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A Dança Imanente e seus Atravessamentos Educacionais:


Reflexões acerca de uma práxis artístico-educativa na Companhia Mo-
derno de Dança
Luiza Monteiro e Souza
Universidade Federal do Pará - UFRGS, Belém, Brasil
E-mail: lmonteiro@ufpa.br

Resumo Abstract
Este texto apresenta atravessamentos This text presents crossings from the
da área da Dança com a Educação. No bojo area of Dance with Education. In the core
da reflexão encontra-se a dança imanente, of reflection is the immanent dance, artistic
práxis artística da Companhia Moderno de praxis of the Companhia Moderno de Dança
Dança – CMD, coletivo de Belém do Pará. - CMD, collective of Belém do Pará. The
Constam como referências principais da main references of the writing are the im-
escrita a dança imanente (MENDES, 2010) manent dance (MENDES, 2010) and issues
e questões em educação (FREIRE, 1996), in education (FREIRE, 1996), aligned to ap-
alinhados a abordagens que tratam sobre proaches that deal with body, immanence,
corpo, imanência, ensino e aprendizagem teaching and learning in dance and creation
em dança e processo de criação. A escri- process. The writing is based on the artis-
ta parte dos processos artísticos-formativos tic-formative processes of the CMD, ob-
da CMD, observando que a dança imanen- serving that immanent dance is crossed by
te é atravessada por questões educacio- educational issues that go beyond utopian
nais para além de considerações utópicas considerations about practices in dance and
acerca de práticas em dança e educação. education. As objectives, it is tried to deep-
Como objetivos, intenta-se aprofundar a ar- en the argumentation in immanent dance;
gumentação teórica em dança imanente; dialogue with contemporary approaches re-
dialogar com abordagens contemporâneas garding education; to provide folds and oth-
a respeito da educação; possibilitar dobras er looks for the artistic and formative issues
e outros olhares para as questões artísticas in the area of dance / art. Moreover, this text
e formativas na área da dança/arte. O pre- intends to allow the widening of the sens-
sente texto também intende possibilitar o es for the assumption that any knowledge
alargamento dos sentidos para a assunção in dance can and should be recognized and
de que qualquer conhecimento em dança legitimized by its makers as explicitly edu-
pode e deve ser reconhecido e legitimado cational.
por seus fazedores na qualidade de explici-
tamente educativos.
Palavras-chave Keywords
Dança imanente. Companhia Moderno de Immanent dance. Companhia Moderno de
Dança. Educação. Dança. Education.
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Introdução tos/danças. Independente do eixo temático,


seus trabalhos exploram sobretudo a inven-
Experiências em dança na relação ção de movimentos por meio do corpo que
com a educação dança na perspectiva de ampliar sua práxis
artística, intitulada de dança imanente, na
A Companhia Moderno de Dança – qualidade de indutora para a construção de
CMD é um coletivo artístico fundado em poéticas que se proponham a evidenciar o
novembro de 2002 a partir do trabalho do corpo do artista como lócus de pesquisa, ex-
grupo coreográfico do Colégio Moderno, perimentação e criação da dança.
em Belém do Pará. Após iniciarem os pro- As primeiras produções bibliográficas
cessos para ingressar na universidade, al- presentes neste percurso foram lançadas
guns bailarinos, em parceria com o profes- no ano de 2010, quando publicou-se a co-
sor Gláucio Sapucahy (diretor executivo da leção bibliográfica Processos criativos em
companhia) e a professora companhia2, composta de três volumes: 1)
Ana Flávia Mendes (diretora artística Gesto transfigurado (dissertação de mes-
da companhia), fundaram a companhia para trado em artes cênicas de Ana Flávia Men-
dar prosseguimento às pesquisas e produ- des); 2) Dança imanente (tese de doutorado
ções na área da dança até então vivencia- em artes cênicas de Ana Flávia Mendes); 3)
das. Naquele momento os artistas fundado- Abordagens criativas na cena (coletânea de
res já sofriam os primeiros atravessamentos textos de autoria dos dançarinos do grupo)3.
educacionais na instauração de seu coletivo Duas das publicações supracitadas ti-
artístico, tendo em vista que este era con- veram como indutores processos criativos
cebido e encontrava suportes no universo da CMD. No período de 2005 a 2008, anos
escolar. De acordo com Mendes, do doutoramento de Ana Flávia, foi cunhada
a noção de dança imanente cujos contornos
A companhia, ainda que não se carac- vêm se delineando como práxis artística da
terize como grupo institucional, funcio- companhia, e também se encontra aplicada
na com o apoio do Colégio Moderno,
especialmente de sua Diretora Pedagó- a outros contextos de ensino e aprendiza-
gica, professora Marlene Vianna. Tra- gem em artes. Esta noção propõe focalizar
ta-se de uma companhia vinculada ao o olhar do artista no corpo com a perspecti-
Colégio Moderno por meio do emprésti-
mo do espaço físico da instituição, além
va do reconhecimento de que o movimento
do vínculo histórico e emocional, uma dançado pode surgir do desvelar individual e
vez que a maioria dos integrantes estu- coletivo em imersão nos mais diversos pro-
dou nesta instituição (MENDES, 2010, cessos criativos.
p. 36)1.

Com mais de quinze anos de existência 2 Resultado de um projeto contemplado pela FUNARTE no edi-
tal Bolsa de Estímulo à Produção Crítica em Dança de 2008.
e inserida no contexto artístico da produção
de poéticas contemporâneas em dança, a 3 Em 2019, a CMD lançará mais 3 volumes da coleção. Pre-
miado pelo prêmio de Dança Klauss Viana 2015, o volume 4,
CMD tem sua missão voltada para a pes- intitulado de Experimentações em Dança Imanente é resultado
quisa, criação e concepção de movimen- de minha pesquisa de mestrado junto ao Programa de Pós-Gra-
duação em Artes, PPGARTES/ICA/UFPA. O volume 5, A dança
imanente no ensino e criação em artes cênicas é resultado do
1 Esta citação faz referência ao período de criação da compa- pós-doutorado de Ana Flávia Mendes e, o volume 6, intitulado
nhia. Atualmente, a CMD não possui mais vínculo institucional Ensaios de uma companhia (Pós) Moderno de Dança, é forma-
com o Colégio Moderno, tendo como lócus de produção artística do por uma coletânea de textos sobre processos e poéticas de-
seu próprio espaço, o Espaço Companhia Moderno de Dança. senvolvidos na companhia.

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Em minha pesquisa de mestrado4 no como plano de imanência, agenciando


programa de pós-graduação em Artes da conceitos comuns ao coletivo (desejo,
autonomia, multiplicidade, afeto, inter-
Universidade Federal do Pará (PPGARTES/ disciplinaridade, descoberta, adapta-
ICA/UFPA), propus-me ao desdobramento ção, comunidade etc). Nesta dança
dos princípios da dança imanente (imanên- imanente, arte e vida confundem-se e
constroem conhecimento, contribuindo
cia, metalinguagem5, visibilidade6). Foi utili- para o ensino e a criação em dança em
zado como procedimento do estudo a apli- Belém do Pará, tanto no âmbito artístico
cação de experimentações visando atualizar e estético quanto no campo ético e so-
cial (depoimento de Ana Flávia concedi-
a práxis por meio da instauração de novos do para este artigo).
atravessamentos nos princípios nela já exis-
tentes. Acima, o trecho de Mendes tangencia
Neste sentido, o presente artigo propõe- pontos caros a esta reflexão. Tais pontos
-se a continuidade dos estudos7 em dança observam um fazer dança por meio da in-
imanente, sublinhando questões de cunho teração de arte e vida, ressaltando a de-
educacional, acreditando serem estas de pendência de aspectos cuja dominante é
extrema relevância para a compreensão e artística daqueles relativos à sociedade e à
amadurecimento da práxis cênica da CMD. ética. A partir do exposto, considera-se que
Com efeito, são instauradas neste texto al- focalizar a dança imanente como fenômeno
gumas considerações desta artista-pesqui- para reflexão no campo das artes e da edu-
sadora no tocante ao que vem sendo cha- cação permite avanço em suas produções
mando de atravessamentos educacionais teórico-práticas, e potencializa o cenário das
na dança imanente, os quais compreendo poéticas contemporâneas de dança que em
serem inerentes a CMD, justificados em sua muito contribuem para a construção de sin-
trajetória e nas sutilezas de seus processos gularidades plurais do fazer dança no esta-
criativos e formativos em dança. do do Pará e no Brasil como um todo.
A Companhia Moderno de Dança é um
Como artista-pesquisadora da dança,
devir dança cujos princípios filosóficos, os primeiros atravessamentos educacio-
técnicos e metodológicos organizam-se nais vêm me afetando desde o ano de 1997,
quando os fundadores da CMD, dentre eles
4 Dissertação intitulada de “Desdobrando a dança imanente: eu, encontraram-se pela primeira vez para
imanência, organicidade e técnica na construção de uma poé- iniciar as diretrizes de um trabalho nesta
tica cênica”, sob a orientação do professor Doutor Cesário Au-
gusto Pimentel, 2011. área no Colégio Moderno.
5 “Ao tecer uma analogia com a abordagem metalinguística de
Moderno foi o nome de uma escola cen-
Avesso, é possível constatar que o recurso à metalinguagem tenária da cidade de Belém do Pará - A So-
(corpo falando/dançando sobre si) é uma estratégia da lingua- ciedade Civil Colégio Moderno. Considerada
gem que se quer expressar por meio da dança” (MENDES,
2010, p. 217). como vanguardista e à frente de seu tempo,
6 “O que vale refletir [...] é sobre o fato de [...], a visibilidade ser a
foi a primeira instituição de ensino formal a
etapa de formação das imagens vislumbradas pelos intérpretes- admitir turmas mistas com homens e mulhe-
-criadores, na perspectiva de respaldar teoricamente o conceito res na capital paraense. Em agosto de 1997,
de corpo visivo” (MENDES, 2010, p. 236).
a instituição passou a agregar em seu es-
7 A continuidade dos estudos em dança imanente vem sendo
motivação de minha atual pesquisa de doutorado, no PPGAR-
paço algumas das pessoas que, 5 anos de-
TES/ICA/UFPA, onde venho me debruçando a compreender pois, seriam as responsáveis pela fundação
um pouco mais sobre os modus operandis da CMD como parte da Companhia Moderno de Dança.
processual da criação de uma nova poética em dança com a
companhia.

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1997 também fora o ano de meu ingres- onde quer que o homem se encontre.
so no grupo coreográfico desta escola. A Porém, dentre os múltiplos espaços so-
ciais nos quais a educação se manifes-
partir de então comecei a atuar no contexto ta, percebemos que a escola ainda de-
artístico, por meio de uma compreensão da tém uma função significativa, na medida
dança atrelada ao universo da escola e, por em que se destina a esse papel social.
Por vezes, é percebida, equivocada-
conseguinte, da educação formal. Inicial- mente, como único espaço realmente
mente, as aulas do grupo (até meados de responsável pelo educar.
2001) advinham de metodologias que insti-
gavam o corpo dançante mais como repro- Com efeito, compreendo que em todas
dutor do movimento do que criador. Mesmo as diversas formas de produção e repre-
tratando-se de uma formação cujos proces- sentação artística do homem, a dança en-
sos de ensino e aprendizagem priorizavam carna-se da noção de educação. A dança é
momentos de cópia e repetição de movi- educação independente de acontecer nas
mentos advindos do professor, ali também escolas, nos projetos sociais, em grupos da
havia espaço para a tessitura de relações da periferia, do centro da cidade, pois mesmo
dança produzida em sala de aula com ou- que não seja a dominante do trabalho, sem-
tros contextos, como o da educação. pre educa os corpos envolvidos neste fazer.
Ao longo do tempo, amadureceu-se a
compreensão de que a dança educa quem a O despertar desse corpo pode se dar
de diversas formas, não somente pela
faz e quem a frui. Os sentidos eram levados via da vivência de técnicas de sensibili-
a perceberem os potenciais educativos do zação corporal, como pensávamos ou-
fazer artístico, não somente por se tratar de trora. Uma atitude problematizadora por
uma dança inserida no âmbito escolar, mas, parte do educador torna-se imprescindí-
vel para que os alunos possam refletir
também, pela assunção de que a educação sobre suas formas de danças, das dan-
é característica sine qua non para a dan- ças conhecidas, do contexto em que se
ça onde quer que esteja sendo ensinada, realizam essas danças e, mais ainda,
para que possam reconhecer que além
aprendida, produzida, fruída. das danças já experimentadas, existem
Diante do exposto, expressões como muitas outras que, como as já vividas,
“Dança Educativa” e “Dança Educação” constituem-se em produções culturais
que merecem ser respeitadas (PORPI-
atreladas, na maioria das vezes, ao ensi- NO, 2006, p. 132).
no da dança na escola, passaram a perder
sentido sob minhas perspectivas enquanto Aos poucos fui percebendo e amadu-
artista da dança, ressoando como um pleo- recendo os atravessamentos da dança en-
nasmo. Em nossa sociedade a escola é por quanto conhecimento com questões relati-
excelência o espaço no qual o ser humano vas ao contexto da educação por meio de
encontra estímulos e certos conhecimentos minha própria trajetória artística na CMD, na
para transformar-se enquanto sujeito na re- qual atuo até os dias de hoje, e das experi-
lação com o outro, com o meio. Porém, o ências como docente no curso de Licencia-
sentido de educação habita muitos outros tura em Dança da Universidade Federal do
espaços que não apenas o escolar, pois, se- Pará.
gundo Porpino (2006, p. 124), Outra mola propulsora de inquietações
[...] constitui-se num fenômeno inerente
mais próximas das argumentações por ora
à vida do ser humano, é multifacetada apresentadas foi a inserção da disciplina
e faz parte das experiências humanas Escola, Dança e Educação no plano políti-

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co pedagógico do curso de Licenciatura em CMD, me fizeram observar atravessamen-


Dança da UFPA, ministrada pela primeira tos educativos nas artes como um todo. Tais
vez no 2º semestre do ano de 2013. Como atravessamentos vêm instigando o amadu-
docente responsável pela disciplina, com- recimento de experiências, contatos e inte-
partilhei com os alunos princípios da dança, rações que se fazem e se ampliam embebi-
tendo em vista sua constituição educacional dos desta possibilidade de olhar o fazer em
e como a mesma se relaciona com a escola dança imanente.
e demais contextos sociais.
Na condição de docente da disciplina
supracitada e em outras cujo foco é a in- Bases Teóricas e
vestigação de estratégias particulares para Abordagens Metodológicas
o ensino da dança nos locais onde os dis-
centes atuam, foram propostos três projetos A dança imanente e seus
à universidade a fim de registrar, observar atravessamentos educacionais
e compreender as realidades da dança no
contexto escolar8 da cidade de Belém, para, O fazer artístico aliado a questões da
a partir disto, propor, esboçar e experimen- educação em sentido lato corrobora para
tar diferentes caminhos de fazer e conhecer ações e concepções mais éticas, políticas e,
em dança. por que não dizer, estéticas, no âmbito das
Nasceu em janeiro de 2014 o projeto de produções artísticas na contemporaneidade
pesquisa Escola, Dança e Educação: estra- em suas múltiplas e diversificadas lingua-
tégias metodológicas para o ensino da dan- gens. Neste sentido, “[...] abre-se a possibi-
ça em Belém do Pará; em agosto do mesmo lidade de que processos de criação artísti-
ano, o projeto de extensão Escola, Dança e ca possam ser revistos e repensados como
Educação: inserções práticas da dança na processos também explicitamente educa-
escola em Belém do Pará; e em janeiro de cionais” (MARQUES, 2010, p. 112). Em diá-
2017, o projeto de extensão EDUCADAN- logo com este pensamento, Rocha (2016, p.
ÇA: interconexões em dança no contexto 30) considera que:
escolar. Estes projetos vislumbram aprofun-
dar os atravessamentos presentes na tríade Está em jogo na sala de dança o que o
escola, dança e educação, dentro da Licen- professor (e a professora, sempre) en-
tende que a dança seja e ainda o que
ciatura em Dança da UFPA e na comunida- ele acredita que ela deva ser. Se ele
de belemense em geral entende a dança como uma certeza,
ou uma dúvida e se ele, por exemplo,
Em face ao exposto, o contato com a trabalha o movimento a partir da lógica
do controle do vir-a-ser da dança, ou a
práxis da dança imanente, algumas cone- partir da experimentação e, portanto, do
xões relativas às atividades na universida- manejo, de seu devir. Em pauta, o futuro
de e o contexto histórico da formação da da dança definido a partir do conceito
de dança ali praticado, do que ele inclui
e exclui. Pratica-se na aula – em qual-
8 A parceria com as instituições formais de ensino e seus res-
quer aula – um pensamento de dança.
pectivos docentes de artes foi criada a partir do lançamento dos Sempre.
projetos de pesquisa e extensão. Os projetos se voltam para as
escolas, públicas ou privadas, que possuam o ensino da dis-
ciplina Artes no seu currículo, e proporcionam espaço para a
Deste modo, é, também, no conceito,
reflexão e compartilhamento dos estudos feitos com os partici- no pensamento de dança, que podem ser
pantes.

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encontradas pistas das estruturas utilizadas virtual não é algo a que falta realidade,
nos processos de ensino e aprendizagem mas que se engaja num processo de
atualização seguindo o plano que lhe dá
em dança, as quais afetam sobremaneira os sua realidade própria. O acontecimento
comportamentos de todos os corpos envol- imanente se atualiza num estado de coi-
vidos. sas e num estado que faz com que ele
ocorra (DELEUZE, 2002, p. 12-14.).
Tratar acerca de atravessamentos edu-
cacionais na dança imanente é considerar
Em se tratando de conceber dança em
antes de tudo que questões relativas ao que
companhia, na CMD percebe-se que existe
se compreende por educação são consti-
um todo complexo justamente nas redes de
tuintes deste conceito, desta práxis, atuando
interação tecidas pelas vidas, imanências,
como motrizes dos processos vivenciados
instauradoras do trabalho no/do/em coletivo.
na CMD. Certos aspectos do trabalho subli-
A imanência congrega e sublinha ques-
nham fortemente tal assertiva.
tões particulares, peculiares do um, da vida.
Este artigo propõe-se não somente
Mas o um que não é isolado e não está aca-
acrescer reflexões disparadoras acerca da
bado. O um que é vários. Multiplicidade. A
dança imanente, mas, sobretudo, conside-
interação do coletivo no particular e a mão
rar que os atravessamentos educacionais
dupla que isso gera, o particular no coletivo.
peculiares a este fazer na CMD atuam como
Tomar como lente o conceito de ima-
forças motrizes desde seu surgimento até
nência para refletir sobre a multiplicidade do
os dias atuais, inclusive enquanto potência
um, vem propiciando à instigação de dife-
formativa do seu trabalho artístico em dan-
rentes possibilidades de criação em dança
ça.
na CMD. Para Deleuze, a imanência encon-
Um dos disparadores para a compre-
tra-se no plano de imanência que conecta
ensão da noção de dança imanente trata-se
todas as coisas vivas e que por esse motivo
do conceito de imanência, o qual “[...] não
não está contido dentro de um corpo, apri-
se reporta a Algo como unidade superior a
sionado ou em função de um objeto, mas
qualquer coisa, nem a um Sujeito como ato
relacionado aos seres vivos, cortando-os,
que opera a síntese das coisas: é quando a
atravessando-os, tornando-os simples e ab-
imanência já não é imanência a outra coisa,
solutamente, imanência.
que não a si, que se pode falar de um plano
A imanência enquanto vida sugere
de imanência” (DELEUZE, 2002, p. 12). Ain-
constante relação com os corpos, refletindo
da sobre esta questão, complementa:
neles nada mais que estados de vida. Esta-
Uma vida é a imanência da imanência, dos inconclusos, transitórios. Podemos pen-
a imanência absoluta: ela é potência e sar que a imanência enquanto vida também
beatitude completas. [...] Uma vida está afeta e interfere o estado de transitoriedade
por todos os lugares, por todos os mo-
mentos que atravessam este ou aquele de todo e qualquer corpo existente, onde
sujeito vividos: vida imanente trazendo tudo se relaciona dentro do plano de ima-
acontecimentos ou singularidades que nência, sem conclusões, sempre em estado
apenas se atualizam nos sujeitos e nos
objetos. Essa vida indefinida não tem,
de inacabamento, de devir.
ela mesma, momentos [...] mas apenas Ao sugerir uma visão de mundo onde
entretempos, entremomentos [...]. Uma as coisas encontram-se em relação e inaca-
vida contém apenas virtuais. Ela é fei- badas, observo que a noção de imanência
ta de virtualidades, acontecimentos,
singularidades. Isso que se chama de aplicada à dança abre espaço para um sen-
tindo amplo sobre a educação, posto que é

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vista como inerente à própria existência hu- aqui como sendo as imanências, os corpos
mana na medida em que “É na inconclusão artistas da Companhia Moderno de Dança.
do ser, que se sabe como tal, que se funda
a educação como processo permanente. No que tange ao campo artístico... um
complexo tesouro é que a construção
Mulheres e homens se tornam educáveis na de laços antigos (com pessoas que já
medida em que se reconheceram inacaba- não estão em companhia) faz com que a
dos” (FREIRE, 1996, p. 58). A esse respeito, generosidade, o cuidado, a atenção e a
necessidade de endossamento desses
compreende-se que, laços sejam vistos como interpenetra-
dos para o fazer artístico... Especifica-
É a partir desse inacabamento, desta mente da cena. Com relação ao campo
riqueza existencial e suas infinitas pos- físico-afetivo... um tesouro é: as memó-
sibilidades que a educação, fenômeno rias dos gestos, do toque, do cheiro, da
tipicamente humano, torna-se possível. voz da pessoa...do mais antigo ao mais
Aprendemos, educamo-nos porque so- novo...e daqueles que fizeram parte...
mos seres inacabados, incompletos e essas memórias funcionam como ele-
temos consciência desse inacabamen- mento que conecta os afetos por cada
to, da abertura infinita ao aprimoramen- um...imprimindo uma relação específica
to, ao ser mais. (TROMBETTA; TROM- na cena e fora dela (em especial, fora
BETTA, 2010, p. 222). dela) e também imprimindo uma neces-
sidade de relacionar-se.
Se imanência se refere à vida, por in-
ferência, observa-se que o corpo humano é O depoimento acima, concedido para
ele próprio imanência. Na qualidade de ser este artigo, é de Andreza Barroso, uma das
uma vida e nada mais, atravessa o sujeito bailarinas da companhia. Dentre outros as-
vivido, isto é, o corpo ao ser atravessado de pectos, suas considerações impregnam-se
imanência, por sua capacidade de afetar e de uma intensa implicação entre as dimen-
ser afetado, também afeta outros corpos se- sões da vida e da arte, as quais permitem
gundo a própria vida que nele se atualiza. observarmos questões em educação para
Corpo imanência, corpo imanente, vida. Tão além de formalismos e estruturas estrita-
imanência porque encharcado de imanên- mente relativos aos contextos já consagra-
cias e construtor de imanências. dos para este fim.
A aplicação da noção de imanência na Como anteriormente dito, a dança ima-
operação de um pensamento em dança na nente foi cunhada inspirada na noção de
CMD também promove a construção de uma imanência, imbricada nos estudos de douto-
práxis explicitamente educativa no tocante à rado de Ana Flávia. Naquele tempo a artista
assunção da ausência de hierarquia entre criou o termo como metodologia da poética
os corpos. De tal feita, ocorre a percepção do espetáculo Avesso, objeto de sua pesqui-
da dependência, do cuidado, da escuta, da sa. “Os modos operacionais do espetáculo
partilha sensível que se encontra principal- apontaram os procedimentos criativos ins-
mente nas fendas, no trânsito, na ignorân- taurados na construção do mesmo, sendo
cia, na incompletude presente no trabalho este, portanto, o nascedouro da dança ima-
em arte deste coletivo. nente” (MENDES, 2016, p. 2096).
Considero que a lida na CMD pulsa in- Mesmo embrionariamente enquanto
ventando suas tensões nos cruzamentos, no metodologia já apontava atravessamentos
trânsito, nos nós que se laçam, nos afetos, potentes relativos à educação, pois, “Não se
nas forças, cada ponto deste metaforizado trata apenas de uma metodologia de criação

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artística, mas de uma estratégia interdiscipli- ou não a educar, ou seja, a desenvol-


nar de educação e descoberta de soluções ver expedientes para tornar-se pouco a
pouco dispensável, ensinando ao aluno
para a vida por meio da dança”. (MENDES, a prescindir dele, professor, e a impres-
2010, p. 338). cindir de si. Fomentar no aluno sua au-
Como poética de Avesso, a dança ima- tonomia, correlata ao responsabilizar-se
por si, significa aceitar como princípio a
nente propunha uma metodologia para o descontinuidade intrínseca ao ato de
agenciamento das características e cami- aprender implícita na máxima da educa-
nhos daquele processo de criação, os quais ção contemporânea que afirma: não é o
professor que ensina, mas o aluno que
focavam prioritariamente o corpo como ce- aprende. Nesta descontinuidade, a pos-
leiro para a criação do movimento em dança. sibilidade da formação de um criador-
-pensador em dança. (ROCHA, 2016,
Estamos diante da busca por uma dan- p. 33).
ça do próprio corpo, aberto, agenciador
e inacabado, que tem em si mesmo
todas as potências daquilo que o cir-
Atualmente um dos princípios primor-
cunscreve, inclusive outros corpos. Em diais durante as imersões nos processos
suma: para a dança imanente, o corpo criativos na CMD é a possibilidade de ope-
é o “eu”, mas é também o ‘outro’. (MEN- racionalização da criação a partir do corpo
DES, 2016, p. 2098).
criador, e não apenas como suporte de cria-
ções de um coreógrafo. Deste modo,
Aquele processo ampliava na CMD os
caminhos que davam vazão ao corpo dota- Como pedir de um intérprete que ele crie,
do de múltiplas possibilidades na construção que ele escolha, tendo passado anos de
do movimento a partir de si e suas relações sua vida em uma sala de aula de dança,
alienado dos devires do mundo e dos
com outros corpos: um corpo autônomo na devires estéticos da arte, sendo muitas
dança. “O respeito à autonomia e à dignida- vezes ostensivamente humilhado e de-
de de cada um é um imperativo ético e não sinvestido da intimidade de seu próprio
um favor que podemos ou não conceder uns movimento, fazendo de seu corpo, e de
si um instrumento? Se lhes ensinarmos
aos outros”. (FREIRE, 1996, p. 59). a fazer passos e não a escolher, prova-
O percurso de amadurecimento da au- velmente estamos roubando-lhes corre-
tonomia do corpo na formação artística em lativamente, por mais contraditório que
possa parecer, a possibilidade de dan-
dança na CMD também sublinha atravessa- çar. Até que ponto estamos dispostos a
mentos de cunho educacional instaurados admitir o artista-em-formação como um
por meio da dança imanente. Pode-se, en- agente autônomo e responsável que
escolhe e decide? Este ponto será o
tão, convocar a máxima de “Saber que ensi- limite vivido futuramente pelo intérpre-
nar não é transferir conhecimento, mas criar te na assunção autônoma e criativa de
as possibilidades para a sua própria produ- sua responsabilidade em decidir kines-
ção ou a sua construção”. (FREIRE, 1996, tesicamente quando dança. (ROCHA,
2016, p. 52).
p. 47). Coadunando ao exposto, é importan-
te acrescentar que Em diálogo com o pensamento de Ro-
cha, ressalto que foi em Avesso onde Ana
Técnica e estética se entrelaçam de
modo muito apertado no ensino de arte. Flávia começou a se dar conta que “a dança
Está em jogo mais uma vez que grau diferente”, que almejava quando iniciou na
de negociação é permitido na relação área da docência, encontraria espaço por
entre o que se ensina e o que se apren-
de e o quanto o professor está disposto
meio do estímulo à autonomia dos próprios
corpos dançantes da companhia, ou seja, na

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Reflexões acerca de uma práxis artístico-educativa na Companhia Moderno de Dança
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descoberta de uma dança do um, do entre, O fazer com, em companhia, tem sido uma
da vida, de um pensamento de dança do(s)/ das maiores marcas na trajetória do grupo,
no(s)/para o(s) corpo(s) que dança(m). Su- das mais moventes,
blinho novamente percepções de que a dan- Logo nos anos iniciais, as escolhas es-
ça imanente já iniciava um percurso atraves- téticas constantemente espelhavam-se na
sada da ideia de educação, a qual, segundo figura tradicional do coreógrafo(a) (aquele
a autora, seria possível de alterar processos que tem a função de criar os movimentos
artísticos e formativos do homem. para a coreografia) que, naquele momento,
era Ana Flávia. A diretora contava que um
É por isso que reconheço, [...], a real de seus maiores sonhos era descobrir uma
possibilidade de difusão desta poética
da dança imanente como uma manei- “dança diferente”, nunca dançada, nunca
ra de fazer com predicados de prática vista. Aos poucos, o que figurava como uma
artístico-pedagógica, assim como ide- quimera foi se materializando nas condições
aliza Izabel Marques (2001) em sua
dança centrada no contexto. Sinto que
geradas pelo processo, no tocante à relação
tudo isso que a CMD vem construindo da coreógrafa com os próprios bailarinos,
não é para uso próprio, mas sim para o consolidando-se principalmente no período
aproveitamento de outros, com fins de onde foram levantados os primeiros questio-
investir em formação cidadã (MENDES,
2010, p. 339). namentos relativos à dança imanente.
Talvez não tenha havido uma escolha
Foco de estudo nos processos criati- de “descentralização criativa” da coreógra-
vos da companhia, em pesquisas acadêmi- fa para os bailarinos (que aos poucos pas-
cas (dentre as quais cito meu doutorado), e saram a criar o(s) movimento(s)/dança(s)),
compartilhando espaços em contextos não pois tudo foi muito intuitivo e progressiva-
acadêmicos, a dança imanente vem adqui- mente ganhou maturidade nas poéticas do
rindo novos contornos. Passou não somente grupo. Foi-se percebendo que quanto mais
a refletir as características de uma poética coletiva, compartilhada, a criação era, mais
como a assumir-se enquanto práxis artística diversa ela seria. De estímulo a estímulo,
da CMD. processo a processo. O(s) movimento(s)/
Ao propor que o corpo na dança é ima- dança(s) seria(m) muito mais diverso(s),
nência, Ana Flávia inaugurou ainda o con- múltiplo(s), inusitado(s), quanto mais pesso-
ceito de corpo imanente, o qual tece cone- as pudessem experimentar, conceber, ges-
xões com todas as relações operantes nas tar.
bordas, fendas, “dentro”, “fora” do corpo no Estar com, compartilhar, dividir tessitu-
início, meio e fim do processo de criação. ras de vida e tecê-las juntas demanda gran-
Com efeito, “A dança imanente é, como o des esforços, afetos e grandes responsabi-
próprio adjetivo retrata, uma dança de ima- lidades, ainda mais em se tratando de uma
nências, de multiplicidades. A imanência é partilha de vida e arte onde “O querer bem
o dançarino. O dançarino é o seu mundo e ao outro, tão necessário ao aprendizado do
este mundo, um plano de imanência” (MEN- diálogo, implica antes de qualquer coisa um
DES, 2014, p. 13). querer bem de modo genérico à vida, impli-
Os compartilhamentos coletivos pre- ca um estar no mundo e saber-se perten-
sentes no trabalho da companhia como um cente a ele, implica um sentir-se vivo, sim-
todo são também reflexos dos atravessa- plesmente”. (DOWBOR, 2008, p. 74).
mentos educacionais tratados neste artigo.

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Para além da responsabilidade na lida ticos-formativos; do corpo criador para com


com o outro, dos limites que relações em o público fruidor da obra etc. Em consonân-
companhia demandam, é importante reiterar cia a este pensamento, Vecchia (2010, p.
que se trata de um coletivo artístico. A ênfa- 27) afirma que
se chama atenção ao fato de que o primeiro
objetivo em comum de todos os companhei- [...] o homem se torna liberto à medida
que for capaz de ser autônomo, assu-
ros desta companhia é o fazer dança. No mir a decisão pela mudança de si e da
entanto, não há como descolar as tessitu- sociedade, através da educação perme-
ras de vida individuais das tessituras vividas ada pela afetividade, pelo diálogo, pelo
questionamento, pela conscientização
com o outro. oriunda de um processo comunitário,
Ao propor o diálogo do corpo com o pró- solidário e integrado de abordagem da
prio corpo e outros corpos, a dança imanen- realidade e do engajamento efetivo na
te assume posturas éticas do fazer dança. mudança. Tudo se origina de um sentir
a realidade, um pensar sobre este sentir
Instiga caminhos de ruptura possíveis para e uma ação consequente e engajada.
o corpo, para o movimento, para a dança,
para a educação, partindo do entendimen- Na dança imanente encontra-se uma
to de que qualquer pessoa pode dançar e, íntima conexão dos processos de criação
portanto, construir conhecimento em dança. com mecanismos flexíveis e múltiplos capa-
Observa-se, assim, que esta práxis agencia zes de possibilitar um (re)conhecimento do
experiências e princípios sobre movimento, corpo que dança em relação a si e ao outro
corpo e dança muito particulares do contex- por meio da noção de experiência. Tal as-
to artístico da CMD, mas que também po- sertiva ratifica mais uma vez sua potência
dem ser aplicados a outros contextos para educativa considerando, também, que pro-
a produção em dança/arte na contempora- põe como procedimentos artístico-formati-
neidade. vos experiências de ensino e aprendizagem
É importante considerar, ainda, que não fixadas em estruturas hierárquicas para
atravessamentos educacionais constituintes produção e apreensão do conhecimento em
do fazer da dança imanente alicerçados em dança. Estas experiências não instauram
experiências artísticas promotoras de auto- noções tradicionais e dicotômicas sobre o
nomia, produção de conhecimento, partilha corpo e investem na multiplicidade e na in-
de saberes, assunção de inacabamento, determinação dos processos criativos como
dentre outras, são instauradores dos corpos celeiro de partilhas sensíveis e coletivas,
imanentes da companhia, incitando a per- construídas por meio de saberes e de sujei-
cepção da multiplicidade de agenciamentos tos da experiência.
possíveis destes corpos nas infinitas rela-
ções de serem e estarem no mundo, inclusi- A experiência é o que nos passa, o
ve por meio da arte da dança. que nos acontece, que nos toca. Não
o que se passa, não o que acontece,
As peculiaridades desta práxis instau- ou o que toca. A cada dia se passam
ram o corpo criador encharcado de poten- muitas coisas, porém, ao mesmo tem-
ciais educativos na formação e produção po, quase nada nos acontece. Dir-se-ia
que tudo o que se passa está organiza-
artística em diversas esferas, como a esfera do para que nada nos aconteça. Walter
do corpo criador para com ele mesmo; do Benjamin, em um texto célebre, já ob-
corpo criador para com os outros corpos pe- servava a pobreza de experiências que
los quais é atravessado em processos artís- caracteriza o nosso mundo. Nunca se
passaram tantas coisas, mas a expe-

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riência é cada vez mais rara (BONDÍA, Uma educação plural, educações pos-
2002, p.21). síveis, construtoras de caminhos. Educação
em dança como atravessamento e não como
A dança imanente, então, vem promo- acessório, opção, escolha. Educação sendo
vendo espaços de experiência artística, ela mesma imanência, operando como força
priorizando o bailarino como o próprio su- que garante vida ao devir dança em suas di-
jeito da experiência. Não como aquele que versas camadas na contemporaneidade.
precisa fazer, fazer e fazer sem que nada se Sem desejar encerrar os caminhos para
passe. Mas como alguém que se coloca em onde estas reflexões podem levar, observo
passividade para que as experiências acon- que contribuem, dentre outros aspectos,
teçam. Pois, para o amadurecimento nos estudos de-
senvolvidos a respeito da dança imanente,
[...] seja como território de passagem,
seja como lugar de chegada ou como compreendendo que atravessamentos que
espaço do acontecer, o sujeito da expe- perpassam a história da CMD, e aqueles
riência se define não por sua atividade, que se cruzam, conectam e afetam os que
mas por sua passividade, por sua re-
ceptividade, por sua disponibilidade, por percorrem minha própria trajetória artística,
sua abertura Trata-se, porém, de uma são geradores e instauradores dos princí-
passividade anterior à oposição entre pios que vêm corroborando na maturação
ativo e passivo, de uma passividade
feita de paixão, de padecimento, de pa-
do trabalho e referenciais epistemológicos
ciência, de atenção, como uma recepti- na rede da dança imanente. Assim, compar-
vidade primeira, como uma disponibili- tilho das quimeras de Mendes (2010, p. 342)
dade fundamental, como uma abertura ao dizer que
essencial (BONDÍA, 2002, p. 24).
Tudo parte de uma necessidade de criar
e encenar dança permeada por valores
Considerações estéticos diferenciados, sem a preo-
cupação em seguir princípios e proce-
dimentos vigentes em outras poéticas
Diante do exposto, percebo que as re- ou metodologias coreográficas. Muito
flexões por ora apresentadas sublinham que mais que isso, no entanto, tudo parte
da construção de uma aspiração que se
os atravessamentos educacionais da dança pretende realizar, de uma quimera que
imanente são motrizes que encharcam os se quer efetivar, de uma visibilidade de
corpos dançantes antes, durante e depois mundo que se quer visível nos homens
de processos de formação e criação, e que por meio da arte do movimento. cênico.
impregnam, evidentemente, as obras e as
vidas ali presentes, isto é, operam como
imanências que afetam os corpos-imanên-
cias da Companhia Moderno de Dança, fa- Referências
zendo com que esta práxis seja educativa.
Por fim, ao desenvolver as considera- BONDÍA, Jorge Larrossa. “Notas sobre a
ções apresentadas nesta escrita, desejo ra- experiência e o saber da experiência.” In:
tificar que a dança imanente está investida Revista Brasileira de Educação. Nº 19. Jan/
das dominantes artística e educativa, cons- Fev/Mar/Abr. 2002.
tituindo-se de potências sem as quais não
pode ser compreendida e praticada.

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cena n. 28

DELEUZE, Gilles. “A imanência: uma vida.” ROCHA, Thereza. O que é dança contem-
In: Revista Educação e Realidade, V. 27, N.2, porânea?: uma aprendizagem e um livro
p. 10-18, jul/dez, 2002. Rio Grande do Sul. de prazeres. Salvador: Conexões Criativas,
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index. 2016.
php/educacaoerealidade/article/view/31079.
Acessado em: 11.05.2011. TROMBETTA, Sergio; TROMBETTA, Luis
Carlos. “Inacabamento.” In: STRECK, Da-
DOWBOR, Fátima F. Quem educa marca o nilo R, REDIN, Euclides, ZITKOSKI, Jaime
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2008. re. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
pp. 221-222.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia:
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São Paulo: Paz e Terra, 1996. dade.” In: STRECK, Danilo R, REDIN, Eu-
clides, ZITKOSKI, Jaime José (organizado-
MARQUES, Isabel. Linguagem da dança: res). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte:
arte e ensino. São Paulo: Digitexto, 2010. Autêntica Editora, 2010. pp. 221-222.

MENDES, Ana Flávia. Dança imanente: uma


dissecação artística do corpo no processo
de criação do espetáculo Avesso. Coleção
Processos Criativos em Companhia – Volu-
me 2. São Paulo: Escrituras, 2010.
Recebido: 08/02/2019
__________________________________. Aprovado: 16/07/2019
A dança imanente no ensino e criação em
artes cênicas. Resultado final de estágio de
pós-doutorado desenvolvido junto ao Pro-
grama de Pós-graduação em Artes Cênicas
da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro. Supervisão: Profa. Dra. Enamar
Ramos. Rio de Janeiro, 2014.

___________________. Coreofotografia: a
sacralização do corpo que dança. In: Anais
do IX Congresso da ABRACE. 2016.

PORPINO, Karenine de Oliveira. Dança é


educação: interfaces entre corporeidade e
estética. Natal, RN: EDUFRN – Editora da
UFRN, 2006.

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