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MEMÓRIAS DE UM PARRICIDA

O quase ininterrupto franzido de sua testa se amenizou por um instante quando perguntei de sua mãe e
me deu a certeza de que eu estava diante de um ser humano como eu, não o monstruoso assassino
pintado pelos jornais. Há menos de 1 ano esse homem interrompeu sua vida de professor substituto na
Universidade Estadual do Ceará matando o próprio pai. Um “crápula, um bosta, uma desgraça de
gente”, assim descreveu o subtenente reformado do Exército morto com veneno de rato dissolvido em
uísque – “um uísque doze anos, diga-se”. Sim, André é um ser humano como eu, que ama sua família,
bem versado na história do país e nos últimos acontecimentos da política. Quando menciona o atual
presidente o mau humor perpétuo que lhe amolda o sotaque e a cara irradia pelo olhar fulminante. Mas
dependendo das perguntas que faço e das memórias que evoco, desvela-se a afetuosidade mole e feroz
escondida como tutano sob essa carapaça.

Inicialmente, recusou me conceder entrevista, mas mudou subitamente de ideia e me propôs algumas
condições: não falar de seu período na prisão e dos trâmites de sua defesa, e “começar pelo começo”,
do “princípio”; que eu não interrompesse assediando-o com as curiosidades do jornalismo baixo.
Expliquei melhor meu projeto, que puxava mais pro literário e o filosófico. Quando confessei ter mais
uma “curiosidade foucaultiana” explodiu gargalhadas e fez um gesto obsceno. E durante alguns dias
posicionei meu gravador e me sentei diante diante de André em sua casa, no município de Maracanaú,
onde ele responde em liberdade por ter assassinado o pai.

1.
Eu já vi esse filme: depois que eu contar toda a história vai parar de me olhar desse jeito, vai me dar
razão, vai me dizer que no meu lugar faria o mesmo ou pior. Que olhar? Esse aí como se eu fosse uma
aberração da natureza, como se o parricídio não estivesse profundamente enraizado tanto na alta cultura
quanto no cotidiano das periferias, baita hipocrisia. Não, eu não tenho uma gota de remorso e nem por
isso sou um celerado psicopata, vou demonstrar. E se eu for que seja! Olha aqui, aceito sua proposta e
vou contar tudo mas não quero falar uma só palavra sobre meu tempo na prisão que disso já esqueci,
nem sobre minha defesa que isso você se informa por outros meios. Você que veio até mim com seu
gravadorzinho e bloquinho de notas e sua curiosidade vulgar de jornalista, então suporte tudo sem me
interromper sem abrir o bico e sem me cobrar linearidade e muitas explicações. Curiosidade
antropológica? Que seja, pouco me importa o que você fara com essas memórias de um parricida.

2.
Vim morar aqui nessa casa acho que com dez anos. Um pouco depois de mãe cansar de ser espancada
pelo meu pai e se separar dele. Ele comprou essa casa por uma pechincha, ninguém queria morar nesse
bairro, que era ainda mais infernal naquela época. Vivíamos de sua boa vontade. Vez em quando ele
aparecia com compras e uns trocados para cada um de nós. Eu era o mais velho dos três irmãos e não
tinha ideia do que significava para minha mãe a minha alegria ao ver aquele homem grande e
uniformizado chegando com seu diplomata preto. Era uma festa. Passou-se uns dois anos e o homem
perguntou-me se eu queria estudar no Colégio Militar, mas eu não tinha ideia do que seria isso. Então
me comunicou que no ano seguinte eu iria morar com minha Avó e tudo mais seria providenciado, ele
estaria de partida para Marabá e lá ficaria por dois anos à serviço. Baixei a cabeça algumas vezes
assentindo e assim foi. Fiquei aos cuidados de minha Tia mais nova, que cuidou do enxoval e de todos
os trâmites. Fui o primeiro a ser arrancado de minha mãe, depois foram os outros, cada um foi plantado
numa casa até que minha mãe

capítulo 1 (crime)

(Apresentação dos personagens, drama anunciado).

--- O filhote de coronel passou pela porra toda, Colégio Militar, Escola Preparatória, Agulhas
Negras, e assim que sai oficial vai visitar o papai, comandante num quartel lá no Rio Grande do Sul…
--- Que quartel, Sub?
--- É… 3º Batalhão de Comunicações! Aí o pai pergunta, que presente eu vou dar ao homem
que já tem tudo? O filho responde, pai, será que posso ter um sargento só pra mim?

Todos caem na gaitada.

Do lado de fora do refeitório fico olhando o homem com uniforme de educação física, cabelo
levemente grisalho e pele escura tostada de sol, sentado à mesa com uns três amigos – uma mesa
circular – dois de uniforme rajado sem a gandola e um gorducho com uniforme de passeio. Tinha uns
quarenta anos e era visível sua boa forma pelos ombros salientes que vazavam da camiseta justa. Dos
quatro o mais possante sem dúvida, embora mais velho, irradiando seu conhecido ar imponente e o
olhar fulminante. Sim, muito diferente do traste esquálido e carcomido pelo vício e pela solidão de anos
depois quando eu… bem, uma coisa de cada vez, uma coisa de cada vez. Arreganhando a boca que
desvelava a falta do primeiro molar superior no lado esquerdo contava mais uma de suas piadas ruins,
daquelas que somente ele achava graça até chorar e só por isso provocava riso nos demais.

Depois de entregar o bandejão no lavatório apareci defronte a entrada do refeitório dos sargentos e
subtenentes, ao lado do nosso, como o combinado. Por uma razão que me escapa a cena que vi desceu-
me como um líquido congelante e meus pés encolheram bruscamente dentro dos coturnos, a ponto de
eu ter que me apoiar com uma das mãos no umbral tateando o equilíbrio.

Subtenente Antônio me avistou e moveu suas pernas opulentas revestidas de pelos que mais pareciam
continuar o calção verde e uni-lo às meias brancas. Ao aproximar-se de mim notei que o uniforme de
educação física deixava o homem ainda mais soberbo e a medida que vinha crescendo em minha
direção eu me encolhia feito um jabuti me enfiando na carapaça.

--- Deixei as vitaminas no meu armário, vamo lá pegar.

Despenquei no choro.

Subtenente Antônio arregalou os olhos e esfregou a mão na testa e coçou a seborreia antes de decidir
dar tapinhas em minhas costas e me conduzir para um canto mais discreto onde eu pudesse me
recompor, tomado de susto e repulsa na certa. Era o mês de abril e em Fortaleza o tempo oscilava entre
o calorão abafado e bruscos espancamentos de chuvas, no caso um Sol feroz mordia nossas nucas. Saiu
pela porta do refeitório mais gorducho do que entrou o sargento do uniforme de passeio com um óculos
escuro; vinha palitando os dentes indiscretamente até virar uma quina de parede e esbarrar no
Subtenente afagando as costas de um soldado aos prantos. Prestou uma continência mal resolvida e
acompanhava o fenômeno com a cabeça sem cobertura enquanto as pernas seguiam languidamente o
passadiço em direção ao alojamento onde toraria por uns minutos.

--- É meu filho! Esse aqui é meu filho.

--- Caçador!

Capítulo 2

(A caserna: gênese do crime e do criminoso)

o amigo Vinícius, oficial temporário, inveja… FHC

Se aquelas horas, se aqueles dias internado no 23º Batalhão de Caçadores não fosse estufados com as
atividades da formação do soldado, eu teria gasto ao menos uns minutinhos matutando no porquê me
arrebentei de chorar daquele jeito vergonhoso. Arrego! Subtenente Antônio só balbuciou aquele “este é
o meu filho amado” enforcado pela circunstância, receoso de que o sargento gorducho pusesse em
dúvida sua macheza ao flagrá-lo acarinhando um recruta daquela maneira! Tivesse tempo disponível
futricaria nessa questão como se cutuca uma ferida, como se coça deliciosamente uma frieira no dedo
mindinho do pé. “Não diga pra ninguém nem que você tem pai, entendeu? Passe por tudo sem regalias
e sem peixada, como todo mundo”,disse-me subtenente Antônio ao atirar naquele inferno. Mas os
poucos minutinhos de meditação que eu tinha depois do toque de recolher e antes de me entregar à
sonolência mortífera que entorpecia os soldados depois da janta, eu desperdiçava brigando com Deus
em oração.

O fúnebre toque da corneta anunciava o fim do expediente, o Sol rolava na caçapa e a piscina no
pavilhão central passava a refletir o breu celeste: a grande pálpebra de Deus fechada. A noite impunha
alterações no temperamento dos recrutas e, como as cores da caserna, nossos humores mudavam
quando a escuridão proliferava como grama preta nas virilhas junto aos muros e paredes e nas
adjacências da frágil iluminação dos postes. Alguns ficavam mais irritadiços talvez pela compulsão de
fumar só satisfeita depois do toque de recolher e do apagar as luzes, lá no final do dormitório próximo à
sinuca e detrás do quadro de avisos para que não se visse os vaga-lumes das pontas dos cigarros voando
monótonos. Outros recrutas ficavam mais gaiatos e davam seus pulos para inventar distrações tolas
como imitar um gato e provocar gargalhadas nos soldados já quase adormecidos nas camas. Sargento
Aurélio flagrou e comeu 1 hora de nosso precioso sono com ordem unida; arrancou aos gritos os
recrutas da cama e entramos em forma do jeito que estávamos descalços ou de cuecas. A diversão valia
a pena e os gatos só sumiram quando se enjoou deles e não por medo da punição, componente essencial
da diversão. Lá pelo segundo mês, ao primeiro miado mandavam um “cala boca, viado!”.

Por volta das cinco se ouvia o toque melancólico do corneteiro anunciando o fim do expediente e a
bandeira nacional era arriada. O sargento dava o comando para pegar o caneco no armário e entrar em
forma por quatro e por altura. Quando eu via passar ao lado de nosso agrupamento sujeitos a paisana
caminhando apressados em direção ao corpo da guarda rumo aos seus lares, o alicate gigantesco e
invisível que me comprimia o peito apertava ainda mais. A noite espreitava trazendo o silêncio do
Calvário amoldado nas silhuetas do prédio central e das companhias, o silêncio para qual o ouvido não
galado pela fé é surdo. No lugar de consolações, ter fé me aumentava os sofrimentos dando-lhes uma
casca sobrenatural que me isolava dos demais. Era como se dentro dos coturnos além dos calos comuns
eu tivesse um espinho transpassado na planta do pé. Hoje, vinte anos depois, acho graça daquilo tudo,
daquele desespero de garoto virgem em todos os sentidos. Crustáceo sem casca, eu me tinha por um Jó!

Depois do jantar, mais instruções, vinte horas a ceia, depois mais instruções até o toque de recolher às
vinte e duas horas. Nos primeiros dias dormíamos enlameados das instruções sem tomar banho porque
cortavam a água do banheiro de nosso alojamento. Sargento Braúna na instrução de higiene nos aliviou
dizendo que “é só no início”, o que de fato se realizou; na terceira semana já podíamos ao menos
dormir sem lama nos ouvidos, e foi essa a única novidade durante aqueles dois meses iniciais.

Depois do toque de recolher, eu sentava na cama de cabeça ardendo em sonolência e enuviada com
fantasias esquisitas, e só conseguia por alguma ordem nas ideias se apelasse ao único Pai com quem eu
podia contar. Eu não pensava no subtenente nem lembrava dele nem contava em nada com ele. Aquela
vez no refeitório foi o único encontro que tive com ele na caserna, e bastou. Ligou-me e pediu que eu o
procurasse para pegar umas vitaminas com ele, iria precisar, disse ele. Até hoje, vinte anos depois, me é
nebuloso porque fui abrir o berreiro daquele jeito. O que sei é que foram naqueles dias de fé atirada na
fornalha e se mesclando a umas ligas metálicas estranhas, com a mão se habituando ao fuzil…
Naqueles dias quando dei meu primeiro tiro na vida e descobri que havia uma fábrica de homens
semelhantes ao meu pai, que compreendi melhor sua loucura… Ali se gestou meu crime, ali nasceu
minha missão.
Recordo sem interesse de narrar os detalhes do cotidiano monótono na caserna; identifico ali as raízes
do meu crime, embora julgue ter já nascido condenado a odiar e matar meu pai. Mas foi ali que me
nasceu a rudeza, o encaliçamento, a força de vontade, a disciplina, a dureza. O quartel foi o sepulcro da
minha infância! Vejo os dias de serviço militar como a primeira estação, ali peguei o trem e se deu
início à viagem inexorável que culminará na eliminação do cachorro louco. Vieram outros estações,
outros elos da corrente… Sim, sem dúvidas Cida foi um elo, sem dúvidas. Ah, Cida, como eu poderia
saber que você, atravessando atalhos e vias tortuosas, entraria na fileira das vítimas do cachorro louco,
meu pai?

Depois do toque de recolher, protegido pela escuridão do alojamento onde se enfileiravam as camas
sanfonadas pelos roncos eu suplicava ao Céu forças para lidar com a crucificação, “pois qual é o Pai
que o filho lhe pedindo pão ele dará uma pedra?”. Eram os únicos instantes em que eu sabia haver alma
dentro do corpo. Quando raiasse o dia – às vezes antes disso – e o sentinela viesse batendo nas camas
gritando, “Alvorada! Alvorada!” chega a ser reimoso ter alma e melhor mesmo é não dispor das
gasturas que é ter alma, mais útil ser uma peça atrelada a outras peças funcionando direitinho ao
comando dos sargentos.

Todavia levava um novo testamento dos gideões no bolso lateral da calça do uniforme rajado e tinha
esperança que entre uma atividade e outra eu pudesse me alimentar de uns versículos. Mas o livrinho
esfarelou-se na instrução de progressão noturna. Rastejamos num terreno lamacento atravessando poças
tendo como única preocupação não sujar o fuzil. E como isso foi numa segunda, fiquei sem “nutrir a
alma com a palavra da Deus” por uma semana e as poças de lama entraram-me pela pele até o cérebro e
me atolei numa culpa absurda, chicoteei-me com insultos: por que diacho fui tão descuidado em deixar
o livrinho n bolso da calça? Por que não o deixei no armário? A sensação pavorosa de que Deus havia
me abandonado me punha trêmulo e avoado até mesmo nos fins de semana quando éramos soltos para
retornar ao lar e eu passava o domingo em jejum, meditação e oração a fim de compensar a falta de
“exercícios espirituais” durante semana.

É provável que eu tenha me arrebentado de chorar daquela maneira por ter batido a cabeça na cena de
meu pai à mesa com amigos; a cabeça recheada com as metáforas do novo testamento. Eu de fora feito
leproso, feito as virgens loucas da parábola, um Lázaro, um cão, e meu pai no bem bom, nas “Bodas do
Noivo”, no paraíso. No meu inferninho eu tinha de engolir a refeição em quinze minutos espremido
numa mesa retangular lotada de soldados se esfregando pelos ombros com suas testas pingando suor no
bandejão. Corríamos em forma, três colunas alinhadas, da Companhia ao refeitório e chegávamos de
gandolas ensopadas e os canecos à mão, e aguardávamos sob o sol as colunas uma a uma se moverem
para formar uma só fila na linha de servir. Mas a cena paradigmática ia além das metáforas bíblicas e
feria com sua literalidade aguda ao revelar num instante, num lampejo, os anos que passamos ao lado
da mãe quando cansou das surras e das chantagens e pediu a separação. Fomos condenados a fome e a
miséria, passamos a depender da “boa” vontade e dos humores oscilantes de Antônio. Eu, o filho mais
velho, fui compreendendo a situação devagar, com o moer do anos, de sorte que cheguei mesmo a amar
meu pai por muito tempo, tempo demais. Era um cerco como as invasões dos impérios do antigo
testamento, matar-nos de fome até nos entregarmos, “que fosse trabalhar!”, dizia Antônio à uma mulher
com quatro filhos, “eu trabalho duro por esse dinheiro! Que fosse trabalhar!”. E durantes anos Antônio
batia na porta pela madrugada, ora pela porta da frente e ora pela porta dos fundos, ficava até o almoço,
me mandava comprar frango assado e refrigerante, e eu amava aquele almoço e aguardava
ansiosamente o próximo.

Não funcionou o cerco e o Senhor da guerra mudou a estratégia: deixar minha mãe como uma flor sem
pétalas. O primeiro a ser tomado foi Amanda, a segunda mais nova – o mais novo Antônio sempre
repugnou, “não é meu filho!”, repetia sempre. “viverá melhor, com colégio particular e tudo o que
necessita”, o resultado é que minha irmã Amanda passou a molhar a cama todas as noites. Esse resvalo
infantil continuou até que, pouco a pouco, aqueles terrores noturnos, aquelas mãos pesadas, aqueles
instantes absurdos mordendo a infância na casa do pai, foram se iluminando. Instantes tão absurdos
mas tão absurdos que precisavam ficar nus, sem roupas de palavras, secos e velhos como fósseis
escondidos e invisíveis. Até então Amanda sofria a ferida escura sem ter ideia que era a mordida do
cachorro louco. Crescer tem algo de nascer de uma agonia e um choro ofegante e um grito parecidos.
Amanda teve de vestir aqueles instantes absurdos com seus gritos. E como eram absurdos demais, a
família tapou os ouvidos. Até mesmo Armando, o irmão que mais se demorou na alienação do amor
paterno, esquivou-se do grito. Eu, o filho mais velho, não tive esse luxo. Para mim não era absurdo! Eu
já começara a olhar de frente, sem lentes, sem véus, a besta fera, o grande gorila insano. Conhecia
melhor que qualquer um a origem dupla da insanidade daquele animal; o sangue e o caserna. Sou seu
filho mais velho logo o primeiro a aflorar a vitalidade selvagem que herdada, já conhecia os tumultos
internos de sua carne, seus tremores vulcânicos, seus impulsos terríveis, seus delírios febris e
convulsões. Nosso tipo de nervos, músculos, coração e cérebro, quando chocados pela fornalha do
quartel, podem gerar coisas monstruosas. Para mim não havia nada de absurdo no grito de minha irmã
Amanda quando por volta dos quinze anos rasgou o véu e passou a denunciar aos quatro ventos
Antônio. Crescer tem algo de nascer e uma agonia e um choro ofegante e um grito parecido. O
evangelho de João fala de “nascer de novo”, mas acredito que minha conversão religiosa não foi meu
“novo nascimento” e sim uma preparação para o autêntico renascimento na caserna, onde comecei a me
me desprender do casulo da infância para assumir a missão de minha vida. Sou o primogênito logo o
arque inimigo natural, era minha a missão de dar cabo da besta fera e livrar o mundo desse cachorro
louco.

Confesso que no momento em que dei cabo de Antônio a alegria fisiológica que me tomou o corpo foi
seca de lembranças e ideias. Não pensei em nada durante a luxúria muscular daquele momento, nem
em minha mãe nem em Amanda nem em Cida. A euforia carnal que me possuía era a mesma de
levantar um altere antes pesado demais, a de dominar um movimento novo de artes marciais ou de
dança.
Não dei um pio sobre meu pai durante os meses no 23 º Batalhão de Caçadores – exceto em Penedo.
Subtenente Antônio, da Companhia de Apoio onde ficaram lotados no Período Básico os recrutas do
Hospital Militar Geral e a Cia de Comando da 10ª Região Militar, era meu pai. Melhor assim, provável
mais desvantagens que vantagens – dei fé: eu não era o único da caserna a odiar Subtenente Antônio.
Sim, eu já odiava meu pai nessa época; tinha um ódio subterrâneo como lava de vulcão, semi-
inconsciente, que misturado ao medo e à insegurança de adolescente passava fácil por amor filial, por
respeito e até por admiração!

Em Penedo, no acampamento, reta final da formação do soldado, praças antigos escalados para as
instruções me pegaram pra Cristo. Nos quartéis há essa gentalha perversa à qual se soma parte do baixo
clero, sargentos temporários, cabos e soldados antigos, cuja máxima diversão na vida são as crueldades
e achincalhamentos específicos dessa época do ano. É como o tempo da colheita e da vingança, quando
podem ter nas mãos os recrutas, esse cocô do cavalo do bandido da hierarquia militar. Por força de
reações em cadeia, essa raça de anões procria e se perpetua e engendra toda uma perversa subcultura
militar. Umas desgraças dessas fizeram das suas para me atormentar no acampamento. Mas deu ruim já
que eu estava morto-vivo, reloginho a qual davam corda, quase desprovido de dor ou tristeza; nem
mesmo pressa de que os cinco dias na selva de Penedo chispassem eu tive, “luxúria de já não ter
esperanças”. Cinco dias de instruções, instruções, instruções da alvorada à meia-noite. Depois, com o
punho amarrado à bandoleira, dormir abraçado ao fuzil pro sargento não furtá-lo durante a madrugada.
O banho era como de uma manada de bois: mergulhávamos no açude de uniforme e tudo. Cinco dias!
Hoje dá até saudade daquela dureza, me faz cócegas, mas naqueles cinco dias a ausência de Deus
pesava toneladas amarrada a um fio de cabelo, toneladas sobre meu cérebro de adolescente.

Numa determinada pista de instrução um desses elementos da raça degenerada revistou meu rosto
tingido de camuflagem e lama e cuspiu: “Hum, você parece com alguém que eu conheço, hum, quem é,
recruta?”. Calado tava calado fiquei, apertei o fuzil sob a quentura gordurosa e verdejante de Penedo, a
mochila às costas e o uniforme imundo de barro. “Saltitando, guerreiro, saltitando!… Quem é, recruta?
Fala logo senão vai ter de beber todinho! (Todinho é como chamavam beber lama no gorro feito de
cuia). “Quem é, recruta?… Tá vendo aquela piscina ali, vá lá e pule nela!…. Muito bom, recruta!
Agora lave o gorro, lave, lave!… Encha, encha, encha de lama, agora ponha na cabeça!… Muito bom,
recruta!”. Antes que ele mandasse eu provar o gosto da lama gritei “Subtenente Antônio!”. “Ah, peixe
do Sub, né!… Você vai gritado daqui até a outra pista ‘sou filho do Subtenente Antônio, sou filho do
Subtenente Antônio’, vai, vai, vai filho do cão!”. Na pista de instrução seguinte, outro elemento da raça
degenerada escutava tudo e dizia, “Ah, olha aqui, o filho do Sub tá aqui… Olha, ele tem cara de pastor!
Cai no chão, recruta! Bora, bora, canta Ana Júlia! Canta Ana Júlia! Saltitando, saltitando”. Como se
sabe, o acampamento é oficialmente um lugar de extraoficialidades a fim de teatralizar melhor o
cenário de guerra.

O pote de suplemento alimentar que o Subtenente retirou do armário e me entregou acabou me


salvando. Atribuo a ele o ânimo que me turbinou nos dias seguintes. Abanei com as mãos o fumaceiro
de fantasias suicidas da cabeça e resisti aos impulsos de aproveitar o TFM1 e pular a mureta do quartel
e meter o pé na carreira pela Av. 13 de maio com o uniforme de educação física e tudo, como fez
fulano. Resisti aos impulsos de aproveitar a formatura matinal para cair de joelhos diante do Tenente
Ferreira, subcomandante da companhia, e implorar chorando que me deixasse voltar pra casa pelo amor
de Deus, como fez ciclano. Nos subterrâneos se formavam os primeiros sedimentos de uma verdade: o
suplemento alimentar era mais eficaz do que Deus.

… Entrega da boina, Cida.

Capítulo 3 (Cida)

(Quando conheci Cida culminado com a entrega da boina, e isso como um tipo de ritual, em que eu era
coroado vingador; as história e as loucuras de Cida;)

Depois do quartel, nunca mais foi a mesma a fé que se apoderou de mim quando eu tinha 15 anos no
município de Maracanaú…

Uns meses antes, precisamente no primeiro dia do ano de 1996 meu pai me expulsou de casa e voltei a
morar com a mãe. Por que meu pai me expulsou de casa? Lá sei! Ou talvez não lembre. Recordo de
minha coleção de história em quadrinhos amassada dentro de sacolas de supermercado em frente de
casa. Meu pai acena ao Táxi que estaciona na calçada, na Av. Lineu Machado, e atira os sacos com
minhas coisas no porta malas como se fosse no caminhão do lixo. Não dei um pio, mantive no rosto as
mãos encharcadas de lágrimas e vergonha.

Cheguei no Maracanaú e me meti numa Assembleia de Deus para atenuar o marasmo daquelas bandas
depois de rolar bêbado pelos calçadões me tendo como o último exemplar de uma espécie destinada à
tristeza. Quatro anos depois meu pai bate em nosso portão de ferro chapado e roído pela ferrugem:
“Sirva o Exército, melhor que nada!”. Foi mais ou menos por essa época que conheci Cida…

Se eu disser que foi para vingar Cida que matei meu pai estarei mentindo, mas se eu disser que não
estarei também. Não foi por Cida em si; não tínhamos nenhuma proximidade e nenhuma relação, como
se insinuou e se divulgou. Tampouco cometi um crime passional ou movido por alguma insanidade;
afirmo que estava em plena posse de minhas faculdades, e com uma lucidez perfeita, clara como o dia
em que pratiquei a limpeza. Repito, não foi para vingar Cida em si mas o que ela exprimia, o que ela
encarnava: todas as vítimas que o cachorro louco fez! Minha mãe, meus irmãos, minha avó e meu avô,
minhas tias, enfim, todos mais que foram massacrados. Cida foi apenas a gota d’água. Com o seu
martírio, o Espírito Santo e o demônio me deram a missão… Mas chegaremos nisso mais tarde, uma
coisa de cada vez, uma coisa de cada vez.

1 Treinamento Físico Militar; educação física.


Numa noite dos meses finais de 1999, Francisco e eu vínhamos do Instituto São José onde cursávamos
o último ano do ensino médio caminhando pela Av. XII mais conhecida como Calçadão. Na época, no
lugar do shopping tinha um quartel da policia militar, uma quadra de futebol e um amontoado de casas
de taipa. Francisco era um rapaz sorridente dois anos mais velho de cabelo castanho espetado e
semblante dado para indígena, funcionário da Fábrica Coca-Cola que ficava no bairro industrial,
vizinho. Apesar de minha evidente aversão ao “socializar” com os colegas de classe, das feições
mórbidas de rapazote franzino e pardo, sempre com olheiras de jejum e vigílias, com uns óculos de
lentes grossas, trajado em camisas sociais de tecido barato, acabrunhado e notoriamente antipático, o
bom humor de Francisco abriu furo em minha solitária e acabamos amigos. Perguntava-me das
passagens da Bíblia, “coisinha complicada de entender”, e de como era ser enfurnado em igreja,
suportar pastor dando pitaco na vida pessoal e se privar de coisas boas como escutar Ney Matogrosso,
enfim a dura “lei dos crentes”. Eu sacava nada de exegese e teologia bíblica na época e tudo que tinha
era o fervor religioso turbinado por uma angústia inextinguível e a leitura de uns livros da mirrada
biblioteca da igreja sede na rua do trilho. (Grande parte eram os livrecos de evangelicalismo
estadunidense que o pentecostalismo brasileiro como primo pobre consome até hoje, mas serviram para
criar o gosto da leitura e fome intelectual por maior sustância). Explicava a Francisco o “plano de
salvação” segundo o evangelho de minha ignorância, mas uma certeza assentada no fundo como uma
pedra fundamental na qual eu tropeçava e ora tentava quebrar me impedia de convidá-lo para uma
visita a minha igreja; me impedia de apelar aos seus sentimentos, o famoso “vazio da alma”, para
golpeá-lo com o apelo à conversão, como se fazia. Eu me culpava por não ser desembaraçado a esse
ponto e me acovardar constrangido pela certeza de que Francisco sem dúvida teria virulenta indigestão
se provasse de nossos banquetes. Assembleia de Deus em Maracanaú e suas diversas facções e
genéricos que se proliferavam nas casinhas apertadas do Conjunto Jereissati era um ambiente austero e
cômico como um circo: combinava as disciplinas e ascetismos de seus acrobatas, palhaços, domadores
e dançarinos, uns semi alienígenas, e o espetáculo de suas performances que provocavam riso embora
involuntário. Hoje a ambição de império neopentecostal dissolveu quase toda a disciplina e austeridade
que ao menos nos tornava exóticos, restaram as performances que provocam riso. Jejuávamos,
varávamos madrugadas de joelhos em oração, rompíamos com qualquer “mundanismo” incluindo o
Ney Matogrosso e morríamos de medo que Jesus voltasse a qualquer momento e nos flagrasse no
banheiro fazendo o que não devia.

Interrompi de repente a explicação fajuta que eu dava sobre o Apocalipse…

--- Paz do Senhor, irmã.

Girei a cabeça pro lado esquerdo na direção da menina sentada no banco próximo de onde Francisco e
eu passávamos. A menina balançou a cabeça e franziu os olhinhos miúdos numa torção penosa. Não
sabia o nome daquela garota de cintura fina, quadris redondos, ombros largos e vestido até os pés. Via-
a sempre com seu passinho rápido indo ou voltando da igreja sede na rua do trilho. No rosto de maças
acentuadas e queixo fino, sob as sobrancelhas um tanto falhas os olhos repuxados pareciam mais tristes
e fundos e a pele morena mais pálida que o habitual. Não sabia seu nome porque vivia me escondendo
de garotas. A conversão travestiu minha timidez adolescente em virtudes cristãs, e o pavor às mulheres
dourou-se de “espiritualidade”. Dezoito anos e nunca na vida tinha visto uma mulher nua ao vivo e à
cores, o que só ocorreria aos vinte e quatro quando fiquei íntimo de Maria. Mas quando via Cida andar
com seu vestido justo embora longo, os ombros salientes e movediços, o cabelo castanho de fios
finíssimos, embora ela não possuísse daquelas formosuras fáceis de ver, o demônio acendia em minha
barriga, tilintante; demônio que na época eu retraía com facilidade e que continuaria seu trabalho
ininterrupto e obscuro até vencer todas as resistências.

--- Não tenho mais a Paz, irmão.

Me desembaraçando da timidez que me chumbava os pés e a língua, principalmente diante de garotas,


parei e perguntei por que mesmo ela dizia aquilo. Explicou que estava afastada da igreja por isso e
aquilo outro.
--- Deus me abandonou, irmão! Me abandonou!

Na época eu entendia de modo romântico o “abandono de Deus” como um evento interior, pietista: a
“noite da alma”, quando as orações se tornam arenosas e o prazer da devoção se vira num trabalho
mecânico difícil de executar, o coração duro feito pau. Foi apenas no quartel que dei um passinho
adiante rumo à materialidade e comecei a sofrer o “abandono de Deus” de modo menos abstrato,
exterior, a golpear minha carne pelo lado de fora, cerceando-me e disciplinando meus gestos. No
quartel a “noite da alma” se revestiu da noite real, concreta. Ora, converti aos quinze e depois disso
empreguei todas as minhas sedes de aventura e todas as minhas inquietudes adolescentes numa vidinha
quase vegetativa de monge! As fronteiras do meu universo eram as paredes da escola e da igreja. Minha
vida era acordar de manhã, me dirigir à rua 46, pegar a chave da igreja na irmã Zan, que morava ao
lado, passar duas horas sozinho em oração e meditação; passei a cultivar esse ritual depois de ler o
Diário de David Brainerd, aquele merda de missionário estadunidense que viveu para converter os
índios em podres cidadãos ianques. De noite, aula no instituto são josé, onde terminei o ensino médio.
Em minhas fantasias de adolescente o quartel era um exílio, o deserto da tentação que eu comparava a
um grande relógio do qual Deus se ausentara deixando-o ao leu de suas próprias leis. Suas engrenagens
me trituravam, me moíam pelos lados e me injetavam a visão de que Antônio virou aquele monstro por
graça e obra daquele lugar infernal, o quartel. Repliquei aos lamentos de Cida apelando aos seus
sentimentos, insisti que Jesus a amava, ela sentindo isso ou não, e a convidei ao culto de domingo em
minha igreja, Rua 46. Desandou a chorar. Pus a mão em seu ombro e pedi a Francisco que a
acompanhássemos até sua casa.

Francisco nem piscou durante minha conversa com Cida, impressionado como alguém que mal falava
de repente, como se estivesse possesso por uma força sobrenatural, cresce e se desenrola e “fala ao
coração de uma menina que mal conhecia”. Se eu tivesse a pele brancosa Francisco teria me visto corar
com suas exclamações. “O evangelho diz que o Espirito Santo falará por nós”, respondi regressando às
medidas normais definidas pela timidez depois de esvoaçada a inspiração e de Cida entrar pelo portão
de sua casa, ignorando que o espírito que havia me tomado a língua era aquele mesmo demônio
subterrâneo e incandescente.
Domingo, Cida sentou no último banco e só a vi quando ao final o dirigente do culto fez o apelo, ou
seja, chamou as pessoas “tocadas pela mensagem” que quisessem “aceitar Jesus” ou “se reconciliar
com Jesus”. Foi uma surpresa quando abri o olhos espremidos em oração e vi aqueles quadris redondos
balançando na direção do púlpito e diante dele ajoelhar-se. Como sua casa era perto da minha, viemos
juntos cortando os becos até chegar a sua rua. Morava sozinha num único quartinho duas ruas depois da
minha. Convidou-me para entrar, mas preferi ficar do lado de fora, e como não havia uma única cadeira
em sua casa, apenas um fogão, uma cama e um armário, ficamos ali no portão em pé durante umas duas
horas.

4. (fábrica e teologia, o acidente de trabalho… tudo sob a ausência do pai…; Amanda, irmã, denuncia
Antônio; Armando recrimina Amanda… é expulso de casa; minha intervenção)

5 (o caso da pensão… meu pai ronda a casa ameaçando me matar… )

2. Quando minha irmã fez 15 anos, assumiu que gostava de mulheres e começou a falar dos abusos que
sofreu de meu pai…

3. Quando eu completei 30 minha mãe me falou que foi estuprada por meu pai num leito de hospital
militar.

4. A chegada no Maracanaú, separação da minha mãe de meu pai, as visitas constantes, viver da
misericórdia.

5. Diáspora dos irmãos.

6. Regresso da diáspora dos irmãos. Pensão. O lar em frangalhos. A calúnia perpétua a mãe. Filhos da
puta.
7. A boca de fumo na casa da Vó; a taba sagrada da família Duarte.

8. Morte da Cida.

9. Morte do meu Avô.

10. O parricídio. Fim.

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