admitir negros com resultados nos exames de acesso mais baixos do
que coloca numa posição de desvantagem e que nalguns casos chega a que os obtidos por alguns brancos que foram excluídos, a discriminação
excluir. Conclui pela negativa, afirmando que a ideia de que o tratamento positiva viola o direito de todos os candidatos a serem julgados com base no
preferencial "apresenta um conflito entre um objectivo social desejável e mérito. Dworkin responde argumentando que o mérito, bem como aquilo
direitos individuais importantes mais não é do que um exemplo de confusão que o exprime, não pode ser determinado em abstracto, antes dependendo
intelectual" (1977b, 12). daquelas qualidades que forem consideradas relevantes para os propósitos
Uma das versões do argumento abordado por Dworking é uma reivin- sociais de que a instituição está incumbida. No caso das faculdades de
dicação de que não é justo ter em conta a raça de uma pessoa na medida em Medicina e de Direito, a inteligência, tal como é aferida pelos exames
que se trata de uma qualidade que está para além do nosso controlo. Dwor- estandardizados, pode muito bem encontrar-se entre as características rele-
kin responde dizendo que o argumento não abrange unicamente a raça, vantes, mas não é, de modo algum, o único critério adequado, conforme o
enquanto critério, antes se aplicando igualmente à maioria dos padrões utili- atestam as práticas de longa data dos comités de admissão destas faculdades.
zados comummente nos processos de admissão a faculdades e univer- Outros atributos da pessoa, bem como o seu currículo, são comummente
sidades, incluindo a inteligência. É verdade que as pessoas não escolhem a tidos em conta na avaliação da capacidade provável do candidato para
raça a que pertencem, desempenhar as tarefas necessárias e, na medida em que ser negro seja rele-
vante para o propósito social em causa, então ser negro tem de contar
"mas é também verdade que aqueles que obtêm classificações também como um elemento de mérito.
baixas nos exames de admissão não escolhem os seus níveis de
"Não há nenhuma combinação de capacidades, proficiência
inteligência. Tão-pouco aqueles a quem é negado o acesso à uni-
e traços pessoais que, no abstracto, constituam o 'mérito'. Se a
versidade por serem demasiado velhos, ou por não virem de uma
destreza manual conta como 'mérito' no caso de um futuro cirur-
região do país que esteja sub-representada na universidade, ou
gião, isto fica a dever-se ao facto de que esta característica lhe irá
porque não são capazes de jogar bem basketball, escolheram não
permitir servir o público melhor, e a mais nenhuma outra razão.
possuir estas qualidades que, para eles, marcaram a diferença"
Se, por uma questão de facto lamentável, ter uma pele negra per-
(1977b, 15).
mitir a outro médico exercer melhor a sua profissão, então, e pelo
mesmo critério, o facto de se ter pele negra terá de contar como
Podemos ser levados a pensar que a raça é um factor diferente na
'mérito' também" (l977b, 13).
medida em que as exclusões que se têm baseado nela exprimem historica-
mente um preconceito ou um desprezo pela raça excluída, enquanto tal. Dworkin reconhece que considerar a raça· como constituindo uma
Porém, os brancos excluídos em função de políticas de discriminação posi- espécie de mérito poderá ser considerado por alguns como sendo um argu-
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menta perigasa, mas "apenas na medida em que se canfunda a sua canclu- qual não são capazes de nos farnecer uma perspectiva independente a partir
são. - que em circunstâncias particulares a pele negra pade ser uma caracte- da qual se passa proceder a uma crítica das instituições que à luz de outros
rística útil- cam a nação. tatalmente diferente e desprezível de que uma raça princípias se apresentarão. camo senda justas. E a canclusão geral do argu-
pade ser inerentemerite mais digna e meritória da que autra" (1977b, 12). menta de Dworkin, de que ninguém, branca ou negro, merece entrar numa
Implícita a uma baa parte da argumenta de Dwarkin está a ideia de que faculdade de Medicina au de Direita, isto. é, que ninguém detém um direita
ninguém pade alegar com justiça que as seus direitas tenham sido. vialados de admissão anterior, corresponde à distinção esÚlbelecida por Rawls entre
par políticas de discriminação. positiva, desde Ioga na medida em que nin- mérito moral e expectativas legítimas.
guém, branca au negro, merece ser admitida numa faculdade de Medicina ou As pasições de Rawls e de Dwarkin são. tarribém semelhantes num sen-
de Direita. Ninguém tem um direito antecipadamente definida de ser admi- tido mais geral. Uma e autra são tearias baseadas em direitos perspectivados
tida. Cam certeza que aqueles que cumprem de farma mais campleta as em apasição explícita às concepções utilitaristas, ao. mesma tempo. que pro-
candições estabelecidas para admissão. têm um direito a ser admitidas, e curam defender certas reivindicações individuais cantra a cálculo do inte-
seria injusta excluí-los. Na entanto., não. se pode dizer que estas pessaas, ou resse sacial. Porém, não. abstante as suas inspirações individualistas, ambas
quaisquer autras, mereçam ser admitidas, pela menas par duas razões. Em dependem de uma teoria da sujeito que produz a efeito. paradaxal de can-
primeira lugar, a facto. de possuírem as características relevantes não decorre firmar as aspectos mais frágeis, talvez até mesma a incaerência, da própria
na maioria das vezes da seu própria esforça. A sua inteligência inata, a seu indivíduo. cujos direitas pracurava acima de tudo garantir. Já vimas cama em
ambiente familiar, as aportunidades saciais e culturais que lhes faram afere- várias mamentos da cancepçãa de Rawls, o eu ameaça seja dissolver-se num
cidas, etc., são., na sua maiar parte, factores que se encantram para além da sujeita radicalmente incarpórea, seja sucumbir num sujeita radicalmente
seu cantrola, canstituinda uma questão. de boa sarte. Em qualquer caso, e situada. Cama procuraremas demanstrar agara, a argumenta de Dworkin
em segunda lugar, ninguém merece que as faculdades de Medicina e de em favar da discriminação. pasitiva é ilustrativo quer da mada cama estas
Direita procurem premiar este au aquele tipo. de qualificações. Aquilo. que se perplexidades, identificadas em primeiro lugar de farma abstracta, se tradu-
considera ser uma qualificação. para uma tarefa particular depende das qua- zem na prática, quer das consequências que delas decorrem.
lidades que essa tarefa venha a exigir, nada mais. Os benefícios assaciadas às A capacidade de distinguir a discriminação cantra as negros e autras
prafissões não. canstituem prémias desenhadas coma recompensa par minorias, cama nas proibições históricas de acesso. a pessaas de cor e na
desempenhas superiares, mas incentivas que visam atrair as qualidades anti-semitismo., da discriminação em favar das negras au de autras minorias,
relevantes. Partanto, ninguém pade ter um direita qualquer anteriarmente da género daquelas propastas na quadro de programas de discriminação.
definido para ser julgado de acorda cam um qualquer canjunto particular de pasitiva, tarna-se essencial para qualquer argumenta que se passa apresen-
critérias. tar em defesa da discriminação. pasitiva. Dwarkin defende que a justificação.
!\. partir desta cancepçãa tarna-se claro que a argumento de Dwarkin do prirrieira tipo. de discriminação. depende narmalmente em parte da "ideia
caincide cam a teoria de Rawls em muitos aspectos. A nação. de que as crité- desprezível de que uma raça pade ser inerentemente mais digna au meritó-
rios tradicionais de admissão., tal camo a raça, não. são. da respansabilidade ria do que autra", enquanto. que a justificação. da segundo, pelo cantrária,
da candidata faz lembrar a argumenta de Rawls de que, de um panta de vista depende da nação. utilitária de que a saciedade coma um tada fica a ganhar
maral, as vantagens das mais afartunadas são. arbitrárias. O argumenta de se contar cam prafissianais médicos e advogadas que a representem de
Dworkin de que "mérita", na abstracta, fora de qualquer referência aas forma mais ampla.
propósitos que as instituições passam desenvalver e implementar, é caisa Relativamente à primeira justificação., Rawls, tal cama Dwarkin,
que não. existe, assemelha-se ao. argumenta de Rawls contra a meritacracia recusaria claramente a nação. de que uma raça passa ser inerentemente mais
assente sabre a princípio de que as canceitas de mérito., virtude e valar moral digna au meritória da que autra. Tarn~-se, parém, surpreendente recordar
não. passuem um estatuto. moral anterior au pré-institucional, razão. pela por que razão., pela menas na teoria da sujeito de Rawls, é que uma tal can-
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cepção desprezível tem de ser errada. Para Rawls, a falácia da reivindicação pectivas de vida, dos direitos e das oportunidades que as instituições da jus-
de que os brancos são inerentemente mais dignos ou meritórios do que os tiça lhe possam dispensar. Observámos igualmente a ironia de que uma
negros não está em negar o valor intrínseco dos negros, mas no facto de pessoa assim tão destituída de valor moral pudesse ser o produto de uma
atribuir erradamente um valor intrínseco aos brancos, conferindo-lhes assim ética liberal desenhada para estabelecer os direitos dos indivíduos e afirmar a
uma pretensão de mérito que não tem fundamento. A razão prende-se com o sua inviolabilidade. Mas, se a negação do mérito individual e a insistência na
facto de, para Rawls, o conceito de valor moral, tal como o de bem, ser fronteira entre o eu e os seus atributos conduzem a um sujeito radicalmente
"secundário face aos conceitos de justo e justiça, não desempenhando qual- incorpóreo, a noção de activos comuns coloca uma ameaça diferente à inte-
quer papel na definição substantiva da distribuição" [313 (247)]. As pessoas gridade do eu ao implicar que as fronteiras entre o eu e o outro têm de algum
não podem ter um valor intrínseco, do mesmo modo que não podem ter um modo de ser relaxadas. A não ser que sejamos capazes de encontrar algum
mérito intrínseco, quer dizer, um valor ou um mérito que seja seu antes ou princípio de individuação diferente de um meramente empírico, o perigo
independentemente daquilo que as instituições justas lhes possam atribuir. que aqui se coloca é o de nos vermos arrastados para um sujeito radical-
E, tal como vimos, em sentido estrito, não se pode dizer de ninguém que mente situado.
mereça o que quer que seja, na medida em que não se pode dizer de nin- No argumento de Dworkin em favor da discriminação positiva, esta
guém que tem o que quer que seja, pelo menos não no sentido não distan- perplexidade tem a seguinte forma. A partir do momento em que a admissão
Ciado e constitutivo da posse necessário como fundamento do mérito. No ou a exclusão não possam ser consideradas com plausibilidade como depen-
quadro da teoria do sujeito de Rawls, nenhuma pessoa ou nenhuma raça dendo de uma noção abstracta de "mérito", ou de uma pretensão individual
pode ser inerentemente mais valiosa ou mais meritória do que outra, não por anterior, a alternativa será assumir que os fins colectivos da sociedade como
causa de todas serem valiosas e meritórias - de igual forma - mas porque um todo devem automaticamente prevalecer. Mas as fronteiras da sociedade
nenhuma o é, razão pela qual todas as pretensões têm de aguardar pela che- relevante nunca estão estabelecidas, o seu estatuto como sujeito de posse
gada de instituições justas. nunca se vê confirmado. Uma vez que o eu, enquanto eu individual, se vê
Alguns poderão discordar do argumento em favor da discriminação destituído de posse, as pretensões do indivíduo desvanecem-se, denun-
positiva de Dworkin - e da teoria da justiça de Rawls, na medida em que o ciando, subjacente, um utilitarismo nunca justificado. E como Rawls sugere
apoia - com base no fundamento tradicional da meritocracia. Poderão alegar logo no início da sua obra, o utilitarismo é, num certo sentido, a ética do
que o indivíduo possui os seus atributos num sentido não problemático, sujeito não delimitado, a ética que é incapaz de levar a sério as diferenças
merecendo portanto os benefícios que deles decorrem. Que parte daquilo entre as pessoas.
que significa dizer-se das instituições ou dos sistemas de distribuição que são Para Dworkin, no entanto, são precisamente as considerações utilita-
justos é que premeiam os indivíduos que antecipadamente se manifestaram ristas que distinguem a discriminação positiva legítima do outro tipo de dis-
como sendo merecedores de prémio. No entanto, Rawls e Dworkin apresen- criminação, baseada no preconceito e no desdém, o qual não tem
tam argumentos muito fortes contra estes pressupostos. Argumentos que os justificação. Se não se puder argumentar que algumas pessoas são inerente-
defensores da meritocracia dificilmente poderiam rebater. As dificuldades mente mais meritórias do que outras, pode-se pelo menos dizer que algumas
com o argumento de Dworkin são, segundo me parece, de outra índole; valem mais do que outras relativamente aos propósitos sociais que se
dizem respeito às visões alternativas do sujeito que sobram a partir do encontrarem em causa, justificando-se a discriminação nesta base. Uma
momento em que rejeitarmos a concepção de indivíduo proposta pela política de tratamento preferencial deve ser permitida na medida em que,
meritocracia. O que nos traz de volta ao problema dos limites do eu. em vez de julgar as pessoas como sendo em si mesmas mais ou menos
Já nos debruçámos sobre as dificuldades associadas à noção de pessoa meritórias, as utilizar para fins meritórios. Uma exclusão de base racial moti-
essencialmente destituída de posse, estéril de características constitutivas, vada não pelo preconceito, mas por um "cálculo instrumental", uma "ava-
sem valor ou mérito intrínseco, e totalmente dependente, para as suas pers- liação racional do uso mais benéfico para a sociedade de recursos limitados",
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ou por uma ide ia do género "ter a pele negra pode ser uma característica Fora de uma concepção mais ampla do sujeito de posse, tal como
socialmente útil" (1977: 12), é consistente com as premissas utilitaristas, aquela que a noção de património comum de Rawls parece igualmente
podendo ser justificável. As expectativas de uma pessoa, a não ser quando exigir; não se antevê qualquer razão óbvia para que tais atributos sejam
fundadas sobre os direitos, no sentido especial que Dworkin atribui ao con- colocados ao serviço de objectivos sociais, em vez de privados. Pelo
ceito, têm sempre de recuar perante "uma matéria de interesse social mais contrário. Na ausência de um sujeito de posse mais amplo, considerar as
geral", como acontece quando um pequeno empresário tem de encerrar a "minhas" capacidades e os meus dons como meros instrumentos de um
sua actividade para que se possa construir uma estrada nova e mais larga, propósito social mais amplo será usar-me como um meio para o serviço dos
por exemplo (1977: 15). A decepção destas pessoas que vêem goradas as suas fins de outros e, assim, violar um preceito moral nuclear, tanto para Kant
expectativas é compreensível, merecendo mesmo a nossa simpatia. Apesar como para Rawls.
disso, uma candidatura recusada não se pode atravessar no caminho da pro- Alicerçar o acesso à Universidade nos pressupostos sugeridos por Rawls
fissão médica de que a sociedade necessita, tal como um pequeno empresá- e Dworkin, quer se envolvam políticas de discriminação positiva, ou não,
rio não se pode atravessar no caminho da super auto-estrada. reveste-se de uma excentricidade moral que poderíamos ilustrar com as
O argumento de Dworkin presume, sem no entanto alguma vez explicar seguintes cartas de rejeição e de admissão escritas de modo a transmitirem
porquê, que desde que os direitos de nenhum indivíduo sejam postos em os fundamentos morais das políticas que recomendam:
causa, a política social será adequadamente decidida numa base utilitarista.
Para além de demonstrar por que razão os argumentos utilitaristas não são "Caro candidato (rejeitado),
capazes de se sobrepor aos individuais, a sua teoria não nos oferece uma Lamentamos informar que a sua candidatura de acesso a
defesa explícita da ética utilitarista enquanto tal, dizendo muito pouco esta Universidade foi rejeitada. Queira, por favor, ter presente que,
acerca das razões pelas quais o utilitarismo deve prevalecer quando os ao tomarmos esta decisão, não tivemos, de modo algum, a inten-
direitos individuais não se encontram em causa. Dworkin pode não sentir a ção de o ofender. A sua rejeição não indica que o desprezemos,
necessidade de justificar os pressupostos utilitaristas subjacentes à sua nem que o consideremos menos merecedor de ingressar na nossa
teoria, na medida em que, à primeira vista, eles parecem ter uma certa Universidade do que aqueles que de facto admitimos.
pretensão de serem evidentes por si mesmos. Se nenhum indivíduo tem um Sr(a). não tem culpa do facto de se apresentar precisamente
direito anterior sobre os benefícios decorrentes dos atributos e dos dons que num momento em que a sociedade não necessita das qualidades
lhe foram acidentalmente consignados, poderá parecer natural pressupor que tem para oferecer. Aqueles que admitimos em vez de si não
que, então, é a sociedade como um todo que o detém. Porém, e tal como mereciam, por si mesmos, o lugar que lhes foi atribuído, nem
vimos· na discussão a propósito do património comum e do princípio de eram dignos de elogio por possuírem as qualidades que lhes
diferença, esta presunção não tem fundamento. O carácter arbitrário do granjeou a admissão. Em todo o caso, estamos apenas a usá-los a
património de um indivíduo apenas poderá ser invocado como argumento eles - e a si - como instrumentos ao serviço de um propósito social
contra a proposição de que· esse indivíduo o possui ou de que detém um mais amplo.
direito privilegiado sobre os benefícios deles decorrentes, mas não como Sentir-se-á provavelmente decepcionado por esta decisão,
argumento em favor da proposição de que pertence a uma determinada no sentido em que a esperança que tinha de vir a colher os benefí-
sociedade particular ou que uma tal sociedade detém um direito preferencial cios oferecidos àqueles cujas qualidades coincidem com as neces-
sobre ele. E, a não ser que esta segunda proposição possa ser demonstrada, sidades apresentadas pela sociedade a cada momento não se
não nos parece existir fundamento para preferir uma distribuição utilitarista cumprirá. Este tipo de decepção ocorre sempre que as preferên-
destes atributos e dons, em vez de simplesmente deixar que permaneçam cias de um indivíduo têm de ser preteridas em favor das preferên-
onde quer que tenham vindo a cair. cias da sociedade. No entanto, não a deve sentir em demasia, na
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medida em que a sua rejeição nada tem a ver com o seu valor Em todo o caso, teremos muito gosto em recebê-lo no pró-
moral. Esteja seguro de que aqueles que foram admitidos são ximo Outono.
intrinsecamente tão destituídos de valor como você. Com os melhores cumprimentos, ... "
Conte com a nossa compreensão, no sentido em que
lamentamos que não possua as qualidades que por acaso a socie- Tal como estas cartas sugerem, a política defendida por Rawls e
dade desejava quando apresentou a sua candidatura. por Dworkin pode ser perturbadora, até mesmo para aqueles que não
Desejamos-lhe melhor sorte para a próxima. defendem os pressupostos da meritocracia que um e outro efectivamente
Com os melhores cumprimentos, ... " põem em causa. Podemos imaginar, por exemplo, uma resposta do seguinte
teor:
"Caro candidato (admitido), "Não pretendo, enquanto indivíduo, possuir (num sentido exclusivo),
Temos o prazer de o informar de que o seu pedido de os atributos de que me vejo dotado, nem deter qualquer pretensão moral
admissão foi aceite. Ainda que não decorra de qualquer esforço sobre os frutos do seu exercício. Reconheço a dívida que tenho, a vários títu-
seu, acontece que possui as características de que a sociedade los, para com os meus pais, família, cidade, tribo, nação, cultura, época his-
necessita neste momento. Por isso, propomo-nos explorar os seus tórica, possivelmente Deus, a natureza e talvez o acaso, pela constituição da
atributos para benefício dei sociedade admitindo-o como estu- minha identidade. Por esta razão, pouco ou nenhum crédito (ou, já agora,
dante de Medicina/Direito. culpa) reivindico por me ter tornado naquilo que sou. É difícil identificar
Esta decisão não constitui qualquer louvor, uma vez que o com precisão quem ou o que é responsável por este ou por aquele aspecto da
facto de possuir as qualidades relevantes é arbitrário do ponto de minha personalidade, se bem que seja, por vezes, uma actividade moral-
vista moral. Deve ser felicitado não no sentido em que mereça ser mente indispensável e que, a partir de determinado momento, se pode tor-
responsabilizado por possuir as qualidades que conduziram à sua nar impossível de concluir. Mas, em todo o caso, concordo que não mereço,
admissão - não merece -, mas apenas no sentido em que o vence- num sentido moral anterior, que me seja oferecida uma qualquer oportuni-
dor de uma lotaria deve ser felicitado. Tem a sorte de se apresentar dade particular. Desde logo, porque não possuo por direito próprio as quali-
com as características certas no momento certo e, caso opte por dades que me tornariam elegível, e em segundo lugar porque, mesmo que as
aceitar a nossa oferta, terá por fim direito aos benefícios que possuísse, isso não me daria o direito a que a regulamentação social em vigor
decorrem do facto de ser usado desta maneira. Neste sentido, tem premiasse um qualquer conjunto particular de atributos ou de qualificações
razões para festejar. em vez de outro".
Você, ou mais provavelmente os seus pais, poderão ser ten- A partir deste raciocínio parece ser razoável supor que aqueles que à
tados a festejar no sentido em que possam entender esta admissão primeira vista poderão parecer ser os "meus" atributos são mais correcta-
como um reflexo favorável, se não dos seus dons naturais, pelo mente descritos como sendo nalgum sentido comuns. Uma vez que fui feito
menos dos esforços conscienciosos que desenvolveu para cultivar pelos outros, os quais, de muitas maneiras, continuam a fazer com que seja a
as suas capacidades e ultrapassar os obstáculos que se colocaram pessoa que sou, parece ser correcto perspectivá-Ios a todos, tanto quanto os
às suas actividades. No entanto, o pressuposto de que merece, possa identificar, como participantes nas "minhas" realizações e beneficiá-
nem que seja o carácter superior necessário para o seu esforço, é rios em comum dos benefícios que delas possam decorrer. Na medida em
igualmente duvidoso, na medida em que o seu carácter também que este sentido de participação nas realizações e nos esforços de outros
depende de circunstâncias afortunadas de vária ordem relativa- conduz ao auto conhecimento reflectido dos participantes, podemos acabar
mente às quais você não pode reivindicar qualquer crédito. por olhar para nós próprios, ao longo da vasta gama de actividades que
A noção de mérito parece não se aplicar a casos como o seu. desenvolvemos, menos como sujeitos individuados com certas coisas em
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comum, e mais como membros de uma subjectividade mais alargada (no uma perda de competências menor. Enquanto que o argumento de arbitra-
entanto determinada), e ver os demais menos como "outros" e mais como riedade priva sistematicamente o sujeito, enquanto pessoa individual, dos
participantes numa identidade comum, seja ela a família, a comunidade, a seus atributos e das suas posses, deixando o eu desprovido de tal modo de
classe, o povo ou a nação. características empiricamente identificáveis ao ponto de se dissolver numa
De um auto conhecimento tão alargado quanto este decorre como con- abstracção ("A pessoa desapareceu, apenas os seus atributos permanecem"),
sequência que, quando os "meus" atributos ou as minhas perspectivas de a noção de um sujeito de posse mais alargado avança algo em direcção à
vida são mobilizados para o serviço do esforço comum, é provável que veja reconstituição da pessoa e à restituição dos seus poderes. Já que eu não
isto cada vez menos como instâncias em que sou usado para o serviço dos posso ser o dono, ao menos que seja o guardião dos atributos que "aqui"
fins de outros, e cada vez mais como ocasiões em que contribuo para os estão sediados - mais ainda: guardião em nome de uma comunidade da qual
objectivos de uma comunidade que considero ser minha. A justificação do me considero membro.
meu sacrifício, se é que se pode falar de sacrifício num tal contexto, não Nada disto constitui um argumento em favor da discriminação positiva
reside na garantia abstracta de que os outros ganharão mais do que aquilo enquanto tal. Porém, este raciocínio sugere uma questão moral adicional que
que eu perderei, mas antes na noção bem mais estimulante de que através Dworkin terá de solucionar para poder concluir o seu argumento em favor da
dos meus esforços estou a contribuir para a concretização de um certo tipo discriminação positiva. Trata-se da questão de saber como se deverá estabe-
de vida de que eu me orgulho e ao qual a minha identidade se encontra lecer o sujeito de posse relevante, isto é, como identificar aqueles relativa-
ligada. Continuaria obviamente a ser verdade que eu não poderia, enquanto mente aos quais os atributos que eu acidentalmente transporto comigo
indivíduo, reivindicar qualquer crédito pelo facto. de possuir as qualidades deverão com propriedade ser considerados comuns. Por outras palavras, o
relevantes para o esforço comum. Apesar disso, poderia sentir-me orgulhoso utilitarismo é uma ética de partilha. (Neste conspecto, assemelha-se ao prin-
pela minha capacidade de contribuir desta maneira, e esta capacidade, talvez cípio da diferença.) Enquanto tal, tem de pressupor a existência de algum
mais ainda do que os benefícios que eu possa recolher, constituiria um justo laço ou algum vínculo anterior que reúna aqueles cuja satisfação se propõe
motivo para celebrar. maximizar e cujos esforços e expectativas se propõe expandir no processo.
Isto não equivale, obviamente, a dizer que qualquer pretensão sobre De outro modo, torna-se simplesmente uma fórmula para usar algumas pes-
os "meus" recursos, vinda de qualquer quadrante, pode ser descrita soas como meios para o serviço dos fins de outras, uma fórmula que os libe-
desta forma. O alcance dos laços comunitários, por mais expansivos que rais deontológicos se comprometeram rejeitar.
sejam, não deixa de ser limitado. Até mesmo um eu alargado, concebido No entanto, a posição de Dworkin sobre esta questão é na melhor das
em termos da comunidade, tem limites, independentemente do facto de hipóteses ambígua. Por vezes, argumenta como se a concepção de um
os seus contornos serem apenas provisórios. As fronteiras entre o eu e sujeito de posse mais alargado não exigisse uma explicação, isto é, como se,
(alguns) outros vêem-se assim atenuadas na concepção intersubjectiva, mas para assegurar o sucesso de um argumento utilitarista quando uma expecta-
não de forma tão completa que dêem lugar a um sujeito radicalmente tiva individual cede perante um "interesse social mais geral", bastasse que
situado. Os limites que permanecem não são dados pelas diferenças físicas, essa expectativa não se encontrasse protegida sob a forma de um direito.
corporais, entre seres humanos individuais, mas pela capacidade· do eu Nesta interpretação, eu tenho de partilhar os "meus" atributos com a
participar na constituição da sua identidade através da reflexão e, sempre "sociedade como um todo", não por esta sociedade me ter feito naquilo que
que as circunstâncias o permitam, chegar a um autoconhecimento sou, e por isso ser senhora destes atributos e destes dons de uma maneira
expansivo. que eu, em termos individuais, não sou, mas antes no pressuposto, dúbio, de
Outra característica da descrição intersubjectiva de um património que a "sociedade" é o beneficiário residual dos atributos que permanecem e
comum prende-se com o facto de, em última instância, fazer com que a que circulam livremente a partir do momento em que o indivíduo se vê desti-
negação da posse, tal como ·emerge da perspectiva individualista, acarretar tuído de posses. Ora, isto equivale a assumir, sem a apresentação de um
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argumento que o justifique, que, nalgum sentido indeterminado, a "socie- relevante'. Porém, na medida em que Dworkin pretende invocar a nação
dade" (no limite, toda a humanidade?) detém um direito anterior sobre todos como sendo o sujeito relevante de posse, falta-lhe ainda demonstrar que
os atributos que não são, de direito, dos indivíduos. Porém, apenas pelo facto assim acontece.
de eu, enquanto indivíduo, não deter um direito privilegiado sobre os atri- Apesar das referências passageiras de Dworkin à nação, tanto ele como
butos que acidentalmente se encontram "aqui", não decorre que todos no Rawls parecem assumir em geral que, a partir do momento em que os direi-
planeta o detenham colectivamente. Não há razão para pensar à partida que tos dos indivíduos se encontrarem devidamente salvaguardados, passará a
o facto de residirem na esfera de jurisdição de uma."sociedade" (ou, quanto a predominar uma pretensão social indeterminada, sem no entanto oferece-
isso, na esfera de jurisdição da humanidade) é menos arbitrário de um ponto rem qualquer explicação da comunidade em causa ou do sujeito de posse
de vista moral. E se a arbitrariedade da localização em mim destes atributos mais alargado exigido por esta concepção. Assim, Dworkin fala da necessi-
os toma inelegíveis para servirem os meus fins, não parece existir qualquer dade de se servir "os interesses sociais mais gerais", bem como de fornecer
razão óbvia para que a arbitrariedade da sua localização numa sociedade "aquilo de que a sociedade mais geral mais necessita" (1977b: 15). E Rawls
particular não os tome igualmente inelegíveis para servirem os fins dessa escreve acerca da necessidade de se encontrar mecanismos distributivos
sociedade. capazes de assegurar "o interesse comum" [245 (311)], e de servir "objectivos
Noutros momentos, Dworkin argumenta como se afinal tivesse em sociais anteriores e independentes" [247 (313)].
mente um sujeito de posse determinado, a saber, o Estado-nação. Escreve, Podemos sumariar as dificuldades encontradas com este pressuposto
por exemplo, que "a sociedade americana é na actualidade uma sociedade da seguinte forma. Primeiro: "a sociedade como um todo" ou "a sociedade
c~ente do tema racial", e que o objectivo da discriminação positiva se prende mais geral" são coisas que não existem. Não se concebe qualquer comuni-
com "a redução do nível em que o tema racial é uma preocupação para a dade "última", perspectivada em abstracto, cuja preeminência muito sim-
sociedade norte-americana". Programas como estes, argumenta, constituem plesmente se imponha sem argumento ou explicação adicional. Todos nós
"uma via eficaz para se atacar um problema nacional" [itálicos nossos] nos movimentamos num número indefinido de comunidades, umas mais
(1977b: 11-12). No entanto, se aquilo que Dworkin se propõe defender é que, inclusivas do que outras, cada uma delas colocando exigências diferentes
para efeitos da determinação da admissão às universidades e das perspecti- sobre a nossa lealdade, e não temos como determinar à partida qual delas é a
vas de carreira, os propósitos da comunidade nacional devem predominar sociedade ou a comunidade· cujos propósitos devem governar a disposição
sobre os individuais, então ele terá de dizer bastante mais acerca das razões de um qualquer conjunto particular de atributos e de dons.
pelas quais isso deve acontecer. E, para além disso, uma parte do seu argu- Segundo: caso "a sociedade como um todo", perspectivada em abs-
mento terá de oferecer alguma prova da responsabilidade danação pelo tracto, não exista, então, dificilmente alguma sociedade particular, definida
cultivo das qualidades e dos atributos que ela agora se propõe recrutar, bem de forma arbitrária, poderá deter alguma pretensão mais sólida sobre qual-
como da sua competência para desencadear o auto conhecimento reflectido quer conjunto de atributos do que o indivíduo no qual estes se encontram
por parte dos seus membros enquanto alicerce da sua identidade comum, acidentalmente a residir. Seguramente, a localização desse conjunto de atri-
bem como da sua capacidade de assegurar, se não o acordo, pelo menos a butos na dependência de uma comunidade definida de forma arbitrária não
lealdade de todos para com os propósitos que emergirão de uma tal identi- pode ser menos arbitrária, do ponto de vista moral. Em particular, não
dade. Numa palavra, necessitaria de demonstrar que, de entre as várias
comunidades e formas de identidade que existem, a nação é aquela que, com I Poderá encontrar-se uma exposição esclarecedora do conceito de nação enquanto

toda a propriedade, detém o direito de definir os propósitos comuns e utili- comunidade em Beer (1966). O autor estabelece uma clivagem entre a centralização do governo e
o processo de integração nacional, assinalando que, apesar de serem interdependentes, estas
zar os atributos comuns necessários para os implementar, pelo menos no
duas tendências nem sempre coincidem necessariamente. No quadro da integração nacional, a
que diz respeito à educação e à escolha de certas carreiras. Pode dar-se o nação "torna-se mais comunidade", aprofundando-se o sentido em que os seus membros
caso, ou não, de a nação americana constituir uma comunidade no sentido partilham uma vida comum (1966: 80-82).
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parece existir qualquer razão óbvia para que os "interesses sociais mais Três concepções de comunidade
gerais", enquanto tais, se sobreponham sempre aos interesses mais locais ou
particulares, apenas em virtude do seu carácter geral. A este respeito, é inte- Na avaliação da teoria da comunidade de Rawls, toma-se útil recordar
ressante verificar que, nas suas versões originais, teológicas (como nas de que o individualismo da sua concepção se reporta ao sujeito e não ao objecto
Tucker e de Paley) , o utilitarismo nos oferecia, de facto, uma concepção das suas motivações. Os interesses que as partes na posição original pro-
explícita do sujeito último de posse - a saber Deus -, cujos propósitos pre- curam satisfazer não são interesses no eu, mas interesses de um eu, mais
dominavam necessariamente sobre os interesses mais locais (MacIntyre concretamente os interesses de um eu antecipadamente individuado. Ao
1967; 462-466). No entanto, a partir do momento em que se assiste à seculari- identificar o individualismo da sua teoria com o sujeito e não com o objecto
zação do utilitarismo, o sujeito relevante de posse deixa de ser uma questão dos desejos, Rawls crê poder evitar a dependência de uma teoria particular
resolvida, contexto em que, para se poder afirmar a precedência de uma das motivações humanas e muito em particular do pressuposto comum a
gama de interesses sobre outra, nos vemos forçados a esperar por uma con- algumas teorias liberais tradicionais de que o homem é por natureza um ser
cepção adicional do sujeito relevante ou da comunidade, bem como pelo interesseiro e egotista. Derivar a teoria da justiça sem referência a quaisquer
fundamento das suas pretensões. motivações ou concepções particulares do bem toma-se essencial para o seu
Por último, a não ser que seja possível identificar a comunidade rele- projecto deontológico, possuindo ainda a consequência adicional, segundo
vante no quadro da qual os "meus" atributos são devidamente partilhados e Rawls, de permitir uma teoria da comunidade mais forte do que aquela que
estabelecer as suas credenciais, o argumento de Dworkin em favor da dis- se encontra disponível a partir dos pressupostos individualistas tradicionais.
criminação positiva e a noção de Rawls de um património comum produzem Na medida em que se deixa em aberto o conteúdo das motivações, toma-se
o efeito seja de contradizerem a injunção central de Kant e do próprio Rawls possível supor que os indivíduos podem perseguir objectivos sociais ou
contra a utilização de alguns como meios para o serviço dos fins de outros, comunitários ao mesmo tempo que perseguem fins meramente privados,
seja de evitarem esta contradição através do abrandamento completo das especialmente no quadro de uma sociedade governada por um meca-
fronteiras entre o eu e o outro, contexto em que cairão num sujeito radical- nismo de reciprocidade que funciona como garante e catalisador da sua
mente situado. auto-estima.
Tendo apresentado uma ilustração prática do modo como, na ética
deontológica, a justiça exige a noção de comunidade para a sua própria coe- "Não há qualquer razão que leve a que uma sociedade bem
rência, e não apenas para demonstrar a sua "congruência" ou a sua "estabili- organizada deva encorajar em primeiro lugar valores individua-
dade", cumpre-nos agora verificar se a concepção de Rawls é capaz de a listas, se com isto se quiser apontar para modos de vida que con-
fornecer. Rawls escreve que "a teoria da justiça como equidade reserva um duzem os indivíduos a procurar o seu próprio caminho e a não
lugar central para o valor da comunidade", reivindicando a este propósito apres,entarem qualquer cuidado pelos interesses dos outros (se
uma semelhança com a vertente idealista de Kant que, sob outros aspectos, bem que respeitando os seus direitos e as suas liberdades). Nor-
rejeita [213 (264)]. A questão está em saber se a teoria de comunidade apre- malmente, esperar-se-ia que a maioria das pessoas pertençam a
sentada por Rawls é capaz de completar os princípios da justiça, tal como se uma associação ou outra e, neste sentido, partilhem pelo menos
toma necessário, bem como se é capaz de dar conta da virtude do conceito alguns objectivos comuns" (Rawls 1975: 550).
de comunidade em geral.
Ao discutir a "ideia de união social" (secção 79), Rawls apresenta
uma distinção entre dois sentidos de "bem da comunidade". O primeiro
baseia-se em pressupostos individualistas convencionais que aceitam,
mesmo na ausência de razões objectivas para tai, que as motivações dos
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agentes se baseiam no seu interesse próprio. Neste contexto, a comunidade é No entanto, nem a concepção instrumental, nem a sentimental pare-
perspectivada inteiramente em termos instrumentais. Trata-se de uma cem ser capazes de dar origem à teoria forte de comunidade aparentemente
noção que evoca a imagem de uma "sociedade privada", na qual os indiví- exigida pelos argumentos de Rawls e de Dworkin. Pelos de Rawls, para salvar
duos olham os dispositivos sociais como sendo um fardo necessário e a noção de património comum, posta em causa no princípio de diferença.
cooperam apenas por causa dos seus propósitos privados. Partindo desta Pelos de Dworkin, para definir a comunidade relevante em que se procede à
concepção instrumental, Rawls identifica a sua própria perspectiva de partilha, no quadro do seu argumento em favor da discriminação positiva.
comunidade, nos termos da qual aqueles que nela participam possuem Como vimos, para se completarem, um e outro destes argumentos parecem
determinados "fins últimos partilhados" e consideram o projecto de coope- reclamar um sujeito de posse mais amplo, capaz de apresentar uma preten-
ração como sendo um bem em si mesmo. Os seus interesses não são unifor- são legítima sobre os atributos necessários para o cumprimento dos seus
memente antagónicos. Pelo contrário, nalgumas instâncias complementa- propósitos, por um lado, sem usar algumas pessoas como meios para o ser-
m-se e sobrepõem-se. Uma vez que Rawls não assume à partida que somos viço de outras e, por outro, sem cair num sujeito radicalmente situado.
todos dados exclusivamente a motivações egoístas,· não exclui a possibilidade Porém, pressupondo a individuação anterior do sujeito, nem a concepção
de alguns poderem ter em consideração o bem-estar dos outros, e procura- instrumental de comunidade, nem a sentimental nos conseguem oferecer
rem promovê-lo. "Não necessitamos de supor que [... ] as pessoas nunca uma via através da qual possamos redesenhar as fronteiras do sujeito.
fazem sacrifícios substanciais pelos outros, já que, movidas pelos laços da Nenhuma delas parece ser capaz de afrouxar as fronteiras entre o eu e o
afeição e do sentimento, tal ocorre com frequência. Mas tais acções não são outro sem produzir um sujeito radicalmente situado.
exigidas, em nome da justiça, pela estrutura básica da sociedade" [149 (178)]. Para o conseguir, temos de desenvolver uma concepção de comuni-
Uma e outra das concepções de comunidade que Rawls apresenta são dade çapaz de penetrar no eu de forma ainda mais profunda do que a
individualistas, se bem que o modo em que o são varie de um caso para o permitida pela própria concepção sentimental. Apesar de Rawls admitir que
outro. A explicação instrumental é individualista na medida em que se pre- o bem da comunidade pode ser interno na medida em que se compromete
sume que os sujeitos da cooperação sejam governados apenas por motiva- com os objectivos e os valores do eu, não o pode fazer de forma tão completa
çoes de interesse próprio, e o bem da comunidade reside exclusivamente nas ao ponto de ir para além das motivações e tocar o respectivo sujeito. O bem
vantagens que os indivíduos derivam da cooperação na prossecução dos da comunidade não pode chegar tão longe, uma vez que, a ser assim, isso
seus fins egoístas. Por outro lado, a explicação de Rawls é individualista no equivaleria a violar a prioridade do eu sobre os seus fins, a negar a sua indivi-
sentido em que presume a individuação anterior dos sujeitos de cooperação, duação anterior, a inverter a prioridade da pluralidade sobre a unidade, e a
cujas motivações concretas podem incluir objectivos altruístas, tal como permitir que o bem participe na constituição do eu, tarefa que, na pers-
objectivos egoístas. Como resultado, para Rawls o bem da comunidade con- pectiva de Rawls, está reservada ao conceito do justo. ("A unidade essencial
siste não apenas nos benefícios directos da cooperação, mas também na do eu está já prevista pelo conceito do justo" [563 (425)]. )
qualidade das motivações e nos laços sentimentais que possam servir esta Uma teoria de comunidade cujo alcance se estenda até ao sujeito, bem
cooperação, fazendo com que saiam do processo robustecidos. Enquanto como ao objecto das motivações, não seria individualista, nem no sentido
que, na primeira concepção, a comunidade é inteiramente externa aos convencional, nem no de Rawls. Assemelhar-se-ia à concepção de Rawls na
objectivos e aos interesses dos indivíduos que a integram, já na perspectiva medida em que o sentido de comunidade se manifestaria nos objectivos e
de Rawls ela é, em parte, interna aos sujeitos, na medida em que atinge os nos valores dos participantes - como sentimentos fraternais e de amizade,
sentimentos e as emoções daqueles que se encontram envolvidos no dispo- por exemplo -, mas demarcar-se-ia dela na medida em que a comunidade
sitivo de cooperação. Por contraste com a concepção instrumental de comu- descreveria não apenas um sentimento, mas um modo de autoconheci-
nidade, podemos, portanto, descrever a que é proposta por Rawls como mento, em parte constitutivo da identidade do agente. Nesta perspectiva
sendo a concepção sentimental. forte, dizer que os membros de uma sociedade se encontram irmanados não
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equi~ale simplesmente a afirmar que muitos deles têm sentimentos e perse- tantes e por vezes infelizes, como se traindo os compromissos contraditórios
guem objectivos comunitários, mas antes que concebem a sua identidade - o em que se encontram empenhadas. Atributos descritos como sendo
sujeito e não apenas o objecto dos seus sentimentos e das suas aspirações - , "comuns" numa passagem passam a "colectivos" noutra. A concepção
tal como definida em certa medida pela comunidade da qual fazem parte. segundo a qual os homens "partilham os destinos uns dos outros" é poste-
Para eles, o conceito de comunidade descreve nãO apenas aquilo que pos- riormente redescrita como princípio de "reciprocidade" e de "benefício
suem enquanto concidadãos, mas também aquilo que eles são; não uma mútuo". Aqueles que, numa passagem, são apresentados como "partici-
inter-relação que escolheram manter (tal como se verifica numa associação pando na natureza uns dos outros", noutra são descritos de forma mais dis-
voluntária), mas uma ligação que descobrem; não um mero atributo, mas tanciada como desenvolvendo "actividades associativas". E aqueles que num
um elemento constituinte da sua identidade. Por contraste com as concep- momento são capazes de ultrapassar a sua parcialidade e realizar a sua
ções instrumental e sentimental de comunidade, poderíamos apelidar esta natureza unicamente em comunidade, mais tarde vêem o seu imperativo
perspectiva forte de "concepção constitutiva". comunitário reduzido à mera probabilidade de aderirem a uma ou a mais
Apesar de Rawls resistir à concepção constitutiva de comunidade e à associações e, "neste sentido, deterem pelo menos alguns fins colectivos".
teoria do sujeito que lhe está subjacente, já vimos como a linguagem que E, talvez na figura de retórica manifestamente mais indeterminada, a certa
adopta parece, por vezes, transportá-lo para além da concepção sentimental, altura uma comunidade é descrita como consistindo no facto de "pessoas
num exercício quase de reconhecimento implícito daquilo que temos vindo diferentes possuindo capacidades semelhantes ou complementares poderem
a defender, a saber, de que a coerência da sua teoria da justiça depende em coope~ar, por assim dizer, na realização da sua natureza comum ou seme-

última instância precisamente da dimensão intersubjectiva que ele rejeita lhante" [itálicos nossos, 523 (396)].
oficialmente. Na apresentação do princípio de diferença é-nos dito que a Ora, tal como nos sugere a distinção entre as concepções sentimental e
distribuição de talentos naturais pode ser descrita melhor quando concebida constitutiva de comunidade; nem sempre é possível captar o vocabulário
no contexto de um "acervo comum", e que na teoria da justiça como moral da comunidade no sentido forte a partir de uma concepção que "na
razoabilidade (equidade, fairness) os homens acordam em "partilhar os des- sua base teórica é individualista". Assim, nem sempre se pode traduzir
tinos uns dos outros". No discussão da união social, os laços entre pessoas "comunidade" por "associação", sem perdermos algo no processo, nem
empíricas, corpóreas, surgem ainda mais atenuados. Afirma-se que os seres "vínculo" por "relação", "partilhados" por "recíprocos", "participação" por
humanos "partilham os seus objectivos finais", e que participam através da "cooperação", nem aquilo que é "comum" pelo que é "colectivo". Apesar de
comunidade "na realização da totalidade das qualidades naturais dos o argumento de Rawls a favor da prioridade da pluralidade sobre a unidade
outros". O que nos conduz, então, "à noção da comunidade da humani- poder normalmente parecer reportar-se, com coerência, ao segundo ele-
dade", cujas fronteiras, somos convocados a imaginar, se estendem através mento de cada um destes pares, o mesmo não se verifica necessariamente
do tempo e do espaço, "uma vez que aqueles que se encontram muito sepa- em relação aos primeiros. Enquanto que o conceito de atributos "colectivos"
rados pela história e pelas circunstâncias podem, apesar disso, colaborar na implica a existência de legados, dantes detidos em separado, e agora cedidos
realização da sua natureza comum" [399 (527)]. "Apenas em união social o à sociedade como um todo, o mesmo já não se passa necessariamente com o
indivíduo se torna um ser completo", é aqui que "deixamos de ser meros conceito de património "comum". A existência de atributos comuns não
fragmentos" [(529)]. Os membros da comunidade "participam na natureza pressupõe logicamente uma individuação anterior. E, enquanto que o con-
uns dos outros", e "o eu realiza-se nas actividades de muitos eus" [426 (565)]. ceito de "reciprocidade" implica um princípio de intercâmbio, exigindo por
Torna-se difícil determinar com que seriedade devemos ler estas passa- isso uma pluralidade de agentes, a noção de partilha pode sugerir uma soli-
gEms "de ressonância intersubjectiva", em particular pela linguagem metafó- dariedade de tal ordem que dispensa qualquer intercâmbio, como acontece
rica adoptada, pelo facto de as metáforas se encontrarem misturadas. As quando se partilha uma anedota, uma aspiração ou um entendimento. Por
imagens intersubjectivas e individualistas surgem em combinações inquie- outro lado, enquanto que os conceitos de "associação" e de "cooperação"
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tipicamente pressupõem a pluralidade anterior daqueles que se reúnem para dimento. O problema que aqui se coloca não é o da distância que separa o eu
se associarem e cooperarem, os conceitos de "comunidade" e de "participa- dos seus fins, antes decorre do facto de o eu, não estando delimitado à
ção" podem descrever uma forma de vida em que os membros se encontram partida, acabar inundado de propósitos e de fins possíveis, todos inva-
situados em comum "desde o início", contexto em que esta condição comum dindo indiscriminadamente a sua identidade, ameaçando constantemente
que os caracteriza decorre não tanto das relações que estabelecem, mas dos absorvê-la. O desafio para o agente situa-se, então, na identificação dos
vínculos com que se deparam. limites ou das fronteiras tio eu, na distinção do sujeito relativamente à sua
Deste modo parece tornar-se evidente que uma concepção individua- situação e, deste modo, no forjar da sua identidade.
lista, até mesmo no sentido especial que Rawls lhe imprime, não é capaz de Para o sujeito cuja identidade se constitui à luz dos fins que tem já
dar conta do conceito de comunidade no sentido forte exigido tanto por perante si, o agir consiste mais em procurar a auto compreensão do que em
Rawls como por Dworkin. Desde logo, na medida em que, para uma concep- convocar a vontade. Ao contrário da capacidade de escolha, que permite ao
ção individualista, as fronteiras do sujeito são-lhe fornecidas antecipada- eu penetrar para além dele próprio, a capacidade de reflexão permite-lhe
mente, sendo em última instância fixas. No entanto, Rawls e Dworkin voltar-se sobre ele mesmo, de modo a indagar sobre a sua natureza constitu-
necessitam de uma concepção capaz de identificar um sujeito de posse mais tiva, inspeccionar as suas diversas ligações e reconhecer as pretensões de
amplo, uma concepção na qual o sujeito está autorizado a participar na cada uma delas, identificar os laços - ora expansivos, ora apertados - entre o
constituição da sua identidade. Ora, e tal como teremos a oportunidade de eu e o outro, de modo a atingir uma autocompreensão menos opaca, se bem
verificar já de seguida, não é possível obter uma tal concepção a partir de que nunca inteiramente transparente, uma subjectividade menos fluida, se
pressupostos deontológicos. bem que nunca definitivamente fixa, e assim participar gradualmente na
Para que um sujeito possa ter um papel na definição dos contornos da constituição da sua identidade no decurso de toda uma vida.
sua identidade torna-se necessário que detenha uma certa faculdade de Ora, na medida em que a capacidade de reflexão sugerida pela concep-
reflexão. A vontade, por si mesma, não é suficiente. O que se exige é uma ção cognitiva oferece a possibilidade de se alcançar os limites do eu, sem os
certa capacidade de auto conhecimento, uma capacidade para aquilo que perspectivar como sendo fornecidos à partida, ela apresentar-se-á precisa-
denominamos de agir no sentido cognitivo. Isto mesmo se pode constatar ao mente como aquela característica exigida pela noção de "sujeito mais alar-
recordar as duas concepções do agir e da posse abordadas na nossa recons- gado de posse" de Rawls, para evitar que o eu se dissolva num sujeito
trução inicial da teoria do sujeito de R,awls. A primeira, que corresponde à radicalmente situado. Na verdade, a partir do momento em que se questio-
perspectiva de Rawls, toma as fronteiras do eu como sendo-lhe dadas e rela- nar o pressuposto de individuação anterior do sujeito, a situação em que o
ciona o eu com os seus fins, através do agir no sentido voluntarista, como um seu se encontra aproximar-se-á da de privação proposta pela concepção
sujeito de vontade se situa face aos objectos que elege. Esta dimensão do agir cognitiva, nos termos da qual a maior ameaça para o agir não é a distância
depende da faculdade da vontade, na medida em que é a vontade que per- que separa o eu dos seus propósitos e fins, mas antes a superabundância de
mite ao eu prolongar-se para além dele próprio, transcender os laços fixados objedivos aparentemente indispensáveis e que só um auto-exame sóbrio
à partida, alcançar os fins que poderá vir a possuir e segurá-los, como sempre poderá ser capaz de separar e seleccionar.
tem de se verificar, no seu exterior. Porém, na epistemologia moral de Rawls, o alcance da reflexão apre-
Por contraste, a segunda concepção tomou as fronteiras do eu como sentar-se-á seriamente limitado. Nela, o auto conhecimento, no sentido rele-
encontrando-se abertas, concebendo a identidade do sujeito como sendo o vante, não parece ser uma possibilidade, na medida em que, por força de um
produto, e não a premissa, do seu agir. Neste contexto, o agir relevante não princípio de individuação anterior, os vínculos que definiria nos são dados à
assume uma dimensão voluntarista, mas cognitiva. O eu alcança os seus fins, partida, de forma não reflectida, de uma vez por todas. Porém, assim que
não por escolha, mas por reflexão, posicionando-se como um sujeito de estes vínculos se desintegrarem, não haverá nada para os substituir, desde
conhecimento (ou de indagação) perante o objecto do seu (auto)enten- logo na medida em que, para um sujeito como o de Rawls, a questão moral
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paradigmática não é "quem sou eu?", uma vez que se considera que a res- Com o bem passa-se algo de diferente. Neste caso, cada pessoa é livre
posta a esta questão é evidente, por si mesma, mas antes "que fins devo eu de escolher por si, livre para adoptar a concepção do bem que lhe aprouver.
eleger?", e esta é uma questão dirigida à vontade. O sujeito de Rawls emer- Coisas diferentes serão boas para pessoas diferentes e, sujeito apenas aos
girá, assim, epistemologicamente empobrecido naquilo que diz respeito ao constrangimentos impostos pela justiça, cada um "é livre para planificar a
eu, e conceptualmente mal equipado para poder proceder ao tipo de auto- sua vida como bem entender" [446 (342)]. Enquanto se assume a existência
-reflexão capaz de ir para além das suas preferências e dos seus desejos e de de uma única "concepção correcta da justiça a partir de um ponto de vista
contemplar, e por isso de redescrever, o sujeito que os apresenta. filosófico" [446 (342)], a que todos têm de aderir, não se perspectiva qualquer
Toma-se claro, pelo menos, que a questão da comunidade conduz concepção correcta do bem a partir de um ponto de vista illosófico compará-
naturalmente à questão da reflexão e que, para se poder aferir o papel da vel, e portanto cada um é livre de desenvolver a sua.
reflexão no projecto de Rawls, precisamos de examinar com maior detalhe a Temos aqui uma ilustração adicional da prioridade do justo sobre o
sua teoria do agir, isto é, a sua noção de como o eu atinge os seus fins. Tive- bom, tanto na dimensão moral como na epistemológica. A prioridade moral
mos a oportunidade de constatar que, para Rawls, o eu atinge os seus fins reside no facto de os princípios da justiça delimitarem as concepções do bem
escolhendo-os, ou, de forma mais elaborada, o eu está para os seus fins como que os indivíduos podem optar por procurar realizar. Sempre que os valores
um sujeito de vontade está para os objectos que elege, e descrevemos esta de uma pessoa colidirem com a justiça, é a justiça que prevalece. Tal como
capacidade de escolha como agir no sentido voluntarista. Mas, em que Rawls reconhece repetidamente, os princípios da justiça não são compatíveis
consiste exactamente esse momento de eleição, e que papéis, se alguns, é com todos os planos de vida que se possa conceber, e aqueles que não se
que nele estão reservados para a reflexão? adequarem a ela terão de ser rejeitados.

"N a teoria da justiça como equidade o conceito de justo é


o agir.e o papel da reflexão anterior ao de bem. Contrariamente ao que sucede com as teorias
teleológicas, algo é bom apenas se estiver de acordo com as for-
Para Rawls, as noções de agir e de fins caem sob a alçada da concepção mas de vida que sejam compatíveis com os princípios da justiça
do bem. Tal como o justo, também o bom é concebido de forma volunta- que j á possuímos" [396 (305)].
rista, com base numa escolha. Do mesmo modo que os princípios do justo
são o produto de uma escolha colectiva na posição original, também "Na verdade, até os projectos de vida racionais que determi-
as concepções do bem decorrem das escolhas individuais feitas no mundo nam o que é bom para os seres humanos, aquilo a que podemos
real. chamar os valores da vida humana, estão submetidos aos princí-
No entanto, surge aqui uma diferença importante. Enquanto que quer o pios da justiça" [398 (307)].
justo, quer o bom, se fundamentam numa escolha, as condições especiais
(isto é hipotéticas) em que se procede à "escolha" do justo implicam que esta "A nossa forma de vida, quaisquer que sejam as circunstân-
não é uma tarefa para pessoas concretas. Aquilo que é considerado justo, ou cias particulares em que nos encontramos, deve sempre confor-
correcto, não é algo que tenhamos liberdade para escolher, uma vez que os mar-se com os princípios da justiça que são determinados de
princípios da justiça são aplicáveis a partir do m.omento em que o véu de forma independente" [449 (344)].
ignorância é levantado, isto é, antes de se poder proceder a qualquer escolha
real. Uma vez que são antecipadamente derivados, os princípios da justiça "A estes princípios é atribuída, então, precedência absoluta,
não se encontram sujeitos ao nosso agir - eles aplicam-se, quer queiramos, de forma a que eles regulem as instituições sociais sem discussão e
quer não. cada um dos sujeitos estabelece os seus projectos em conformi-
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dade com eles. Os projectos que os violem têm de ser revistos" Contudo, a partir do momento em que a precedência do justo se encontre
[565 (426)]. assegurada, deixam de se colocar quaisquer objecções à prossecução de con-
cepções do bem manchadas por contingências e arbitrariedades. Os princí-
"Os desejos e as aspirações [dos homens] são limitados desde pios da justiça domesticam eficazmente as concepções desta natureza,
o início pelos princípios da justiça, os quais especificam os limites abalizando-as com segurança.
a respeitar pelos sistemas de objectívos de cada um. [... ] A priori-
dade da justiça explica-se, em parte, pela afirmação de que os "Não há objecção ao facto de se submeterem os projectos
interesses que obriguem à violação da justiça são destituídos de racionais a estas contingências, dado que os princípios da justiça
valor. Uma vez que não possuem qualquer mérito, em primeiro foram já escolhidos e limitam o· conteúdo desses projectos, os
lugar, não conseguem sobrepor-se às suas pretensões" [31 (47)]. objectivos que encorajam e os meios a que recorrem" [449 (343)].

A prioridade do justo sobre o bom proporciona um pano de fundo "Assim, as características arbitrárias dos projectos de vida
meta-ético à noção liberal familiar de que, independentemente da intensi- não afectam estes princípios, nem a forma como a estrutura
dade com que são assumidas, as preferências e as convicções da maioria não básica deve ser organizada. A indeterminação na noção de racio-
são capazes de se sobrepor a uma reinvindicação de direitos individuais. nalidade não se traduz em exigências legítimas que os homens
Numa ética deontológica, as convicções da maioria mais não fazem do que possam impor uns aos outros. [... ] Dado que as exigências mútuas
reflectir concepções particulares do bem. Enquanto tal, não podem preten- dos homens não são afectadas, a indeterminação é relativamente
der ser as concepções "correctas dum ponto de vista filosófico", mas tão-só inócua" [449,564 (343,425)].
as preferidas de um ponto de vista maioritário, e nenhuma mera preferência
se pode sobrepor às exigências da justiça. A prioridade do justo pode, por fim, ser perspectivada em termos da sua
derivação anterior e da necessidade de algum pano de fundo, em última
"As convicções intensas da maioria, se forem efectivamente instância "não escolhido", como condição prévia da escolha no que diz res-
meras preferências sem qualquer apoio nos princípios da justiça peito a concepções do bem. Se os princípios da justiça constituíssem, tam-
anteriormente estabelecidos, não têm à partida qualquer peso. bém eles, matéria de escolha, então "a liberdade de escolha que a justiça
A satisfação destes sentimentos não tem qualquer valor que possa como equidade assegura aos indivíduos e aos grupos dentro do quadro das
ser contraposto às exigências de igual liberdade para todos. [... ] instituições justas" [447 (342)] deixaria de estar garantida. Torna-se necessá-
Contra estes princípios, nem a intensidade do sentimento, nem o rio que alguma coisa permaneça para além da possibilidade de escolha (aba-
facto de ele ser partilhado pela maioria tem qualquer relevância" lizando-a), para que a possibilidade de escolha em si mesma esteja
[450 (344)]. assegurada. Esta é a prioridade epistemológica que a ética deontológica
transforma numa prioridade moral2 • Assim, a moralidade do justo, que
Outro modo de perspectivar o contraste entre o justo e o bom será garante a liberdade de escolha dentro das balizas que estabelece, não pode
recordarmos que o bem, tanto individual como colectivo, inclui como ingre-
dientes várias contingências que, de um ponto de vista moral, são arbitrárias,
enquanto que o justo se encontra livre de tais arbitrariedades. A necessidade, 2 Compare-se com o argumento de Kant na dedução transcendental de que, subjacente a

sublinhada por Rawls, de regulamentar a distribuição de oportunidades e de todo o conhecimento empírico e como condição a priori para o mesmo, encontramos
necessariamente os conceitos dos objectos em geral. "A validade objectiva das categorias a priori
benefícios de um modo que, de um ponto de vista moral, não seja arbitrário,
repousa, portanto, no facto de que, naquilo que diz respeito à forma do pensamento, apenas
sugere-nos pelo menos uma razão pela qual o justo tem de ser anterior. através delas a experiência se tornar possível" (Kant 1781: 126).
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ser ela mesma exposta a qualquer escolha que a possa desafiar ou restringir, Vimos que a escolha dos fins se encontra limitada desde o início pelos
uma vez que a força moral de um tal desafio em nenhum caso atingiria a princípiÇls da justiça antecipadamente definidos. Porém, a fim de analisar a
força moral do quadro dentro do qual havia sido concebida. Tal como vimos concepção de escolha de Rawls e aferir o papel nela desempenhado pela
na nossa discussão da teoria contratualista, aquilo que sanciona este quadro, reflexão, se algum, torna-se necessário conhecer, em maior detalhe, como é
ao contrário da sanção dos objectivos e dos valores que emergem no seu que os constrangimentos da justiça se fazem sentir, bem como a maneira
seio, não é uma mera esc01~a, nem sequer um contrato, mas um acordo exacta em que integram a deliberação do agente. Estarão os constrangi-
hipotético forjado em circunstâncias especiais cuja equidade é estabelecida mentos da justiça de algum modo inseridos no processo de deliberação de tal
de forma independente. forma que, desde logo, apenas os desejos justos ou as concepções correctas
O aspecto epistemológico da prioridade do justo faz lembrar a priori- do bem conseguem emergir, ou será que o agente forma valores e objectivos
dade paralela do eu sobre os seus fins. Em ambos os casos, exige-se como baseados em determinados desejos injustos, apenas para os suprimir na
requisito prévio para a escolha a existência de um quadro "não escolhido" e prática ou para os ignorar a partir do momento em que se torna claro que
dado anteriormente. Do mesmo modo que, a fim de assegurarem a possibili- violam a justiça?
dade de escolha em matéria de concepções do bem, os princípios da justiça Rawls exprime-se por vezes como se os princípios da justiça enformas-
têm de ser dados anteriormente (e por isso encontrar-se para além da esco- sem a concepção do bem de uma pessoa, até mesmo no momento em que
lha), também os limites do eu têm de lhe ser fornecidos antecipadamente essa concepção é formulada. "Ao traçar os seus projectos de vida, e ao decidir
(permanecendo, assim, igualmente para além da escolha), de modo a garan- sobre as suas aspirações, os sujeitos levam em conta estas limitações. [... ] Os
tir o agir do sujeito, a sua capacidade de eleger os seus fins. Poderá parecer seus desejos e aspirações são limitados desde o início pelos princípios da
que os limites impostos pela justiça constituem uma restrição indevida sobre justiça, os quais especificam as balizas a respeitar pelos sistemas de objecti-
a escolha, na medida em que as pessoas não conseguem participar na res- vos de cada um" [31 (47)]. Noutros momentos, Rawls parece inclinar-se para
pectiva constituição, podendo apenas optar dentro do quadro que eles lhes a segunda concepção, como, por exemplo, quando argumenta que na justiça
oferecem. Na realidade, porém, esses limites asseguram a igual liberdade de como equidade as pessoas "concordam implicitamente [... ] em conformar a
cada um para seleccionar os seus fins por si próprio, contra os caprichos da sua concepção do bem às exigências colocadas pelos princípios da justiça, ou
opinião pública que um dia poderá preferir uma opção diferente. De igual pelo menos, a não fazerem exigências que os violem directamente" [itálicos
modo, se bem que os limites do eu possam parecer uma restrição indevida nossos, 31 (46)].
sobre o agir, na medida em que o eu não pode participar na sua constituição, Se bem que não esteja claro se a intervenção da justiça tem lugar no
eles são, na realidade, um requisito prévio do agir, na medida em que são momento em que eu selecciono os meus planos de vida ou apenas mais
eles que, por assim dizer, mantêm o mundo ao largo, e fornecem ao sujeito o tarde, no momento que procuro concretizá-los, torna-se manifesto que
distanciamento de que necessita para escolher por si próprio. Eles preservam nenhuma destas duas concepções introduz um elemento de auto-reflexão do
para o eu a capacidade de escolha contra os caprichos das circunstâncias tipo de que agora nos ocupamos. Uma e outra permitem que o justo não
que, de outro modo, o absorveriam. A noção de que os princípios da justiça, determine por inteiro o meu bem, e que a minha concepção do bem, mesmo
tal como os limites do eu, fornecem uma base para a escolha que não é, ela que consignada a um espaço delimitado, continue, no entanto, a ser algo que
própria, escolhida, não é uma contradição, mas um pressuposto necessário me cabe a mim eleger. Ao chegar a este ponto, Rawls introduz mais um con-
para a existência de um sujeito capaz de escolher. Neste conspecto poderá junto de considerações de modo a estreitar a nossa opção, certos "princípios
comparar-se às noções paralelas que percorrem a concepção deontológica, de cálculo", como lhes chama, que em termos gerais equivalem aos princí-
incluindo as de um sujeito de posse que não é também ele possuído, de uma pios de racionalidade instrumental. Estes princípios recomendam, por
base para o mérito que não é também ela merecida, e um fundamento do exemplo, que eu escolha mais, em vez de menos meios eficazes para a con-
contrato que não é também ele contratual. cretização dos fins que eleger, um projecto mais inclusivo, em vez de menos,
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isto é, um projecto que me ofereça maiores e não menores probabilidades de o relato que Rawls nos apresenta sobre o modo como escolhemos
sucesso, etc. Rawls reconhece, porém, que, até mesmo quando complemen- p~recerá confirmar o espaço limitado ocupado pela reflexão na sua concep-
tados por vários princípios adicionais de escolha racional, os princípios de çao. Se bem que se afirme que os projectos de vida ou as concepções do bem
cálculo "não bastam para permitir a ordenação de projectos" [416 (320)], e mais apropriados a uma pessoa particular são "o resultado de uma reflexão
que, perspectivados em conjlmto, os constrangimentos da justiça e a instm- cuidadosa", torna-se manifesto que os objectos desta reflexão estão limita-
mentalidade racional não são suficientes para nos conduzir a uma única dos a dois factores. Em primeiro lugar, aos vários projectos de vida alternati-
escolha precisa. A partir do momento em que estes princípios se esgotarem, vos ~ às suas possíveis consequências relativamente à concretização dos
temos muito simplesmente que escolher. "Poderemos ser capazes de estrei- desejOS do agente. E, em segundo lugar, aos próprios desejos e aspirações do
tar o âmbito da escolha puramente preferencial, mas não poderemos eli- agente, bem como à intensidade relativa com que se fazem sentir. Em
miná-lo completamente [... ] Chegaremos no entanto a um ponto em que ne~um dos casos a reflexão toma como objecto o eu enquanto sujeito de
teremos apenas de decidir qual o projecto que preferimos sem sermos guia- deseJOS. A reflexão envolvida no primeiro destes factores, calcular as alterna-
dos por princípios adicionais" [552,551 (416) ]. tivas e avaliar as suas consequências possíveis, dificilmente poderá constituir
É neste momento, de acordo com Rawls, que a nossa reflexão tem de em absoluto uma forma de auto-reflexão. Ela dirige-se para o exterior, em
entrar em acção para que possamos determinar, o melhor possível, quais as v~z de para o interior, correspondendo a uma espécie de raciocínio pruden-
coisas que desejamos e até que ponto é que as desejamos, bem como para Clal capaz, em princípio, de ser levado a cabo com igual sucesso, se não
que possamos fixar, à luz de todos os factos relevantes, os planos provavel- mesmo maior, por um perito do exterior que conhecesse relativamente
mente mais adequados para a concretização desses desejos da forma mais pouco acerca do agente, mas muito acerca das alternativas em causa e dos
completa. tipos de interesses e de desejos que cada uma delas é normalmente capaz de
satisfazer.
"Vou partir do princípio de que, embora os princípios racio- ~a medida em que procede à aferição da intensidade dos desejos, a
nais possam orientar as nossas decisões e estabelecer linhas de reflexao envolvida no segundo caso, volta-se para o interior, mas não por
orientação para a nossa reflexão, na decisão final temos de decidir completo. Ela toma por objectos as aspirações, os desejos e as preferências do
por nós próprios, no sentido em que a escolha muitas vezes eu, mas não o eu em si mesmo. Ela não projecta a sua luz sobre o eu que se
assenta no nosso conhe.cirnento pessoal directo não apenas relati- ergue por detrás das aspirações e dos desejos que passa em revista. Não é
vamente àquilo que desejamos mas também quanto à intensidade capaz de alcançar o eu enquanto sujeito de desejos. Na medida em que, para
desse desejo. Por vezes, não há forma de evitar a àvaliação da Rawls, a faculdade de auto-reflexão se limita à avaliação da intensidade rela-
intensidade relativa dos nossos desejos [416 (320)]. Podemos dizer tiva das aspirações e dos desejos existentes, a deliberação que dela decorre
que o projecto racional para alguém é aquele (entre todos os que não pode indagar sobre a identidade do agente ("Quem sou eu na ver-
estão de acordo com os princípios de cálculo e com outros princí- dade?"), mas apenas sobre os seus sentimentos e as suas emoções ("O que é
pios de escolha racional que tenham já sido adoptados) que ele que na verdade me apetece fazer, ou o que é que eu prefiro?"). Uma vez que
escolheria com racionalidade deliberativa. Trata-se do projecto este tipo de deliberação se restringe à aferição dos desejos de um sujeito cuja
que seria escolhido como resultado de uma reflexão cuidadosa na identidade é fornecida à partida (de forma não reflectida), ela não é capaz de
qual o agente passasse em revista, à luz de todos os factos rele- conduzir à autocompreensão que permite ao agente participar na constitui-
vantes, quais as consequências de pôr em prática esses projectos, ção da sua identidade.
identificando assim as orientações que melhor permitiriam reali- Apesar de Rawls se referir brevemente ao "nosso auto conhecimento
zar os seus desejos mais fundamentais" [417 (320)]. directo" das coisas que desejamos e da intensidade com que as desejámos, o
"autoconhecimento", neste sentido, não parece constituir muito mais do que
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uma consciência das nossas aspirações e dos nossos desejos imediatos. E na se encontrando sujeito a revisão à luz seja da reflexão, seja de qualquer outra
medida em que este auto conhecimento é "directo" no sentido estrito de ser condição do agir. E, em segundo lugar, porquanto o eu de Rawls é concebido
fornecido de forma transparente à nossa consciência, torna-se difícil imagi- como destituído de traços, possuidor apenas de atributos contingentes, que
nar como é que alguma coisa que se assemelhe à deliberação no sentido sustenta sempre a uma certa distância, e assim não há nada no eu para a
corrente alguma vez poderia ter lugar, uma vez que provavelmente sabería- reflexão passar em revista ou apreender. Para Rawls, a identidade do sujeito
mos tudo aquilo que necessitaríamos de saber "num instante", antes que jamais poderá estar em sausa durante os momentos de escolha ou de deli-
qualquer processo reconhecível de deliberação se pudesse desencadear. Mas beração (se bem que os seus objectivos e atributos futuros possam obvia-
até mesmo no caso de o "nosso autoconhecimento directo" permitir alguma mente ser afectados), uma vez que os laços e os limites que o definem se
incerteza para ser esclarecida através da reflexão, aquele que sobressai a encontram sempre para além do agir - tanto na acepção voluntarista como
partir do momento em que essas incertezas se resolverem, não é na verdade na cognitiva - que poderia contribuir para a sua transformação.
o eu no sentido estrito, plenamente distinto, mas apenas os seus acidentes e A distinção entre uma noção de reflexão, tal como a de Rawls, que está
atributos meramente contigentes. limitada aos objectos do desejo, e outra, como a de Taylor, que penetra mais
A diferença entre o tipo de reflexão que incide apenas sobre os desejos fundo de modo a alcançar o sujeito do desejo, corresponde à distinção entre
do agente e aquele outro que se prolonga até ao sujeito dos desejos e explora as concepções sentimental e constitutiva de comunidade anteriormente
a sua identidade corresponde, em parte, à clivagem estabelecida por Charles identificadas. No quadro da concepção sentimental, o bem da comunidade
Taylor na sua concepção do agir humano entre o "avaliador simples" e o encontra-se limitado aos objectivos comunitários e aos sentimentos de
"aferidor forte". No âmago de um e de outro dos elementos desta clivagem sujeitos antecipadamente individuados. Já na concepção constitutiva, o bem
encontramos as imagens de superficialidade e de profundidade. Para Taylor, da comunidade é perspectivado como penetrando na pessoa de forma mais
o "avaliador simples" é reflexivo no sentido mínimo de que é capaz de aferir profunda, de modo a descrever não apenas aquilo que ela sente, mas tam-
cursos de acção e de agir com base nas suas aferições. Porém, a reflexão do bém um modo de auto compreensão parcialmente constitutivo da sua iden-
avaliador simples carece de profundidade na medida em que as suas avalia- tidade, parcialmente responsável pela definição de quem ela é.
ções se limitam ao "sentir" in articulado das alternativas. Já vimos que, para ser coerente, a teoria da justiça de Rawls exige uma
concepção de comunidade no sentido constitutivo, o que, por sua vez, exige
"Enquanto que para o avaliador simples o que está em causa uma noção do agir no sentido cognitivo, e constatamos que a sua teoria do
é a atractividade das diferentes consumações, isto é, daquelas bem não permite nenhuma destas duas noções. Isto põe em causa a teoria da
definidas pelos seus desejos de facto, para o aferidor forte a refle- justiça, ou a teoria do bem, ou uma e outra ao mesmo tempo. Porém, para
xão examina ainda os diferentes modos de vida possíveis do além das dificuldades que colocam à concepção de Rawls no seu todo, as
agente. Enquanto que a reflexão acerca daquilo que nos apetece suas definições limitadas do agir e da reflexão são implausíveis em si mes-
mais, que é tudo quanto um avaliador simples pode fazer ao ava- mas, incapazes de explicar em que pode consistir uma escolha ou uma deli-
liar as nossas motivações, nos mantém, por assim dizer, na perife- beração. Ou pelo menos assim o procurarei demonstrar, através da consi-
ria do processo, já a reflexão sobre o tipo de seres que somos deração do modelo de escolha com que nos deparamos a partir do momento
transporta-nos para o centro da nossa existência como agentes. em que se exclui a reflexão no sentido forte completo.
[... ] Nestesentido, é mais profunda" (1977: 114-115).
o agir e o papel da escolha
Reflectir sobre "o tipo de seres que somos" em vez de sobre o tipo de
desejos que temos não é uma opção para Rawls. Em primeiro lugar, na Como vimos, a teoria do bem de Rawls é voluntarista. Nela, os nossos
medida em que o tipo de seres que somos é-nos dado antecipadamente, não objectivos, valores e concepções fundamentais do bem, somos nós que os
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escolhemos, e fazemo-lo recorrendo ao agir. Na descrição de Rawls, logo que qual o projecto que preferimos" [551 (416)], a "decisão" que o agente tem de
os princípios de escolha racional (isto é, instrumental) se esgotam, "temos, tomar mais não é do que uma estimativa ou um inventário psíquico dos
por fim, que decidir por nós próprios, no sentido em que a escolha muitas desejos e das preferências que ele já detém, e não uma escolha dos valores
vezes assenta no nosso auto conhecimento directo não apenas daquilo que que professaria ou dos objectivos que procuraria alcançar. Tal como no caso
desejamos, mas também da intensidade com que o fazemos.[ ... ] É clara- da escolha "colectiva" ou do "acordo" celebrado na posição original, uma
mente deixada ao agente a decisão sobre aquilo que mais deseja" [itálicos .decisão desta natureza não decide o que quer que seja, a não ser o grau de
nossos, 416 (320)]. Uma vez que os princípios de escolha racional não espe- exactidão com que o agente se apercebeu de algo que já lá se encontrava, no
cificam um plano de vida superior único, "muito fica por decidir. [... ] Chega- caso vertente a forma e a intensidade dos seus desejos preexistentes. Porém,
mos finalmente a um ponto em que temos simplesmente que decidir qual o se assim é, então dir-se-ia que o aspecto voluntarista do agir se desvanece
projecto que preferimos sem podermos contar com qualquer orientação por inteiro.
adicional de princípios. [... ] Podemos limitar o âmbito da escolha puramente Identificar um plano de vida ou uma concepção do bem, obedecendo
preferencial, mas não o podemos eliminar por completo. [... ] É o próprio apenas aos meus desejos e aspirações existentes, equivale a nem escolher
sujeito que tem de tomar esta decisão, tendo em consideração o conjunto das esse plano nem os desejos mas, tão-só, a procurar que aos fins que eu já
suas inclinações e desejos, presentes e futuros" [449, 551, 552, 557 (344,416, detenho correspondam os melhores meios disponíveis para os atingir. De
416,420)]. acordo com esta descrição, os meus objectivos, valores e concepções do bem
Se bem que se torne claro que Rawls descreveria os meus valores e as não são produtos de uma escolha, mas os objectos de uma certa introspec-
minhas concepções do bem como sendo produto de uma escolha ou de uma ção superficial, que apenas se vira para o "interior" o suficiente para fazer um
decisão, falta ainda ver exactamente em que é que consiste esta escolha e levantamento de forma acrítica das motivações e dos desejos com que os
<:;gmo é que eu chego a realizá-la. De acordo com Rawls, "escolhemos por acidentes da minha circunstância me deixaram. Eu remeto-mo a conhecê-
nós próprios, no sentido em que a escolha se funda frequentemente no auto- -los tal como os sinto, e a pr()curar o melhor caminho possível para os con-
conhecimento directo que temos" daquilo que queremos e da intensidade sumar.
com que o queremos. Porém, uma escolha que é assim classificada "no sen- Poder-se-á sugerir que Rawls poderia evitar o colapso aparente
tido de que" "se funda com frequência nas" (é determinada por?) aspirações desta concepção do agir e da escolha através de uma de duas vias. A pri-
e desejos actuais só é escolha num sentido peculiar do termo. Assumindo, meira corresponderia ao recurso à ideia de que as pessoas são capazes
com Rawls, que as aspirações e os desejos em que a minha escolha "se de reflectir sobre os seus desejos, não apenas no sentido de aferirem a
funda" não são eles próprio escolhidos, mas são o produto das circunstân- sua intensidade, mas também no sentido de determinarem quão desejá-
cias, (nós "não escolhemos hoje aquilo que vamos agora desejar" [415 veis é que são. Isto é, são capazes de desenvolver desejos de segunda
(319)]), uma tal escolha envolveria não tanto um acto voluntário como um ordem, desejos que incidem sobre desejos de primeira ordem (Frankfurt
relato factual daquilo que são na realidade estas aspirações e estes desejos. 1971). Eu posso, assim, querer ter certos desejos e não outros, ou con-
E a partir do momento em que, através do "meu auto conhecimento directo", siderar determinados desejos mais desejáveis do que outros. O facto de
consigo identificar esta peça de informação psicológica, fica-se com a noção alguma coisa ter sido desejada (sem ser injusta) deixaria portanto de ser
de que nada resta para eu escolher. Continuaria a ter de assegurar que às suficiente para a tornar boa, já que para isso seria necessário colocar a
minhas aspirações e aos meus desejos, assim identificados, corresponderiam questão adicional de saber se aquele que se encontra em causa era um
os melhores meios disponíveis para os satisfazer, mas esta é já uma questão desejo desejável, ou não. Depois de determinar aquilo que quero (na
prudencial que não envolve qualquer volição ou exercício da vontade. verdade), em termos de desejos de primeira ordem, tenho, portanto, ainda
Quando Rawls escreve que "é o próprio agente quem tem de decidir de indagar se o meu desejo é desejável, a fim de, neste sentido, o poder
sobre aquilo que mais deseja" [416 (310)], e que "teremos apenas de decidir afirmar ou rejeitar.
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Na verdade, Rawls parece vagamente admitir uma tal possibilidade ao tão independente das influências de desejos e preferências pré-existentes _
escrever que, apesar de que "não escolhemos hoje aquilo que vamos agora uma "escolha radicalmente livre", como por vezes é descrita - poderia forne-
desejar", podemos pelo menos "escolher agora os desejos que viremos a ter cer o aspecto voluntarista do agir aparentemente indisponível na circunstân-
mais tarde [... ] Podemos certamente decidir agora fazer algo que sabemos irá cia em que o agente tem de "escolher" em conformidade com os seus desejos
afectar os desejos que teremos no futuro. [... ] Assim, escolhemos de entre os e preferências pré-existentes.
diversos desejos futuros à luz dos desejos actuais" [415 (319)]. No entanto, Rawls rejeita uma forma de agir totalmente arbitrária que
Porém, até mesmo se um agente rawlsiano fosse capaz de desenvolver escape por inteiro à influência dos desejos e preferências pré-existentes. "A
desejos com vista a outros desejos determinados, o seu agir não seria por isso noção de escolha radical [... ] não tem qualquer lugar na teoria da justiça
significativamente refundamentado. Para além do mero facto de ter desejos como equidade" CRawls 1980: 568). Ao contrário dos princípios do justo, que
de segunda ordem, ele continuaria a não deter qualquer fundamento com o exprimem a autonomia do agente e têm de se encontrar livres das contin-
qual pudesse justificar ou defender que um tipo de desejos é mais desejável gências, as concepções do bem são perspectivadas como sendo completa-
do que outro. Ele continuaria a não ter mais nada a que recorrer, para além mente heterónomas. Sempre que nos deparamos com objectivos incompatí-
do facto psicológico da sua preferência (agora de segunda ordem) e da inten- veis, Rawls fala não de uma escolha radicalmente livre ou arbitrária, mas
sidade relativa com que estes desejos se fazem sentir. Nem o valor intrínseco antes de "uma escolha puramente preferencial", sugerindo o tipo de não-agir
de um desejo, nem a sua conexão essencial com a identidade do agente que consideramos em primeiro lugar. Em todo o caso, a noção de uma
poderiam fornecer uma base de sustentação, uma vez que, na concepção de "escolha" puramente arbitrária, não governada por quaisquer considerações,
Rawls, o valor de um desejo emerge apenas à luz do bem de uma pessoa, dificilmente constitui uma explicação mais plausível do agir voluntarista do
estando a identidade do agente destituída de traços constituintes, de tal que uma "escolha" governada inteiramente por preferências e desejos
modo que nenhum objectivo ou desejo pode ser essencial para ela. No qua- predeterminados. Nem uma "escolha puramente preferencial", nem uma
dro dos pressupostos de Rawls, a afirmação,ou rejeição, de desejos sugerida "escolha puramente arbitrária" serão capazes de redimir a noção rawlsiana
pela formação de desejos de segunda ordem não introduziria qualquer ele- de agir no sentido voluntarista. A primeira confunde a escolha com a
mento novo de reflexão ou de volição. Com ela, o processo de aferição torna- necessidade, e a segunda com o capricho. Em conjunto, reflectem o espaço
-se ligeiramente mais complexo, uma vez que há agora que proceder à esti- limitado que a concepção de Rawls tem para a reflexão e a explicação
mativa da intensidade relativa dos desejos pré-existentes, incluindo os de implausível do agir humano que dela resulta.
primeira e de segunda ordem. A concepção do bem daqui resultante não
pode ser caracterizada como decorrendo mais de uma escolha do que aquela
que assenta apenas sobre desejos de primeira ordem. o estatuto do bem
Uma segunda tentativa possível para se restaurar a coerência da esco-
Jha, na concepção de Rawls, poderia ser a seguinte. Imaginemos uma instân- A dificuldade com a teoria do bem de Rawls é simultaneamente episte-
cia em que, ao aferir a intensidade com que os vários desejos de um agente mológica e moral; e, nisto, faz lembrar o problema que identificámos a pro-
se fazem sentir, se constata a existência de um empate. E imaginemos ainda pósito do conceito do justo -designadamente no que diz respeito à distinção
que no processo de deliberação já tinham sido tidas em conta todas as pre- entre o padrão de aferição e os objectos a serem aferidos. Caso se pretenda
ferências relevantes, de tal modo que não era possível introduzir mais que os meus valores fundamentais e os meus fins últimos me permitam,
nenhuma que pudesse quebrar o empate. Neste caso, a nossa explicação como seguramente têm de permitir, avaliar e regular os meus desejos ime-
poderia argumentar, o agente não teria qualquer alternativa senão muito diatos, então estes valores e fins têm de contar com uma sanção indepen-
simplesmente optar de forma arbitrária por um ou por outro, sem se basear dente do mero facto de eu, por acaso, os ter adoptado com uma determinada
em qualquer preferência ou desejo. Poderá dizer-se que uma "escolha" assim intensidade. No entanto, se a minha concepção do bem é simplesmente o
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produto das minhas aspirações e dos meus desejos imediatos, não há qual- o pano de fundo utilitarista da concepção de Rawls emerge com maior
quer razão para supor que o ponto de vista crítico que ela me fornece se clareza nas referências que faz à vida moral individual. Se bem que a teoria
reveste de uma validade ou de um mérito superior aos dos desejos que essa da justiça como equidade rejeite o utilitarismo enquanto fundamento da
concepção se propõe aferir. Enquanto produto destes desejos, ela encontrar- moral social, ou pública, não parece ter qualquer objecção ao utilitarismo
-se-ia sujeita às mesmas contingências. enquanto fundamento da moral individual ou privada - não obstante a
No caso do justo, Rawls responde a esta dificuldade procurando na -':loção kantiana de "dever para consigo mesmo". Rawls descreve a concepção
teoria da justiça como equidade um ponto de Arquimedes que não esteja "à utilitarista da moral privada, sem apresentar qualquer objecção discernível,
mercê dos interesses e das necessidades existentes" [261 (211)]. Porém, e tal da seguinte forma:
como vimos, o conceito do justo de Rawls não se estende à moralidade pri-
vada, nem qualquer outro instrumento de distanciamento consegue evitar "Uma pessoa age de forma inteiramente correcta, pelo
que o bem se encontre completamente envolvido nas aspirações e nos dese- menos quando não há terceiros afectados, quando visa atingir o
jos concretos do agente. "A escolha puramente preferencial" é totalmente seu maior bem possível e quando prossegue objectivos racionais
heterónoma, não podendo nunca os valores ou concepções do bem de qual- tanto quanto possível. [... ] O princípio determinante para cada
quer pessoa situar-se para além dela. Tal como Rawls surpreendentemente sujeito é o de aumentar o mais possível o seu próprio bem-estar, a
admite, "o facto de determos uma concepção do bem em vez de outra não é satisfação do seu sistema de desejos da melhor forma possível"
relevante do ponto de vista moral. Ao adquiri-la, somos influenciados pelo [23 (41)].
mesmo tipo de contingências que nos conduziram a excluir um conheci-
mento do nosso sexo e classe social" (1975: 537). "É certo que há um princípio formal que parece fornecer
O espaço limitado que a concepção de Rawls atribui à reflexão e o uma resposta geral [à escolha de plano de vida por parte de um
carácter problemático e até mesmo empobrecido da teoria do bem que daí indivíduo]. Trata-se do princípio que manda adaptar aquele
resulta revelam até que ponto o liberalismo deontológico aceita uma explica- plano que maximize o resultado líquido esperado de satisfação"
ção do bem essencialmente utilitarista, independentemente do facto de as [416 (320)].
coisas poderem ser bem diferentes no que à respectiva teoria do justo diz
respeito. Este pano de fundo utilitarista emergiu primeiro no quadro da Para Rawls, o utilitarismo transvia-se, não na medida em que identifica
nossa discussão da defesa da discriminação positiva apresentada por Dwor- o bem com a satisfação de desejos dados de forma arbitrária e indiferencia-
kin, contexto em que as considerações utilitaristas prevalecem automatica- dos quanto ao seu valor - uma vez que a teoria da justiça como equidade
mente a partir do momento em que nenhuns direitos individuais se também o faz -, mas apenas na medida em que olha com indiferença para o
encontrem em causa. Apesar de Dworkin defender aquilo que apelida de modo como o grau de concretização destes desejos e aspirações varia de
"conceito anti-utilitarista do justo", o alcance deste conceito está estrita- indivíduo para indivíduo. O erro do utilitarismo, tal como Rawls o percebe,
mente circunscrito (se bem de forma elusiva), de tal forma que "a maioria reside no facto de "adaptar para a sociedade como um todo o princípio de
esmagadora das leis que diminuem a minha liberdade se justifica em fun- escolha racional que se aplica um sujeito isolado", de reunir "os desejos de
damentos utilitaristas, no sentido de servir o interesse geral ou o bem-estar todas as pessoas num sistema coerente de desejos" e procurar a sua satisfa-
comum" (1977a: 269)3. ção global [26-27 (44)]. Ao fazê-lo, "funde" ou "reúne" todas as pessoas numa
só, reduzindo a escolha social essencialmente a uma questão de "adminis-
tração eficiente" (e presume-se que a escolha individual também possa ade-
quadamente conhecer uma redução idêntica), contexto em que não leva a
J Para uma crítica persuasiva da perspectiva de Dworkin sobre esta matéria, cf. H. L. A. Hart
(1979: 86-89).
sério a distinção entre as pessoas [27, 33 (44, 48) l.
222 223

A justiça como equidade procura suprir estas deficiências, sublinhando incapacidade mais grave de levar a sério a diferença qualitativa de valor entre
a distinção entre as pessoas e insistindo na separação dos diversos "sistemas diferentes ordens de desejos - uma incapacidade enraizada na concepção
de desejos" que o utilitarismo aglutina num só. Porém, as razões que levaram empobrecida que adopta do bem, a qual, como vimos, é partilhada pela jus-
Rawls a afastar-se do utilitarismo a este respeito não são imediatamente tiça como equidade.
evidentes. Não obstante parecer firme na perspectiva de que a cada ser Poderia pensar-se que, para uma doutrina deontológica como a de
humano individual corresponde exactamente um "sistema de desejos", Rawls, perspectivar o bem como encontrando-se inteiramente atolado na
Rawls nunca explica nem por que razão isso tem que acontecer, nem em que contingência teria, apesar da sua implausibilidade geral, pelo menos a van-
consiste exactamente um "sistema de desejos", ou por que razão é incorrecto tagem redentora de tornar a primazia do justo ainda mais persuasiva. Se o
reuni-los num só. Será um "sistema de desejos" um grupo de desejos orde- bem não é mais do que a satisfação indiscriminada de preferências desen-
nado de determinada maneira, disposto hierarquicamente, seja segundo o volvidas de forma arbitrária, independentemente do seu valor, não se torna
valor relativo de cada um deles, seja segundo a sua conexão essencial à iden- difícil imaginar que o justo (e já agora, pelas mesmas razões, toda uma vasta
tidade do agente, ou trata-se, antes, de uma mera concatenação de desejos, gama de outras pretensões) deva prevalecer sobre ele. Porém, de facto, o
mobilizados de forma arbitrária e identificáveis apenas pela intensidade estatuto moralmente diminuído do bem conduz inevitavelmente a que se
relativa com que se fazem sentir, ou então pela sua localização acidental? No ponha em causa o estatuto da justiça também. A partir do momento em que
caso da segunda alternativa apresentada, se um sistema de desejos não é se aceitar que as nossas concepções do bem são moralmente arbitrárias,
mais do que uma colecção arbitrária de desejos acidentalmente acoplados a torna-se difícil perceber por que razão deve ser a maior de todas as virtudes
um ser humano particular, então não se entende com clareza por que razão é (sociais) aquela que nos permite perseguir essas concepções arbitrárias "tão
que a integridade de um tal "sistema" deve ser levada tão a sério, tanto moral plenamente quanto as circunstâncias o permitam".
como metafisicamente. Se os desejos se podem misturar e reunir dentro de
uma mesma pessoa, por que razão não o poderão ser também entre as
pessoas? A epistemologia moral da justiça
Se, pelo outro lado, aquilo que constitui um sistema de desejos é uma
ordenação hierárquica de desejos qualitativamente diferenciados, então não A nossa discussão do bem traz-nos, assim, de volta à questão da justiça
seria mais justificável reunir desejos dentro de uma mesma pessoa do que e à reivindicação da sua prioridade, e com isto regressamos às circunstâncias
entre pessoas, e o erro do utilitarismo será igualmente o erro da justiça como da justiça na posição original. Neste contexto, o carácter distinto e separado
equidade, neste aspecto pelo menos. A tendência para amalgamar desejos, de cada pessoa, que Rawls afirma com insistência, é perspectivado como
seja dentro de pessoas ou entre elas, reflectirá uma incapacidade de os orde- mecanismo de correcção do utilitarismo, e instalado a par do pressuposto
nar, ou de reconhecer a diferença qualitativa entre eles. No entanto, esta essencial de desinteresse mútuo com base na noção de que os indivíduos
incapacidade atravessa a clivagem entre escolha individual e escolha social, não se preocupam com os interesses uns dos outros [218 (179-180)]. Quando
na medida em que não há qualquer razão para se supor que um "sistema de começamos por examinar as condições que se verificavam na posição origi-
desejos", nesta acepção, corresponde em todos os casos à pessoa indivi- nal, este pressuposto, em particular, e a apresentação empirista das circuns-
duada empiricamente. Nesta acepção, vários tipos de comunidades pode- tâncias da justiça, em geral, pareceram pôr em causa a primazia da justiça
riam ser pensados como acolhendo "sistemas de desejos", desde que as por diversas razões. Na medida em que a justiça é uma virtude que depende
possamos identificar, em parte, através de uma ordem ou de uma estrutura de certas condições prévias de natureza empírica, ela deixa de ser absoluta,
de valores partilhados, parcialmente constitutivos de uma identidade ou de como a verdade o é para as teorias, passando a ser apenas condicional, como
uma forma de vida comum. Assim, a incapacidade do utilitarismo de levar a o é a coragem física, num campo de batalha. Neste contexto, ela pressuporia
sério a diferença entre as pessoas surgirá como um mero sintoma da sua uma virtude rival, ou um conjunto de virtudes, de categoria pelo menos cor-
224 225

relativa. A justiça assume, então, em determinadas circunstâncias, uma de todo duvidoso que se trate de uma virtude. Na instituição da família, por
dimensão terapêutica. Ao fim e ao cabo, se apresentada de forma inapro- exemplo, os afectos podem conhecer um aumento de tal ordem que a justiça
priada, ela deixa de ser uma virtude, para se transformar num vício. Em raramente é invocada, muito menos na condição de "virtude primeira". E até
suma, uma concepção humeana das circunstâncias da justiça - como a que mesmo na sociedade mais ampla, onde a generosidade está mais limitada e
Rawls explicitamente adopta - parece-nos ser incompatível com o estatuto se recorre à justiça de forma mais extensa, ela é invocada como virtude ape-
privilegiado da justiça exigido por ele e defendido por Kant, a não ser através nas llO âmbito de um pano de fundo composto por outras virtudes mais ele-
do recurso a uma metafísica moral que Rawls considera inaceitável. vadas ou mais nobres, cuja ausência é responsável pelo surgimento da
A própria perspectiva de Hume sobre a justiça confirma esta parciali- justiça. Caso a benevolência mútua e os afectos ampliados pudessem ser
dade, pelo menos na medida em que ela é derivada de premissas que Hume cultivados de forma mais alargada, assistir-se-ia a uma diminuição propor-
e Rawls parecem partilhar. Para Hume, as circunstâncias da justiça descre- cional da necessidade da "virtude cautelosa e invejosa da justiça", e com isto
vem certas condições materiais e de motivação, infelizes, se bem que inevitá- a condição humana ficaria melhorada. E se a escassez e o egoísmo fossem
veis, de sociedades humanas concretas, muito em particular aquelas totalmente superados, então "a justiça, seria completamente inútil [... ] e
circunstâncias que se reportam à escassez moderada e à "generosidade jamais poderia ocupar um lugar no elenco das virtudes" (1777: 16), muito
limitada". Em conjunto, estas circunstâncias demonstram o sentido em que menos ocupar o primeiro lugar que Rawls lhe atribui.
a chegada da justiça assinala a ausência de certas virtudes mais nobres, se Porém, apesar do paralelismo que ele próprio convida a que se esta-
bem que mais raras. beleça entre a sua concepção e a de Hume, o pressuposto de desinte-
resse mútuo reveste-se para Rawls .de um significado diferente. Este
"Se cada homem adoptasse um olhar terno para com os pressuposto não implica que os seres humanos se encontrem sob o império
outros, ou se a natureza nos aprovisionasse em abundância de "do egoísmo e de uma generosidade limitada". Na verdade, o pressuposto
modo a podermos gratificar todos as nossas necessidades e dese- de desinteresse mútuo não pretende ser, de modo algum, um postulado
jos [... ] a inveja do interesse, pressuposta pela justiça, deixaria de acerca das motivações humanas, mas antes acerca do sujeito das motiva-
poder ter lugar". Nem tão-pouco, continua Hume, haveria lugar a ções. Aquilo que presume são interesses de um eu, não necessariamente
distinções com base na propriedade e na posse. "Alargue-se a interesses num eu, um sujeito de posse individuado à partida e dado antes
benevolência dos homens e a liberalidade da natureza para um dos seus fins.
nível suficientemente amplo e a justiça tomar-se-á inútil, uma vez De tudo isto decorrem consequências importantes para o estatuto da
que o seu lugar será ocupado por virtudes mais nobres e por ben- justiça. A benevolência deixa de ser anterior àjustiça e, nalguns casos, capaz
çãos mais valiosas". Se a escassez natural fosse substituída pela de a substituir. Na medida em que, para Rawls, a virtude da justiça não pres-
abundância, "ou se todos os homens apresentassem o mesmo supõe à partida motivações egoístas, ela não necessita de aguardar pelo des-
afecto e o mesmo apreço temo pelos outros como aquele que têm vanecimento da benevolência para encontrar o seu momento, e nem sequer
por si próprios, a justiça e a injustiça seriam igualmente desco- o florescimento completo dos "afectos ampliados" a poderiam substituir.
nhecidas entre a humanidade". E, assim, Hume remata: "a origem A justiça deixa de ser uma mera terapêutica, relativamente às "virtudes mais
da justiça deriva exclusivamente da escassez de provisões que a nobres", uma vez que deixa de depender da ausência delas. Pelo contrário,
natureza nos oferece para a satisfação das nossas necessidades" na medida em que as pessoas são individuadas, no sentido rawlsiano, a jus-
(1739: 494-495). tiça não só adquire a sua independência relativamente aos sentimentos e às
motivações prevalecentes, como também se ergue acima delas, com o esta-
Para Hume, a justiça não pode ser a primeira virtude das instituições tuto de primeira virtude. Em face da natureza do sujeito, tal como Rawls a
sociais (pelo menos não em qualquer sentido categórico), e nalguns casos é concebe, a justiça não é apenas uma emoção ou um sentimento como qual-
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quer outra virtude inferior, mas antes do mais um quadro que restringe estas objecto a que se reporta. (IA razão pela qual a situação permanece obscura é
virtudes inferiores, e que as "regula". que o amor e a benevolência são noções de segunda ordem: elas visam
favorecer o bem daqueles que amamos, o qual nos é dado antecipadamente"
"Assim, para realizar a nossa natureza, não temos outra [191 (158)].
alternativa que não seja a de planear a preservação do nosso sen- _ Se chegar ao bem próprio de uma pessoa é principalmente uma ques-
tido de justiça e fazê-lo dominar os nossos restantes objectivos. tao de passar em revista as suas preferências e aferir a intensidade relativa
Este sentimento não pode ser satisfeito se aceitarmos compromis- com que se fazem sentir, então estaremos perante um exercício em que mais
sos e se ponderarmos este objectivo relativamente aos restantes ninguém poderá participar com facilidade, nem sequer aqueles com quem
como não sendo senão um de entre muitos desejos. [... ] Pelo con- essa pessoa tiver uma relação mais íntima. Só a própria pessoa é que é capaz
trário, o sucesso na expressão da nossa natureza depende da coe- de "conhecer" aquilo que realmente quer, ou de "escolher" aquilo que
rência com que agirmos em acordo com o nosso sentimento de prefere. "Mesmo quando nos colocamos na posição de outrem e tentamos
justiça, considerado como determinante de forma irrevogável. avaliar o que é que seria para ele mais vantajoso, fazêmo-lo, por assim dizer,
O que não podemos fazer é expressar a nossa natureza seguindo enquanto conselheiros" [448 (343)] e, em todo o caso, em face do acesso
um plano que veja o sentido da justiça como apenas um desejo a cognitivo limitado que a concepção de Rawls nos permite, tratar-se-á de um
ser ponderado entre outros. Este sentimento revela aquilo que o aconselhamento francamente pobre.
sujeito é, e o compromisso nesta matéria implica retirar ao eu a Ainda que, por vezes, sejamos capazes de superar as dificuldades que se
possibilidade de atingir a liberdade plena, e ceder o lugar aos aci- colocam ao conhecimento do bem de uma pessoa amada, cujos interesses
dentes e contingências do mundo" [574-575 (432-433)]. procuramos promover, o problema torna-se irremediavelmente complexo
quando nos propomos alargar o nosso amor ou a nossa benevolência a uma
Já vimos de que maneira a prioridade da justiça, tal como a prioridade pluralidade de pessoas cujos interesses podem colidir. Jamais poderíamos
do eu, derivam em larga medida da sua liberdade relativamente às contin- esperar ser capazes de conhecer o bem de cada uma delas com a profundi-
gências e aos acidentes do mundo. Foi o que emergiu da nossa discussão do dade suficiente para os podermos separar e avaliar as suas exigências relati-
justo e dos limites do eu. À luz da nossa discussão do bem, podemos agora vas. Até mesmo no caso de a benevolência poder ser tão amplamente culti-
identificar por que razão, no quadro da teoria do sujeito de Rawls, virtudes vada como nos sugere a visão hipotética de Hume, ainda assim esta virtude
como a benevolência e até mesmo o amor não são ideais morais auto- não seria auto-suficiente, uma vez que, só por ela, continuaríamos sem saber
-suficientes, mas antes têm de aguardar pela justiça para se completarem. o que no~ pediria o amor pela humanidade. "É inútil dizer que uma situação
Dado o papel limitado atribuído pela teoria de Rawls à reflexão, as vir- deve ser Julgada de acordo com aquilo que a benevolência nos ditar. Afirmá-
tudes da benevolência e do amor, enquanto características do bem, consti- -lo equivale a pressupor que somos influenciados indevidamente pelos nos-
tuem formas emocionais, e não de discernimento, modos de sentir, e não de sos próprios interesses. O problema é outro. A benevolência perde o norte
conhecer. Ao contrário dos sentimentos e das emoções pessoais ou de pri- sempre que as suas numerosas afeições entram em conflito nas pessoas que
meira ordem, os objectos das quais são fornecidos à nossa consciência de ama" [190 (158)J. E não será seguramente surpresa para ninguém que a
forma mais ou menos directa, a benevolência e o amor são desejos cujo ~cora exigida por esta concepção de benevolência lhe seja fornecida pela
objecto se prende com o bem de outro. No entanto, perante o carácter indi- VIrtude da justiça. A benevolência, até mesmo na sua maior amplitude,
vidual e separado das pessoas e a rigidez das fronteiras que as separam, o depende da justiça para se completar. "Assim, o amor da humanidade que
conteúdo deste bem (isto é, do bem que eu desejo ao outro) tem de ser em deseje preservar a diferença entre as pessoas, de modo a reconhecer a indivi-
larga medida opaco para mim. Na perspectiva de Rawls, o amor é cego, não dualidade da vida e da experiência de cada uma, recorrerá aos dois princí-
por causa da sua intensidade, mas antes pela opacidade do bem que é o pios da justiça para determinar os seus objectivos, sempre que houver con-
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flito entre os vários bens que preza" [191 (158)]. O primado da justiça preva- res, sempre prontos, e de facto vulneráveis, ao crescimento e à transforma-
lece até mesmo em face de uma virtude tão nobre como o amor da ção ~ luz da revisão do entendimento que temos de nós próprios. E na
humanidade, se bem que o amor que daqui resulta tenha uma feição estra- medIda em que os nossos auto-entendimentos constitutivos compreendem
nhamente judicial. um sujeito mais alargado do que o indivíduo isolado, seja uma família, uma
tribo, uma cidade, uma nação ou um povo, nesta medida definirão uma
"Este amor é guiado por aquilo que em que os sujeitos con- comunidade no sentido constitutivo. O que caracteriza uma tal comunidade
sentiriam numa situação inicial equitativa que lhes assegurasse não é meramente um espírito de benevolência, ou a prevalência de valores
uma representação igual enquanto pessoas morais" [191 (158)]. comunitaristas, nem mesmo apenas certos "objectivos últimos partilhados"
m~s. um vocabulário e um discurso comuns, bem como um quadro d~
"Assim, vemos que o pressuposto de desinteresse mútuo das pratlcas e de entendimentos implícitos dentro do qual a opacidade dos
partes não impede uma interpretação razoável da benevolência parti.cipantes é atenuada, se bem que nunca se dissolva por completo. Na
e do amor à humanidade, no quadro da justiça como equidade" me~I~a em que a preeminência da justiça depende do carácter separado e
[itálicos nossos, 192 (159)]. dehmItado das pessoas no sentido cognitivo, a sua prioridade diminuirá à
medida que aquela opacidade se dissolve e esta comunidade se aprofunda.
Para Rawls, as consequências de levar a sério as diferenças entre as pes-
soas não são directamente morais, mas mais decisivamente epistemológicas. A justiça e a comunidade
Aquilo que as fronteiras entre as pessoas confinam não é tanto o alcance dos
seus sentimentos - que não é determinado à partida - como o alcance do , ~erante q~~quer sociedade, pode-se sempre perguntar até que ponto
nosso entendimento, do nosso acesso cognitivo aos outros. E é este défice ela e Justa, ou bem ordenada" no sentido de Rawls, bem como até que
epistémico (que deriva da natureza do sujeito), mais do que qualquer carên- ponto ela constitui uma comunidade, nunca podendo a resposta a uma e a
cia da benevolência (que em qualquer dos casos é variável e contingente), outra destas questões ser dada apenas por referência aos sentimentos e aos
que exige a justiça como remédio, explicando assim a sua preeminência. desejos daqueles que nela participam. Tal como Rawls observa, perguntar se
Enquanto que, para Hume, necessitamos da justiça na medida em que não uma sociedade particular é justa não equivale simplesmente a perguntar se,
nos amamos o suficiente uns aos outros, para Rawls precisamos dela porque por acaso, um grande número dos seus membros apresenta entre os seus
não somos capazes de nos conhecer uns aos outros o suficiente para que até múltiplos desejos o desejo de agir de forma justa - se bem que isto possa ser
mesmo o amor seja capaz de funcionar por si só. um~ das ca~acterísticas de uma sociedade justa -, mas perguntar se a própria
Porém, e tal como a nossa discussão do agir e da reflexão sugerem, nós SOCIedade e, ela mesma, de um certo tipo, se está ordenada de tal maneira
não somos nem tão transparentes para connosco mesmos, nem tão opacos que a justiça descreve a sua "estrutura básica" e não apenas as disposições
para os outros como a epistemologia moral de Rawls exige. Se queremos que de algumas das pessoas que se encontram no seu seio. Daí que Rawls escreva
o nosso agir consista em mais do que o mero exercício de "administração que, apesar de classificarmos as atitudes e as disposições das pessoas como
eficiente" em que a concepção de Rawls o parece transformar, temos de ser sendo justas ou injustas, para a teoria da justiça como equidade, "o objecto
capazes de desenvolver uma introspecção mais profunda do que a permitida primário da justiça é a estrutura básica da sociedade" [7 (30)]. Para que uma
por um mero "auto conhecimento directo" das nossas aspirações e dos nossos sociedade seja justa neste sentido forte, a justiça tem de ser constitutiva do
desejos imediatos. Mas, para. sermos capazes de uma reflexão mais acabada, quadro que a enforma, e não um mero atributo dos planos de vida de alguns
não podemos ser sujeitos de posse totalmente destituídos de conteúdo, indi- daqueles que nela participam.
viduados à partida e dados antes dos nossos fins. Antes, temos de ser sujeitos De modo semelhante, perguntar se uma sociedade em particular cons-
constituídos em parte pelas nossas aspirações e pelos nossos afectos nuclea- titui uma comunidade não equivale simplesmente a perguntar se, por acaso,
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entre os vários desejos de um grande número dos seus membros, não se


encontra o desejo de se associar aos outros ou de promover objectivos
comunitaristas - se bem que isto possa constituir uma das características de
uma comunidade -, mas se a própria sociedade é, ela mesma, de um certo
tipo, se está ordenada de tal maneira que o conceito de comunidades des-
creve a sua estrutura básica e não apenas as disposições de algumas das pes- Conclusão
soas que se encontram no seu seio. Para que uma sociedade constitua uma
comunidade neste sentido forte, a comunidade tem de ser constitutiva da o liberalismo e os limites da justiça
auto compreensão partilhada daqueles que nela participam, e, bem assim,
integrar os seus dispositivos institucionais, não um mero atributo dos planos
de vida de alguns daqueles que nela participam. Para que a justiça possa ser a primeira de todas as virtudes, torna-se
Rawls poderá discordar dizendo que uma concepção constitutiva de necessário que se verifiquem determinados pressupostos a nosso respeito.
comunidade como esta deve ser rejeitada "por razões de clareza, entre Temos de ser criaturas de um determinado tipo, que se relacionam com as
outras", ou com base no fundamento de que uma tal concepção pressupõe circunstâncias humanas de uma certa maneira. Temos que permanecer a
que uma sociedade seja "um todo orgânico, com uma vida própria distinta e uma certa distância das nossas circunstâncias, quer seja enquanto sujeitos
superior à de todos os seus membros nas relações que estabelecem entre si" transcendentais, como no caso de Kant, quer enquanto sujeitos de posse
[264 (213)]. Porém, uma concepção constitutiva de comunidade não é mais essencialmente destituídos de conteúdo, como no caso de Rawls. De uma
problemática, em termos metafísicos, do que uma concepção constitutiva da maneira ou de outra, temos que nos perspectivar a nós próprios como sendo
justiça, tal como a defendida por Rawls. Desde logo na medida em que se independentes. Independentes dos interesses e das ligações que possamos
esta noção de comunidade descreve o quadro de auto compreensão que é apresentar num momento determinado, nunca identificados pelos nossos
distinto e num determinado sentido anterior aos sentimentos e às disposi- objectivos mas sempre capazes de nos afastarmos deles, de modo a
ções dos indivíduos situados dentro desse quadro, só o faz no mesmo sentido podermos passá-los em revista, aferir e possivelmente rever (Rawls 1979: 7;
em que a justiça como equidade descreve a "estrutura básica" ou o quadro 1980: 544-545).
que é igualmente distinto e anterior aos sentimentos e às disposições dos
indivíduos que nele se encontram. o projecto libertador da deontologia
Se o utilitarismo não é capaz de levar a sério a nossa individualidade, a
justiça como equidade não consegue levar a sério o facto de partilharmos A noção de um eu independente está ligada a uma visão do universo
características e atributos comuns. Ao perspectivar as fronteiras do eu como moral que este eu tem de habitar. Ao contrário das concepções da Grécia
sendo anteriores, fixas de uma vez para sempre, ela remete as características Antiga e da Idade Média cristã, o universo da ética deontológica é um lugar
e os aspectos comuns que partilhamos para a condição de constituírem um destituído de um significado que lhe seja inerente, um mundo "desencan-
aspecto do bem que, por sua vez, se vê reduzido a uma mera contingência, tado" no dizer de Max Weber, um mundo sem uma ordem moral objectiva.
produto de aspirações e de desejos indiscriminados, "irrelevante desde um Só num universo desprovido de um telas, tal como aquele proposto pela
ponto de vista moral". Perante uma concepção do bem assim tão diminuída, ciência e pela filosofia do século XVII \ se torna possível conceber um sujeito
a prioridade do justo apresentar-se-á na verdade como uma pretensão irre-
preensível. Mas o utilitarismo deu um mau nome ao bem, e ao adoptá-Io de
I Para uma discussão das consequências morais, políticas e epistemológicas da revolução
forma acrítica, a justiça como equidade conquistou para a deontologia uma científica e da munclividência do século XVII, cf. Strauss 1953; Arendt 1958: 248-325; Wolin 1960:
vitória falsa. 239-285; e Taylor 1975: 3-50. .
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independentemente dos seus propósitos e dos seus fins e anterior a eles. Só teórica precisamente por causa desta sua dimensão voluntarista, desta sua
um mundo que não esteja governado por uma ordem que lhe imprima um capacidade de gerar preceitos práticos directamente, sem recorrer à cogni-
propósito ou um objectivo deixa os princípios da justiça abertos à construção ção. "Uma vez que em todos os preceitos da vontade pura apenas está em
humana e atira as concepções do bem para uma escolha individual. É aqui causa a determinação da vontade", não há qualquer necessidade de que
que surge em toda a sua plenitude a dimensão da oposição entre as concep- ~'aguardem pelas instituições para adquirirem significado. Isto é assim pela
ções do liberalismo deontológico e da teleologia. razão notável de que eles próprios produzem a realidade daquilo a que se
N a medida em que nem a natureza nem o cosmos nos fornecem uma referem" [itálicos nossos, Kant 1788: 67-68].
ordem significativa que possa ser alcançada ou apreendida, caberá aos Toma-se importante recordar que, na perspectiva deontológica, a
sujeitos humanos a tarefa de construção de um significado por si próprios. noção de um eu destituído de objectivos e de ligações essenciais não implica
Isto explicaria a proeminência da teoria do contrato social a partir de Hob- que sejamos seres inteiramente destituídos de propósitos ou incapazes de
bes, bem como a ênfase correspondente numa ética voluntarista, em oposi- laços morais, mas, antes, que os valores e as relações que temos são produto
ção a uma ética cognitiva, que culmina em Kant. Resta-nos criar de algum de uma escolha, atributos de um eu que é dado antes dos seus fins. O mesmo
modo aquilo que já não pode ser encontrad0 2 • Rawls descreve a sua própria se passa com o universo deontológico. Apesar de rejeitar a possibilidade de
perspectiva a este respeito como sendo uma versão do "construtivismo" uma ordem moral objectiva, este liberalismo não defende que tudo vale.
kantiano. Afirma ajustiça, e não o niilismo. Na perspectiva deontológica, a noção de
um universo vazio de significado intrínseco não implica um mundo total-
"O acordo que as partes estabelecem na posição original não mente desgovernado por uma ausência radical de princípios reguladores,
incide sobre aquilo que são os factos morais, como se estes factos mas antes um universo habitado por sujeitos capazes de adoptarem um
já existissem. Não se dá o caso de, encontrando-se numa situação significado próprio - enquanto agentes de construção, no caso do justo, e
imparcial, elas terem uma visão clara e independente. Pelo con- agentes de escolha, no caso do bem. Enquanto eus numénicos, ou partes da
trário (para o construtivismo), nenhuma ordem desta natureza posição original, chegamos aos princípios da justiça; enquanto eus concre-
existe, razão pela qual tão-pouco estes factos morais poderão tos, chegamos às concepções do bem. E os princípios que desenvolvemos
existir à parte do procedimento como um todo" [itálicos nossos, enquanto eus numénicos restringem (se bem que não determinem) os pro-
1980: 568]. pósitos que elegemos enquanto eus individuais. Isto reflecte a prioridade do
justo sobre o bom.
De modo semelhante, para Kant, a lei moral não é uma descoberta da Perspectivados em conjunto, o universo deontológico e o eu indepen-
razão te6rica, mas uma construção da razão prática, um veredicto da von- dente que se move no seu seio apresentam uma visão libertadora. Livre dos
tade pura. "Os conceitos práticos elementares têm como fundamento a ditames da natureza, bem como das imposições dos papéis sociais, o sujeito
forma de uma vontade pura dada pela razão", e aquilo que imprime autori- deontológico instala-se como ser soberano, projectando-se como o autor dos
dade a esta vontade é o facto de ela legislar num mundo que ainda não únicos significados morais disponíveis. Enquanto habitantes de um mundo
conhece significado. A razão prática possui uma vantagem sobre a razão sem telas, dispomos de total liberdade para construirmos princípios de
justiça, sem constrangimentos por parte de quaisquer ordens de valores que
2 Tal como um pensador liberal escreve com audácia, "a verdade pura e crua é esta. Não nos tenham sido dadas antecipadamente. Apesar de, em sentido estrito, os
existe qualquer significado escondido nas entranhas do universo. [... J No entanto, não precisamos princípios da justiça não serem uma questão de escolha, a sociedade que
de nos sentir esmagados pelo vazio. Podemos criar os nossos próprios significados, tu e eu"
Ackerman 1980: 386). Estranhamente, porém, o autor insiste em afirmar que o liberalismo não
definem "está tão próxima quanto é possível de um sistema voluntário"
está comprometido com qualquer metafísica ou epistemologia, nem com quaisquer "Grandes [13 (34)], uma vez que são produto de uma vontade pura, constituindo um
Questões de carácter altamente controverso" [356-357, 361 (276-280)J. acto de construção. que não responde a qualquer ordem moral anterior.
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E, enquanto eus independentes, somos livres para escolhermos os nossos A fragilidade moral do eu deontológico emerge igualmente ao nível dos
propósitos e os nossos fins, sem nos vermos constrangidos por um tal princípios de primeira ordem. Aqui, vimos que, sendo essencialmente des-
ordenamento moral anterior, pelo costume, pela tradição ou pelas condições tituído de bens, o eu independente era demasiado ténue para ser capaz de
que tenhamos herdado. Desde que não sejam injustas, as nossas concepções merecer o que quer que fosse, no sentido corrente do termo (capítulo 2), já
do bem, sejam elas quais forem, são de peso, apenas em virtude de as termos que as reivindicações de mérito pressupõem eus densamente constituídos,
escolhido. Nós somos "fontes de pretensões válidas que se originam a si seres capazes de posse no sentido constitutivo, enquanto que o eu deontoló-
mesmas" (Rawls 1980: 543). gico se encontra totalmente destituído de bens deste tipo. Reconhecendo
Ora, a justiça é a virtude que personifica a visão libertadora da deonto- esta falha, Rawls procurará, em alternativa, alicerçar os direitos em expecta-
logia e que permite o seu desenvolvimento. É ela que dá corpo a esta visão, tivas legítimas. Se somos incapazes de mérito, pelo menos temos o direito a
descrevendo os princípios que o sujeito soberano é chamado a desenvolver que as instituições honrem as expectativas a que deram lugar.
enquanto situado anteriormente à constituição de todos os valores. Ela per- No entanto, o princípio de diferença exige mais. Parte do pensamento,
mite o desenvolvimento desta visão na medida em que, equipada com estes atractivo para a perspectiva deontológica, de que os atributos que detenho
princípios, a sociedade justa regula o modo como cada pessoa escolhe os são meus apenas acidentalmente. Porém, conclui que estes atributos são,
seus fins, numa forma compatível com a consagração de uma liberdade por isso, comuns, tendo a sociedade um direito anterior sobre os frutos do
semelhante para todos. Governados pela justiça, os cidadãos ficam então seu exercício. Ora, uma tal conclusão retira todo o poder ao eu deontológico,
habilitados a concretizar o projecto libertador da deontologia - materiali- ou então nega a sua independência. Ou as minhas perspectivas de vida são
zando a sua condição de "fontes de pretensões válidas que se originam a si entregues à mercê das instituições estabelecidas com "objectivos sociais
mesmas". Assim, a primazia da justiça exprime, ao mesmo tempo que pro- anteriores e independentes" [313 (246)], objectivos estes que podem, ou não,
move, as aspirações libertadoras da perspectiva deontológica do mundo e da coincidir com os meus, ou então eu tenho de me perspectivar como membro
sua concepção do eu. de uma comunidade definida, em parte, por aqueles mesmos objectivos,
Porém, a visão deontológica está equivocada, quer nos seus próprios contexto em que deixo de me encontrar destituído de laços constitutivos. De
termos, quer, no geral, enquanto explicação da nossa experiência moral. Nos uma maneira ou de outra, o princípio de diferença contradiz as ,aspirações
seus próprios termos e privado de todos os laços constitutivos possíveis, o eu libertadoras do projecto deontológico. Não podemos ser ao mesmo tempo
deontológico é mais debilitante do que libertador. Tal como vimos, não é pessoas para quem a justiça é primária e para quem o princípio de diferença
possível derivar nem o justo, nem o bom da forma voluntarista exigida pela é um princípio de justiça.
deontologia. Enquanto agentes de construção, na verdade nós nada cons-
truímos (capítulo 3); e, enquanto agentes de eleição, na verdade nada esco-
lhemos (capítulo 4). O que se passa por detrás do véu de ignorância não é Carácter, auto conhecimento e amizade
um contrato, nem um acordo, mas, se é alguma coisa, é uma espécie de
descoberta; e aquilo em que uma "escolha puramente preferencial" se Se a ética deontológica não é capaz de cumprir a sua própria promessa
traduz é menos numa escolha de fins do que no estabelecimento de uma libertadora, tão-pouco consegue oferecer uma explicação plausível para
correlação entre os desejos pré-existentes, indiferenciados quanto ao seu certos aspectos indispensáveis da nossa experiência moral. A deontologia
valor, com os melhores meios disponíveis para os satisfazer. Para as partes insiste em que nos vejamos a nós próprios como eus independentes, no
na posição original, tal como para as de processos de racionalidade sentido em que a nossa identidade jamais se encontra vinculada aos nossos
deliberativa ordinária, o momento de libertação extingue-se antes de surgir. objectivos e às nossas ligações. Em face do "poder moral [que detemos] para
O sujeito soberano é deixado à deriva no mar de circunstâncias que se formar, rever e perseguir racionalmente uma concepção do bem" (Rawls
supunha comandar. 1980: 544), a continuidade da nossa identidade encontra-se assegurada sem
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suscitar quaisquer problemáticas. Nenhuma transformação dos meus objec- de carácter, é incapaz de se conhecer a si mesmo, num qualquer sentido
tivos ou das minhas ligações poderia pôr em causa a pessoa que eu sou, na moralmente sério. Onde quer que o eu se encontre destituído de conteúdo e
medida em que, e para começar, nenhuma fidelidade, por mais profunda- essencialmente desapossado, não sobrará qualquer pessoa relativamente à
mente que possa ser assumida, poderia possivelmente comprometer a qual a auto-reflexão se possa exercer. É por isto que, na perspectiva deonto-
minha identidade. lógica, a deliberação acerca dos fins só pode ser um exercício arbitrário. Na
No entanto, não nos podemos perspectivar a nós próprios como inde- ausência de laços constitutivos, a deliberação transforma-se em "escolha
pendentes, nesta acepção, a não ser com um grande custo para aquelas leal- puramente preferencial", o que significa que, na medida em que se encon-
dades e aquelas convicções cuja força nioral reside, em parte, no facto de que tram atolados na contingência, os fins que perseguimos "não são relevántes
viver de acordo com elas se torna inseparável de nos vermos a nós próprios de um ponto de vista moral" (Rawls 1975: 537).
como as pessoas particulares que somos - enquanto membros desta família, Por contraste, ao agir em função de qualidades de carácter mais ou
desta comunidade, desta nação ou deste povo, enquanto portadores desta menos duradouras, a minha escolha de fins não é arbitrária da mesma
história, enquanto filhas e filhos daquela revolução, ou enquanto cidadãos maneira. Ao consultar as minhas preferências, eu não só tenho de pesar a
desta república. Fidelidades como estas são mais do que valores que eu intensidade com que se fazem sentir, como ainda de aferir a sua conveniên-
possa adoptar por acaso, ou objectivos que eu "abrace num qualquer cia face ao tipo de pessoa que eu (já) sou. Ao deliberar, eu procuro identificar
momento determinado". Elas vão para além das obrigações que assumo não só o que é que eu quero, na realidade, mas também quem é que eu
voluntariamente sobre mim, bem como dos "deveres naturais" que tenho realmente sou, e esta última questão transporta-me para uma condição em
para com os outros seres humanos enquanto tais. E são elas que fazem com que não só tenho de prestar atenção aos meus desejos como tenho de reflec-
que deva a algumas pessoas mais do que aquilo que é exigido pela justiça, ou tir sobre a minha própria identidade. Ainda que os contornos da minha
até mesmo permitido. Não por causa dos acordos que possa ter celebrado, identidade permaneçam de algum modo abertos e sujeitos a revisão, não
mas antes em virtude daqueles laços e daquelas obrigações mais ou menos estarão inteiramente privados de forma. E este facto permite-me descriminar
duradouros que, no seu conjunto, definem em parte a pessoa que eu sou. entre as minhas aspirações e os meus desejos mais imediatos. À luz dele,
Imaginar uma pessoa como sendo incapaz de laços constitutivos como alguns parecerão ser essenciais, outros meramente acidentais, para a defini-
estes não equivale a conceber um agente idealmente livre e racional, mas a ção dos meus projectos e dos meus compromissos. Ainda que continue a
imaginar uma pessoa completamente sem carácter, sem profundidade persistir uma certa contingência última no que diz respeito ao facto de eu ter
moral. Ter carácter é conhecer que eu me movimento numa história que eu acabado por ser a pessoa que sou - só a teologia o poderá determinar ao
não convoquei nem comando, mas que não deixa de trazer consequências certo -, ser a pessoa que sou, afirmar estes objectivos em vez daqueles e
para as minhas escolhas e para a minha conduta. Uma história que me apro- enveredar nesta direcção em vez de naquela outra faz em todo o caso uma
xima de alguns e me afasta de outros, e que faz com que alguns objectivos diferença moral. Apesar de a noção de laços constitutivos poder, à primeira
sejam mais apropriados e outros menos. Enquanto ser que se interpreta a si vista, parecer apresentar-se como um obstáculo ao agir - o eu, agora com
mesmo, eu sou capaz de reflectir sobre a minha história e, neste sentido, de conteúdo, deixou de ser anterior em sentido estrito - alguma imutabilidade
)1le distanciar dela. Porém, esta será sempre uma distância precária e provi- relativa de carácter parece ser essencial para impedir que se tombe na arbi-
sória, na medida em que o ponto de reflexão nunca está ancorado fora da trariedade, coisa que o eu deontológico é incapaz de evitar.
própria história. Uma pessoa com carácter sabe, assim, que está comprome- A possibilidade de carácter em sentido constitutivo é também indispen-
tida de várias maneiras, até mesmo quando reflecte, e sente o peso moral sável para um certo tipo de amizade, uma amizade que se caracterize por
daquilo que conhece. uma compreensão mútua bem como pelo sentimento. Em qualquer caso, a
Isto constitui uma diferença, para o agir e para o auto conhecimento. amizade está ligada a certos sentimentos. Nós gostamos dos nossos amigos;
Como vimos, o eu deontológico, encontrando-se completamente destituído sentimos afeição por eles, e desejamos-lhes bem. Esperamos que os seus
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desejos se satisfaçam e que os seus planos de vida tenham sucesso, e com- pectiva, que o meu amigo me conhecia melhor do que eu me conhecia a
prometemo-nos de várias maneiras com a promoção dos seus fins. mim próprio. Deliberar com os amigos é admitir esta possibilidade, o que
Porém, para pessoas que se presume serem incapazes de laços consti- por outro lado pressupõe um eu mais ricamente constituído do que aquele
tutivos, actos de amizade como estes deparam-se com um constrangimento previsto pela deontologia. Continuarão seguramente a existir momentos em
poderoso. Independentemente da intensidade com que possa desejar o bem que a amizade exige uma deferência pela imagem que um amigo tem dele
de um amigo, e permanecer pronto para o promover, só o meu amigo pode próprio, por mais equivocada que ela se possa apresentar. Porém, até isto
saber em que é que esse mesmo bem consiste. Este acesso restrito que temos exige discernimento, uma vez que a necessidade de prestar deferência
ao bem dos outros decorre do campo de acção limitado para a auto-reflexão, implica a capacidade de se conhecer.
o que, por sua vez, atraiçoa desde logo a fragilidade do eu deontológico. Assim, perspectivarmo-nos da maneira que a deontologia nos veria
Onde quer que a deliberação acerca do meu bem não signifique mais do que equivale a que nos privemos daquelas qualidades de carácter, de reflexão e
atender às minhas aspirações e aos meus desejos, tal como são fornecidos de amizade que dependem da possibilidade de desenvolvermos projectos e
directamente à minha consciência, ela constituirá uma tarefa que eu tenho laços constitutivos. E vermo-nos como sendo dados a estabelecer compro-
de cumprir sozinho, que não exige nem permite a participação de outros. missos como estes é admitir uma partilha de características e de atributos
Cada acto de amizade torna-se assim parasitário de um bem identificado à comuns muito mais profunda do que a descrita pela benevolência, uma
partida. "O amor e a benevolência são noções de segunda ordem: elas visam comunhão de modos partilhados de nos vermos a nós próprios, bem como
favorecer o bem daqueles que amamos, o qual nos é dado antecipadamente" dos "afectos ampliados". Assim como o eu independente encontra os seus
[191 (158)]. Até mesmo os sentimentos mais amistosos têm de aguardar por limites nos objectivos e nos laços dos quais não se consegue distanciar,
um momento de introspecção, inacessível à amizade. Esperar mais de um assim também a justiça encontra os seus limites naquelas formas de comu-
amigo, ou oferecer-lhe mais, só pode ser um pressuposto contra a privaci- nidade que envolvem a identidade bem como os interesses dos que nela
dade última do autoconhecimento. participam.
Por contraste, já para pessoas dotadas de conteúdo, impresso em parte A deontologia pode, por fim, responder a tudo isto com uma concessão
pela história que partilham com outros, conhecer-se a si mesmo é uma tarefa e com uma distinção. Uma coisa é permitir que "os cidadãos na sua vida
mais complicada. E é algo, em sentido estrito, menos privado. Na medida em privada [... ] tenham laços e amores dos quais acreditam que não se querem
que alcançar o meu bem se encontra vinculado à exploração da minha iden- ou não se podem separar", e que "consideram impensável [... ] perspectivar-
tidade e à interpretação da história da minha vida, o conhecimento que esta -se a si próprios sem determinados compromissos e convicções religiosos e
tarefa exige que eu procure torna-se menos transparente para mim e menos filosóficos" (Rawls 1980: 545). No entanto, tudo é diferente na vida pública.
opaco para os outros. A amizade transforma-se numa maneira de conhecer, Aí, nenhuma lealdade ou fidelidade pode ser igualmente essencial para a
para além de uma maneira de gostar. Sem ter a certeza sobre o caminho a concepção que temos de quem somos. Ao contrário do que se passa com os
tomar, eu consulto um amigo que me conhece bem, e juntos deliberamos, laços que nos ligam à família e aos amigos, nenhum apego à cidade ou à
oferecendo e aferindo por turnos descrições diferentes da pessoa que sou, nação, ao partido ou à causa, poderão alguma vez apresentar uma profundi-
das alternativas com que me deparo, e do seu impacto sobre a minha identi- dade de tal ordem que nos venham a definir. Por contraste com a nossa
dade. Levar a sério estas deliberações equivale a permitir que o meu amigo identidade privada, a nossa "identidade pública" enquanto pessoas morais
possa apanhar o significado de algo que me tenha escapado, me possa ofere- "não é afectada por alterações que possam ocorrer com o tempo" relativa-
cer uma explicação mais apropriada do modo como as alternativas com que mente às nossas concepções do bem (Rawls 1980: 544-545). Ainda que, em
me deparo afectarão a minha identidade. Adoptar esta nova descrição equi- privado, possamos ser eus densamente constituídos, em público temos de
vale a que me veja a uma nova luz. A imagem anterior que tinha de mim pró- ser eus completamente destituídos de conteúdo, e é aqui que o primado da
prio parece-me agora parcial ou obstruída, e sou capaz de dizer, em retros- justiça prevalece.
240 241

Porém, a partir do momento em que nos recordarmos do estatuto espe- ,0 liberalismo ensina-nos a respeitar a distância que separa o eu dos
cial da reivindicação deontológica, não se entende com clareza qual poderá seus fins e, quando esta distância se perde, submergimos numa circunstân-
ser o fundamento para esta distinção. Poderá parecer, à primeira vista, que cia que deixa de ser a nossa. No entanto, ao procurar consolidar esta distân-
se trata de uma distinção psicológica. ° distanciamento alcança -se mais çia da maneira mais completa, o liberalismo enfraquece a sua própria visão.
facilmente na vida pública, onde os laços que temos são tipicamente menos Ao colocar o eu para além do alcance da política, transforma o agir humano
apertados. Eu posso, por exemplo, desfazer-me com muito mais facilidade numa questão de fé, em vez de objecto de atenção e de preocupação contí-
das minhas fidelidades partidárias do que de determinadas lealdades e afec- nuas, numa premissa da política, em vez de conquista precária dela. Isto
tos pessoais. No entanto, e tal como constatámos desde o início, a pretensão equivale a perder a noção do pathos da política, bem como das suas possibi-
deontológica de independência do eu tem de ser mais do que de índole psi- lidades mais inspiradoras. Fechar os olhos ao perigo de que, quando a polí-
cológica ou social. De outro modo, a primazia da justiça passaria a depender tica se desencaminha, daquÍ não decorrerão provavelmente apenas desilu-
do grau de benevolência e de camaradagem que qualquer sociedade especí- sões, mas também desorganizações. A esquecer a possibilidade de que,
fica conseguisse inspirar. A independência do eu não significa que seja quando a política funciona devidamente, podemos conhecer um bem em
capaz, por uma questão psicológica, de convocar, nesta ou naquela circuns- comum que não somos capazes de conhecer sozinhos.
tância, o distanciamento necessário para me poder situar fora dos meus
valores e dos meus fins, mas antes que eu tenha de me perspectivar como o
portador de um eu distinto dos meus valores e dos meus fins, sejam eles
quais forem. Trata-se, acima de tudo, de uma reivindicação epistemológica,
que tem pouco a ver com a intensidade relativa dos sentimentos associados
às relações públicas ou privadas.
Entendida como uma reivindicação epistemológica, porém, a concep-
ção deontológica do eu não pode admitir a distinção exigida. Permitir possi-
bilidades constitutivas quando se encontram em causa fins "privados"
parece conduzir inevitavelmente a que se permita pelo menos a possibili-
dade de os fins "públicos" poderem ser igualmente constitutivos. A partir do
momento em que as fronteiras do eu deixam de ser fixas, individuadas ante-
cipadamente e dadas anteriormente à experiência, não há como determinar,
por princípio, que tipos de experiências as poderão enformar ou remodelar,
nenhuma garantia de que só os eventos "privados" poderão de uma maneira
concebível tornar-se decisivos, mas nunca os "públicos".
Os cidadãos da república deontológica não são egoístas, mas estranhos,
por vezes benevolentes. A justiça encontra o seu momento na medida em
que não nos podemos conhecer suficientemente uns aos outros, ou aos nos-
sos fins, para nos governarmos apenas pelo bem comum. Provavelmente,
esta condição não desaparecerá por completo e, enquanto isso não se verifi-
car, a justiça será necessária. Mas tão-pouco está garantido que predomine
para sempre e, na medida em que assim é, a comunidade será uma possibi-
lidade e uma presença perturbadora para a justiça.
Uma resposta ao liberalismo político de Rawls

Neste novo capítulo final" procuro responder à versão revista do libera-


lismo que John Rawls apresenta em O Liberalismo Político2 • Antes, porém, de
o fazer, gostaria de contextualizar o seu livro mais recente, descrevendo as
diferentes linhas de pensamento que tem vindo a inspirar.
O facto de a obra inicial de Rawls, Uma teoria da justiça 3, ter provocado
não um debate, mas três é bem a medida da sua grandeza. O primeiro, que se
tornou já um ponto de partida para estudantes de Filosofia Moral e Política,
reporta-se à polémica entre os utilitaristas e os liberais que se norteiam
pelos direitos individuais. A justiça alicerça-se na utilidade, como defendem
Jeremy Bentham e John Stuart Mill, ou o respeito pelos direitos dos indiví-
duos exige um fundamento para a justiça independente de considerações
utilitaristas, conforme sustentam Kant e Rawls? Antes da obra de Rawls, o
utilitarismo era a perspectiva dominante no mundo anglo-americano de
filosofia moral e política. Desde a publicação de Uma Teoria da Justiça, o
liberalismo norteado pelos direitos tornou-se predominante 4.
O segundo debate inspirado pela obra de Rawls diz respeito à polémica
que se desenvolve no interior do liberalismo orientado para os direitos. Se
certos direitos individuais são tão importantes que nem sequer considera-
ções de bem-estar geral se lhes podem sobrepor, restará indagar que direitos
são estes. Os liberais libertários, como Robert Nozick e Friedrich Hayek,

I Uma versão inicial deste capítulo surgiu na Harvard Law Review, vol. 107, n.O 7, Maio de

1994, p. 1765-1794. Agradeço a Yochaí Benckler, Joshua Cohen, Stephen Macedo e J. Russel
Muirhead, pelos seus úteis comentários e críticas.
2 John Rawls, Political Liberalism (1993). [Publicado em português pela Editorial Presença

em 1997 com o título O Liberalismo Político.]


3 John Rawls, A Theory offustice (1971) [Publicado em português pela Editorial Presença em

1993 com o título Uma Teoria dafustiça.]


4 Cf. H. L. A. Hart, "Between Utility and Rights", in Alan Ryan, ed., the Idea of Freedom,

1979, p. 77-98.
244 245

argumentam que os governos devem respeitar as liberdades civis e ~olíticas Contestando a prioridade do justo sobre o bom
fundamentais, bem como o direito aos frutos do trabalho, tal como e outor-
gado pela economia de mercado. Políticas redistributivas que lançam Para Rawls, tal como para Kant, o justo é anterior ao bom em dois sen-
impostos sobre os ricos de modo a auxiliar os pobres violariam, por isso, os tidos, e toma-se importante distingui-los. Em primeiro lugar, o justo é ante-
nossos direitos 5. Os liberais igualitaristas, como Rawls, discordam. Jlúgumen- rior ao bom no sentido em que certos direitos individuais funcionam como
tam que não podemos exercer com significado as nossas liberdades civis e "trunfos", sobrepondo-se a considerações do bem comum. Em segundo
políticas se as nossas necessidades económicas e sociais básicas não se lugar; o justo é anterior ao bom na medida em que os princípios da justiça
encontrarem satisfeitas. Assim, os governos deverão garantir a cada pessoa, que especificam os nossos direitos não dependem para a sua justificação de
por uma questão de justiça, um nível decente de bens como a educação, o qualquer concepção particular da vida boa. Foi esta segunda reivindicação
rendimento, a habitação, a saúde, e similares. O debate entre as versões de prioridade do justo que desencadeou a vaga mais recente de debate
libertária e igualitarista do liberalismo orientado para os direitos que flores- acerca do liberalismo rawlsiano, um argumento que floresceu nas décadas de
ceu nos meios académicos durante os anos 70 corresponde, grosso modo, ao 80 e de 90 do século XX sob o rótulo algo enganador de "debate entre liberais
e comunitaristas".
debate a que se assiste na política norte-americana, desde o New Deal, entre
os defensores da economia de mercado e os que propõem o Estado de Bem- Escrevendo na década de 80, alguns especialistas em filosofia política
-Estar. contestaram a noção de que é possível destacar a justiça de considerações do
bem. Os desafios ao liberalismo orientado para os direitos, do género
O terceiro debate desencadeado pelo trabalho de Rawls está centrado
daqueles que encontramos nas obras de Alasdair MacIntyre 9, Charles
num pressuposto que é igualmente partilhado pelos libertários e pelos igua- 'o ll
Taylor , Michael Walzer , e em alguns dos meus próprios textos' 2 , são por
litários. Trata-se da noção de que os governos devem olhar com neutralidade
vezes rotulados de crítica "comunitarista" ao liberalismo. O termo "comuni-
para as concepções alternativas da vida boa que se apresentem. Apesar.das
tarista" é no entanto equívoco, na medida em que implica que os direitos
perspectivas distintas que apresentam sobre os direitos que temos, os lIbe-
repousam sobre os valores e as preferências prevalecentes numa determi-
rais orientados para os direitos concordam todos em que os princípios da
nada comunidade e num período de tempo específico. Poucos, se é que
justiça que especificam os nossos direitos não devem ver a sua justificação
alguns, daqueles que desafiaram a prioridade do justo serão comunitaristas
depender de qualquer concepção particular da vida boa 6. Esta noção,
neste sentido. A questão não é saber se os direitos devem ser respeitados,
nuclear para o liberalismo de Kant 7, Rawls 8 e muitos liberais contemporâ-
mas se eles podem ser identificados e justificados de um modo que não
neos, está contida na reivindicação de que o justo é anterior ao bom.
pressupõe uma qualquer concepção particular do bem. Aquilo que está em
causa no terceiro debate acerca do liberalismo de Rawls não é o peso relativo
das reivindicações dos indivíduos e das comunidades, respectivamente, mas
os termos da relação entre o justo e o bom '3 .
i Robert Nozick, Anarchy, State and Utopia, 1974; Friedrich Hayek, The Constitution of
Liberty, 1960. .
fi Cf. Rawls, Uma Teoria da Justiça; Nozick, Anarchy, State and UtoPia, p. 33; Ronald 9 Alasdair MacIntyre, After Virtue, 1981; Is Patriotism a Virtue?, 1984; Whose Justice? Which

Dworkin, "Liberalism", in Stuart Hampshire, ed., Public and Private Morality, p. 127, 1978; Ronald Ratio17ality, 1988.
k· Takl·ng Rights Seriously 1977; Bruce Ackerman, Social Justíce in the Liberal State, 10 Charles Taylor, "The Nature and Scope of Distributive Justice", in Charles Taylor, Philo-
D~r~." .. .. 1980;
"
Charles Fried, Right and Wrong, 19i8; Thomas Nagel, "Moral Conflict and Pohtlcal Legttnnacy , sophy and the Huma17 Sciences, 2 Philosophical Papers, p. 289-317, 1985; Sources ofthe Self, 1989.
17, Philosophy and Public Affairs, p. 227-337, 1987; Charles Larmore, Patterm of Moral Com- 11 Michael Walzer, Spheres ofJustice, 1983. [Há tradução portuguesa pela Editorial Presença,

plexity,1987. .. de 1999, com o título As Esferas da Justiçaj.


7 lmmanuel Kant, Groundwork of the Metaphysics of MoraIs, 1785; Kant, Cntlque of PU7~e 12 Michael J. Sandel, Liberalism and the Limits ofJustíce, 1982; "The Procedural Republic and

Reason, 1788; "On the Common Saying 'This May Be True in Theory, But It Does Not Apply m the Unencumbered Self", 12, Polítical Theory, p. 81-96,1984.
Practice' ", 1793, in Hans Reiss, ed., Kant's Political Writings, p. 61-92,1970. 13 Este debate desenvolve-se ao longo dos trabalhos citados na Parte II da bibliografia deste

B Rawls, Uma Teoria da Justiça, p. 30-32 (46-47), 446-451 (341-345), 560 (422-423). livro, a qual se reporta às décadas de 80 e de 90 do último século.
246 247

Aqueles que questionam a prioridade do justo argumentam que a jus- texto de Uma Teoria da Justiça. A sua apresentação mais explícita, encon-
tiça é relativa ao bem, e não independente dele. Não é razoável pressupor tramo-la já na parte final do livro, na concepção do "bem da justiça" que nos
que, enquanto exercício filosófico, as nossas reflexões acerca da justiça pos- é oferecida por Rawls. Aqui, seguindo Kant, Rawls defende que as perspecti-
sam ser desligadas das nossas reflexões acerca da natureza da vida boa e dos vas teleológicas estão "radicalmente equivocadas" na medida em que corre-
fins mais elevados do homem. Já no domínio da política, as nossas delibera- lacionam de forma errada o justo com o bom.
ções acerca da justiça e dos direitos não podem prosseguir fora do quadro
das concepções do bem que encontram expressão nas múltiplas culturas e "Não devemos tentar dar forma às nossas vidas olhando pri-
tradições dentro das quais estas deliberações se efcctuam. meiro para o bem definido de forma independente. Não são os
Uma boa parte do debate acerca da prioridade do justo tem-se vindo a nossos objectivos que primariamente revelam a nossa natureza,
centrar em concepções alternativas da pessoa e no modo como devemos mas antes os princípios que aceitaríamos como regendo as condi-
compreender a nossa relação com os fins que adoptamos. Será que, ções de fundo sobre as quais estes objectivos devem ser formados,
enquanto agentes morais, apenas temos obrigações relativamente aos fins e bem como o modo como eles devem ser perseguidos. O eu é ante-
aos papéis que elegemos para nós próprios, ou será que, por vezes, também rior aos objectivos que defende; até mesmo um objectivo domi-
temos uma obrigação de cumprir certos fins que não escolhemos - fins que nante tem de ser escoUlido de entre numerosas possibilidades. [... ]
nos são dados pela natureza, ou por Deus, por exemplo, ou pela nossa iden- Logo, devemos inverter a relação entre o justo e o bem que é pro-
tidade enquanto membros de uma farriília, de um povo, de uma cultura ou posta pelas doutrinas teleológicas, de modo a reconhecer a priori-
de uma tradição? De várias maneiras, aqueles que criticaram a prioridade do dade do justo"l4.
justo têm vindo a resistir à noção de que somos capazes de imprimir sentido
às nossas obrigações morais e políticas inteiramente em termos voluntaristas Em Uma teoria da justiça, a prioridade do eu relativamente aos seus
ou contratuais. fins sustenta a prioridade do justo sobre o bom. "Assim, um sujeito moral é
Na sua obra Uma Teoria da Justiça, Rawls liga a prioridade do justo a alguém que possui objectivos por si escolhidos, e cuja preferência funda-
uma concepção voluntarista ou largamente kantiana da pessoa. De acordo mental se dirige para condições que lhe permitem construir um modo de
com esta concepção, aquilo que nos define não é apenas a soma dos nossos vida que expresse a sua natureza enquanto ser racional livre e igual, de forma
desejos, como pressupõe o utilitarismo, nem tão-pouco o sermos seres cuja tão plena quanto as circunstâncias o permitam"15. A noção de que somos eus
perfeição reside na concretização de determinados propósitos ou fins que livres e independentes, isentos de laços morais anteriores, garante que as
nos são fornecidos pela natureza, como defendeu Aristóteles. Em vez disso, considerações da justiça prevalecerão sempre face a objectivos mais parti-
nós somos eus livres e independentes, libertos de quaisquer laços morais culares. Numa expressão elo quente do liberalismo kantiano, Rawls explica a
anteriores, capazes de eleger os nossos fins por nós próprios. Esta é a con- 'importância moral da prioridade do justo nos termos seguintes:
cepção de pessoa que encontra expressão no ideal do Estado enquanto qua-
dro neutro. É precisamente porque somos eus livres e independentes, capa- "Mas o desejo de expressar a nossa natureza enquanto seres
zes de eleger os nossos próprios fins, que necessitamos de um quadro que racionais livres e iguais pode ser cumprido apenas quando agimos
seja neutral relativamente a esses mesmos fins. Basear os direitos numa no pressuposto de que os princípios do justo e da justiça conhe-
qualquer concepção do bem equivaleria a impor a alguns os valores de cem total prioridade. [... ] É ao agir de acordo com esta prioridade
outros e, deste modo, a não respeitar a capacidade de cada um para escolher que expressamos a nossa liberdade relativamente às contingên-
os seus próprios fins.
Esta concepção da pessoa, e o modo como está associada ao argumento "Rawls, Uma Teoria da justiça, p. 560 (422).
em favor da prioridade do justo, estão bem expressos ao longo de todo o Ibid., p. 561 (423).
15
248 249

cias do acaso. Assim, para realizar a nossa natureza, não temos nas primeiras duas vagas do debate, acerca do utilitarismo em contraposição
outra alternativa que não seja a de planear a preservação do nosso aos direitos, e das noções libertária e igualitária de justiça distributiva.
sentido da justiça e fazê-lo dominar os nossos restantes objectivos. O Liberalismo Político centra-se, antes, nas questões colocadas pela terceira
Este sentimento não pode ser satisfeito se aceitarmos compromis- vaga do debate, acerca da prioridade do justo.
sos e se ponderarmos este objectivo, relativamente aos restantes, Em face da controvérsia acerca da concepção kantiana da pessoa que
como não sendo senão um de entre muitos desejos. [... ) O sucesso s~stenta a prioridade do justo, é possível apresentar pelo menos duas res-
que conhecemos na expressão da nossa natureza depende da postas. Uma será defender o liberalismo defendendo a concepção kantiana
coerência com que agirmos em acordo com o nosso sentimento da pessoa; a outra será defender o liberalismo desligando-o da concepção
da justiça, considerado como determinante de forma irrevogável. kantiana. Em O Liberalismo Político, Rawls adopta a segunda via. Em vez de
O que não podemos fazer é expressar a nossa natureza seguindo defender a concepção kantiana da pessoa enquanto ideal moral, argumenta
um plano que veja o sentido da justiça como apenas um desejo a que o liberalismo, tal como o entende, não depende de modo algum de uma
ser ponderado entre outros. Este sentimento revela aquilo que o tal concepção da pessoa. A prioridade do justo sobre o bom não pressupõe
sujeito é, e o compromisso nesta matéria não permite ao eu atingir qualquer concepção particular da pessoa - nem sequer aquela que ele pró-
a liberdade plena, equivalendo, antes, a ceder aos acidentes e prio propõe na terceira parte de Uma Teoria da Justiça.
contingências do mundo!'6".
O liberalismo - político vs. abrangente. O argumento em favor do libera-
Em modos diferentes, aqueles que questionam a prioridade do justo lismo agora defendido por Rawls apresenta uma feição política, e não filosó-
contestam a concepção da pessoa de Rawls, perspectivada como um eu livre fica ou metafísica, razão pela qual não depende de quaisquer postulados
e independente, destituído de laços morais anteriores l7 • Defendem que uma controversos acerca da natureza do eu. A prioridade do justo sobre o bom
concepção do eu dada antes dos seus objectivos e dos seus vínculos não não decorre da aplicação da filosofia moral kantiana à política, constituindo
.consegue fazer sentido de determinados aspectos importantes da nossa antes uma resposta prática ao facto, corrente nas sociedades democráticas
experiência moral e política. Certas obrigações morais e políticas que com- modernas, de as pessoas apresentarem de forma emblemática concepções
murriente reconhecemos - obrigações de solidariedade, por exemplo, ou distintas acerca do bem. Uma vez que as concepções morais e religiosas das
deveres religiosos - podem constituir para nós obrigações que nada têm a ver pessoas muito provavelmente não irão convergir, torna-se mais razoável
com uma escolha. Não é possível superar estas objecções dizendo apenas procurar consensos sobre princípios da justiça que sejam neutros relativa-
que se apresentam de modo confuso; embora se torne difícil entendê-las mente a estas controvérsias.
quando nos perspectivarmos como eus livres e independentes, sem quais- Nuclear para esta perspectiva revista de Rawls é a distinção entre o
quer vínculos morais que não sejam aqueles que elegemos 'B . liberalismo político e o liberalismo enquanto parte de uma doutrina moral
mais abrangente. O liberalismo mais abrangente propõe dispositivos políti-
Defendendo a prioridade do justo sobre o bom cos liberais em nome de certos ideais morais, como a autonomia, a indivi-
dualidade ou a autoconfiança. Exemplos de liberalismo enquanto doutrina
No seu livro O Liberalismo Político, Rawls defende o postulado de prio- moral abrangente são as perspectivas liberais de Kant e de John Stuart Mill" 9 •
ridade do justo sobre o bom. Deixa de parte, no geral, as questões levantadas
19 Para exemplos recentes de liberalismo abrangente, cf. George Kateb. The Inner Ocean:

16 Ibid., p. 574-575 (432-433). /ndividualism and Democratic Culture (1992), e Joseph Raz, The Morality of Preedom (1986). No
"Veja-se, por exemplo, Larmore, Patterns ofMoral Complexity, 1987, p. 118-130. seu texto "Poundations of Liberal Equality", XI The Tanner Lectures on Human Values, pp. 1-119
18 Cf. MacIntyre, After Virtue, p. 190-209; Is Patriotism a Yirtue? The Lindley Lecture, 1984; (1990), RonaId Dworkin descreve a sua perspectiva como constituindo urna versão de liberalismo
SandeI, Liberalism and the Limits ofJustice, 1982, p. 175-183; Taylor, Sources ofthe Self, 1989. abrangente.
250 251

Tal como Rawls reconhece, a versão de liberalismo apresentada no seu livro como uma perspectiva "solta", que "aplica o princípio da tolerância à própria
Uma Teoria da Justiça constitui, também ela, um exemplo de liberalismo filosofia"22.
abrangente. "Uma característica essencial de uma sociedade bem ordenada Apesar de renunciar a depender da concepção kantiana de pessoa, o
associada à justiça como equidade é a de que todos os seus cidadãos liberalismo político não abdica por inteiro de uma concepção de pessoa.
subscrevem essa concepção de acordo com o que designo por doutrina filo- Rawls é o primeiro a reconhecer que uma tal concepção é necessária para a
Zo
sófica abrangente ". Agora, Rawls reexamina esta característica, reformu- ideiada posição original, bem como para o contrato social hipotético que dá
lando a sua teoria como uma" concepção política da justiça". origem aos princípios da justiça. Rawls havia argumentado em Uma Teoria
Ao contrário do liberalismo abrangente, o liberalismo político recusa-se da Justiça que o modo adequado para se pensar a justiça consiste em indagar
a tomar partido perante as controvérsias morais e religiosas que emergem a quais são os princípios da justiça que seriam adoptados por comum acordo
partir das doutrinas abrangentes, incluindo as controvérsias acerca das con- por pessoas que se encontrassem reunidas numa situação inicial de igual-
cepções do eu: "Quais os juízos morais que são verdadeiros, tudo conside- dade, em que cada uma ignorasse temporariamente qual é a sua raça e a sua
rado, não é uma questão para o liberalismo político [... ] Para manter a impar- classe social, a sua religião e o seu sexo, os seus objectivos e os seus vínculos.
cialidáde entre as diversas doutrinas abrangentes, ele não se dirige especifi- Porém, para que este modo de reflexão possa ser procedente, o projecto da
camente aos tópicos morais a partir dos quais estas doutrinas divergem" ZI. posição original tem de reflectir algo acerca do tipo de pessoas que somos na
Perante a dificuldade de se çonseguir chegar a acordo relativamente a uma realidade ou do tipo de pessoas que seríamos quando inseridos numa socie-
concepção abrangente, não é razoável esperar que, até mesmo numa socie- dade justa.
dade bem organizada, as pessoas apoiem as instituições liberais pelas Uma maneira de justificar o projecto da posição original seria através
mesmas razões, por exemplo enquanto expressão da prioridade do eu sobre do recurso à concepção kantiana da pessoa proposta por Rawls na Parte III
os seus fins. O liberalismo político abandona esta esperança, considerando-a de Uma Teoria da Justiça. Se a capacidade que detemos para escolher os nos-
irrealista e contrária ao objectivo de alicerçar a justiça sobre princípios que sos fins é mais fundamental para a noss.a natureza, enquanto pessoas morais,
possam ser aceites por defensores de diferentes concepções morais e religio- do que os fins específicos que elegemos, se "o que primariamente revela a
sas. Em vez de procurar uma fundamentação filosófica para os princípios da nossa natureza não são os objectivos mas antes os princípios que aceitaría-
justiça, o liberalismo político busca o apoio de um "consenso de sobreposi- mos como regendo as condições de fundo sobre as quais esses objectivos
ção". O que significa que pessoas diferentes possam ser persuadidas a apro- .devem ser formados"23, se "o eu é anterior aos objectivos que defende"z.,
var dispositivos políticos liberais, tais como aqueles que se reportam ao prin- então faz todo o sentido pensar a justiça a partir da perspectiva de pessoas
cípio de igualdade de liberdades fundamentais, por razões diferentes, que estejam a deliberar antes de deterem qualquer conhecimento acerca dos
reflectindo as distintas concepções abrangentes de índole moral e religiosa fins que irão perseguir. Se "um sujeito moral é alguém que possui objectivos
que defendem. Uma vez que a sua justificação não depende de nenhuma por si escolhidos, e a sua preferência fundamental dirige-se para condições
destas concepções morais ou religiosas, o liberalismo político é apresentado que lhe permitem construir um modo de vida que expresse a sua natureza
enquanto ser racional livre e igual, de forma tão plena quanto as circunstân-
cias o permitam,,25, então a posição original poderá ser justificada enquanto
20 Rawls, Política I Liberalism, p. xvi. [Citado a partir da tradução portuguesa publicada em
expressão da nossa personalidade moral e da "preferência fundamental" que
Lisboa pela Editorial Presença em 1999 com o título O Liberalismo Político, p. 15. De seguida, e tal
como havíamos feito relativamente ao texto de Rawls, Uma Teoria da Justiça, também nas
dela decorre.
citações de O Liberalismo Político apresentar-se-ão os números das páginas da edição original,
em língua inglesa, e entre parêntesis os números das páginas correspondentes à edição da 22 Ibid., p. 10 (38).
tradução portuguesa - que adoptamos, a não ser que se torne necessário introduzir-lbe alguma 23 Rawls, Uma Teoria da Justiça, p. 560 (422).
correcção.] 24 Ibid. loc. cito

21 Ibid., p. xx, xxviii (18, 25). 25 Ibid., p. 561 (423).


252 253

Porém, a partir do momento em que Rawls retira a confiança que havia encontrar-se vinculadas a lealdades e a compromissos "dos quais acreditam
depositado na concepção kantiana da pessoa, deixa de ser possível justificar que não se conseguem afastar e avaliar objectivamente, crendo mesmo que
a posição original desta maneira. No entanto, isto levanta uma questão difí- não podem e não devem fazê-lo. Podem até julgar como perfeitamente
cil. Que razão subsiste para se continuar a insistir em que as nossas reflexões impensável encararem-se a si próprias como desvinculadas das suas
acerca da justiça se processem fora de qualquer referência aos nossos propó- convicções religiosas, morais e filosóficas ou desligadas de certos compro-
sitos e aos nossos fins? Por que razão devemos "excluir", ou pôr de lado, as missos e lealdades duradouros,,27. No entanto, independentemente do con-
nossas convicções morais e religiosas e as nossas concepções da vida boa? teúdo de que as nossas identidades pessoais se possam encontrar sobre-
Porque é que os princípios da justiça que governam a estrutura básica da carregadas, independentemente das pretensões que as nossas convicções
sociedade não devem decorrer do nosso melhor entendimento acerca morais ou religiosas possam deter sobre elas, em público, temos de colocar
daquilo que são os fins humanos mais elevados? esse conteúdo entre parêntesis e de superar as pretensões que nos apresente,
de modo a nos perspectivarmos a nós próprios, enquanto eus públicos,
A concepção política da pessoa. O liberalismo político responde da como independentes de quaisquer lealdades, vínculos ou concepções do
seguinte forma. A razão pela qual devemos pensar a justiça a partir da pers- .bem específicas.
pectiva de pessoas que se elevam acima dos seus fins não se prende com o Uma característica conexa da concepção política da pessoa prende-se
facto de este procedimento exprimir a nossa natureza enquanto eus livres e com O facto de sermos "fontes de pretensões válidas que se autenticam a si
independentes, dados antes dos seus fins. Pelo contrário, este modo de pen- mesmas,,2B. As exigências que apresentamos enquanto cidadãos, sejam elas
sar a justiça justifica-se pelo facto de que, para efeitos políticos, se bem que quais forem, têm peso simplesmente em virtude de terem sido apresentadas
.não necessariamente para efeitos morais, nos devemos perspectivar a nós por nós (desde que não sejam injustas). Na perspectiva do liberalismo polí-
próprios como cidadãos livres e independentes, sem nos encontrarmos tico, o facto de algumas exigências poderem reflectir ideais morais ou religio-
sujeitos a deveres ou obrigações anteriores. Para o liberalismo político, sos elevados, ou noções de patriotismo e de bem comum, enquanto que
aquilo que justifica o projecto da posição original é uma "concepção da pes- outras exprimem meros interesses ou preferências, não é relevante. Do
soa". A concepção política da pessoa encarnada na posição original asseme- ponto de vista político, as exigências alicerçadas em deveres e obrigações de
lha-se muito à concepção kantiana da pessoa, com a diferença importante de cidadania, de solidariedade ou de fé religiosa mais não são do que objectos
que o seu alcance se encontra limitado à nossa identidade pública, isto é, à do desejo das pessoas - nada mais, nada menos. A sua validade, enquanto
nossa identidade enquanto cidadãos. Assim, por exemplo, a nossa liberdade exigências políticas, nada tem a ver com a importância moral dos bens que
enquanto cidadãos exprime o facto de que a nossa identidade pública não afirmam, antes reside apenas no facto de terem sido afirmadas por alguém.
está condicionada nem definida pelos fins que adoptamos em qualquer Em termos políticos, até mesmo os mandamentos divinos e os imperativos
momento determinado. Enquanto pessoas livres, os cidadãos perspectivam- de consciência estão incluídos nas exigências "que se autenticam a si mes-
-se a si próprios "como independentes e não identificados com nenhuma tal mas,,29. O que garante que, para efeitos políticos, até mesmo aqueles que se
concepção específica, ou seja com o seu respectivo quadro de fins últimos"26.
A nossa identidade pública não é afectada pelas alterações que se operam
com o tempo sobre as nossas concepções do bem. 27 Ibid., p. 31 (56).
21l Ibid., p. 32 (57).
Relativamente à nossa identidade pessoal, não pública, Rawls admite '" A noção de que devemos encarar os nossos deveres morais e religiosos como
que podemos encarar os nossos "fins e vínculos de modo muito diferente do "autenticando-se a si mesmos, nUma perspectiva política" Cibid., p. 33), está em harmonia com a
pressuposto pela concepção política". Neste contexto, as pessoas podem afirmação de Rawls em Uma Teoria da Justiça segundo a qual "do ponto de vista da teoria da
justiça como equidade, essas obrigações [morais e religiosas] são voluntárias" [206 (171)]. No
entanto, não se vislumbra qual possa ser a justificação para, numa tal perspectiva, se acordar às
2fi Rawls, o Liberalismo Político, p. 30 (56). convicções religiosas ou às exigências da consciência um respeito especial que não se atribui às
254 255

encaram a si mesmos como vinculados por obrigações morais, religiosas ou fornece um fundamento suficiente para a afirmarmos e para adaptarmos a
comunais são, no entanto, eus destituídos de conteúdo. concepção da justiça que sustenta? Os textos mais recentes de Rawls têm
Esta concepção política da pessoa explica por que é que, de acordo com sido lidos por alguns como sugerindo que a justiça como equidade, sendo
o liberalismo político, devemos reflectir acerca da justiça, tal como a posição uma concepção política da justiça, não necessita de qualquer justificação
original nos convida a fazer, sem termos em conta os nossos fins. No entanto, moral ou filosófica para além do recurso aos entendimentos partilhados
isto leva-nos a colocar a questão adicional de saber por que razão devemos implícitos na nossa cultura política. O próprio Rawls parece ter convidado
adaptar a perspectiva da concepção política da pessoa em primeiro lugar. 'esta interpretação ao escrever, num artigo publicado depois de Uma Teoria
Por que razão as nossas identidades políticas não devem exprimir as convic- da Justiça e antes de O Liberalismo Político, o s.eguinte:
.ções morais, religiosas e comunais que afirmamos nas nossas vidas privadas?
Porquê insistir na separação entre a nossa identidade enquanto cidadãos e a "Aquilo que justifica uma concepção da justiça não é o facto
nossa identidade enquanto pessoas morais, concebidas de forma mais de ser verdadeira relativamente a um ordenamento que a ante-
ampla? Porque é que, quando deliberamos acerca da justiça, devemos pôr de cede e que nos tenha sido dado, mas a sua congruência com os
parte os juízos morais que enformam o resto das nossas vidas? nossos entendimentos mais profundos de quem somos e das nos-
Rawls responde dizendo que esta separação, ou este "dualismo", entre sas aspirações, bem como a nossa percepção de que, dada a nossa
a nossa identidade enquanto cidadãos e a nossa identidade enquanto pes- história e as tradições implantadas na nossa vida pública, ela
soas, "tem origem na natureza especial da cultura política democrática,,30. constitui a doutrina mais razoável para nós"32.
Nas sociedades tradicionais, as pessoas procuravam talhar a vida política à
imagem dos seus ideais morais e religiosos abrangentes. Porém, numa socie- Richard Rorty, num artigo perspicaz, interpreta (e acolhe com prazer) a
dade democrática moderna como a nossa, caracterizada, como de facto perspectiva revista de Rawls como sendo "plenamente historicista e anti-
acontece, por uma pluralidade de perspectivas morais e religiosas, nós dis- -universalista"33. Enquanto que Uma Teoria da Justiça parecia alicerçar a jus-
tinguimos emblematicamente a nossa identidade pública da nossa identi- tiça numa concepção kantiana da pessoa, escreve Rorty, o liberalismo de
dade privada. Por mais seguro que eu possa estar da verdade dos ideais Rawls "já não parece estar comprometido com uma concepção filosófica do
morais e religiosos que abraço, não insisto em que a estrutura básica da eu humano, mas apenas com uma descrição histórico-sociológica do modo
sociedade os espelhe. Tal como em outros aspectos do liberalismo político, a como agora vivemos,,34. Nesta perspectiva, Rawls não nos "fornece funda-
concepção política da pessoa enquanto eu livre e independente encontra-se mentos filosóficos para as instituições democráticas, mas apenas procura
"implícita no seio da cultura política pública de uma sociedade demo- sistematizar os princípios e as instituições típicas dos liberais norte-
crática"31. ·-americanos"3s. Rorty aprova aquilo que considera ser a viragem pragmática
Mas suponhamos que Rawls tem razão e que a auto-imagem liberal que de Rawls, uma viragem que se afasta da noção de que os dispositivos políti-
'nos atribui se encontra implícita na nossa cultura política. Será que isto nos cos liberais exigem uma justificação filosófica, ou uma "fundamentação
extrapolítica" numa teoria do sujeito humano.
demais preferências que as pessoas possam apresentar com uma intensidade igual ou ainda
maior [205-211 (170-175)].
30 Ibid., p. xxi (19). [Nota do tradutor: Há uma ligeira diferença entre a citação apresentada

por Sandel e o texto original de Rawls. Sandel cita Rawls escrevendo: "originates in the special
nature of modem democratic societies" ("tem origem na natureza especial das sociedades 32 Rawls, "Kantian Constructivism in Moral Theory", 77 Journal ofPhilosophy, 519 (1980).
:13Richard Rorty, "The Priority of Democracy to Philosophy", in Merril D. Peterson e Robert
democráticas modernas"), enquanto que no original se pode ler "originates in the special nature
C. Vaughan, eds., The Virginia Statute for Religious Freedom, 1988, p. 262.
of democratic political culture" ("tem origem na natureza especial da cultura política
34 Ibid., p. 265.
democrática")].
35 Ibid., p. 268.
31 Ibid., p. 13 (42).
256 257

"Na medida em que a justiça se torna a primeira virtude de Rawls sublinha que afirmar as virtudes liberais enquanto bens públicos
uma sociedade [escreve Rorty] a necessidade de uma legitimação muito importantes e encorajar o seu cultivo não é o mesmo que aprovar um
desta natureza deixa gradualmente de se fazer sentir. Uma tal Estado perfeccionista alicerçado sobre uma concepção moral abrangente.
sociedade acostumar-se-á à noção de que a política social não Fazê-lo não equivale a contradizer a prioridade do justo sobre o bom, na
carece de mais autoridade do que o compromisso entre indiví- medida em que o liberalismo político afirma as virtudes liberais unicamente
duos, indivíduos que se encontram na posição de herdeiros das para efeitos políticos - pelo papel que desempenham em suporte de um
mesmas tradições históricas e que se deparam com os mesmos regime constitucional que protege os direitos das pessoas. Se estas virtudes
desafios"36. devem figurar na vida moral das pessoas em geral, e até que ponto é que
assim deve acontecer, são já questões a que o liberalismo político não se
Em O Liberalismo Político, Rawls afasta-se desta concepção puramente propõe responder4o •
pragmática. Apesar de a justiça como equidade começar "por olhar para a
cultura pública em si mesma, enquanto fundo partilhado de ideias e princí-
pios básicos implicitamente reconhecidos"37, ela não afirma estes princípios Avaliando o liberalismo político
apenas com base no facto de serem amplamente partilhados. Se bem que
Rawls defenda que os seus princípios da justiça poderiam ganhar o apoio de Se O Liberalismo Político defende a prioridade do justo separando-o da
um consenso de sobreposição, o consenso de sobreposição que procura concepção kantiana da pessoa, até que ponto é convincente a sua defesa?
"não é um mero modus vivendi,,38, ou um compromisso entre perspectivas Conforme procurarei argumentar, O Liberalismo Político salva a prioridade
alternativas. Defensores de concepções morais e religiosas diferentes come- do justo das controvérsias acerca da natureza do eu, mas apenas a expensas
çam porsancionar os princípios da justiça por razões que retiram do seio das de a tornar vulnerável noutros campos. Em concreto, procurarei demonstrar
suas próprias concepções. Mas, se tudo correr bem, acabarão por apoiar 'que o liberalismo concebido como uma concepção política da justiça está
estes princípios pelo facto de exprimirem valores políticos importantes. exposto a três objecções.
À medida que as pessoas aprendem a viver numa sociedade pluralista gover- Em primeiro lugar, e independentemente da importância dos "valores
nada por instituições liberais, elas adquirem virtudes que reforçam os seus políticos" para que Rawls apela, nem sempre é razoável excluir ou pôr de
'compromissos para com os princípios liberais. parte, para efeitos políticos, as exigências e reivindicações que emergem a
partir de doutrinas morais. e religiosas abrangentes. No que a questões
"As virtudes da cooperação política que tornam possível um morais importantes diz respeito, a questão de saber se é ou não razoável
regime constitucional são [... ] virtudes muito elevadas. Refiro-me, excluir controvérsias morais e religiosas de modo a salvaguardar um acordo
por exemplo, à virtude da tolerância e à de estar pronto a selar político depende de qual das doutrinas morais ou religiosas em causa é ver-
compromissos com outrem na base de cedências semelhantes, dadeira.
bem como à virtude da razoabilidade e ao sentido da equidade. Em segundo lugar, para o liberalismo político, o argumento em favor da
Quando estas virtudes estão difundidas na sociedade e sustentam prioridade do justo sobre o bom depende do postulado de que as sociedades
a sua concepção política da justiça, constituem um bem público democráticas contemporâneas se caracterizam por um "facto de um plura-
muito importante,,39. lismo razoável" acerca do bem. Não obstante ser seguramente verdade que
nas sociedades democráticas contemporâneas as pessoas sustentam uma
36 Ibid., p. 264.
variedade de perspectivas morais e religiosas que colidem umas com as
37 Rawls, o Liberalismo Político, p. 8 (37).
3fi Ibid., p. 147 (153).

39 Ibid., p. 157 (161). 40 Ibid., p.194-195 (193-194).


258
259

outras, de modo algum se p"oderá afirmar a existência de um "facto de um pujantes e apelativos ao ponto de serem capazes de quebrar a exclusão, por
pluralismo razoável" relativamente à moral e à religião que não seja igual- assim dizer, e superar moralmente os valores políticos da tolerância, da
mente aplicável às questões da justiça. equidade e da cooperação social baseadas no respeito mútuo?
Em terceiro lugar, de acordo com o ideal de razão pública proposto pelo Poder-se-á retorquir que, por um lado, os valores políticos e, por outro,
liberalismo político, os cidadãos não têm legitimidade para pôr em causa aqueles que emergem no quadro de doutrinas morais e religiosas abrangen-
questões políticas e constitucionais fundamentais à luz dos seus ideais . tes correspondem a âmbitos distintos. Os valores políticos, dir-se-á, aplicam-
morais e religiosos. Mas esta é uma restrição excessivamente severa, que -se à estrutura básica da sociedade e aos aspectos constitucionais essenciais,
empobreceria o discurso político e retiraria à deliberação pública importan- enquanto que os valores morais e religiosos se reportam à conduta privada
tes dimensões. .de uma pessoa e às associações de índole voluntária. Mas se se tratasse ape-
nas de uma diferença em termos do domínio a que se reportam, nenhum
Excluindo questões morais importantes. O liberalismo político insiste conflito entre valores políticos e valores morais e religiosos jamais poderia
na exclusão, para efeitos políticos, dos nossos ideais morais e religiosos surgir! não se verificando, portanto, qualquer necessidade para se afirmar,
abrangentes, bem como na separação entre as nossas identidades política e como Rawls faz repetidamente, que numa democracia constitucional gover-
privada. A razão é a seguinte. Nas sociedades democráticas modernas, como nada pelo liberalismo político, "os valores políticos normalmente prepon-
·as nossas, as pessoas apresentam emblematicamente concepções diferentes deram sobre quaisquer valores não políticos que com eles se defrontem,,42.
sobre o que constitui a vida boa. Assim, torna-se necessário proceder à Poderemos perspectivar melhor a dificuldade subjacente ao estabele-
exclusão das nossas convicções morais e religiosas a fim de se assegurar a cimento da prioridade dos "valores políticos" fora de uma referência às rei-
cooperação social com base no respeito mútuo. No entanto, este argumento vindicações da moral e da religião, através do recurso a duas controvérsias
suscita uma questão que o liberalismo político não é capaz de defender no políticas que tocam em questões importantes de natureza moral e religiosa.
quadro dos seus próprios termos. Até mesmo concedendo a importância de Uma é o debate contemporâneo acerca do aborto, a outra é o famoso debate
se assegurar a cooperação social com base no respeito mútuo, o que nos entre Abraham Lincoln e Stephen Douglas acerca da soberania popular e da
garante que este interesse é sempre tão importante ao ponto de superar escravatura.
quaisquer outros interesses alternativos que possam surgir a partir de uma Em face do desacordo intenso que se faz sentir a propósito da admissi-
perspectiva moral ou religiosa abrangente? bilidade do aborto, o argumento em favor da procura de uma solução polí-
Unia maneira de se assegurar a prioridade da concepção política da tica que exclua as questões morais e religiosas que se degladiam - isto é, que
justiça (e, daí, a prioridade do justo) é negar que qualquer das concepções seja neutro perante elas - parecerá ser muito forte. Porém, a resposta à
41
morais ou religiosas que supera possam ser verdadeiras • Mas isto atiraria o questão de saber se é razoável, ou não, excluir, para efeitos políticos, as dou-
liberalismo político exactamente para o tipo de postulados filosóficos que ele trinas abrangentes morais e religiosas em causa depende em larga medida
procura evitar. Rawls sublinha vezes sem conta que o liberalismo político ·de qual destas doutrinas é a verdadeira. Se a doutrina da Igreja Católica esti-
não depende do cepticismo acerca das reivindicações apresentadas pelas ver correcta, e se - no sentido moral relevante - a vida humana começa de
doutrinas morais e filosóficas abrangehtes. Assim, se o liberalismo político facto na concepção, então a exclusão da questão moral e teológica de saber
concede que algumas destas doutrinas podem ser válidas, então o que é que quando é que a vida humana se inicia torna-se muito menos razoável do que
nos garante que nenhuma delas é capaz de produzir valores suficientemente seria no quadro de pressupostos morais e religiosos alternativos. Quanto
mais confiantes estivermos de que os fetos são, no sentido moral relevante,
41 Thomas Hobbes, que podemos interpretar como apresentando uma concepção política
diferentes de bebés, tanto mais confiantes poderemos estar em afirmar uma
da justiça, assegurou a prioridade das suas concepções políticas relativamente às reivindicações
decorrentes de concepções morais e religiosas alternativas negando a validade destas últimas. Cf.
Hobbes, Leviathan, 1651. 42 Rawls, o Liberalismo Político, 146 (151). Cf. igualmente p. 155 (159).
260 261

concepção política da justiça que põe de parte a controvérsia acerca do seu de 1858. O argumento de Douglas em defesa da doutrina da soberania
estatuto moral. popular constituirá, talvez, o caso mais conhecido em toda a história norte-
Um defensor do liberalismo político poderá retorquir dizendo que os -americana em favor da exclusão de questões morais controversas com o
valores políticos da tolerância e da igualdade de direitos de cidadania para as objectivo de se obter um acordo político. Uma vez que as pessoas discorda-
mulheres constituem fundamentos suficientes para justificar a conclusão de vam da moralidade da escravatura, Douglas defendeu que a política nacional
que cada mulher deve ter a liberdade de escolher por si própria se quer fazer sobre esta matéria devia ser neutra. A doutrina de soberania popular que
um aborto. O governo, pelo seu lado, não deve tomar partido na controvérsia de:endeu nã~ considerava a escravatura como sendo uma instituição boa ou
moral e religiosa acerca da questão de saber quando é que começa a vida ma, antes deIXava que fosse a população de cada território livre a emitir os
humana43. No entanto, se a Igreja Católica tiver razão acerca do estatuto seus própri.os juízos. "Atirar o peso do poder federal para um dos pratos da
moral do feto, e se o aborto for moralmente equivalente ao assassinato, nesta balança, seja em favor dos Estados abolicionistas, seja em favor dos Estados
circunstância não se entende por que razão é que os valores políticos da esclav~gistas" violaria os princípios fundamentais da Constituição, correndo-
tolerância e da igualdade das mulheres, não obstante serem importantes, -se o fISCO de uma guerra civil. A única esperança que restava de se manter a
devem prevalecer. Se a doutrina católica estiver correcta, o argumento do unidade do país, argumentou, era ~oncordar em discordar, excluir a
liberalismo político em prol da prioridade dos valores políticos terá de se controvérsia moral acerca da escravatura e respeitar "o direito de cada
transformar numa instância da teoria da guerra justa. Quem o adoptasse Estado e de cada território de decidir estas questões por si mesmo,,44.
teria de demonstrar por que razão estes valores devem prevalecer, mesmo a Lincoln coloca-se em oposição ao argumento de Douglas em favor de
expensas de 1,5 milhões de mortos civis em cada ano que passa. uma concepção política da justiça. Para ele, as políticas devem exprimir, em
Certamente que sugerir a impossibilidade de exclusão da questão moral v:z de evitar, um juízo moral substantivo acerca da escravatura. Apesar de
e teológica de fixar o início da vida humana não é argumentar contra o nao ser um abolicionista, Lincoln acreditava que o governo devia lidar com a
aborto. É apenas demonstrar que o argumento em favor do aborto não é, escravatura como o mal moral que era, e proibir a sua extensão aos territó-
nem pode ser, neutro relativamente àquela controvérsia moral e religiosa. rios. "A verdadeira questão desta controvérsia - que se impõe a todas as
Antes, tem de lidar com as doutrinas abrangentes, morais e religiosas em mentes ~ pre~de-.se com o ·sentimento de uma categoria de pessoas que
jogo, em vez de as evitar. Muitas vezes os liberais resistem a ocuparem-se perspectIva a Instituição da escravatura como sendo um mal, e o de outra
desta questão na medida em que ela viola a prioridade do justo sobre o bom. categoria de pessoas que não a perspectiva como um mal". Lincoln e o
Porém, o debate acerca do aborto demonstra que esta prioridade não pode Partido Republicano viam na escravatura um mal, insistindo em que "fosse
ser sustentada. O argumento em favor do respeito pelo direito da mulher a tratada como um mal, e um dos métodos de a tratar como um mal é tomar
decidir por ela mesma se quer abortar depende da demonstração, que creio providências para que não se alastre mais,,45.
poder ser feita, de que existe uma diferença moral relevante entre, por um ?ouglas ~efendeu que, independentemente das suas perspectivas
lado, abortar um feto num estádio de desenvolvimento relativamente inicial moraiS pesSOaiS, pelo menos para efeitos políticos, ele era agnóstico em
e, por outro, matar uma criança. matéria de escravatura. Era-lhe indiferente se, por plebiscito, a escravatura
Uma segunda ilustração da dificuldade com que se depara uma con- fosse "adoptada ou rejeitada". Lincoln retorquiu dizendo que só era razoável
cepção política da justiça que se propõe excluir questões morais controver- excluir a questão da moralidade da escravatura rio pressuposto de que ela
sas é-nos oferecida pelos debates entre Abraham Lincoln e Stephen Douglas

-13 Rawls parece inclinar-se para esta perspectiva numa nota de rodapé sobre o aborto, sem " Paul M. Angle, ed., Created Equal? The Complete Lincoln-Douglas Debates of 1858,
.p. 369, 374, 1958.
no entanto explicar por que razão é que os valores políticos devem prevalecer até mesmo· no caso
45 1bid., p. 390.
de a doutrina católica estar correcta. Cf. O Liberalismo Político, p. 243-244 (235-236).
262 263

não era o mal moral que considerava que fosse. Qualquer um pode defender perspectiva aplica-se com igual força àqueles argumentos em favor do aborto
a neutralidade política que reivindicam não tomar partido relativamente à controvérsia sobre o
estatuto moral do feto. Até mesmo em face de uma ameaça à cooperação
"desde que não veja qualquer mal na escravatura, mas nin- social tão terrível como a perspectiva de uma guerra civil, Lincoln defendeu
guém o pode logicamente fazer a partir do momento em que na que não fazia sentido, nem moral nem político, excluir a controvérsia moral
verdade nela vir um mal. Nenhum homem poderá logicamente que naquele momento gerava maior dissensão:
dizer que não se importa se um mal for votado favoravelmente ou
rejeitado. Poderá dizer que não se interessa que uma matéria "Eu pergunto, onde é que se encontra a filosofia ou a arte de
moralmente indiferente seja votada favoravelmente ou rejeitada, governar baseada no pressuposto de que devemos deixar de falar
mas entre o bem e o mal, ele tem logicamente de optar. Ele disso e de que, de um momento para o outro, a opinião pública
defende que qualquer comunidade que queira escravos tem o não se deve preocupar com esta questão? No entanto, é esta a
direito de os ter. E assim acontece, se não se tratar de um mal. política [... ] que Douglas está a defender - que não nos devemos
Mas, tratando-se de um mal, não pode argumentar que as pessoas importar nada com isto! Pergunto-vos, portanto, se esta não é uma
têm direito a praticar o mal,,46. filosofia falsa. Se não é falsa a arte de governar que se propõe
construir um conjunto' de políticas com base no pressuposto de
o debate entre Lincoln e Douglas não foi primordialmente acerca da em nada se importar precisamente com a própria questão que a
moralidade da escravatura, mas acerca da questão de saber se é legítimo todos mais nos preocupa?,,47.
excluir uma controvérsia moral com o objectivo de se alcançar um acordo
político. A este respeito, o debate entre ambos a propósito da soberania Os liberais dos nossos dias seguramente recusarão a companhia de
popular é análogo ao debate actual sobre o aborto. Do mesmo modo que Douglas e quererão políticas nacionais contra a escravatura, presumivel-
alguns liberais contemporâneos defendem que o governo não deve tomar mente com o fundamento de que a escravatura viola os direitos das pessoas.
partido, por um lado ou pelo outro, relativamente à moralidade do aborto, A questão que se coloca é de saber se o liberalismo, concebido como uma
mas deve, antes, permitir que cada mulher decida por si própria sobre a concepção política da justiça, consegue ser tão consistente com a crítica que
matéria, também Douglas defendeu que a política nacional não deve tomar estabelece contra os apelos a ideais morais abrangentes. Por exemplo, um
posição, por um lado ou por outro, sobre a moralidade da escravatura, mas liberal kantiano poderá opor-se à escravatura na medida em que ela não é
deve, antes, permitir que cada território decida por si próprio sobre a maté- capaz de tratar os homens como fins em si mesmos, merecedores de res-
ria. Existe no entanto, como é óbvio, a diferença de que, no caso do aborto, peito. Mas, na medida em que repousa sobre uma concepção kantiana da
aqueles que excluiriam a questão moral substantiva, deixam tipicamente a pessoa, um argumento desta natureza não está disponível para o liberalismo
escolha a um indivíduo, enquanto que, no caso da escravatura, a exclusão político. Outros argumentos contra a escravatura historicamente importan-
. proposta por Douglas atirava a escolha para os territórios. tes encontram-se fora do alcance do liberalismo político por razões seme-
No entanto, o argumento de Lincoln contra Douglas foi um argumento lhantes. Os abolicionistas norte-americanos das décadas de 30 e de 40 do
contra a exclusão enquanto tal, pelo menos quando se encontram em causa século XIX, por exemplo, apresentam os seus argumentos tipicamente em
questões moralmente importantes. Aquilo que Lincoln defende é que a plau- termos religiosos que o liberalismo político não pode invocar.
sibilidade da concepção política de justiça proposta por Douglas dependia Como, então, é que o liberalismo político conseguirá fugir à companhia
de uma resposta concreta à questão moral que ele se propunha excluir. Esta de Douglas e opor-se à escravatura sem pressupor alguma perspectiva moral

4G Ibid., p. 392. 47 Ibid., p. 388-389.


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abrangente? Poder-se-á retorquir dizendo que o erro de Douglas foi procurar três quintos da sua população de escravos para efeitos do seu peso na Fede-
a paz social a qualquer preço. E que nem todos os acordos políticos são ade- ração 49, estipulando que o Congresso não poderia proibir o comércio de
quados. Até mesmo quando concebida como uma concepção política, a 5
escravos antes de 1808 °, e exigindo a devolução de escravos fugitivos 51. No
justiça como equidade não é meramente um modus vivendi. Em face dos conhecido caso Dread Scott, o Tribunal Supremo defendeu os direitos de
princípios e dos modos de autocompreensão implícitos na nossa cultura propriedade dos donos sobre os seus escravos, dizendo que os afro-
política, só um acordo alicerçado em cláusulas que tratam as pessoas equi- -americanos não eram cidadãos dos Estados Unidos 52 • Na medida em que o
tativamente, enquanto cidadãos livres e iguais, poderá fornecer um funda- liberalismo político se recusa a invocar ideais morais abrangentes, recor-
mento razoável para a cooperação social. Para um norte-americano do rendo, em alternativa, a noções de cidadania implícitas na cultura política,
século XX, pelo menos, a rejeição da escravatura é um assunto encerrado. sentiria muitas dificuldades para explicar, em 1858, porque é que Lincoln
A derrota histórica da posição de Douglas constitui já um facto da nossa tinha razão e Douglas estava errado.
tradição política que qualquer acordo político terá de considerar como um
dado adquirido. o facto de um pluralismo razoável. O debate actual acerca do aborto e a
Este apelo à concepção de cidadania implícita na nossa cultura política polémica de 1858 entre Lincoln e Douglas ilustram o modo como uma con-
poderá explicar por que razão o liberalismo político se pode opor à escrava- cepção política de justiça tem de pressupor alguma resposta para as questões
tura hoje. Ao fim e ao cabo, a nossa cultura política actual foi enformada em morais que se propõe excluir, pelo menos no que diz respeito às questões
termos significativos pela Guerra Civil, pela Reconstrução, pela adopção das morais graves. Em casos como estes, a prioridade do justo sobre o bom não
Décima Terceira, Décima Quarta e Décima Quinta Emendas à Constituição, pode ser sustentada. Outra dificuldade com o liberalismo político prende-se
pela decisão Brown vs. Board of Education, pelo movimento dos direitos com as razÕes que oferece para se afirmar a prioridade do justo sobre o bom
civis, pela lei sobre direitos eleitorais, etc. Estas experiências, e as concepções em primeiro lugar. Para o liberalismo kantiano, a assimetria entre o justo e o
de igualdade racial e de igualdade de cidadania que partilhamos, fornecem- bom decorre de uma certa concepção da pessoa. Uma vez que nos devemos
-nos um fundamento sólido para defendermos que a escravatura colide com perspectivar a nós próprios como sujeitos morais, dados antes dos nossos
a prática política e constitucional norte-americana, tal como se tem vindo a objectivos e dos nossos laços, temos de olhar o justo como regulador dos fins
desenvolver ao longo do último século. particulares que afirmamos. O justo é anterior ao bom porque o eu é anterior
Porém, isto não explica como é que o liberalismo político se poderia aos seus fins.
opor à escravatura em 1858. Pode-se mesmo argumentar que as noções de Para o liberalismo político, a assimetria entre o justo e o bom não se
igualdade de cidadania implícitas na cultura política norte-americana de baseia numa concepção kantiana da pessoa, mas antes numa característica
meados do século XIX eram favoráveis à instituição da escravatura. A Decla- específica das sociedades democráticas modernas. Rawls descreve esta
ração de Independência proclamou que "os homens foram criados todos característica como sendo "o facto de um pluralismo razoável": "uma socie-
iguais, [... ] dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis", mas dade democrática moderna não se caracteriza simplesmente por um plura-
Douglas defendeu, de forma que não era implausível, que aquilo que os lismo de doutrinas abrangentes religiosas, filosóficas e morais, mas por um
subscritores da Declaração de Independência estavam a afirmar era o direito pluralismo de doutrinas abrangentes incompatíveis, se bem que razoáveis.
dos colonos de se libertarem do governo britânico, e não o direito dos seus Nenhuma dessas doutrinas é afirmada pela generalidade dos cidadãos"53.
escravos negros acederem a um patamar de cidadania igual àquele de que
4
eles próprios desfrutavam ". A própria Constituição não proibiu a escra- 4'Artigo l, secção 2, cláusula 3.
vatura. Em vez disso, estabeleceu-a, permitindo que os Estados contassem 50Artigo l, secção 9, cláusula 1.
51 Artigo N, secção 2, cláusula 3.

52 Dread Scott us. Standford, 60 U.S. (19 Howard), p. 393,1857.

41\ Ibid., p. 374. 5\ Rawls, O Liberalismo Político, p. xvi (15).


266 267

Nem é provável que no futurO próximo previsível este pluralismo deixe de se de expressão face a discursos que convidam ao ódio, da pena de morte, para
verificar. O desacordo acerca de questões morais e religiosas não é uma con- nomear apenas alguns. Ou então, considere-se os votos discordantes e as
dição temporária, mas "o resultado normal do exercício da razão humana" opiniões incompatíveis de juizes do Tribunal Supremo em casos envolvendo
54
no quadro de instituições livres . a liberdade religiosa, a liberdade de expressão, os direitos de privacidade, os
Dada a existência de um facto de um pluralismo razoável, o problema direitos de voto, os direitos dos acusados, entre tantos outros. Estes debates
que se coloca está em encontrar princípios de justiça que cidadãos livres e não demonstram um "facto de um pluralismo razoável" acerca da justiça?
iguais possam afirmar, não obstante as suas diferenças morais, filosóficas e E, em caso afirmativo, como é que o pluralismo acerca da justiça que
religiosas. "Este é um problema da justiça política, não um problema sobre o prevalece nas sociedades democráticas modernas é diferente do pluralismo
bem supremo,,55. Sejam quais forem os princípios que gerar, a solução para acerca da moral e da religião? Existirão razões para pensarmos que, algures
este problema terá de sustentar a prioridade do justo sobre o bom. De outro no futuro próximo previsível, os nossos desacordos acerca da justiça se
modo, não será capaz de produzir uma base para a cooperação social entre dissolverão até mesmo quando os nossos desacordos acerca da moral e da
defensores de convicções morais e religiosas incompatíveis, se bem que religião persistem?
racionais. Um defensor do liberalismo político poderá retorquir apelando para a
Para o liberalismo político, portanto, a prioridade do justo baseia-se no distinção entre dois tipos diferentes de desacordo acerca da justiça. Pode-se
"facto de um pluralismo razoável" acerca do bom. Mas surge aqui uma difi- discordar a propósito daquilo que os princípios da justiça deverão ser, e dis-
culdade. Se bem que existindo na realidade, este facto não é suficiente para o cordar acerca do modo como esses princípios devem ser aplicados. Muitas
estabelecimento da prioridade do justo. A assimetria entre o justo e o bom das nossas discordâncias acerca da justiça, dir-se-á, são do segundo tipo. Se
depende de um pressuposto adicional. Trata-se do pressuposto de que, ape- bem que geralmente concordemos em que a liberdade de expressão consti-
sar de discordarmos acerca da moral e da religião, não evidenciamos desa- tui um dos direitos e liberdades fundamentais, discordamos, por exemplo,
cordos semelhantes acerca da justiça, ou não o faríamos depois de reflectir- quanto à questão de saber se o direito de liberdade de expressão deve prote-
mos devidamente sobre a matéria. O liberalismo político tem de pressupor ger epítetos racistas, a pornográfica hardcore, a publicidade comercial, ou
não só que o exercício da razão humana em condições de liberdade produ- contribuições ilimitadas para campanhas políticas. Estes desacordos, não
zirá desacordos acerca da vida boa, mas também que o exercício da razão obstante poderem ser vigorosos e até mesmos intratáveis, são, no entanto,
humana em condições de liberdade não produzirá desacordos acerca da consistentes com o facto de estarmos de acordo, ao nível dos princípios, em
justiça. O "facto do pluralismo razoável" acerca da moral e da religião cria que uma sociedade justa inclui um direito fundamental à liberdade de
uma assimetria entre o justo e o bom apenas quando associado ao pressu- expressão.
posto de que nenhum "facto de pluralismo razoável" comparável existe Por contraste, os nossos desacordos acerca da moral e da religião
acerca da justiça. podem ser perspectivados como sendo mais fundamentais. Poder-se-á dizer
Não é claro que este pressuposto adicional se justifique. Basta que que reflectem concepções incompatíveis da vida boa, em vez de constituírem
olhemos à nossa volta para verificarmos que as sociedades democráticas discordâncias acerca do modo como se deverá pôr em prática uma concep-
modernas estão repletas de desacordos acerca da justiça. Consideremos, por ção da vida boa que impõe, ou que - ao reflectirmos sobre ela - conquistaria
exemplo, os debates contemporâneos acerca da discriminação positiva, da um acordo generalizado. Se as nossas polémicas acerca da justiça se repor-
distribuição do rendimento e da equidade dos impostos, dos cuidados de tam à aplicação de princípios que partilhamos ou que partilharíamos caso
saúde, da imigração, dos direitos dos homossexuais, do direito de liberdade reflectíssemos sobre eles devidamente, enquanto que as nossas controvér-
sias acerca da moral e da religião são mais profundas, então a assimetria
"-, Ibid. loe. eit (16). entre o justo e o bom proposta pelo liberalismo político estará devidamente
55 Ibid., p. xxv (23). justificada.
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Porém, com que confiança é que uma tal contraposição pode ser afir- ser a seguinte. Se bem que exista um facto de um pluralismo acerca da justiça
s7
mada? Será que todas as nossas discordâncias acerca da justiça dizem res- distributiva, não existe qualquer facto de pluralismo razoável • Ao contrário
peito à aplicação de princípios que partilhamos ou que partilharíamos caso das divergências acerca da moral e da religião, as divergências acerca da
reflectíssemos sobre eles devidamente, e não sobre os princípios em si mes- validade do princípio de diferença não são razoáveis. As teorias libertárias
mos? Como entender, então, os debates acerca da justiça distributiva? Quer- sobre a justiça distributiva não seriam sustentáveis caso se reflectisse devi-
-nos parecer que, neste conspecto, as discordâncias se situam no nível dos damente sobre elas. As nossas diferenças acerca da justiça distributiva, ao
princípios e não no da respectiva aplicação. Em harmonia com o princípio de contrário das nossas diferenças acerca da moral e da religião, não são o pro-
diferença de Rawls, alguns preconizam que só são justas aquelas desigualda- duto natural do exercício da razão humana em condições de liberdade.
des sociais e económicas que melhoram a condição dos membros da socie- À primeira vista, a pretensão de que as diferenças de opinião acerca da
dade menos favorecidos. Defendem, por exemplo, que o governo tem de justiça distributiva não são razoáveis poderá parecer arbitrária, até mesmo
assegurar a satisfação de certas necessidades fundamentais, tais como dura, e não estar de acordo com a promessa do liberalismo político de aplicar
aquelas que se reportam ao rendimento, à educação, aos cuidados de saúde, "o princípio da tolerância à própria filosofia"sB. Ela contrasta vivamente com
à habitação, e similares, de modo a permitir que cada cidadão possa ser a aparente generosidade de Rawls em relação às divergências em matéria de
capaz de exercer as suas liberdades fundamentais de modo significativo. moral e de religião. Estas divergências, Rawls escreve repetidamente, cons-
Outros rejeitam o princípio de diferença. Os libertários argumentam, tituem uma característica normal, e até mesmo desejável, da vida moderna,
por exemplo, que é bom que uma pessoa ajude aqueles que são menos afor- uma expressão da diversidade humana, que apenas a utilização opressiva do
tunados do que ela, mas esta é uma questão de caridade, não de direito. poder do Estado poderia superarS9 • Naquilo que diz respeito às morais abran-
O governo não deve utilizar o seu poder coercitivo para redistribuir o rendi- gentes, "não se pode esperar que pessoas conscienciosas no pleno uso das
mento e a riqueza, devendo, antes, respeitar o direito de cada um a exercer suas faculdades da razão, mesmo no quadro de uma discussão livre, che-
os seus talentos como entender, bem como a colher os prémios daí prove- guem todas à mesma conclusão"60. Uma vez que o exercício da razão
s6
nientes, tal como definidos pela economia de mercado . humana produz um pluralismo de doutrinas morais e religiosas razoáveis, "é
A polémica entre liberais igualitários, como Rawls, e libertários, como inconsequente, ou ainda pior, pretender usar as sanções do poder do Estado
Nozick e Milton Friedman, é uma característica proeminente do debate polí- para corrigir ou mesmo punir aqueles que não concordam connosco,,61.
tico nas sociedades democráticas modernas. Este debate reflecte uma dis- Porém, este espírito de tolerância não se prolonga até às nossas divergências
cordância acerca da identificação do princípio de justiça distributiva mais acerca da justiça. Uma vez que as divergências entre, digamos, os libertários
correcto, e não uma discordância acerca do modo como o princípio de dife- e os defensores do princípio de diferença não reflectem um pluralismo
rença deve ser aplicado. Mas isto parece sugerir que nas sociedades demo-
cráticas existe um "facto de um pluralismo razoável" acerca da justiça tal
como se verifica a propósito çla moral e da religião. E, se assim é, a assimetria
57 Apesar de Rawls não exprimir esta perspectiva de forma explícita, ela é necessária para
entre o justo e o bom não é sustentável. que se possa fazer seritido do "facto de um pluralismo razoável" e do papel que desempenha em
O liberalismo político não fica sem resposta perante esta objecção. No apoio da prioridade do justo. Ele nota que poderão verificar-se discordâncias razoáveis acerca da
entanto, a resposta que tem para apresentar afasta-se, de algum modo, do questão de saber que políticas cumprem o princípio de diferença, mas acrescenta que "isto não
traduz uma divergência acerca da identificação dos princípios correctos; significa, simplesmente,
espírito de tolerância que de outro modo evoca. A resposta de Rawls tem de
uma diferença quanto à questão de verificar se os princípios são realizados" [O Liberalismo
Político, p. 230 (224)J.
511 Ibid., p. 10 (38).

56 Cf. Robert Nozick, Anarchy State and Utopia, 1971; Milton Friedman, Capitalism and 59 Ibid., p. 304 (288).

Freedom, 1962; Milton e Rose Friedman, Free to Choose, 1980; Friedrich A. Hayek, The 60 Ibid., p. 58 (79).

Constitution ofLiberty, 1960. 61 Ibid., p. 138 (145).


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razoável, nada há a objectar a que se utilize o poder do Estado para públicas e no direito. Sem dúvida que as discordâncias permanecerão. Os
implementar o princípio de diferença. libertários não se calarão nem desaparecerão. No entanto, as suas diver-
Apesar de, à primeira vista, poder parecer intolerante, a noção de que as gências não necessitam de ser perspectivadas como um "facto de um
teorias de justiça distributiva que não estejam de acordo com o princípio de pluralismo razoável" à luz do qual o governo deva ser neutral.
diferença não são razoáveis, ou a de que as teorias libertárias da justiça não Porém, isto conduz-nos a uma questão que atinge o âmago do pressu-
sobreviveriam a um escrutínio adequado, não constitui uma pretensão arbi- posto do liberalismo político emfavor da prioridade do justo sobre o bom.
trária. Pelo contrário, em Uma Teoria da Justiça, Rawls oferece-nos uma rica Se, não obstante a persistência de perspectivas alternativas, o argumento
panóplia de argumentos persuasivos em favor do princípio de diferença e moral ou a reflexão do tipo da utilizada por Rawls nos permitem concluir que
contra as concepções libertárias. Numa perspectiva moral, a distribuição de alguns princípios da justiça são mais razoáveis do que outros, o que é que
talentos e de atributos que permitem a alguns ganhar mais na economia de nos garante que uma reflexão de tipo semelhante não é possível no caso das
mercado e a outros menos é arbitrária. E o mesmo se passa com o facto de, controvérsias morais e religiosas? Se somos capazes de raciocinar acerca de
num dado momento, o mercado valorizar e premiar os talentos que uma princípios de justiça distributiva controversos, procurando um equilíbrio
pessoa, ou outra, possa deter em abundância. Os libertários concordariam reflectido, por que razão não poderemos raciocinar do mesmo modo acerca
em que os quinhões não devem ser distribuídos com base no estatuto social de concepções do bem? Caso se demonstre que algumas das concepções do
ou em acidentes de nascimento (como no caso das sociedades aristocráticas bem são mais razoáveis do que outras, então a persistência de divergências
ou de castas); porém, a distribuição de talentos operada pela natureza não é deixará necessariamente de constituir um "facto de pluralismo razoável" que
menos arbitrária. A noção de liberdade invocada pelos libertários só pode ser reclama a neutralidade governamental.
exercjda de forma significativa se as pessoas virem assegurada a satisfação de Considere-se, por exemplo, a controvérsia na nossa cultura política
certas necessidades sociais e económicas de base. Caso as pessoas deliberas- acerca do estatuto moral da homossexualidade, uma controvérsia baseada
sem acerca da justiça distributiva sem referência aos seus interesses pró- em doutrinas morais e religiosas abrangentes. Alguns defendem que a
prios, ou sem um conhecimento prévio dos seus talentos e do valor que esses homossexualidade constitui um pecado, ou que, pelo menos, não deve ser
talentos detêm na economia de mercado, concordariam em que a distribui- permitida. Outros são de parecer que ela é moralmente permissível, e que,
ção natural de talentos não deve constituir a base para a distribuição de qui- nalguns casos, dá expressão a valores humanos importantes. O liberalismo
nhões. E por aí adiante 62 . político insiste em que nenhuma destas perspectivas acerca da moralidade
O meu objectivo não é recitar o argumento de Rawls a favor do princí- da homossexualidade deve desempenhar um papel nos debates públicos
pio de diferença, mas tão-só chamar a atenção para os tipos de razões que sobre a justiça ou sobre os direitos. Os governos devem ser neutros relativa-
oferece. Ao perspectivar a justificação como um processo de ajustamento mente a uma e a outra. Isto significa que aqueles que repudiam a homosse-
mútuo entre princípios e juízos ponderados visando um "equilíbrio reflec- xualidade não podem procurar transformar as suas perspectivas em leis.
tido"63, Rawls procura demonstrar que o princípio de diferença é mais E significa ainda que os promotores dos direitos dos homossexuais não
razoável do que a alternativa oferecida pelos libertários. Na medida em que podem basear os seus argumentos na noção de que a homossexualidade é
os seus argumentos são convincentes, como creio que são, e na medida em moralmente defensável. Na perspectiva do liberalismo político, uma e outra
que podem ser convincentes para cidadãos de uma sociedade democrática, destas abordagens conduziria a que se alicerçasse, erradamente, o justo
os princípios que os suportam são justamente incorporados nas políticas sobre uma concepção do bem. Nem uma nem outra consegue respeitar o
"facto de um pluralismo razoável" acerca das morais abrangentes.
Mas será que as diferenças de opinião na nossa sociedade acerca do
62 Cf. Rawls, Uma Teoria da Justiça, esp. p. 72-5 (76-78), 100-107 (95-100), 136-142 (121-
estatuto moral da homossexualidade constituem. um "facto de um plura-
-124),310-315 (244-248).
6J Cf. Ibid., pp. 20-22 (39-40), 48-52 (58-61), 120 (109-110), 577-587 (434-441). lismo razoável", mais do que as divergências acerca da justiça distributiva?
273
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contra determinadas instâncias dela65 • Os heterossexuais também são


De acordo com o liberalismo político, a objecção libertária ao princípio de promíscuos e também adoptam outras práticas contrárias aos bens que
diferença não constitui um "facto de um pluralismo razoável" que exija a conferem à sexualidade o seu valor moral, mas este facto não nos conduz a
neutralidade governamental, na medida em que existem boas razões para se abominar a heterossexualidade enquanto tal. E por aí adiante.
concluir que, mediante uma reflexão adequada, os argumentos em favor do 6 meu objectivo não é oferecer um argumento exaustivo em favor da
princípio de diferença emergem como sendo mais convincentes do que permissibilidade moral da homossexualidade, mas apenas sugerir o modo
aqueles que sustentam as perspectivas libertárias. No entanto, não será pos- como um argumento destes se poderá desenvolver. Tal como o argumento
sível concluir, com a mesma confiança, se não com mais confiança ainda, de Rawls em favor do princípio de diferença, poderá procurar um equilíbrio
que, mediante a reflexão adequada, os argumentos em favor da permissibili- reflectido entre os nossos princípios e juízos ponderados, ajustando cada um
dade da homossexualidade se apresentam como sendo mais convincentes do deles à luz dos demais. O facto de o argumento em favor da moralidade da
que aqueles que se erguem contra ela? De forma consistente com a procura homossexualidade, ao contrário do argumento em favor do princípio de
de um equilíbrio reflectido entre princípios e juízos ponderados, uma tal diferença, se reportar a reivindicações acerca do bem não implica que o
reflexão poderá desenrolar-se através da aferição das razões apresentadas mesmo método de raciocínio moral não seja procedente. Não é provável,
por aqueles que afirmam a inferioridade moral das relações homossexuais evidentemente, que um raciocínio moral destes possa produzir respostas
relativamente às suas congéneres heterossexuais. conclusivas ou irrefutáveis para as controvérsias morais e religiosas. Mas,
Aqueles que consideram a homossexualidade imoral poderão argu- como Rawls reconhece, este raciocínio tão-pouco produz respostas irrefutá-
mentar' por exemplo, que ela não é capaz de satisfazer o fim principal da veis para as questões da justiça. Uma noção mais modesta de justificação
sexualidade humana, o bem da procriaçã0 64 . Ao que se poderá retorquir será mais apropriada. "Ao nível mais fundamental, as questões filosóficas
dizendo que muitas relações heterossexuais tão-pouco cumprem esta finali- não são normalmente resolvidas por argumentos conclusivos", escreve
dade, tais como aquelas em que se recorre a contraceptivos, ou as que se Rawls referindo-se aos argumentos acerca da justiça. "O que é óbvio para
desenvolvem entre casais estéreis ou entre parceiros que estão para além da umas pessoas, e por elas aceite como uma ideia básica, pode perfeitamente
idade reprodutiva. Isto poderá sugerir que, não obstante ser importante, o ser - e com frequência é - ininteligível para outras. A maneira de resolver a
bem da procriação não é essencial para o valor moral das relações sexuais questão é considerar, após a reflexão devida, qual a perspectiva que oferece,
humanas. O valor moral da sexualidade poderá igualmente residir no amor e depois de completamente desenvolvida, a explicação mais convincente e
na responsabilidade que exprime, e estes bens tanto são possíveis de con- coerente,,66. E o mesmo se poderia dizer dos argumentos acerca das morais
cretizar em relações homossexuais como em relações heterossexuais. Aque- abrangentes.
les que não partilharem esta perspectiva poderão retorquir que os homosse- Se for possível raciocinar acerca do bem do mesmo modo que o pode-
xuais são muitas vezes promíscuos e, por isso, menos dados a concretizar os mos fazer acerca do justo, então a assimetria entre um e outro apresentada
bens 'do amor e da responsabilidade. E a resposta a esta pretensão poderá pelo liberalismo político fica gorada. Segundo o liberalismo político, esta
consistir numa demonstração empírica em contrário, ou, em alternativa, na assimetria assenta sobre o pressuposto de que as nossas divergências morais
observação de que a existência de promiscuidade não constitui um argu-
mento contra o valor moral da homossexualidade enquanto tal, mas apenas
65 Uma linha de resposta alternativa poderá procurar defender a promiscuidade e negar

que os bens do amor e da responsabilidade são necessários para o valor moral da sexualidade.
Nesta perspectiva, o argumento que temos vindo a sugerir está equivocado, na medida em que
64 Neste parágrafo socorro-me dos argumentos em favor e contra a homossexualidade procura defender a legitimidade moral da homossexualidade através de uma analogia com a
apresentados em Stephen Macedo, "The New Natural Lawyers", Harvard Crimson, 29 de Outubro heterossexualidade. Cf. Bonnie Honig, Political Theoly and the Displacement of Politics, 1993,
de 1993; Harvey C. Mansfield, "Saving Liberalism from LiberaIs", Harvard Crimson, 8 de p.186-195.
Novembro de 1993; e John Finnis e Martha Nussbaum, "Is Homosexuality Wrong? A Philosophical 66 Rawls, O Liberalismo Político, p. 53 (75).

Exchange", p. 209, 1993, New Republic, p. 12-13.


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e religiosas reflectem um "facto de um pluralismo razoável", o que não se caso de controvérsias acerca da justiça. Se uma controvérsia moral ou reli-
verifica no caso das nossas divergências acerca da justiça. Aquilo que permite giosa reflecte concepções razoáveis, mas incompatíveis, do bem, ou se pode
a Rawls defender que as nossas divergências acerca da justiça distributiva ser resolvida através da reflexão e da deliberação adequadas, é algo que só
não constituem um "facto de um pluralismo razoável" prende-se com a força pode ser determinado pela reflexão e pela deliberação. Mas isto levanta outra
dos argumentos que apresenta em favor do princípio de diferença e contra o dificuldade ao liberalismo político, na medida em que a vida política que
libertarismo. Porém, o mesmo se poderia dizer de outras controvérsias descreve deixa pouco espaço para o tipo de deliberação pública necessária
- incluindo, possivelmente, algumas de índole moral e religiosa. A cultura para que se teste a plausibilidade de teorias morais abrangentes alternativas
pública das sociedades democráticas tanto admite controvérsias acerca da - seja para se persuadir os outros dos méritos dos nossos ideais morais, seja
justiça como acerca das morais abrangentes. Se os governos podem afirmar a para sermos persuadidos pelos outros perante os méritos dos seus.
justiça de políticas redistributivas, até mesmo em face do desacordo dos Não obstante defender o direito de liberdade de expressão, o libera-
libertários, por que razão não pode afirmar através da lei, digamos, a legiti- lismo político limita rigorosamente os tipos de argumentos que constituem
midade moral da homossexualidade, apesar do desacordo daqueles que vêm contribuições legítimas para o debate político, especialmente para o debate
67
na homossexualidade um pecad0 ? Será que a objecção de Milton Friedman acerca dos elementos constitucionais essenciais e das questões de justiça
68
às políticas redistributivas constitui um "pluralismo razoável" menor do que básicas • Esta limitação reflecte a prioridade do justo sobre o bom. Não só o
a objecção de Pat Robertson aos direitos dos homossexuais? governo não pode endossar uma concepção do bem ou outra, como os cida-
Com a moral, tal como com a justiça, o mero facto de discordarmos não dãos tão pouco podem sequer introduzir no discurso político as suas convic-
constitui evidência do "pluralismo razoável" que dá origem à exigência de ções lhorais ou religiosas abrangentes, pelo menos enquanto debaterem
69
neutralidade por parte do Estado. Em princípio, não há qualquer razão para questões da justiça e dos direitos • Rawls mantém que esta limitação é exi-
que, em qualquer circunstância concreta, e após uma reflexão adequada, não gida pelo "ideal de razão pública". De acordo com este ideal, o discurso polí-
possamos concluir que algumas doutrinas morais ou religiosas são mais tico deve ser conduzido inteiramente em termos de "valores políticos" que
plausíveis do que outras. Nestas circunstâncias, não esperaríamos que todas seja razoável esperar que possam se abraçados por todos os cidadãos. Uma
as divergências desaparecessem, nem excluiríamos a possibilidade de, a vez que os cidadãos das sociedades democráticas não partilham concepções
partir de uma deliberação adicional, podermos um dia rever a nossa morais e religiosas abrangentes, a razão pública não se deve referir a elas.
perspectiva. Mas tão-pouco teríamos quaisquer motivos para insistir em que Os limites da razão pública não se aplicam, Rawls admite-o, às nossas
as nossas deliberações acerca da justiça e dos direitos não recorram a ideais deliberações pessoais acerca de questões políticas, ou aos debates que
morais ou religiosos. possamos travar enquanto membros de associações como as igrejas ou as
universidades, nas quais as considerações de natureza "religiosa, filosófica e
Os limites da razão pública liberal. Se é possível chegar a acordo em moral" podem legitimamente ter um papel a desempenhar.
qualquer controvérsia moral ou política através do diálogo e da deliberação é
"Contudo, no que respeita aos cidadãos, o ideal de razão
algo que só poderemos saber depois de o tentarmos. Por esta razão, não se
pública prevalece quando eles se envolvem no debate político em
pode dizer à partida que controvérsias acerca de morais abrangentes reflec-
fórum público. Dessa forma, ele é válido para os membros dos
tem um "facto de um pluralismo razoável", e que o mesmo não se verifica no
"[I Rawls afirma que os limites da razão pública se aplicam a todas as discussões envolvendo
67 O que é possível fazer relativamente a certos direitos dos homossexuais com 'elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básicas. No que diz respeito a outras
fundamentos que nem afirmam nem negam a moralidade da homossexualidade. A questão que questões, escreve que "é usualmente desejável, muito desejável mesmo, resolver as questões
aqui se coloca é de saber se o governo tem razões para patrocinar leis ou políticas (casamentos políticas através da invocação dos valores da razão pública. Apesar disso, infelizmente, isso nem
entre homossexuais, por exemplo), com base em fundamentos que afirmam a legitimidade moral sempre .acontecerá". Cf. Rawls, O Liberalismo Político, p. 214-215 (210-211).
da homossexualidade. 69 Ibid., p. 10 (38),15 (43), 224 (220), 254 (245).
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partidos políticos e para os candidatos no decorrer das campa- ramente o é, a doutrina moral católica não pode ser debatida na arena polí-
nhas eleitorais, bem como para os grupos que os apoiamo Preva- tica tal como é definida pelo liberalism() político.
lece igualmente quanto ao modo como os cidadãos devem votar O carácter restritivo da razão pública pode ser igualmente identificado
em eleições em que os elementos constitucionais essenciais e no debate acerca dos direitos dos homossexuais. À primeira vista, estas
quaisquer questões de justiça básica estejam em jogo. Por conse- restrições poderão constituir um serviço à tolerância. Aqueles que conside-
guinte, o ideal de razão pública, para além de orientar o discurso x:am que a homossexualidade é imoral e, por isso, indigna dos direitos de
público nos períodos eleitorais quando os temas propostos envoi- privacidade que são atribuídos à intimidade heterossexual, não poderiam
vem o debate daquelas questões fundamentais, direcciona igual- legitimamente fazer ouvir a sua voz em debate público. Nem poderiam agir
mente o sentido do voto dos cidadãos quanto a essas questões,,70. de acordo com os seus princípios votando contra leis que protegessem os
homossexuais e as lésbicas de discriminação. Estes princípios reflectem con-
Como poderemos saber se os nossos argumentos políticos cumprem as vicções morais e religiosas abrangentes e, como tal, não podem ter lugar no
exigências da razão pública e se encontram adequadamente livres de discurso político em matéria de justiça.
qualquer dependência de convicções morais ou religiosas? Rawls oferece-nos No entanto, as exigências da razão pública limitam igualmente os
um teste singular. "Para averiguar se seguimos a razão pública, podemos argumentos que podem ser apresentados em favor dos direitos dos homos-
perguntar: como é que a nossa argumentação se nos apresentaria caso apa- sexuais, contexto em que restringem a gama de razões que podem ser invo-
recesse sob a forma de uma decisão do Tribunal Supremo?"7!. Não é mais cadas em favor da tolerância. Aqueles que se opõem à legislação contra a
legítimo para os cidadãos de uma democracia permitir que o seu discurso sodomia do género daquela em referência no caso Bowers vs. Hardwick72 não
político acerca de questões fundamentais seja enformado pelos seus ideais podem defender que os juízos morais incorporados nessa legislação estão
morais e religiosos, sugere Rawls, do que seria para um juiz interpretar a errados, mas apenas que a legislação erra ao incorporar quaisquer juízos
Constituição à luz dos seus princípios morais e religiosos. 73
morais, sejam eles quais forem . Os defensores dos direitos dos homosse-
O carácter restritivo desta noção de razão pública pode ser posto em xuais não podem contestar o juízo moral substantivo subjacente às leis con-
evidência se considerarmos os tipos de argumentos políticos que excluiria. tra a sodomia, nem, através do debate público, procurar persuadir os seus
No debate acerca do aborto, aqueles que acreditam que o feto é uma pessoa concidadãos de que a homossexualidade é moralmente permissível, uma vez
a partir do momento da concepção e para quem, por conseguinte, abortar que qualquer argumento desta natureza violaria os cânones da razão pública
constitui um assassínio, não poderiam procurar persuadir os seus concida- liberal.
dãos desta perspectiva num debate político aberto. Tão-pouco poderiam O carácter restritivo da razão pública liberal é ainda ilustrado pelos
votar com vista à adopção de uma lei que restringisse o aborto com base argumentos oferecidos pelos abolicionistas norte-americanos das décadas
nesta convicção moral ou religiosa. Apesar de os partidários dos ensina- de 30 e de 40 do século XIX. Com raízes no Protestantismo evangélico, o
mentos da Igreja Católica relativamente ao aborto poderem discutir o movimento abolicionista defendia a emancipação imediata dos escravos
assunto em termos religiosos dentro dos seus templos, não o poderiam fazer com base no argumento de que a escravatura constituía um pecado hor-
numa campanha política, no plenário do seu Parlamento Estatal ou nas salas 74
rend0 . Tal como os argumentos de alguns católicos dos nossos dias contra o
do Congresso. Nem, quanto a isso, os oponentes dos ensinamentos da Igreja
Católica em matéria de aborto poderiam defender os seus argumentos na 72 478 U. S. 186, 1986.
arena política. Apesar de ser relevante para a questão do aborto, como cla- 73 Cf. Michael J. Sandel, "Moral Argument and LiberaJ Toleration: Abortion and
HomossexuaJity", 77 California Law Review, 1989, p. 521-538 .
74 Cf. James M. McPherson, BattZe Cry ofFreedom: The Civil War Era, 1988, p. 8; Eric Foner,

70 Ibid., p. 215 (211-212). Politics and IdeoZogy in the Age ofthe Civil War, 1980, p. 72 ; Aileen S. Kraditor, Means and Ends in
71 Ibid., p. 254 (245). American Abolitionism, 1967.
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aborto, o argumento dos abolicionistas contra a escravatura baseava-se extraordinários, torna-se difícil interpretar os seus argumentos de forma
explicitamente numa doutrina moral e religiosa abrangente. consistente com a prioridade do justo sobre o bom, ou com o ideal de razão
Numa passagem que nos deixa perplexos, Rawls trata da questão do pública proposto pelo liberalismo político.
abolicionismo defendendo que o respectivo argumento contra a escravatura, As questões do aborto, dos direitos dos homossexuais e do abolicio-
apesar de ser de índole religiosa, não viola o ideal de razão pública liberal. nismo ilustram as restrições severas que a razão pública liberal colocaria
Quando uma sociedade não se encontra bem ordenada, explica, pode ser sobre o debate político. Rawls defende que estas restrições se justificam na
necessário recorrer a morais abrangentes de modo a produzir urna sociedade medida em que são essenciais para a manutenção de uma sociedade justa na
em que a discussão pública é conduzida exclusivamente em termos de qual os cidadãos são governados por princípios que se pode racionalmente
"valores políticos,,75. O argumento religioso dos abolicionistas pode ser esperar que seriam endossados por eles, até mesmo à luz das suas morais
justificado na medida em que antecipa o dia em que os argumentos religio- abrangentes, as quais colidem urnas com as outras. Apesar de a razão pública
sos deixam de desempenhar um papel legítimo no discurso público. Os exigir que os cidadãos decidam as questões políticas fundamentais sem
abolicionistas "não contraditaram o ideal da razão pública", conclui Rawls, referência à "verdade total tal como eles a entendem"77, esta restrição justi-
"se asseguraram - pensaram ou teriam pensado se houvessem reflectido Gá fica-se pelos valores políticos que possibilita, como os de civilidade e de res-
que certamente o poderiam ter feito) -, que as razões abrangentes a que peito mútuo. "Os valores políticos realizados por um regime constitucional
recorreram fossem requeridas para dar suficiente força à consequente reali- bem-ordenado são valores muito elevados - por isso, dificilmente amovidos;
zação da concepção política,,76. e os ideais que eles expressam não devem ser levianamente abandonados"78.
Não é fácil determinar o que fazer deste argumento. Temos poucas Rawls compara o seu argumento em favor de uma razão pública restritiva ao
razões para supor, e não creio que seja isso que Rawls se propõe sugerir, que argumento em favor de regras restritivas de obtenção e apresentação de
os abolicionistas se opuseram à escravatura com base em fundamentos polí- prova em julgamentos de crimes. Ali também, concordamos em que as deci-
ticos seculares e recorreram à religião apenas como instrumento para con- sões devem ser tomadas sem referência a toda a verdade, tal como a pode-
quistarem apoio popular. Nem temos razões para pensar que através das mos conhecer - através de métodos ilegais de obtenção de provas, por
suas campanhas os abolicionistas procuraram preparar o mundo para o exemplo - com vista à promoção de outros bens 79 .
discurso político secular. Nem se poderá presumir, sequer em retrospectiva, A analogia entre a razão pública liberal e as regras restritivas de obten-
que os abolicionistas se orgulhariam de, através dos seus argumentos religio- ção e apresentação de prova é instrutiva. Colocar de parte toda a verdade, tal
sos contra a escravatura, terem contribuído para a emergência de uma como a conhecemos, acarreta custos morais e políticos, tanto para os julga-
sociedade avessa aos argumentos religiosos no debate político. Se alguma mentos de crimes como para a razão pública. A questão de saber se vale a
coisa é verosímil, é justamente o contrário. Ao apresentar os seus argumen- pena pagar esses custos depende do significado que detêm quando compa-
tos religiosos contra uma injustiça tão flagrante como a escravatura, os evan- rados com os bens que viabilizam, e se esses bens não podem ser obtidos por
gélicos que inspiraram o movimento abolicionista esperavam encorajar os outras vias. Para podermos avaliar as regras restritivas de prova, por exem-
Norte-Americanos a olharem para outras questões políticas em termos plo, necessitaríamos de saber quantos criminosos ficam em liberdade em
morais e religiosos também. Em todo o caso, é razoável pressupor que os resultado da sua implementação, se outras regras menos restritivas consti-
abolicionistas falavam a sério, que a escravatura constituía para eles um mal, tuiriam um fardo demasiado pesado para as pessoas inocentes suspeitas de
na medida em que é contrária à lei de Deus, um pecado horrendo, e que era crimes, se produziriam práticas indesejáveis de execução da lei, se violariam
por esta razão que ela devia ser abolida. Na ausência de alguns pressupostos
77 Ibid., p. 216 (212).
75 Rawls, o Liberalismo Político, p. 251n (242-243n). 7U Ibid., p. 218 (214).
7G Ibid., p. 251 (242). 79 Ibid., p. 218-219 (214-215).
280 281

ideais importantes tais como o respeito pela privacidade (regra de exclusão), "É desnecessário considerar as pretensões da justiça política
de intimidade conjugal (privilégio conjugal), etc. Chegamos às regras de evi- face às pretensões desta ou daquela perspectiva abrangente; como
dência através da aferição da importância de tomar decisões à luz de toda a é igualmente desnecessário dizer que os valores políticos são
verdade comparada com a importância dos ideais que seriam sacrificados se intrinsecamente mais importantes do que quaisquer outros
todas as provas pudessem ser apresentadas. valores, o que supostamente ditaria a sobrelevação dos últimos.
De modo semelhante, para podermos aferir as regras restritivas da Refira-se que isso é justamente o que esperamos evitar"Bl.
razão pública necessitamos de comparar os seus custos políticos e morais
com os valores políticos que se diz que viabilizam. E devemos ainda pergun- Mas, uma vez que o liberalismo político reconhece que as doutrinas
tar se estes valores políticos - de tolerância, de civilidade e de respeito morais e religiosas abrangentes podem ser verdadeiras, não é razoável
mútuo - não poderiam ser assegurados através de regras de razão pública esperar que estas comparações possam ser evitadas.
menos restritivas. Apesar de o liberalismo político se recusar a aferir os . Para além de custos morais, a razão pública liberal apresenta
valores políticos que afirma relativamente a valores políticos alternativos que Igualmente certos custos políticos. Estes custos têm-se vindo a tornar cada
possam emergir no quadro de morais abrangentes, o argumento em favor de vez mais aparentes nas políticas daqueles países, nos Estados Unidos em
regras restritivas de razão pública tem de pressupor alguma comparação particular, cujo discurso político mais se aproxima do ideal de razão pública
desta natureza. proposto pelo liberalismo político. Com algumas excepções notáveis, como o
O liberalismo político tem custos de dois tipos. O custo moral estrito movimento de direitos civis, o discurso político norte-americano das últimas
depende da validade e da importância das doutrinas morais e religiosas que décadas tem vindo a reflectir o propósito liberal de que o governo seja neutro
a razão pública liberal exige que coloquemos de parte sempre que tomarmos em matéria de questões morais e religiosas, de que as questões fundamentais
decisões acerca da justiça. Estes custos variarão necessariamente de caso de política pública sejam debatidas e decididas sem nenhuma referência a
para caso. Serão mais elevados quando uma concepção política da justiça qualquer concepção particular do bem B2 .
sancionar a tolerância de um mal moral grave, como a escravatura, no argu- Porém, a política democrática não pode albergar por muito tempo uma
mento de Douglas em favor da soberania popular. No caso do aborto, o custo vida pública tão abstracta e tão decorosa, tão desligada de propósito moral,
moral de exclusão é elevado se a doutrina católica estiver correcta; de outro como se espera que aconteça relativamente às opiniões do Tribunal
modo, é bem menor. Isto sugere que, até mesmo em face da importância Supremo. Uma política que exclui tão meticulosamente a moral e a religião
moral e política da tolerância, o argumento em defesa da tolerância de uma em breve gera o descontentamento. Na medida em que faltar ao discurso
prática concreta terá de algum modo de levar em linha de conta o estatuto político uma ressonância moral, a necessidade de uma vida pública com
moral dessa prática, a par dos bens de se evitar o conflito social, permitir que significados mais amplos encontrará expressões indesejáveis. Grupos como a
as pessoas decidam por si próprias, etc. "maioria moral" e a direita cristã procuram cobrir a nudez da praça pública
Este modo de pensar acerca dos custos morais da razão pública liberal com moralismos estreitos e intolerantes. Os fundamentalistas precipitam-se
está reconhecidamente em contradição com o próprio liberalismo político. audaciosamente pelos caminhos que os liberais temem percorrer. O desen-
Apesar de afirmar repetidamente que uma concepção política da justiça canto assume igualmente formas mais seculares. Na ausência de uma
exprime valores que normalmente têm mais peso do que quaisquer outros agenda política que se dirija à dimensão moral das questões públicas, a aten-
valores que com eles possam colidirBo , Rawls sublinha igualmente que isto ção das pessoas centra-se nos vícios privados dos agentes políticos. O dis-
não envolve qualquer comparação substantiva dos valores políticos com os
valores morais e religiosos a que se sobrepõem: 61 Ibid., p.157 (161-162).
"D esenvolvo esta perspectIva
. em Michael J. Sandel, Democracy's Discontent: America in
Search of a Public Philosophy, 1996.
3D Ibid., p. 138 (145), 146 (151),156 (161), 218 (214).
282

curso público fixa-se cada vez mais naquilo que é escandaloso, sensacional e
confessional, tal como é fornecido pelos tablóides, pelos talk shows e even-
tualmente até pela comunicação social mais tradicional.
Não se pode dizer que a filosofia pública do liberalismo político seja
inteiramente responsável por estas tendências. Porém, a sua visão da razão
pública é demasiado frugal para conter as energias morais de uma vida
democrática viva. Ela cria, portanto, um vazio moral que abre o caminho
para os moralismos intolerantes, triviais e mal direccionados. Bibliografia
Se a razão pública é excessivamente restritiva; resta-nos indagar se uma
razão pública mais ampla não sacrificaria os ideais que o liberalismo político Parte I
procura promover, em particular o ideal de respeito mútuo entre cidadãos
que sustentam perspectivas morais e religiosas que colidem umas tom as
outras. Torna -se aqui necessário distinguir duas concepções de respeito Apresentamos todas as referências indicadas no texto bem como alguns
mútuo. Na concepção liberal, respeitamos as convicções morais e religiosas dos trabalhos que nele estão presentes, apesar de não serem referidos
dos nossos concidadãos ignorando-as (para efeitos políticos), não as directamente.
perturbando, desenrolando o debate político independentemente delas.
Neste sentido, permitir que os ideais morais e religiosos penetrassem no
Ackerman, B. A. 1980. Social Justice in the Liberal State, N ew Haven.
debate político destruiria o respeito mútuo.
Porém, esta não é a única maneira, nem talvez a mais plausível,· de se Arendt, H. 1958. The Human Condition, Chicago.
entender o respeito mútuo do qual depende a cidadania democrática. Numa Aristotle. Nicomachean Ethics, tradução de D. Ross, 1925, London.
concepção diferente de respeito - apelidemo-la de "concepção delibera- - - - o Politics, ed. E. Barker, 1946, London.
tiva" - nós respeitamos as convicções morais e religiosas dos nossos conci-
Atiyah, P. S. 1979. The Rise and Pall ofPreedom ofContract, Oxford.
dadãos na medida em que nos comprometemos com elas, ou lhes prestamos
atenção, ora desafiando-as e contestando-as, ora ouvindo-as e aprendendo Barker, E., ed.1948. Social Contract, NewYork.
com elas, especialmente quando essas convicções têm um impacto sobre Bartlet, V. 1915. The Biblical and Early Christian Idea of Property. In Property:
questões políticas importantes. Nada garante que um modo deliberativo de Its Duties and Rights, ed. C. Gore, London.
respeito conduza sempre a acordo ou até mesmo a um apreço pelas
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convicções morais e religiosas dos outros. É sempre possível que, ao
n.O 5,70-82.
conhecermos melhor uma doutrina moral ou religiosa, sejamos levados a
apreciá-la menos. Mas o respeito de deliberação e de compromisso dá-nos Bell, b. 1973. The ComingofPost-Industrial Society, Harmondsworth.
uma razão pública mais espaçosa do que aquela que o liberalismo tem para BicketA. M.1975. The MoralityofConsent, NewHaven.
nos oferecer. É também um ideal mais apropriado para uma sociedade Dworkin, R. 1977a. Taking Rights Seriously, London.
pluralista. Na medida em que as nossas divergências morais e religiosas
- - - o 1977b. Why Bakke Has no Case, New York Review of Books (lO de
reflectem a pluralidade última de bens humanos, um modo. deliberativo de
Novembro), ll-15.
respeito permitir-nos-á apreciar melhor os bens distintivos expressos pelas
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2. A posse, o mérito e a justiça distributiva .................................................................. .. 99


Do'pensamento libertário ao pensamento igualitário .............................................. . 100
A meritocracia VS. o princípio da diferença ............................................................... .. 107
Em defesa do acervo comum ...................................................................................... .. 113
O fundamento do mérito ............................................................................................. . 119
Exigências individuais e exigênCias sociais: a quem pertence o quê? .................... .. 135

3. A teoria contratualista e a justificação ...................................................................... . 145


A moralidade do contrato ............................................................................................ . 146
Contratos us. argumentos contratualistas .................................................................. . 151
O liberalismo e a prioridade do processo .................................................................. . 156
O que se passa, de facto, sob o véu de ignorância? .................................................... . 167
STJ00108020

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