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Exu, de

mensageiro
a diabo.
Sincretismo
católico e
REGINALDO PRANDI

demonização
do orixá Exu

REGINALDO PRANDI
é professor de Sociologia
da FFLCH-USP e autor,
entre outros, de Os
Candomblés de São Paulo
(Edusp) e Mitologia dos
Orixás (Companhia das
Letras).

46 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 46-63, junho/agosto 2001


I
s primeiros europeus que tiveram contato na

O
África com o culto do orixá Exu dos iorubás,
venerado pelos fons como o vodum Legba ou
Elegbara, atribuíram a essa divindade uma
dupla identidade: a do deus fálico greco-ro
mano Príapo e a do diabo dos judeus e cristãos. A pri-
meira por causa dos altares, representações materiais e
símbolos fálicos do orixá-vodum; a segunda em razão
de suas atribuições específicas no panteão dos orixás e
voduns e suas qualificações morais narradas pela mito-
logia, que o mostra como um orixá que contraria as
regras mais gerais de conduta aceitas socialmente, con-
quanto não sejam conhecidos mitos de Exu que o iden-
tifiquem com o diabo (Prandi, 2001, pp. 38-83). Atri-
buições e caráter que os recém-chegados cristãos não
podiam conceber, enxergar sem o viés etnocêntrico e
muito menos aceitar. Nas palavras de Pierre Verger,
Exu “tem um caráter suscetível, violento, irascível,
astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente”, de modo que
“os primeiros missionários, espantados com tal conjun-
to, assimilaram-no ao Diabo e fizeram dele o símbolo de
tudo o que é maldade, perversidade, abjeção e ódio, em
oposição à bondade, pureza, elevação e amor de Deus”
(Verger, 1999, pp. 119).
Assim, os escritos de viajantes, missionários e outros
observadores que estiveram em território fom ou iorubá
entre os séculos XVIII e XIX, todos eles de cultura
cristã, quando não cristãos de profissão, descreveram
Exu sempre ressaltando aqueles aspectos que o mostra-
vam, aos olhos ocidentais, como entidade destacada-
mente sexualizada e demoníaca. Um dos primeiros es-

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critos que se referem a Legba, senão o pri- menos em sua grande parte.
meiro, é devido a Pommegorge, do qual se Assim é retratado Exu por padre Baudin:
publicou em 1789 um relato de viagem
informando que “a um quarto de légua do “O chefe de todos os gênios maléficos, o
forte os daomeanos têm um deus Príapo, pior deles e o mais temido, é Exu, palavra
feito grosseiramente de terra, com seu prin- que significa o rejeitado; também chamado
cipal atributo [o falo], que é enorme e exa- Elegbá ou Elegbara, o forte, ou ainda Ogongo
gerado em relação à proporção do resto do Ogó, o gênio do bastão nodoso.
corpo” (1789, p. 201, apud Verger, 1999, Para se prevenir de sua maldade, os negros
p. 133). De 1847 temos o testemunho de colocam em suas casas o ídolo de Olarozê,
John Duncan, que escreveu: “As partes gênio protetor do lar, que, armado de um
baixas [a genitália] da estátua são grandes, bastão ou sabre, lhe protege a entrada. Mas,
desproporcionadas e expostas da maneira a fim de se pôr a salvo das crueldades de
mais nojenta” (Duncan, 1847, v. I, p. 114). Elegbá, quando é preciso sair de casa para
É de 1857 a descrição do pastor Thomas trabalhar, não se pode jamais esquecer de
Bowen, em que é enfatizado o outro aspec- dar a ele parte de todos os sacrifícios. Quan-
to atribuído pelos ocidentais a Exu: “Na do um negro quer se vingar de um inimigo,
língua iorubá o diabo é denominado Exu, ele faz uma copiosa oferta a Elegbá e o pre-
aquele que foi enviado outra vez, nome que senteia com uma forte ração de aguardente
vem de su, jogar fora, e Elegbara, o pode- ou de vinho de palma. Elegbá fica então
roso, nome devido ao seu grande poder furioso e, se o inimigo não estiver bem
sobre as pessoas” (Bowen, 1857, cap. 26). munido de talismãs, correrá grande perigo.
Trinta anos depois, o abade Pierre Bouche É este gênio malvado que, por si mesmo ou
foi bastante explícito: “Os negros reconhe- por meio de seus companheiros espíritos,
cem em Satã o poder da possessão, pois o empurra o homem para o mal e, sobretudo,
denominam comumente Elegbara, isto é, o excita para as paixões vergonhosas.
aquele que se apodera de nós” (Bouche, Muitas vezes, vi negros que, punidos por
1885, p. 120). E há muitos outros relatos roubo ou outras faltas, se desculpavam di-
antigos já citados por Verger (1999, pp. zendo: ‘Eshu l’o ti mi’, isto é, ‘Foi Exu que
132-9), nenhum menos desfavorável ao me impeliu’.
deus mensageiro que esses. A imagem hedionda desse gênio malfazejo
Em 1884, publicou-se na França o livro é colocada na frente de todas as casas, em
Fétichisme et Féticheurs, de autoria de R. todas as praças e em todos os caminhos.
P. Baudin, padre católico da Sociedade das Elegbá é representado sentado, as mãos
Missões Africanas de Lyon e missionário sobre os joelhos, em completa nudez, sob
na Costa dos Escravos. Foi esse o primeiro uma cobertura de folhas de palmeira. O
livro a tratar sistematicamente da religião ídolo é de terra, de forma humana, com
dos iorubás. O relato do padre Baudin é uma cabeça enorme. Penas de aves repre-
rico em pormenores e precioso em infor- sentam seus cabelos; dois búzios formam
mações sobre o panteão dos orixás e aspec- os olhos, outros, os dentes, o que lhe dá
tos básicos do culto, tanto que o livro per- uma aparência horrível.
manece como fonte pioneira da qual os Nas grandes circunstâncias, ele é inundado
pesquisadores contemporâneos não podem de azeite de dendê e sangue de galinha, o
se furtar, mas suas interpretações do papel que lhe dá uma aparência mais pavorosa
de Exu no sistema religioso dos povos ainda e mais nojenta. Para completar com
iorubás, a partir das observações feitas dignidade a decoração do ignóbil símbolo
numa perspectiva cristã do século XIX, são do Príapo africano, colocam-se junto dele
devastadoras. E amplamente reveladoras cabos de enxada usados ou grossos porretes
de imagens que até hoje povoam o imagi- nodosos. Os abutres, seus mensageiros,
nário popular no Brasil, para não dizer do felizmente vêm comer as galinhas, e os cães,
próprio povo-de-santo que cultua Exu, pelo as outras vítimas a ele imoladas, sem os

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quais o ar ficaria infecto. sacrificando uma ave a Exu, representado
O templo principal fica em Woro, perto de por uma estatueta protegida por uma
Badagry, no meio de um formoso bosque casinhola situada junto à porta de entrada
encantado, sob palmeiras e árvores de gran- da casa. A legenda da figura diz: “Elegbá,
de beleza. Perto da laguna em que se reali- o malvado espírito ou o Demônio” (idem,
za uma grande feira, o chão é juncado de p. 51). Príapo e Demônio, as duas qualida-
búzios que os negros atiram como oferta a des de Exu para os cristãos. Já está lá, nesse
Elegbá, para que ele os deixe em paz. Uma texto católico de 1884, o binômio pecami-
vez por ano, o feiticeiro de Elegbá junta os noso impingido a Exu no seu confronto com
búzios para comprar um escravo que lhe é o Ocidente: sexo e pecado, luxúria e dana-
sacrificado, e aguardente para animar as ção, fornicação e maldade.
danças, ficando o resto para o feiticeiro. Nunca mais Exu se livraria da imputa-
O caso seguinte demonstra a inclinação de ção dessa dupla pecha, condenado a ser o
Elegbá para fazer o mal. orixá mais incompreendido e caluniado do
Invejoso da boa harmonia que existia entre panteão afro-brasileiro, como bem lembra-
dois vizinhos, ele resolveu desuni-los. Para ram Roger Bastide, que, na década de 1950,
tanto, ele pôs na cabeça um gorro de bri- referiu-se a Exu como essa “divindade ca-
lhante brancura de um lado e completamen- luniada” (Bastide, 1978, p. 175), e Juana
te vermelho do outro. Depois passou entre Elbein dos Santos, praticamente a primeira
os dois, quando estavam cultivando os seus pesquisadora no Brasil a se interessar pela
campos. Ele os saudou e continuou o seu recuperação dos atributos originais africa-
caminho. nos de Exu (Santos, 1976, p. 130 e segs.),
Quando ele passou um deles disse: atributos que foram no Brasil amplamente
— Que lindo gorro branco! encobertos pelas características que lhe fo-
— De jeito nenhum – disse o outro. – É um ram impostas pelas reinterpretações católi-
magnífico gorro vermelho. cas na formação do modelo sincrético que
Desde então, entre os dois antigos amigos, gabaritou a religião dos orixás no Brasil.
a disputa se tornou tão viva, que um deles,
exasperado, quebrou a cabeça do outro com
um golpe de enxada” (Baudin, 1884, pp.
49-51).
II
O texto termina assim, com esse mito Para os antigos iorubás, os homens ha-
muito conhecido nos candomblés brasilei- bitam a Terra, o Aiê, e os deuses orixás, o
ros, e que exprime de modo emblemático a Orum. Mas muitos laços e obrigações li-
dubiedade deste orixá. Sem entrar em por- gam os dois mundos. Os homens alimen-
menores que certamente eram impróprios tam continuamente os orixás, dividindo
à formação pudica do missionário, há a vaga com eles sua comida e bebida, os vestem,
referência a Príapo, o deus fálico greco- adornam e cuidam de sua diversão. Os
romano, guardião dos jardins e pomares, orixás são parte da família, são os remotos
que no sul da Itália imperial veio a ser iden- fundadores das linhagens cujas origens se
tificado com o deus Lar dos romanos, perdem no passado mítico. Em troca des-
guardião das casas e também das praças, sas oferendas, os orixás protegem, ajudam
ruas e encruzilhadas, protetor da família e e dão identidade aos seus descendentes hu-
patrono da sexualidade. Não há referências manos. Também os mortos ilustres mere-
textuais sobre o caráter diabólico atribuído cem tal cuidado, e sua lembrança os man-
pelo missionário a Exu, que a descrição têm vivos no presente da coletividade, até
prenuncia, mas há um dado muito interes- que um dia possam renascer como um novo
sante na gravura que ilustra a descrição e membro de sua mesma família. É essa a
que revela a direção da interpretação de simples razão do sacrifício: alimentar a fa-
Baudin. Na ilustração aparece um homem mília toda, inclusive os mais ilustres e mais

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distantes ancestrais, alimentar os pais e cos e os orixás, a imagem de mercenário,
mães que estão na origem de tudo, os deu- interesseiro e venal.
ses, numa reafirmação permanente de que Como mensageiro dos deuses, Exu tudo
nada se acaba e que nos laços comunitários sabe, não há segredos para ele, tudo ele
estão amarrados, sem solução de continui- ouve e tudo ele transmite. E pode quase
dade, o presente da vida cotidiana e o pas- tudo, pois conhece todas as receitas, todas
sado relatado nos mitos, do qual o presente as fórmulas, todas as magias. Exu trabalha
é reiteração. para todos, não faz distinção entre aqueles
As oferendas dos homens aos orixás a quem deve prestar serviço por imposição
devem ser transportadas até o mundo dos de seu cargo, o que inclui todas as divinda-
deuses. Exu tem este encargo, de transpor- des, mais os antepassados e os humanos.
tador. Também é preciso saber se os orixás Exu não pode ter preferência por este ou
estão satisfeitos com a atenção a eles dis- aquele. Mas talvez o que o distinga de to-
pensada pelos seus descendentes, os seres dos os outros deuses é seu caráter de trans-
humanos. Exu propicia essa comunicação, formador: Exu é aquele que tem o poder de
traz suas mensagens, é o mensageiro. É quebrar a tradição, pôr as regras em ques-
fundamental para a sobrevivência dos tão, romper a norma e promover a mudan-
mortais receber as determinações e os con- ça. Não é pois de se estranhar que seja con-
selhos que os orixás enviam do Aiê. Exu é siderado perigoso e temido, posto que se
o portador das orientações e ordens, é o trata daquele que é o próprio princípio do
porta-voz dos deuses e entre os deuses. Exu movimento, que tudo transforma, que não
faz a ponte entre este mundo e mundo dos respeita limites e, assim, tudo o que contra-
orixás, especialmente nas consultas oracu- ria as normas sociais que regulam o cotidi-
lares. Como os orixás interferem em tudo o ano passa a ser atributo seu. Exu carrega
que ocorre neste mundo, incluindo o coti- qualificações morais e intelectuais própri-
diano dos viventes e os fenômenos da pró- as do responsável pela manutenção e fun-
pria natureza, nada acontece sem o traba- cionamento do status quo, inclusive repre-
lho de intermediário do mensageiro e trans- sentando o princípio da continuidade ga-
portador Exu. Nada se faz sem ele, nenhu- rantida pela sexualidade e reprodução hu-
ma mudança, nem mesmo uma repetição. mana, mas ao mesmo tempo ele é o inova-
Sua presença está consignada até mesmo dor que fere as tradições, um ente portanto
no primeiro ato da Criação: sem Exu, nada nada confiável, que se imagina, por conse-
é possível. O poder de Exu, portanto, é in- guinte, ser dotado de caráter instável, duvi-
comensurável. doso, interesseiro, turbulento e arrivista.
Exu deve então receber os sacrifícios Para um iorubá ou outro africano tradi-
votivos, deve ser propiciado, sempre que cional, nada é mais importante do que ter
algum orixá recebe oferenda, pois o sacri- uma prole numerosa e para garanti-la é
fício é o único mecanismo através do qual preciso ter muitas esposas e uma vida sexu-
os humanos se dirigem aos orixás, e o sa- al regular e profícua. É preciso gerar mui-
crifício significa a reafirmação dos laços tos filhos, de modo que, nessas culturas an-
de lealdade, solidariedade e retribuição tigas, o sexo tem um sentido social que
entre os habitantes do Aiê e os habitantes envolve a própria idéia de garantia da so-
do Orum. Sempre que um orixá é interpe- brevivência coletiva e perpetuação das li-
lado, Exu também o é, pois a interpelação nhagens, clãs e cidades. Exu é o patrono da
de todos se faz através dele. É preciso que cópula, que gera filhos e garante a conti-
ele receba oferenda, sem a qual a comuni- nuidade do povo e a eternidade do homem.
cação não se realiza. Por isso é costume Nenhum homem ou mulher pode se sentir
dizer que Exu não trabalha sem pagamen- realizado e feliz sem uma numerosa prole,
to, o que acabou por imputar-lhe, quando o e a atividade sexual é decisiva para isso. É
ideal cristão do trabalho desinteressado da da relação íntima com a reprodução e a se-
caridade se interpôs entre os santos católi- xualidade, tão explicitadas pelos símbolos

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fálicos que o representam, que decorre a regrado por um código de ética univer-
construção mítica do gênio libidinoso, las- salizado que opera o tempo todo com as
civo, carnal e desregrado de Exu-Elegbara. noções de bem e mal como dois campos em
Isso tudo contribuiu enormemente para luta: o de deus, que os católicos louvam nas
modelar sua imagem estereotipada de orixá três pessoas do Pai, Filho e Espírito Santo,
difícil e perigoso que os cristãos reconhe- que é o lado do bem, e o do mal, que é o lado
ceram como demoníaca. Quando a religião do diabo em suas múltiplas manifestações.
dos orixás, originalmente politeísta, veio a Abaixo de deus estão os anjos e os santos,
ser praticada no Brasil do século XIX por santos que são humanos mortos que em vida
negros que eram ao mesmo tempo católi- abraçaram as virtudes católicas, às vezes
cos, todo o sistema cristão de pensar o por elas morrendo.
mundo em termos do bem e do mal deu um O lado do bem, digamos, foi assim pre-
novo formato à religião africana, no qual enchido pelos orixás, exceto Exu, ganhan-
um novo papel esperava por Exu. do Oxalá, o orixá criador da humanidade, o
papel de Jesus Cristo, o deus Filho, man-
tendo-se Oxalá no topo da hierarquia, po-
sição que já ocupava na África, donde seu
III nome Orixanlá ou Orixá Nlá, que significa
o Grande Orixá. O remoto e inatingível deus
O sincretismo não é, como se pensa, supremo Olorum dos iorubás ajustou-se à
uma simples tábua de correspondência entre concepção do deus Pai judaico-cristão,
orixás e santos católicos, assim como não enquanto os demais orixás ganharam a iden-
representava o simples disfarce católico que tidade de santos. Mas ao vestirem a
os negros davam ao seus orixás para poder camisa-de-força de um modelo que pres-
cultuá-los livres da intransigência do se- supõe as virtudes católicas, os orixás
nhor branco, como de modo simplista se sincretizados perderam muito de seus atri-
ensina nas escolas até hoje (Prandi, 1999). butos originais, especialmente aqueles que,
O sincretismo representa a captura da reli- como no caso da sexualidade entendida
gião dos orixás dentro de um modelo que como fonte de pecado, podem ferir o cam-
pressupõe, antes de mais nada, a existência po do bem, como explicou Monique Augras
de dois pólos antagônicos que presidem (1989) ao mostrar que muitas característi-
todas as ações humanas: o bem e o mal; de cas africanas das Grandes Mães, inclusive
um lado a virtude, do outro o pecado. Essa Iemanjá e Oxum, foram atenuadas ou apa-
concepção, que é judaico-cristã, não exis- gadas no culto brasileiro dessas deusas e
tia na África. As relações entre os seres passaram a compor a imagem pecaminosa
humanos e os deuses, como ocorre em ou- de Pombagira, o Exu feminizado do Brasil,
tras antigas religiões politeístas, eram ori- no outro pólo do modelo, em que Exu reina
entadas pelos preceitos sacrificiais e pelo como o senhor do mal.
tabu, e cada orixá tinha suas normas Foi sem dúvida o processo de cristia-
prescritivas e restritivas próprias aplicáveis nização de Oxalá e outros orixás que em-
aos seus devotos particulares, como ainda purrou Exu para o domínio do inferno ca-
se observa no candomblé, não havendo um tólico, como um contraponto requerido
código de comportamento e valores único pelo molde sincrético. Pois, ao se ajustar a
aplicável a toda a sociedade indistintamen- religião dos orixás ao modelo da religião
te, como no cristianismo, uma lei única que cristã, faltava evidentemente preencher o
é a chave para o estabelecimento universal lado satânico do esquema deus-diabo, bem-
de um sistema que tudo classifica como mal, salvação-perdição, céu-inferno, e
sendo do bem ou do mal, em categorias quem melhor que Exu para o papel do de-
mutuamente exclusivas. mônio? Sua fama já não era das melhores
No catolicismo, o sacrifício foi substi- e mesmo entre os seguidores dos orixás sua
tuído pela oração e o tabu, pelo pecado, natureza de herói trickster (Trindade, 1985),

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que não se ajusta aos modelos comuns de no olha Exu! Precisamente como diriam
conduta, e seu caráter não acomodado, velhas beatas: Olha a tentação do demô-
autônomo e embusteiro já faziam dele um nio! No entanto, sou levado a crer que esta
ser contraventor, desviante e marginal, identificação é apenas o produto de uma
como o diabo. A propósito do culto de Exu influência do ensino católico” (Rodrigues,
na Bahia do final do século XIX, o médico 1935, p. 40).
Raimundo Nina Rodrigues, professor da
Faculdade de Medicina da Bahia e pionei- Transfigurado no diabo, Exu teve que
ro dos estudos afro-brasileiros, escreveu em passar por algumas mudanças para se ade-
1900 as seguintes palavras: quar ao contexto cultural brasileiro hegemo-
nicamente católico. Assim, num meio em
“Exu, Bará ou Elegbará é um santo ou orixá que as conotações de ordem sexual eram
que os afro-baianos têm grande tendência fortemente reprimidas, o lado priápico de
a confundir com o diabo. Tenho ouvido Exu foi muito dissimulado e em grande
mesmo de negros africanos que todos os parte esquecido. Suas imagens brasileiras
santos podem se servir de Exu para mandar perderam o esplendor fálico do explícito
tentar ou perseguir a uma pessoa. Em uma Elegbara, disfarçando-se tanto quanto pos-
altercação qualquer de negros, em que qua- sível seus símbolos sexuais, pois mesmo
se sempre levantam uma celeuma enorme sendo transformado em diabo, era então
Exus de ferro. pelo motivo mais fútil, não é raro entre nós um diabo de cristãos, o que impôs uma
Bahia, anos 50 ouvir-se gritar pelos mais prudentes: Fula- inegável pudicícia que Exu não conhecera
antes. Em troca ganhou chifres, rabo e até
mesmo os pés de bode próprios de demôni-
os antigos e medievais dos católicos.

IV
Com o avanço das concepções cristãs
sobre a religião dos orixás, ao qual vieram
se juntar no final do século XIX as influên-
cias do espiritismo kardecista, que também
absorvera orientações, visões e valores éti-
cos cristãos, Exu foi cada vez mais empur-
rado para o lado do mal, cada vez mais
obrigado, pelos seus próprios seguidores
sincréticos, a desempenhar o papel do de-
mônio.
O coroamento da carreira de Exu como
o senhor do inferno se deu com o surgi-
mento da umbanda no primeiro quartel do
século XX. Apesar de conservar do can-
domblé o panteão de deuses iorubás, o rito
dançado, o transe de incorporação dos
orixás e antepassados, e certa prática
sacrificial remanescente, a umbanda repro-
duziu pouco das concepções africanas pre-
servadas no candomblé. A umbanda ado-
tou, não sem contradições e incompletudes,
certa noção moral de controle da atividade
religiosa voltada para a prática da virtude

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cristã da caridade, concepção estranha ao cristianizou completamente. Formalmen-
candomblé. O culto umbandista foi organi- te, a umbanda afirma que só trabalha para
zado em torno dessa prática, como se dá no o bem, mas dissimuladamente criou, desde
kardecismo, com a constituição de um o momento de sua formação, uma espécie
panteão brasileiro subordinado aos orixás de segunda personalidade, com a constitui-
formado de espíritos que ajudam os huma- ção de um universo paralelo, um lugar es-
nos a resolver seus problemas, que são os condido e negado, no qual a prática mágica
caboclos, pretos-velhos e outras categorias não recebe nenhum tipo de restrição ética,
de mortais desencarnados. Na umbanda, a onde todos os pedidos, vontades e deman-
própria idéia de religião implica essa no- das de devotos e clientes podem ser atendi-
ção de trabalho mágico, pois, sem a atua- dos, sem exceção, conforme o ideal da
ção direta dos espíritos na vida dos devo- magia. Inclusive aqueles ligados a aspec-
tos, a religião não se completa. Mas todas tos mais rejeitados da moralidade social,
essas entidades só trabalham para o bem. como a transgressão sexual, o banditismo,
Qualquer demanda, qualquer solução de di- a vingança, e diversificada gama de com-
ficuldades, qualquer procura de realização portamentos ilícitos ou socialmente inde-
de anseios e fantasias é tudo filtrado pelo sejáveis. Se é para o bem do cliente, não há
código do bem. Se a ação benéfica resul- limite, e a relação que se restabelece é entre
tante da interferência das entidades espiri- o cliente e a entidade que o beneficia, num
tuais for capaz de produzir prejuízos a ter- pacto que exclui pretensos interesses do
ceiros, ela não pode ser posta em movi- grupo e da sociedade, modelo que se baseia
mento. O bem só pode levar ao bem e nada nas antigas relações entre devoto e orixá,
justifica a produção do mal. O mal deve ser sem contar contudo, agora, com os outros
combatido e evitado, mesmo quando possa mecanismos sociais de controle da
trazer para uma das partes envolvidas numa moralidade que existiam na sociedade tra-
relação alguma sorte de vantagem. Mas o dicional africana.
processo de formação dessa religião ainda Esse território que a umbanda chamou
não se completara. de quimbanda, para demarcar fronteiras que
Com a substituição na umbanda, ao a ela interessava defender para manter sua
menos em parte, da idéia africana de tabu imagem de religião do bem, passou a ser o
pela noção católica de pecado, a prática domínio de Exu, agora sim definitivamen-
mágica tradicional, que no candomblé era te transfigurado no diabo, aquele que tudo
destituída de imposições éticas, ficou apri- pode, inclusive fazer o mal. Com essa divi-
sionada numa proposta umbandista de re- são “cristã” de tarefas, tudo aquilo que os
ligião que desejava ser moderna, européia, caboclos, pretos-velhos e outros guias do
branca e ética, apesar das raízes negras que, chamado panteão da direita se recusam a
aliás, procurou apagar tanto quanto possí- fazer, por razões morais, Exu faz sem pes-
vel. Ao mesmo tempo, a umbanda não aban- tanejar. Assim, enquanto o demonizado Exu
donou as práticas mágicas, ao contrário, faz contraponto com os “santificados”
fez delas um objetivo bem definido, o cen- orixás e espíritos guias, a quimbanda fun-
tro da sua celebração ritual. Criou-se, com ciona como uma espécie de negação ética
isso, um grande jogo de contradições e a da umbanda, ambas resultantes de um
umbanda acabou por se situar num terreno mesmo processo histórico de cristianização
ético que Lísias Nogueira Negrão chamou da religião africana. Como quem esconde o
muito apropriadamente de “entre a cruz e a diabo, a umbanda escondeu Exu na quim-
encruzilhada” (Negrão, 1998). Seguindo o banda, pelo menos durante seu primeiro meio
modelo católico, no qual se espelhava, a século de existência, para assim, longe da
umbanda foi obrigada a ter em conta os curiosidade pública, poder com ele livre-
dois lados: o do bem e o do mal. Incorporou mente operar. Não faltou, entre os primei-
a noção católica de mal, mas não se dispôs ros consolidadores da doutrina umban-
a combatê-lo necessariamente, nunca se dista, quem se desse ao trabalho de identi-

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ficar, para cada uma das inúmeras qualida- bém feito mulher, deu origem à Pombagira,
des e invocações de Exu, um dos conheci- o lado sexualizado do pecado. Quem são as
dos nomes dos demônios que povoam a pombagiras da quimbanda? Mulheres per-
imaginação e as escrituras dos judeus e didas, por certo: prostitutas, cortesãs, com-
cristãos. Além de se ver chamado pelos panheiras bandidas dos bandidos amantes,
nomes do diabo ocidental em suas múlti- alcoviteiras e cafetinas, jogadoras de cassi-
plas versões, Exu foi compelido a compar- no e artistas de cabaré, atrizes de vida fácil,
tilhar com os demônios suas missões mulheres dissolutas, criaturas sem família
especializadas no ofício do mal, tudo, evi- e sem honra (Prandi, 1996). O quadro com-
dentemente, numa perspectiva essencial- pletou-se, o chamado panteão da esquerda
mente cristã. A maldição imposta a Exu na multiplicou-se em dezenas e dezenas de
África por missionários e viajantes cristãos exus e pombagiras, que atendem a todos os
desde o século XVIII foi sendo completada desejos, que propiciam mesmo a felicidade
no Brasil nos séculos XIX e XX. de duvidosa origem, que trabalham em prol
A umbanda é uma religião de espíritos de qualquer fantasia, que oferecem aos de-
de humanos que um dia viveram na Terra, votos e clientes o acesso a tudo o que a vida
os guias. Embora se reverenciem os orixás, dá e que restituem tudo o que a vida tira.
são os guias que fazem o trabalho mágico, Não há limites para os guias da quimbanda,
são eles os responsáveis pela dinâmica das tudo lhes é possível. Para a duvidosa
celebrações rituais. Exu, que é fundamen- moralidade quimbandista, tudo leva ao bem,
tal no atendimento dos clientes e devotos, e mesmo aquilo que os outros chamam de
portanto peça básica da dinâmica religiosa, mal pode ser usado para o bem do devoto e
assumiu na umbanda o aspecto de humano do cliente, os fins justificando os meios.
desencarnado que é a marca dos caboclos e Esse é o domínio do Exu cristianizado no
demais entidades da direita. Diabo sim, mas diabo. Quando incorporado no transe ritu-
diabo que foi de carne e osso, espírito, guia. al, Exu veste-se com capa preta e vermelha
Assim como os caboclos foram um dia ín- e leva na mão o tridente medieval do cape-
dios de reconhecida bravura e invejável ta, distorce mãos e pés imitando os cascos
bom-caráter, não sem uma certa inocência do diabo em forma de bode, dá as gargalha-
própria do bom selvagem, inocência perdi- das soturnas que se imagina próprias do
da com a chegada ao Novo Mundo da nossa senhor das trevas, bebe, fuma e fala pala-
sociedade do pecado, assim como os pre- vrão. Nada a ver com o traquinas, trapacei-
tos-velhos foram negros escravos trabalha- ro e brincalhão mensageiro dos deuses
dores, dóceis, pacíficos e sábios, os exus, iorubás.
agora no plural, foram homens de questio-
nável conduta: assaltantes, assassinos, la-
drões, contrabandistas, traficantes, vaga- V
bundos, malandros, aproveitadores, proxe-
netas, bandidos de toda laia, homens do No candomblé, como na África, Exu é
diabo, por certo, gente ruim, figuras do mal. concebido como divindade múltipla, o que
O imaginário tradicional umbandista, também ocorre com os orixás, que são re-
para não dizer brasileiro, acreditava que conhecidos e venerados através de diferen-
muito da maldade humana é próprio das tes invocações, qualidades ou avatares, cada
mulheres, que o sexo feminino tem o estig- qual referido a um aspecto mítico do orixá,
ma da perdição, que é marca bíblica, a uma sua função específica no patronato
constitutiva da própria humanidade, desde do mundo, a um acidente geográfico a que
Eva. O pecado da mulher é o pecado do é associado, etc. Sendo o próprio movimen-
sexo, da vida dissoluta, do desregramento, to, Exu se multiplica ao infinito, pois cada
é o pecado original que fez o homem se casa, cada rua, cada cidade, cada mercado,
perder. Numa concepção que é muito oci- etc. tem seu guardião. Também cada ser
dental, muito católica. Então Exu foi tam- humano tem seu Exu, que é assentado,

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nominado e regularmente propiciado, li- bastante divulgada por publicações religi-
gando aquele ser humano ao seu orixá pes- osas. Segundo a tábua umbandista de
soal e ao mundo das divindades (Santos, correspondência Exu-diabo, a entidade su-
1976, p. 130). São muitas as invocações de prema da “esquerda” é o Diabo Maioral, ou
Exu, muitos os seus nomes. Segundo o ogã Exu Sombra, que só raramente se manifes-
Gilberto de Exu, são os seguintes os nomes ta no transe ritual. Ele tem como generais:
e atribuições de Exu mais conhecidos: Exu Marabô ou diabo Put Satanaika, Exu
Iangui, o primeiro da Criação, representa- Mangueira ou diabo Agalieraps, Exu-Mor
do pela laterita; Exu Agbá, Agbô, ou ou diabo Belzebu, Exu Rei das Sete Encru-
Moagbô, o mais velho; Igbá Quetá, o Exu zilhadas ou diabo Astaroth, Exu Tranca Rua
da cabaça-assentamento; Ocotó, o patrono ou diabo Tarchimache, Exu Veludo ou di-
da evolução, representado pelo caracol; abo Sagathana, Exu Tiriri ou diabo Fleuruty,
Obassim, o companheiro de Odudua; Exu dos Rios ou diabo Nesbiros e Exu
Odara, o dono da felicidade, da harmonia; Calunga ou diabo Syrach. Sob as ordens
Ojissebó, o mensageiro dos orixás; Eleru, destes e comandando outros mais estão: Exu
o que transporta o carrego dos iniciados; Ventania ou diabo Baechard, Exu Quebra
Enugbarijó, o que propicia a prosperidade; Galho ou diabo Frismost, Exu das Sete
Elegbara ou Legba, o que tem o poder da Cruzes ou diabo Merifild, Exu Tronqueira
transformação, princípio do movimento; ou diabo Clistheret, Exu das Sete Poeiras
Bará, o dono dos movimentos do corpo ou diabo Silcharde, Exu Gira Mundo ou
humano; Olonam, ou Lonã, o senhor dos diabo Segal, Exu das Matas ou diabo
caminhos; Icorita Metá, o Exu que guarda as Hicpacth, Exu das Pedras ou diabo Humots,
encruzilhadas; Olobé, o dono da faca ritual; Exu dos Cemitérios ou diabo Frucissière,
Elebó, o Exu das oferendas; Odusó ou Olodu, Exu Morcego ou diabo Guland, Exu das
o guardião do oráculo; Elepô, o senhor do Sete Portas ou diabo Sugat, Exu da Pedra Ogó,
azeite de dendê; e Iná, o fogo, o patrono da Negra ou diabo Claunech, Exu da Capa
instrumento de
comunidade que é reverenciado na cerimô- Preta ou diabo Musigin, Exu Marabá ou
nia do padê (Ferreira, 2000, pp. 19-21; tam- diabo Huictogaras, e Exu-Mulher, Exu Exu. Desenho
bém em Santos, 1976, pp. 135-9). A estes Pombagira, simplesmente Pombagira ou de Pedro Rafael
nomes-qualidades de Exu podemos acres- diabo Klepoth. Mas há também os exus que
centar outros registrados por Verger na trabalham sob as ordens do orixá Omulu, o
África e no Brasil, como Eleiembó, Laroiê, senhor dos cemitérios, e seus ajudantes Exu
Alaquetu, o senhor do Queto, Aquessam, Caveira ou diabo Sergulath e Exu da Meia-
senhor do mercado de Oió, Lalu e Jelu, além Noite ou diabo Hael, cujos nomes mais
de nomes que Verger credita no Brasil aos conhecidos são Exu Tata Caveira (Proculo),
cultos de origem fom e banto, a saber, Tiriri, Exu Brasa (Haristum) Exu Mirim (Serguth),
Jelebara, Jiguidi, Mavambo, Emberequetê, Exu Pemba (Brulefer) e Exu Pagão ou di-
Sinza Muzila e Barabô (Verger, 1997, pp. abo Bucons (conforme Fontennelle, s/d;
76-8; 1999, p. 132). A maioria desses nomes Bittencourt, 1989; Omolubá, 1990).
e atribuições, originalmente africanos, é pre- Na umbanda, assim como no candom-
servada nas casas de candomblé de linha- blé, cada exu cuida de tarefas específicas,
gens mais ligadas à preservação e recupera- sendo grande e complexa a divisão de tra-
ção das raízes. São nomes que indicam su- balho entre eles. Por exemplo, Exu Veludo
cintamente as distintas funções de Exu: o oferece proteção contra os inimigos. Exu
mensageiro, o transportador, o transforma- Tranca Rua pode gerar todo tipo de obstá-
dor, o repositor e o doador. culos na vida de uma pessoa. Exu Pagão
Tais nomes e atribuições estão, contu- tem o poder de instalar o ódio no coração
do, ausentes na maior parte da umbanda e das pessoas. Exu Mirim é o guardião das
em certos segmentos do candomblé, em que crianças e também faz trabalhos de amar-
o reconhecimento de Exu como o diabo é ração de amor. Exu Pemba é o propagador
explícito, sendo sua hierarquia conhecida e das doenças venéreas e facilitador dos

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amores clandestinos. Exu Morcego tem o fechadas do terreiro de umbanda, a elas só
poder de transmitir qualquer doença con- tinham acesso os membros do terreiro e
tagiosa. Exu das Sete Portas facilita a aber- clientes e simpatizantes escolhidos a dedo,
tura de fechaduras, cofres e outros compar- tanto pelo imperativo de suas necessidades
timentos secretos – materiais e simbólicos. como por sua discrição. Era comum entre
Exu Tranca Tudo é o regente de festins e os seus cultores negar a existência dessas
orgias. Exu da Pedra Negra é invocado para sessões. A quimbanda nasceu como um de-
o sucesso em transações comerciais. Exu partamento subterrâneo da umbanda e como
Tiriri pode enfraquecer a memória e a cons- tal se manteve por quase um século, embo-
ciência. Exu da Capa Preta comanda as ar- ra desde sempre se soubesse da regularida-
ruaças, os desentendimentos e a discórdia. de desses ritos e se pudessem reconhecer
Igualmente são múltiplos os nomes e nas encruzilhadas as oferendas deixadas
funções de Pombagira: Pombagira Rainha, para Exu.
Maria Padilha, Pombagira Sete Saias, Maria Aos poucos o culto do Exu de umbanda
Molambo, Pombagira da Calunga, foi perdendo seu caráter secreto e escondi-
Pombagira Cigana, Pombagira do Cruzei- do. Mas nunca houve quem admitisse, seja
ro, Pombagira Cigana dos Sete Cruzeiros, na umbanda ou no candomblé, trabalhar
Pombagira das Almas, Pombagira Maria para o mal por meio de Exu. O mal, quando
Quitéria, Pombagira Dama da Noite, acontece, é sempre interpretado como con-
Pombagira Menina, Pombagira seqüência perversa da prática do bem, pois
Mirongueira, Pombagira Menina da Praia. tudo tem seu lado bom e seu lado mau, de
Pombagira é especialista notória em casos modo que as situações que envolvem os
de amor, e tem poder para propiciar qual- exus são sempre contraditórias (Trindade,
quer tipo de união amorosa e sexual. Ela 1985). Se uma mulher está apaixonada por
trabalha contra aqueles que são inimigos um homem comprometido, por exemplo, e
seus e de seus devotos. Pombagira consi- procura ajuda no terreiro, a única respon-
dera seus amigos todos aqueles que a pro- sabilidade da sacerdotisa e da própria enti-
curam necessitando seus favores e que sa- dade invocada é a de atender à súplica. Se
bem como agradecer-lhe e agradá-la. Deve- a outra mulher tiver que ser abandonada, a
se presentear Pombagira com coisas que culpa é de seu descaso, por não ter procu-
ela usa no terreiro, quando incorporada: rado e propiciado as entidades que deveri-
tecidos sedosos para suas roupas nas cores am defendê-la. Se duas ou mais pessoas
vermelho e preto, perfumes, jóias e bijute- estão engajadas em pólos opostos de uma
rias, champanhe e outras bebidas, cigarro, disputa, isto significa que há uma guerra
cigarrilha e piteira, rosas vermelhas aber- entre os litigantes humanos que também
tas (nunca botões), além das oferendas de envolve seus protetores espirituais, e nada
obrigação, os animais sacrificiais (sobre- se pode fazer senão tocar a luta adiante, e
tudo no candomblé) e as de despachos dei- vencer. Para um praticante desse tipo de
xados nas encruzilhadas, cemitérios e ou- relação com o sobrenatural, distinguir en-
tros locais, a depender do trabalho que se tre as questões do bem e a do mal é
faz, sempre iluminado pelas velas verme- irrelevante, é dúvida que não se aplica. Esse
lhas, pretas e, às vezes, brancas. modo de pensar legitima a prática da magia
em todas as suas formas.
A grande expansão da umbanda por todo
VI o país, iniciada no começo do século XX,
e a recente propagação do candomblé que
Até uma ou duas décadas atrás, as ses- vem ocorrendo de maneira crescente nas
sões de quimbanda, com seus exus e últimas três décadas colocaram em contato
pombagiras manifestados no ritual de tran- muito estreito doutrinas e práticas dessas
se, eram praticamente secretas. Realizadas duas religiões. Tanto no Sudeste como no
nas avançadas horas da noite em sessões Nordeste e demais regiões, o candomblé de

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orixá, das mais diferentes nações, que an- designação umbandista, na tronqueira, o
teriormente havia incorporado o culto das quarto dos exus.
entidades indígenas do candomblé de ca- Nos candomblés, em que o uso de ima-
boclo, e em casos mais localizados o dos gens figurativas é acessório e menos fre-
mestres do catimbó, acabou por aderir tam- qüente e em que as divindades são obriga-
bém aos rituais de exus e pombagiras con- toriamente representadas por símbolos
forme a prática umbandista. Desde alguns elementais consagrados nos assentamen-
anos, as religiões afro-brasileiras conquis- tos ou altares, como o seixo do rio ou do
taram um espaço maior de liberdade de mar, a pedra-de-raio, o arco e flecha de ferro,
culto, num contexto em que se amplifica a o aro de chumbo, o pilão de prata, etc., a
diferenciação religiosa e se forma um mer- representação sagrada de Exu, o orixá, é o
cado mágico-religioso plural, com aumen- tridente de ferro, que no antigo mundo gre-
to da tolerância religiosa e valorização das go era a ferramenta de Netuno e na cristan-
diferenças. A quimbanda foi deixando de dade é o símbolo do demônio. Essas ferra-
ser escondida e secreta e seus salões se mentas estão expostas com fartura nas lo-
abriram para um público curioso e ávido jas de umbanda e candomblé. Também as
por conhecer os favores mágicos de seus tronqueiras da umbanda são povoadas de
exus e pombagiras, que povoaram sem dis- assentamentos montados com os ferros que
tinção tanto terreiros de umbanda como de representam os exus, os garfos-de-exu, ten-
candomblé. Hoje em dia, terreiros de can- do as pombagiras ganhado também esse
domblé sem os exus e pombagiras da tipo de representação material, que, para
umbanda, sobretudo os de origem mais distinguir-se daquelas das entidades mas-
recente, se contam nos dedos. culinas, tem um formato arredondado. O
A iconografia brasileira dos exus não falo reaparece na iconografia afro-brasileira
deixa dúvida sobre o que se pensa deles nas de Exu, mas como órgão genital ereto de
casas em que se observa o culto de estatuetas masculinas de ferro com chifres
quimbanda. Na verdade, não é preciso ir a e rabo de diabo, que levam na mão o forca-
um templo em que se realiza culto a essas do de três dentes.
entidades para ver as estátuas de gesso dos O convívio aberto dos devotos e clien-
exus e pombagiras de quimbanda em tama- tes com as entidades de esquerda que hoje
nho natural, monumentos figurativos de se observa e a ampla popularização de seu
gosto duvidoso, figuras masculina e femi- culto têm, contudo, apresentado um efeito
nina concebidas com as roupas, adereços e banalizador e desmistificador no que diz
posturas que se imaginam próprias dos respeito à sua suposta natureza de diabo.
soberanos do inferno e dos humanos deca- Exu e Pombagira, por causa de sua convi-
ídos. Para apreciar a iconografia dos exus, vência estreita com os humanos propiciada
basta andar pela rua e passar em frente a pelo transe, passam assim a ser encarados
uma loja de artigos religiosos de umbanda mais como compadres, amigos e guias dis-
e candomblé, que têm certa predileção de postos a ajudar quem os procura do que
exibir essas estátuas à venda na entrada dos propriamente como demônios. Por outro
estabelecimentos, bem à vista. Há uma gran- lado, no processo de competição entre as
de variedade dessas imagens, umas gran- religiões no contexto de um mercado de
des, outras de tamanhos menores, um mo- bens mágicos cada vez mais agressivo e de
delo para cada exu, um para cada pomba- ofertas cada vez mais diversificadas, mui-
gira, estas com freqüência idealizadas com tos terreiros, para se distinguir de outros,
roupas sumárias, se não escandalosas, lem- fazem questão de enfatizar e dar relevo às
brando mulheres de vida fácil no imaginá- supostas características diabólicas de suas
rio popular. Nos terreiros, elas se encon- entidades da esquerda. Em candomblés
tram no barracão ou mais preferencialmente desse tipo, geralmente freqüentados e às
nos quartos do culto reservado aos inicia- vezes dirigidos por pessoas que estão lon-
dos, os quartos-de-santo, ou, conforme a ge de se orientar por modelos de conduta

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mais aceitos socialmente, pode-se contra- gens, neutralizado como o diabo com que
tar qualquer tipo de serviço mágico, qual- agora é confundido. Seu culto transformou-
quer que seja o objetivo em questão. E Exu, se assim num culto de evitação. Isto pode
o diabo de corpo retorcido, postura ser observado hoje em qualquer parte do
animalesca e voz cavernosa, é a entidade Brasil, na maior parte dos terreiros de can-
mobilizada, juntamente com a espalhafa- domblé e umbanda, e também na África e
tosa e desbriada companheira Pombagira, em Cuba. Faz-se a oferenda não para que
para os trabalhos mágicos nada recomen- Exu cumpra sua missão de levar aos orixás
dáveis que fazem o negócio rendoso de um as oferendas e pedidos dos humanos e tra-
tipo de terreiro que eu não hesitaria em zer de volta as respostas, mas simplesmen-
chamar de candomblé bandido. te para que ele não impeça por meio de
Nesse tipo de paródia religiosa, que suas artimanhas, brincadeiras e ardis a re-
representa o degrau mais baixo da histórica alização de todo o culto. Exu é pago para
decadência a que Exu foi empurrado pelo não atrapalhar, transformou-se num em-
sincretismo, o culto aos orixás é pouco sig- pecilho, num estorvo, num embaraço.
nificativo, fazendo-se uma ou outra festa Como se não bastasse, é tido como aquele
ao ano para os orixás apenas para legitimar que se vende por um prato de farofa e um
as sessões dedicadas às imitações degrada- copo de aguardente. Roger Bastide, que
das do orixá mensageiro. Ao lado dessas estudou o candomblé na década de 1950,
práticas também há candomblés e escreveu:
umbandas que “tocam” para exus e pom-
bagiras que se dedicam, como os caboclos e “O pequeno número de filhos de Exu, a
pretos-velhos, ao chamado “trabalho para o diferença dos termos empregados para as
bem”. Interessante que esses exus do bem crises de possessão dos orixás e dos Exus
são freqüentemente considerados como en- […], a vida de sofrimentos das pessoas que
tidades batizadas, convertidas e têm por destino carregar Exu na cabeça,
cristianizadas, já muito distantes tanto da tudo é sinal do caráter diabólico que se pren-
África como da quimbanda, com os atribu- de a essa divindade. Tal caráter também se
tos que lhes deram fama totalmente neutra- manifesta na interpretação que se dá ao padê
lizados. Já nem são exus, são “espíritos de de Exu. Em nossa apresentação do candom-
luz”, completamente vencidos pela influên- blé, vimos que toda cerimônia, pública ou
cia kardecista, o outro modelo sincrético da privada, profana ou religiosa, mortuária ou
umbanda, além do catolicismo. comemorativa dos aniversários dos diver-
sos orixás, começa obrigatoriamente por
uma homenagem a Exu. Esse gesto foi por
VII nós explicado pelo papel de intermediário,
de mensageiro, que essa divindade possui.
O preceito segundo o qual Exu sempre Mas há tendência para explicar de outra
recebe oferenda antes das demais divinda- maneira o padê, pela inveja ou pela malda-
des serem propiciadas, e que nada mais de de Exu que perturbaria a festa se não
representa que o pagamento adiantado que fosse homenageado em primeiro lugar”
Exu deve ganhar para levar as oferendas (Bastide, 1978, pp. 176-7).
aos outros deuses, acabou sendo bastante
desvirtuado. Passou-se a acreditar que as A metamorfose de Exu em guia de
oferendas e homenagens preliminares a Exu quimbanda o aproximou bastante dos mor-
devem ser feitas para que ele simplesmente tais, mas implicou a perda do status de di-
não tumultue ou atrapalhe as cerimônias vindade. Exu passou por um processo de
realizadas a seguir. Grande parte dos devo- humanização, que é o contrário do que usu-
tos dos orixás pensa e age como se Exu almente acontece nas religiões de antepas-
devesse assim ser evitado e afastado, mo- sados, em que os homens são divinizados
mentaneamente distraído com as homena- depois da morte, tendo Exu seguido uma

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trajetória inversa àquela de orixás como raízes culturais africanas, cultiva-se uma
Xangô, que um dia foi rei de carne e osso imagem de Exu calcada em seu papel de
entre os humanos. A concepção de Exu orixá mensageiro dos deuses, cujas atribui-
como espírito desencarnado contribuiu para ções não são muito diferentes daquelas
a a banalização de sua figura de diabo. Para trazidas da África. Nesse meio restrito, sua
grande parte dos umbandistas e seguidores figura continua sendo contraditória e pro-
do candomblé que agregaram as práticas blemática, mas é discreta sua ligação
da quimbanda à celebração dos orixás, os sincrética com o diabo católico. O mesmo
exus estão de fato mais próximos dos ho- não ocorre quando olhamos para a imagem
mens que do diabo, mas mesmo assim seu de Exu cultivada por religiões oponentes,
campo de ação mágica ainda é recoberto de imagem que é largamente inspirada nos
vergonha, medo e embaraço, pois, ainda próprios cultos afro-brasileiros e que des-
que não sejam o próprio diabo, as chama- crevem Exu como entidade essencialmen-
das entidades da esquerda trabalham para a te do mal. A imagem de Exu consolidada
mesma malfazeja causa. por essas religiões, especialmente as evan-
É evidente que em certos terreiros da gélicas, que usam fartamente o rádio e a
religião dos orixás, sobretudo em uns pou- televisão como meios de propaganda reli-
cos candomblés antigos mais próximos das giosa, extravasa para os mais diferentes

Exu recebe
oferendas na
encruzilhada.
Desenho de
Pedro Rafael

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campos religiosos e profanos da cultura em qualquer coisa e até invocar a manifes-
brasileira e faz dele o diabo brasileiro por tação de demônios nos cultos” para humi-
excelência. lhá-los e os exorcizar, demônios aos quais
Não podemos deixar de considerar que os evangélicos atribuem todos os males que
a recente expansão do candomblé por todo afligem as pessoas e que identificam como
o país se fez a partir de uma base umbandista sendo, especialmente, entidades da
que se formou antes da transformação do umbanda, deuses do candomblé e espíritos
candomblé em religião aberta a todos, sem do kardecismo (Mariano, 1999, p. 113),
fronteiras de raça, etnia ou origem cultural. ocupando os exus e pombagiras um lugar
A maior parte dos que aderiram ao can- de destaque no palco em que os pastores
domblé nos últimos vinte ou trinta anos, exorcistas fazem desfilar o diabo em suas
naquelas regiões do país em que o candom- múltiplas versões. Em ritos de exorcismo
blé só chegou recentemente, foi antes televisivos da Igreja Universal do Reino de
umbandista, e a adesão ao candomblé não Deus, que representa hoje o mais radical e
tem significado para parcela significativa agressivo oponente cristão das religiões
deles o compromisso de abandonar com- afro-brasileiras, exus e pombagiras são
pletamente concepções e entidades da mostrados no corpo possuído de novos
umbanda. Ao contrário, há um repertório conversos saídos da umbanda e do candom-
umbandista que cada vez mais é agregado blé, com a exibição de posturas e gestos
ao candomblé, a ponto de se falar freqüen- estereotipados aprendidos pelos ex-segui-
temente numa modalidade religiosa que dores nos próprios terreiros afro-brasilei-
seria mais facilmente identificada por um ros. Todos os males, inclusive o desempre-
nome capaz de expressar tal hibridismo, go, a miséria, a crise familiar, entre outras
como umbandomblé. Também o candom- aflições que atingem os cotidianos das pes-
blé influencia terreiros de umbanda e os soas, sobretudo os pobres, são considera-
empréstimos rituais e doutrinários que po- dos pelos neopentecostais como tendo ori-
demos observar não são poucos. Assim, em gem no diabo, identificado preferencial-
muitos terreiros, Exu pode ter uma dupla mente com as entidades afro-brasileiras,
natureza. Ele pode ser cultuado, no mesmo conforme também mostra Ronaldo Almei-
local de culto e pelas mesmas pessoas, como da. O desemprego, por exemplo, ao invés
o mensageiro mais próximo do orixá afri- de ser considerado como decorrente das
cano e como o espírito desencarnado mais injustiças sociais e problemas da estrutura
próximo dos humanos. E muitos fiéis, tan- da sociedade, como explicariam os católi-
to da umbanda como do candomblé, se cos das comunidades eclesiais de base, é
perguntam sobre a natureza de Exu: santo visto pela Igreja Universal como resultante
ou demônio? É certo que as transforma- da possessão de alguma entidade como Exu
ções de Exu ainda não se completaram: para Tranca Rua ou Exu Sete Encruzilhadas (Al-
seus próprios seguidores, Exu é um enigma meida, 1996, p. 15). Neste caso, o exorcis-
sempre mais intrincado. mo deve expulsar o exu que provoca o de-
semprego.
Os evangélicos se valem ritualmente do
VIII transe de incorporação afro-brasileiro para
trazer à cena as entidades que eles identifi-
A imagem de Exu, o Diabo, é fartamen- cam como demoníacas e se propõem a ex-
te explorada pelas religiões que disputam pulsar em ritos que chamam de libertação.
seguidores com a umbanda e o candomblé Mariza Soares identifica outro paralelo
no chamado mercado religioso, especial- muito expressivo entre o rito umbandista
mente as igrejas neopentecostais. Como do transe e o rito exorcista pentecostal. Diz
mostrou Ricardo Mariano, o neopente- ela: “A sexta-feira é conhecida na umbanda
costalismo caracteriza-se por “enxergar a como o dia das giras de Exu que se dão
presença e ação do diabo em todo lugar e geralmente à noite. A meia-noite, ‘hora

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grande’ de sexta para sábado é o momento tãos, o ódio religioso contra a umbanda e o
em que os exus se manifestam e trabalham. candomblé, corporificado em verdadeira
É justamente nesta mesma hora que nas guerra religiosa de evangélicos contra afro-
igrejas [evangélicas] estão sendo realiza- brasileiros.
das as cerimônias onde esses exus são in- Essa é a concepção mais difundida que
vocados para, em seguida, serem expulsos se tem de Exu na sociedade brasileira, é o
dos corpos das pessoas presentes” (Soares, que se vê na televisão e o que se dissemina
1990, pp. 86-7). pela mídia. Na idéia mais corrente que se
Ao descrever um ritual exorcista pre- tem de Exu, ele está sempre associado com
senciado em um templo da Igreja Univer- a magia negra, com a produção do mal e até
sal no bairro de Santa Cecília, no centro de mesmo com a morte, uma idéia que certos
São Paulo, em que se expulsava uma enti- feiticeiros que se apresentam como sacer-
dade que foi incorporada através do transe e dotes afro-brasileiros fazem questão de pro-
que se identificou como Exu Tranca Rua, pagar. É amplo o espectro da contrapro-
Mariano registrou os versos do cântico en- paganda que vitimiza o orixá mensageiro,
tão entoado freneticamente pelos fiéis: contra o qual parece confluírem as mais di-
“Tranca Rua e Pombagira fizeram combi- ferentes dimensões do preconceito que en-
nação/ combinaram acabar com a vida do volve em nosso país os negros e a herança
cristão/ torce, retorce, você não pode não/ africana. De fato, em vários episódios de
eu tenho Jesus Cristo dentro do meu cora- magia negra ocorridos recentemente no
ção” (Mariano, 1999, p. 131). Eles acredi- Brasil, com o assassinato de crianças e adul-
tam que há um pacto firmado entre as enti- tos, Exu e Pombagira têm sido apontados
dades demoníacas para se apossar dos ho- pela mídia como motivadores e promotores
mens e os destuir pela doença, pelo infortú- do ato criminoso. Num desses casos, ocor-
nio, pela morte. É o que representa Exu para rido na década de 1980, no Rio de Janeiro,
os neopentecostais, mas essa imagem está um comerciante foi morto a mando da mu-
longe de estar confinada às suas igrejas. lher por causa de sua suposta impotência
Entre os seguidores do catolicismo, a sexual. Depois de ter fracassada a aplicação
velha animosidade contra as religiões afro- de vários procedimentos mágicos suposta-
brasileiras, que parecia arrefecida desde a mente recomendados por Pombagira, ela
década de 1960, quando a igreja católica mesma teria sugerido o uso de arma de fogo
deixou de lado a propaganda contra a para que a mulher se livrasse do incapaz e
umbanda, que chamava de “baixo espiri- incômodo marido. Os implicados acabaram
tismo”, reavivou-se com a Renovação condenados, mas a própria Pombagira, em
Carismática. Movimento conservador que transe, acabou comparecendo à presença do
divide com o pentecostalismo muitas ca- juiz (Maggie, 1992). E lá estavam todos os
racterísticas, inclusive a intransigência para ingredientes que têm, por mais de dois sécu-
com outras religiões, o catolicismo los, alimentado a concepção demoníaca que
carismático voltou a bater na tecla de que se forjou de Exu entre nós: sexo, magia ne-
as divindades e entidades afro-brasileiras gra, atentado à vida, crime.
não passam de manifestações do diabo, que
se apresenta a todos, sem disfarce, nas fi-
guras de exus e pombagiras (Prandi, 1997). IX
Está de volta a velha perseguição católica
aos cultos afro-brasileiros, agora sem con- No interior do segmento afro-brasileiro,
tar com o braço armado do Estado, cuja podemos contudo observar nos dias de hoje
polícia, pelo menos até o início da década um movimento que encaminha Exu numa
de 1940, prendia praticantes e fechava ter- espécie de retorno aos seus papéis e status
reiros, mas podendo se valer de meios de africanos tradicionais. Em terreiros de can-
propaganda igualmente eficazes. Exu, o domblé que defendem ou reintroduzem con-
Diabo, mobiliza e legitima, aos olhos cris- cepções, mitologia e rituais buscados na tra-

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dição africana, tanto quanto possível, espe- “Exu não se encarna nunca, embora por
cialmente naqueles terreiros que têm lutado vezes tenha filhos; conhecemos pelo me-
por abandonar o sincretismo católico, Exu é nos uma filha de Exu e citaram-nos nomes
enfaticamente tratado como um orixá igual de outros; mas a possessão de Exu diferen-
aos demais, buscando-se apagar as cia-se da dos outros orixás pelo seu frenesi,
conotações de diabo, escravo e inimigo que seu caráter patológico, anormal, sua vio-
lhe têm sido comumente atribuídas. lência destruidora – se quisermos uma com-
No candomblé cada membro do culto paração, é um pouco a diferença que fazem
deve ser iniciado para um orixá específico, os católicos entre o êxtase divino e a pos-
que é aquele considerado o seu antepassado sessão demoníaca. Se Exu ataca um mem-
mítico, sua origem de natureza divina. Os bro do candomblé, é preciso, pois,
que eram identificados pelo jogo oracular despachá-lo também, afugentá-lo imedia-
dos búzios como filhos de Exu estavam tamente. Mas, com exceção desses casos
sujeitos a ser reconhecidos como filhos do aberrantes que, afirmamos outra vez, são
diabo e, por isso, acabavam sendo inicia- extremamente raros, a função dessa parte
dos para outro orixá, especialmente para do ritual que descrevemos tem realmente
Ogum Xoroquê, uma qualidade de Ogum por objetivo a possessão dos homens pelos
com profundas ligações com o mensagei- seus deuses” (Bastide, 1978, p. 25).
ro. Até pouco tempo, eram raros e notórios
os filhos de Exu iniciados para Exu. “Conheci apenas um caso controvertido, o
Nas décadas de 1930 e 40, pelo menos, de uma filha de Exu; era, porém, a filha que
a identificação de Exu com o diabo não era se sentia descontente com seu ‘santo’, e
nada sutil, e ser filho de Exu era realmente pretendia ser filha de Ogum; o babalorixá
um grande problema, que devia ser que a tinha feito não cessava, ao contrário,
ritualmente contornado nos atos de inicia- de afirmar que S… era mesmo filha de Exu.
ção. Em seu pioneiro livro de 1948, Candom- Em todo caso, logo da primeira vez, não se
blés da Bahia, escreveu Édson Carneiro: pode nunca ter certeza de que o babalaô
não se enganou. Trata-se de erro muito
“Não se diz que a pessoa é filha de Exu, grave, pois o verdadeiro orixá, a que per-
mas que tem um carrego de Exu, uma obri- tence o cavalo, não deixaria efetivamente
gação para com ele, por toda a vida. Esse de manifestar seu descontentamento, ven-
carrego se entrega a Ogunjá, um Ogum que do os sacrifícios, os alimentos irem para
mora com Oxóssi e Exu, e se alimenta de outro que não a ele; para vingar-se, lança-
comida crua, para que não tome conta da ria doenças, azares, contra o cavalo em
pessoa. Se, apesar disto, se manifestar, Exu questão: justamente porque S… se sentia
pode dançar no candomblé, mas não em doente é que acreditava que tinha sido
meio aos demais orixás. Isso aconteceu ‘malfeito’” (Bastide, 1978, p. 37).
certa vez no candomblé do Tumba Junçara
(Ciríaco), no Beiru: a filha dançava rojando- Nos dias de hoje, isso tudo vem mudan-
se no chão, com os cabelos despenteados e do à medida que avança o movimento de
os vestidos sujos. A manifestação tem, dessincretização e já há filhos de Exu orgu-
parece, caráter de provação” (Carneiro, lhosos de sua origem. Em muitos terreiros
1954, p.77). de candomblé, concepções e práticas católi-
cas que foram incorporadas à religião dos
Uma década depois, retomando os es- orixás em solo brasileiro vão sendo questi-
critos de Carneiro e com base em novas onadas e deixadas de lado. Quando isso
investigações de campo, Bastide trata com ocorre, Exu vai perdendo, dentro do mundo
interesse da questão dos filhos de Exu e das afro-brasileiro, a condição de diabo que a
dificuldades por que passam em face da visão maniqueísta do catolicismo a respeito
idéia de que ser filho de Exu era ser filho do do bem e do mal a ele impingiu, uma vez que
diabo: foi exatamente a cristianização dos orixás

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que transformou Oxalá em Jesus Cristo, de voltar a ser simplesmente o orixá men-
Iemanjá em Nossa Senhora, outros orixás sageiro que detém o poder da transfor-
em santos católicos, e Exu no diabo. Nesse mação e do movimento, que vive na es-
processo de dessincretização, que é um dos trada, freqüenta as encruzilhadas e guar-
aspectos do processo de africanização por da a porta das casas, orixá controvertido
que passa certo segmento do candomblé e não domesticável, porém nem santo nem
(Prandi, 1991), Exu tem alguma chance demônio.

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