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DIVERSIDADE CULTURAL E COSMOPOLITISMO* RENATO ORTIZ 1. O debate sobre a diversidade cultural se faz hoje sob o signo de uma contradigao aparente. Afirmam-se simultaneamente conceitos que muitas vezes parecem ser excludentes: integragdo/diferenga, globaliza- ao/localizagao. Alguns analistas de marketing nao hesitam em preconizar a existéncia de um planeta homogéneo, unidimensional, unificado apenas pelos vinculos da sociedade de consumo!. Em todos os sitios os individuos ieriam as mesmas necessidades bisicas, alimentar-se, vestir-se, deslocar-se pela cidade, ir ao cinema, fazer compras, etc. Caberia ao mercado e aos bens materiais padronizados satisfazé-las, Uma viso antag6nica encontra- se entre aqueles que sobrevalorizam os movimentos étnicos (seja para firmé-los como elementos de construgao das identidades locais, seja para rejeité-los como uma ameaca a qualquer proposta de unificagao). O declinio do Estado-nagdo teria inaugurado uma era de fragmentagao social, salutar ou perigosa, de acordo com os prognésticos mais ou menos otimis- tas. Por isso a metdfora da “baleanizagio” se generalizou. © mundo con- temporaneo seria constituido por espagos desconexos, por fragmentos diversos (alguns dizem “fractais”) independentes uns dos outros. No con- texto da formagao dos blocos econémicos, por exemplo a Comunidade * Uma versao resumida deste texto foi apresentada no encontro “La Dimensién Cultural y Educativa de la Integracién Regional: Situaciones y Perspectivas en el Mercosur”. organi- zado pelo Centro de Formacién para la Integracién Regional, Montevideo, Uruguai, dezembro 1997. O presente texto foi também publicado em Nueva Sociedad, n° 155/1998 T Penso em Theodore Levitt, tedrico do marketing global. Ver “The globalization of markets”, Harvard Busines Review, may-june 1983. 14 LUA NOVA N° 47 — 99 Européia e 0 Mercosul, a mesma polaridade analitica se reproduz. No ini- cio a énfase € colocada no primeiro termo, a integragdo. Privilegia-se assim a dimensdo da expansdo das fronteiras - moeda tinica européia, mercado comum, livre circulagdo das pessoas, intercémbio entre os paises, etc. Porém, uma vez considerado este aspecto integrador, como se por receio, retorna-se imediatamente & premissa anterior: a diferenga cultural (especi- ficidade das regides, riqueza das culturas locais, variedade dos povos e do patriménio nacional). O debate oscila desta forma da “totalidade” & “parte”, da “integraciio” & “diferenca”, da “homogeinizago” a “plurali- dade”. Tem-se a impressio de encontrar-se diante de um mundo esquizofrénico: por um lado pés-moderno, multifacetado ao infinito, por outro uniforme, idéntico em todos os lugares. Esta bipolarizacao ilus6ria se agrava quando € rebatida no plano ideoldgico. Totalidade e parte deixam de ser momentos da anilise intelec- tual para se transformarem em pares antag6nicos de posigées politicas. De um lado terfamos o “todo”, apressadamente assimilado ao totalitarismo, de outro as “diferencas”, ingenuamente celebradas como expressio genuina do espfrito democratico, Modernidade x pésmodernidade, Habermas x Lyotard, direita x esquerda, razdo x irracionalismo; escolher uma dessas trincheiras torna-se um imperativo de sobrevivéncia epstemoldgica*. Como se vivéssemos uma Guerra Fria no plano dos conceitos. “Tomar par- tido” esta seria a Gnica maneira de se superar a contradig&o aparente entre integragdo e diferenciacio, cada um encolhendo-se no universo seguro de um desses compartimentos estanques. Mas seriam as sociedades passiveis de serem compreendidas desta forma? Este pensamento dicotémico, que lembra as classificagdes primitivas estudadas por Durkheim e Mauss, & realmente convincente? 2. Duas disciplinas nos ajudam a pensar a problemdtica da diversi- dade cultural. A primeira a Antropologia. Ela surge no final do século XIX sublinhando a radicalidade do outro. Ao se debrugar sobre as sociedades pri- mitivas ela desvenda tipos de organizagGes sociais fundamentalmente distintas das sociedades industrializadas (relagdes de parentesco, crengas mégicas, explicagdes mitolégicas, etc.). Para alguns autores esta distancia é tal que torna-se até mesmo impossfvel compreendé-las (€ 0 caso de Levy Bruhl, quan- 2 Refiro-me ao texto de Frangois Lyotard, O pés-mademno. Rio Janeiro, José Olympio, 1986; € 20 de Habermas, “A modernidade como projeto inacabado”, Arte em Revista, n.° 5. DIVERSIDADE CULTURAL E COSMOPOLITISMO 75 do define a mentalidade primitiva como algo ininteligivel para o pensamento cientifico). Certamente para 0 conjunto da disciplina esta orientagao € logo abandonada (nio faria sentido uma drea de conhecimento se constituir a partir da negagio do que se propde estudar). De qualquer maneira, nos dois casos, 0 que esté em pauta o entendimento de grupos distantes no espaco e no tempo, isto é, um conjunto de formagdes sociais que teriam florescido & sombra da histéria dos mundos “civilizados” (europeu, chinés, iskimico). Em principio cada uma delas constituiria um lugar & parte. Possuiria uma identidade e uma centralidade propria. Toda cultura deveria portanto enraizar-se num territério. especffico. Ela possuiria um centro e fronteiras bem delimitadas, Fora de seu aleance se encontraria 0 caos, a desordem, o estranho, o perigoso. Por isso os povos primitivos aprimoraram uma série de mecanismos purificat6rios e exor- cizadores para se relacionar com o estrangeiro. Este sera sempre concebido, como nos mostra Van Gennep, como um elemento potencial de perturbagio da ordem, social ou mitolégica’. As fronteiras, simbdlicas e geogréficas, devem ser respeitadas para que a integridade cultural possa ser mantida. A Antropologia nos ensina portanto que os povos dispersos pelo planeta constituiriam uma série diversificada de culturas. Cada uma delas com suas caracteristicas intrinsecas e irredutfveis. Nao € por acaso que 0 debate sobre o relativismo cultural atravessa 0 pensamento antropoldgico deste o seu inicio. Apesar da existéncia de correntes mais universalistas (0 estruturalismo € uma delas) predominou na Antropologia cldssica uma com- preensio da unicidade de cada cultura. Os estudos se voltam para 0 entendi- mento de uma totalidade que expressaria de forma inequivoca 0 “‘cardter” de um povo (para falarmos como os culturalistas norte-americanos4). A énfase sobre diferenga se manifesta até mesmo quando os antropélogos comecam a se interessar pelas sociedades modernas, deslocando 0 método da observacao participante para um novo contexto. Ao analisarem objetos como 0 folclore ea cultura popular eles se voltam para aspectos que em prinefpio escapam & logica da “modernizagao”, da “civilizagao ocidental”, da “modernidade”, da “cultura burguesa”s. Os qualificativos importam pouco. Utilizo-os para demarcar o horizonte trabalhado pelo olhar antropolégico. © mundo seria 3 Van Gennep, Os Ritos de Passagem, Petr6polis, Vozes, 1978, 4 Por exemplo Ruth Benedict em seu livro Padrées de Cultura, Lisboa, Livros do Brasil Visdo que a autora retoma em seu estudo sobre a sociedade japonesa. Ver The Crysanthemum and the Sword, Houghton Mifflin Company, 1989. 5 Um texto representativo deste tipo de estratégia é o de Robert Redifield, The Folk Culture of Yucatan. Chicago, The University of Chicago Press, 1941 16 LUA NOVA N°47 99 ento constituido por uma mirfade de povos, cada um com sua modalidade e seu territ6rio especifico. A segunda disciplina é a hist6ria. Ela nos fala da multiplicidade de povos e de civilizagdes que se interpenetram e se sucedem ao longo do tempo - egipcios, sumérios, gregos, romanos, chineses, drabes. Quadro que se transforma incessantemente da Antigiiidade a Idade Média. Muitas ci- vilizagSes desaparecem, alimentando a crenga de alguns historiadores que as sociedades humanas seriam andlogas aos organismos vivos. Spengler e Toynbee vulgarizaram a concepgao de que cada civilizagio necessaria- mente experimentaria um momento de ascens&o e outro de declinio, de vida e de morte’, Postuladas pela metéfora organicista, suas forcas vitais se extinguiriam com o tempo. De qualquer maneira, o que me interessa su blinhar, ao falarmos de civilizagdes, € que também as idéias de centro e de limites podem ser retomadas. Com seus costumes, seus deuses, sua lingua, suas conquistas, as civilizagdes se enraizariam num lugar determinado. Nao mais a tribo, unidade demasiadamente pequena, mas a cidade-estado, © reino ou o império. Extensdes que podem variar do mundo chinés ao feudo europeu ou japonés. Por isso floresce entre os historiadores toda uma corrente dedicada ao estudo do contato entre as civilizages. Cada uma delas com sua Iégica, procurando porém projetar-se para além de seus mar- cos (conquistas romanas e islamicas). Neste sentido diversidade cultural significa diversidade de civilizag&es. ‘Mas a hist6ria nos revela ainda um movimento de integragdo que dificilmente poderfamos apreender se nos resiringfssemos apenas pers- pectiva antropolégica. Sabemos que a partir do século XVI 0 capitalismo emergente numa parte da Europa Ocidental tende a ser cada vez mais abrangente, suas ambicdes transbordam para o além mar. A época dos descobrimentos e das grandes navegacdes da inicio a um outro ritmo de interagdo entre os povos. Capitalismo que na forma de colonialismo chega até a América e a Asia. Raiz de um fendmeno que hoje discutimos: a glo- balizagao. Fica porém uma divida, Qual a amplitude deste movimento inte- grador? Envolveria ele “todos os povos do planeta” como pretende uma visio que 0 identifica a um “world-system”? Teria ele esta abrangéncia sist8mica? Aqui os pontos de vistas se dividem. Para uma corrente de pen- sadores (penso em Immanuel Wallerstein) o capitalismo j4 era capitalismo 6 O, Spengler, La Decadencia de Occidente, Madrid, Espasa Calpe, 1958; A. Toynbee publi- cou varios volumes a este respeito na série Estudio de la Historia, Madrid, Alianza Editorial. DIVERSIDADE CULTURAL E COSMOPOLITISMO. 7 desde 0 século XVI. O que temos é apenas a expansio de um sistema que j4 se encontrava definido em seus tracos estruturais. A histéria seria uma ajustamento temporal as suas exigéncias sistémicas. Outros autores procu- ram sublinhar a importancia da Revolugdo Industrial. O termo capitalismo seria mais apropriado para designar um tipo de sociedade que nasce nesta época, A Revolugao Industrial € 0 ponto de ruptura e nao 0 século XVI. Nao pretendo alongar-me neste debate, recupero-o na medida em que ele nos Temete & tematica que estamos discutindo. Penso que os intelectuais do século XIX (de Saint Simon a Marx) tinham razio quando afirmavam a especificidade do modelo industrial. Olhando a hist6ria deste ponto de vista (como o fazem por exemplo Jack Goody e Eric Wolf) de fato a Revolucio Industrial € um divisor de 4guas. O mundo colonial, apesar da forga e da gandncia das metrdpoles nao era Gnico, convivia a contragosto com outras “economias-mundos” (China e norte da Africa), Na verdade, até mesmo na India 0 dominio britanico nao ultrapassava as regides costeiras, tendo difi- culdade de se implantar no interior do continente®. Também a América Latina pode ser vista como um espago no qual a presenga espanhola e por- tuguesa, mesmo sendo hegemsnica, ndo consegue integrar dentro de um mesmo molde civilizatério a populagao negra e indigena. Quero com isso dizer que © mundo anterior A Revolugdo Industrial, apesar dos movimentos integradores, encerrava ainda muito de diversidade. Diversidade num duplo sentido. Primeiro de civilizagdes. O poderio dos impérios europeus — Inglaterra, Franga, Espanha, Portugal — € certamente efetivo quando considerado do ponto de vista do cont nente americano. Estados Unidos, América portuguesa e espanhola si extensdes dos projetos metropolitanos. Deslocando-se porém nosso olhar para a realidade do mundo asidtico ou islamico € necessario pontuar as limitages impostas & expansio ocidental. Um exemplo: 0 Japao. Do sécu- lo XVI a meados do XIX este conjunto de ilhas, unificada sob 0 domfnio Tokugawa, permanece fora da érbita comercial européia (os contatos restritos se fazem através de uma modesta presenga holandesa no extremo 71, Wallerstein, The Modern World System (2 vol.), N. York, Academic Press, 1976 e 1979. 8 Jack Goody, The East in the West, Cambridge, Cambridge University Press, 1996; Eric Wolf, Europe and the People Without History. Berkeley, University of California Press, 1982. ° Carlo Cipotia argumenta que 0 predominio europeu na Asia se limita a costa maritima. A conquista € 0 controle de vastos territérios no interior do continente se realiza mais tarde como subproduto da Revolugdo Industrial. Ver Cunhaes e Velas na Primeira Fase da Expansiio Européia; 1400-1700. Lisboa, Gradiva, 1989, B LUA NOVA N°a7 — 99 oeste do pats: Nagasaki), Existem, € claro, influéncias de origem estrangeira (por exemplo a introdugdo das armas de fogo se faz com a chegada. dos portugueses) mas a “civilizagdo japonesa”, ainda muito voltada para o império celestial chinés, se desenvolve ao abrigo dos inte- resses europeus!0, O mesmo pode ser dito em relagio ao mundo islami- co!!, Até 0 momento das invasdes napoleénicas ele possufa uma dinami- ca inteiramente independente das poténcias ocidentais. Mas a diversidade anterior & Revolugdo Industrial é parte ainda das sociedades do Antigo Regime. Apenas de um ponto de vista genérico os estados curopeus podem ser qualificados como racionais ¢ técnicos. E bem verdade que a racionalidade do capital mercantil predomina junto aos empreendimentos dos ricos comerciantes. Trata-se porém de um dominio restrito. Apesar do desenvolvimento cientifico, cujas raizes datam do Renascimento, das pre- missas do Iluminismo, da gestao burocrdtica do aparelho estatal, durante os séculos XVII ¢ XVIII prevalecem as forgas da tradig’0 — aristocracia, religiosidade popular, crengas magicas, economia agricola, estamentos so- ciais, etc!2, Na verdade, as sociedades européias constituem um ver- dadeiro arquipélago de “mundos regionais” pouco integrados uns aos ou- tros. Dito de outra forma, se € possivel encontrarmos nos séculos ante- riores alguns tracos de um fenémeno que hoje chamamos de globalizagao, a meu ver a emergéncia e consolidagdo deste processo somente ird se constituir qualitativamente com o advento da modernidade. 3. Revolugao Industrial e modernidade caminham juntos. Elas trazem consigo um processo de integragao até ent&o desconhecido: a cons- tituigao da nagao. Diferentemente da nogao de Estado (muito antiga na histéria os homens) a nagdo é fruto do século XIX. Ela pressupée que no Ambito de um determinado territério ocorra um movimento de integragao econémica (emergéncia de um mercado nacional), social (educagao de “todos” os cidadaos), politica (advento do ideal democratico como ele- mento ordenador das relagGes dos partidos e das classes sociais) ¢ cultural (unificagdo lingtifstica e simbélica de seus habitantes). A nagdo secreta por- 10 Consultar The Cambridge History of Japan, volumes 3 e 4 Cambridge, Cambridge University Press, 1990 ¢ 1991 1 Consultar A. Miquel, L'lslam et la Civilisation. Paris, Colin, 1968; Berard Lewis, O Oriente Médio. Rio Janeiro, Zahar, 1996. 12 Muito desta tradigao se prolonga por todo século XIX. Ver Arno Mayer, A Forca da Tradicdo. S. Paulo, Cia das Letras, 1987. DIVERSIDADE CULTURAL E COSMOPOLITISMO 719 tanto uma consciéncia e uma cultura nacional, isto é, um conjunto de sim- bolos, condutas, expectativas, partithados por aqueles que vivem em seu territ6rio. Processo que se consolida no século XIX e durante o XX se alas- tra para todos os paises. Em cada um deles, ao sabor de suas hist6rias par- ticulares, surge uma cultura nacional. Nao devemos imaginar a construgdo das nagdes como algo natural, uma necessidade teleol6gica, como pen- savam vérios autores do XIX (acreditava-se que na cadeia evolutiva das sociedades a nago seria o tipo mais perfeito de formacdo social). Ela € conflitiva, envolve interesses contradit6rios, disputas e dominagdes. Muito da meméria nacional é uma invengao simbélica, as tradigdes so ideologi- camente veiculadas como se tivessem existido de todo o sempre. Resulta no entanto que cada pais se vé como uma unidade especffica. Como dizia Herder a nacio é um “organismo vivo”, modal, distinto da vida existente em outros lugares. Diversidade tem portanto um novo significado. O mundo seria a somatéria dos encontros ¢ desventuras das culturas nacionais diversificadas. 4. A modernidade avanga com as revolucées industriais, agora apenas a inaugural, mas a segunda (final do século XIX) e a terceira (meados do século XX), secretando um movimento integrador que curto circuita as diversidades étnicas, civilizatérias e nacionais, Ao se expressar enquanto modernidade-mundo ela as atravessa, situando-as no quadro de uma “sociedade global” (para falar como Octavio Ianni!3), As relagées so- ciais j4 ndo se limitam mais aos individuos que vivem no contexto desta ou daquela cultura, elas se apresentam cada vez mais como “desterritoria- lizadas”, isto é, como realidades mundializadas. Contrariamente ao argu- mento antropol6gico que fixava a cultura num lugar geograficamente definido, ou as premissas nacionais que enraizavam as pessoas no solo fixo de um territ6rio, temos agora um “desencaixe” das relagdes sociais em nivel planetério's. A idéia de que toda cultura possua um centro, a tibo, a civi- lizagao ou a nagdo, delimitando fisicamente um entorno bem preciso é colo- cada em xeque. A modernidade-mundo atravessa as diversas formagGes legadas pela histéria, dos povos primitivos aos paises industrializados. '3 Octavio Lanni, A Sociedade Global. Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 1993. '4 Sobre a relagio entre 0 processo de mundializagio da cultura e a constituicdo dos lugares ver Renato Ortiz, “Espaco e territorialidades” in Um Outro Territdrio. S. Paulo, Otho d” Agua, 1996. 80 LUA NOVA.N® 47 — 99 Pensar a modernidade-mundo como um movimento integrador nao significa considerd-la como algo homogéneo. Os sociélogos mostram que a modernidade é sempre diferenciadora. Vinculada ao modo de produgao industrial ela se funda num processo de individuagdo e de autonomia cres- cente, Racionalizaco do conhecimento como queria Weber — emancipagio do pensamento cientifico em relacao & religido ¢ &s crencas magicas; subdi- visio do campo da ciéncia e constituigao de disciplinas distintas (Fisica, Sociologia, Antropologia, Psicologia). A especializacZo dos saberes torna-se uma exigéncia das sociedades modernas. Diferenciaco que atinge os valores tradicionais, liberando os individuos das malhas da coesio comunitéria. A Sociologia nasce privilegiando esses temas. Durkheim busca na divisio do trabalho a chave explicativa dessa diferenciacdo social. A passagem da soli- dariedade mecAnica para uma solidariedade orgénica refletiria justamente este aspecto. Movimento que pode inclusive adquirir uma feicdo “patolégi- ca”, com a fragmentagdo social e a anomia dos individuos. Tonnies retoma a mesma problemdtica através dos pares conceituais “sociedade” e “comu- nidade”. A cidade torna-se assim o lugar privilegiado das relagdcs andnimas ¢ impessoais, em contraposi¢4o aos agrupamentos rurais, 0 vilarejo, nos quais os contatos “face a face” favoreceriam os tragos de coergao. Por isso Simmel considera a cidade como o locus no qual “explodem as diferencas”, isto 6, afirma-se a irredutibilidade do individuo. ‘A modernidade-mundo carrega consigo um elemento diferencia- dor. Esta é a sua natureza. Isso significa que a mundializagdo € simul- taneamente uma e diversa. Uma, como matriz civilizatéria cujo alcance é planetério. Neste sentido parece-me impréprio falar em “modernidade japonesa”, “modernidade européia”, “modernidade latino-americana”, como se tratassem de estruturas inteiramente distintas. Uma matriz.ndo é um modelo econémico no qual as variagdes se fazem em fungdo dos interesses em jogo ou das oportunidades de mercado. Capitalismo, desterritori: 40, formaco nacional, racionalizacao do saber e das condutas, industria- lizago, urbanizagao, avancos tecnolégicos, sdo elementos partilhados por todas essas “modernidades”. Os socidlogos podem entdo consideré-las como parte de um tronco comum, revelando assim os seus nexos constitu- tivos. No entanto, a modernidade € simultineamente diversa. Primeiro, atravessa de forma diferenciada cada pafs ou formagio social especifica. Sua realizagdo se faz segundo as historias dos lugares. As nacées sao diver- sas porque cada uma delas atualiza de maneira diferenciada os elementos de uma mesma matriz. A modernidade varia portanto de acordo com as situag6es hist6ricas (possui uma especificidade na América Latina, outra DIVERSIDADE CULTURAL E COSMOPOLITISMO 81 no Japo ou nos Estados Unidos). Segundo, contém em seu interior um. movimento de diferenciagéo que envolve os grupos, classes sociais, géneros e individuos. 5. Se meu raciocinio é correto pode-se dizer que o termo diversi- dade se aplica de forma indiferenciada a fendmenos de naturezas diversas. Primeiro a tipos de formagées sociais radicalmente distintas — tribos indf- genas, etnias, civilizagGes passada e nacdes. Sublinho este aspecto, um tanto ausente no debate contemporaineo. Mesmo considerando 0 eixo hegeméni- co da expansio da modernidade-mundo € preciso reconhecer a existéncia de um legado da hist6ria. Civilizagées, etnias, tribos indfgenas nao sao um anacronismo, algo “fora” do tempo. A ndo ser que acreditemos numa ideo- logia do progresso na vulgata popularizada pelo pensamento evolucionista do século XIX. Mundo islimico, sociedades indigenas, grupos étnicos (na Africa ou na Europa central) nao sao testemunho de “atraso” ou sinais de barbaric. Trata-se de formagées sociais plenamente inseridas na atualidade (isto é, imersas nas relagées de forgas que as determinam). Pensé-las como vestigios é desconhecer que a histéria € também presente, momento de entrelagamento de tempos nao contemporancos. Segundo, enquanto dife- renciagdo intrinseca & prépria modernidade-mundo: individuo, movimento feminino, homossexual, negro, crise de identidades, etc. Movimento que tem se acelerado ao ponto de muitos o perceberem como sintoma de uma nova fase histérica, de uma pés-modernidade. Tudo se passa no entanto como se qualitativamente essas dife- Tengas se equivalessem. Entretanto, qualquer antropélogo conhece a especi- ficidade dos povos indigenas. A rigor, a propria nogdo “povo” é inadequada para descrevé-los. O coletivo s6 faz sentido quando o contrapomos as sociedades industriais. A idéia de mirfade parece-me mais apropriada para apreender sua realidade. Nao hd “indfgenas” a nao ser no singular, cles devem ser sempre qualificados, sio Kamayurd, Suruf, Cinta-Larga, etc. (basta olhar a diversidade das Iinguas indfgenas para se dar conta da multi- plicidade do que 0 pensamento postula como homogéneo). Cada unidade possui uma centralidade e um territério que se articulam e se contrapdem as tentativas de integragdo. E isso que trama a questo da terra (isto 6, das fron- teiras) importante. Perdé-la seria desencaixar-se, 0 que aconteceu com o camponés na Europa, ¢ na América Latina durante 0 processo de industria- lizagao, com varios grupos indigenas. Os chamados povos primitivos, sob pena de desaparecerem, devem se defender da expansio das fronteiras, sejam elas nacionais ou mundi: 82 LUA NOVA N°47 — 99 Diversidade significa aqui a afirmacdo de uma modalidade social radicalmente outra. O caso das sociedades islamicas (e é preciso nao esque- cer que elas so heterogéneas) é de outra natureza. A civilizagdo que afirmam encontra boa parte de seu sentido nos principios religiosos do Alcorao, mas seria incorreto imaginé-las como inteiramente & parte da modernidade. As transformagées ocorridas durante os séculos XIX e XX, mesmo apontando para um fracasso da “modernizagao”, indicam a existéncia de sociedades que absorveram da Revolugo Industrial alguns de seus aspectos (nao apenas o progresso tecnolégico, como se costuma dizer). O dilema do mundo islimico & como equilibrar, isto €, como conter os elementos de modernidade no quadro de um Estado e de uma sociedade civil nos quais 0 cédigo religioso pretende ser ainda a tiltima fonte de legitimidade!, Inteiramente distinta é a questio feminista, Ela emerge como uma reivindicagio no interior da matriz modernidade. Luta-se pela igualdade de oportunidade e de tratamento entre os sexos. Identificar os movimentos indfgenas ao das mulheres, classificando-os como minorias é confortavelmente confundir as coisas. Afirma-se € claro um princfpio de “boa intengo”, mas isso em nada nos ajuda a compreender ou a equacionar 0 problema. A construgio de identidade nos movimentos de género é resultado dos ideais e da organizago interna das sociedades moder- nas. A oposicio entre masculino e feminino nao é algo insuperdvel. Homens e mulheres, malgrado suas sensibilidades diferenciadas, vivem num mesmo universo, Reforgo © termo utilizado: insuperdvel. No caso das sociedades indfgenas toda “‘superagao”, seja ela no sentido hegeliano ou no, implicaria © seu desaparecimento. A separacao é a raz4o de ser dessas culturas. Estou portanto sugerindo que na discussio sobre a diversidade € necessério distin- guir qualitativamente entre as diferencas. Postulé-las como equivalentes (como 0 faz 0 discurso pés-moderno) € um equivoco. 6. A diversidade cultural nao pode ser vista apenas como uma “diferenga”, isto é, algo que se define em relacdo a, nos remete a alguma coisa outra. Toda “diferenga” € produzida socialmente, ela € portadora de sentido simbélico ¢ de sentido histérico. Uma anilise, tipo hermenéutica, que considere unicamente o sentido simbdlico corre o risco de isolar-se num relativismo pouco conseqiiente, Tudo se passaria como se a cultura fosse 15 ( interpretagdo do fundamentalismo proposta por Olivier Roy € sugestiva. Para 0 autor niio se trata de uma “fuga” da modernidade, mas de uma resposta & modemizagio incompleta € desigual dos pafses arabes ¢ uma critica &s instincias religiosas tradicionais (os umelis). Ver Genealogia del Islamismo. Barcelona, Ediciones Belletarra, 1996. DIVERSIDADE CULTURAL E COSMOPOLITISMO 83 realmente um texto cada qual com seu significado préprio. A leitura decor- reria entéo de uma intengdo arbitréria: 0 posicionamento do leitor. No haveria pois uma relagdo necessaria entre os textos, sua existéncia se vin- cularia unicamente ao olhar interessado que o decodificaria, Na sua inre- dutibilidade as culturas seriam incompattveis, indiferentes umas as outras. Afirmar o sentido hist6rico da diversidade cultural é submergi-la na mate- rialidade dos interesses e dos conflitos sociais (capitalismo, socialismo, colonialismo, globalizagdo). A diversidade se manifesta portanto em situa- Bes coneretas. Pode-se é claro fazer uma leitura textual das culturas primi: tivas (este é em parte 0 objetivo da Antropologia) considerando-as porém dentro de um horizonte mais amplo. Uma coisa € lermos as sociedades primitivas como um texto (0 que significa que “Os Argonautas do Pacifico” de Malinowsky é uma entre as varias interpretagoes possfveis de um mesmo dado empirico) outra no entanto, é entender 0 destino dos habitantes das ithas de Trobriand. Neste caso impossivel aprender as mudangas que os atingem sem imergi-las no fluxo do tempo, sem as considerarmos no quadro de uma “situagéo colonial”!6. O texto “povos trobriandeses”, com sua mitologia, seu potlach, suas crengas, ser4 redefinido, transformado pela pre- senga do comércio, do cristianismo, das autoridades coloniais. Da mesma forma eu diria que hoje 0 contexto mudou. A globalizagdo é 0 elemento situacional prevalecente. Ela reordena nosso quadro de entendimento. O re- lativismo € uma visio que pressupde a abstraco das culturas de suas condigdes reais de existéncia, tem-se assim a ilusdo de que cada uma delas seria inteiramente autocentrada, ou melhor, um texto. Na verdade, este estatuto, postulado pelo raciocinio metodolégico, é negado pela histéria. No mundo dos homens as sociedades so relacionais mas no relativas. Suas fronteiras se entrelagam e muitas vezes ameagam 0 territ6rio vizinho. A di cussio sobre a diversidade nao se restringe portanto a um argumento légi- co-filos6fico, ela necessita ser contextualizada pois o sentido hist6rico das “diferengas” redefine 0 seu préprio sentido simbélico. Dizer que a “diferenca” € produzida socialmente nos permite distinguf-la da idéia de pluralismo. A meu ver traduzir o panorama histéri- co-sociolégico em termos politicos € enganoso, pois estarfamos pres- supondo que cada'uma dessas multiplas unidades possuiria a mesma vali- '6 Lemibro que 0 conceito de “situagao colonial” foi introduzido por Georges Balandier jus- tamente com 0 intuito de escapar a0 relativismo do culturalismo norte-americano. Ver Sociologie Actuelle de l'Afrique Noire. Paris, PUF, 1971 84 LUA NOVA N° 47 ~ 99 dade social. Dentro desta perspectiva a questo do poder se esvai. Nao ha hierarquia ou dominagao. A rigor estarfamos aceitando impl{citamente a tese de que o contexto histérico, ou nao interferiria junto as diversidades, ‘ou que em tiltima instncia ele préprio seria pluralista, democratico, 0 que € um contra-senso (ou melhor s6 tem sentido quando pensamos 0 mundo ideologicamente). Desenvolveu-se recentemente toda uma literatura que gira em torno da passagem do “homogéneo” para o “heterogéneo”. Vamos encontré-la entre os economistas, socidlogos, administradores de empresas e divulgadores cientificos (penso nos escritos de Alvin Tofler)!?. A historia € apreendida em termos dicot6micos como se estivéssemos no umbral de uma nova era, de uma “terceira onda”. Para este tipo de perspectiva 0 pas- sado teria sido uniforme, univoco, privilegiado os “grandes relatos”, em contrapartida o presente se caracterizaria pela disseminacdo das diferengas, pelos “pequenos relatos”, pela multiplicidade das identidades. Aplicada ao mercado esta visdo otimista assimila 0 homogéneo ao fordismo, & pro- dugiio em série e de massa, e 0 heterogéneo, 0 diverso, ao capitalismo flexivel deste final de século. O mundo atual seria miltiplo e plural. Diferenciagao e pluralismo tornam-se assim termos intercambiéveis, e 0 que é mais grave, ambos se fundem no conceito de democracia. HG nesta operacaio mental algo de ideol6gico. Trata-se primeiro de uma inverdade histérica. Nao resta dtivida de que as sociedades moder- nas so mais diferenciadas do que as formagGes sociais anteriores, cidade- estado, civilizagées, tribos indigenas. O processo de diferenciago, vincu- lado & divisio do trabalho, € intrinseco A modernidade. Esquece-se porém, do ponto de vista civilizatério, que a diversidade existente antes do século XV era certamente mais ampla da que hoje conhecemos. Intimeras cul- turas, Iinguas, economias-mundo, economias regionais, costumes, desa- pareceram no movimento de expansdo do colonialismo, do imperialismo, ¢ da sociedade industrial. Tenho As vezes a impresso que o discurso sobre as diferengas lida com dificuldade com esses fatos. Diante da inexorabili- dade da modernidade-mundo tem-se a necessidade de se imaginar o passa- do como se ele representasse 0 dom{nio da indiferenciagio e da uniformi- dade. Talvez. pudéssemos dizer do mundo contemporaneo 0 que Maxime Rodinson pondera para as sociedades islamicas de alguns séculos atrds'8. ‘As especificidades religiosas, no caso a convivéncia num mesmo territério 17 Alvin Tofler, The Third Wave. New York, Bantam Books, 1980. 18 Maxime Rodinson, “La notion de minorité et I'Islam” in L'Islam: politique et crayance. Paris, Fayard, 1993. DIVERSIDADE CULTURAL E COSMOPOLITISMO_ 85 do islamismo com o judafsmo e o cristianismo, longe de participarem de um quadro de toleraneia (como pretendem alguns historiadores), eram parte de um “pluralismo hierarquizado”. Ou seja, a diversidade era orde- nada segundo as relagdes de forga ditadas pelo cédigo islamico. As idios- sincrasias do mercado ou das identidades nao existem enquanto “textos” autOnomos, elas participam de um “pluralismo hierarquizado” administra- do pelas instncias dominantes no contexto da modernidade-mundo. Como corolério do argumento anterior pode-se dizer que as “diferencas” também escondem relagdes de poder. Por exemplo o racismo: ele afirma a especificidade das racas para em seguida ordené-las segundo uma escala de autoridade e poder. Por isso é importante compreender os momentos em que o discurso sobre a diversidade oculta questées como a da desigualdade. Sobretudo quando nos movemos num universo no qual a assimetria entre paises, classes sociais e etnias é insofismavel. A imagem de que o mundo seria “multicultural”, constitufde por um conjunto de “vozes” (muito empregada pelos organismos internacionais tipo UNESCO), é insatisfatria. O lema da “unidade na diversidade” (hoje comum entre aqueles que falam da Comunidade Européia) pode ser um lenitivo quando enfrentamos problemas para os quais no temos ainda respostas mas sua validade sociolégica é altamente duvidosa. Durante todo o século XX esta foi a palavra de ordem das elites latino-americanas. O mestigo, 0 sincrético (voltamos hoje, com 0 p6s-modernismo, a uma apolo- gia da mestigagem), torna-se o simbolo da superacdo dos antagonismos sociais. Por isso um autor como Gilberto Freyre pode aprender a hist6ria brasileira em termos de “democracia racial”, O pafs seria 0 produto do cruzamento harménico, da aculturag4o de europeus, negros e indios!®. A diversidade étnica se exprimiria em unissono na unidade nacional. O inconveniente é que essas “teorias”, ndo necessariamente brasileiras (encon- tram-se espalhadas por toda América Latina), omitem justamente o contex- to no qual se desenrola a interaco cultural. Fundadas numa perspectiva cul- turalista elas retiram a “diferenga” da hist6ria, reificando os individuos numa visio idflica da sociedade (ou seja, conveniente as elites do- minantes)®. A desigualdade pode ser ento absorvida enquanto diferenca, ela se anula diante da contribuigdo especffica de cada uma das partes. 19 Gilberto Freyre, Interpretagdo do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1941 20 interessante notar que a Antropologia culturalista norte-americana teve um papel impor- tante no processo de construgao das imagens nacionais. Isso ndo se passou apenas na América 86 LUA NOVA N47 ~ 99 Dentro da perspectiva que estou desenvolvendo o mundo difi- cilmente poderia ser visto, na metéfora freqiientemente utilizada por varios autores, como um caleidoscépio. Instrumento no qual os ftagmentos co- loridos se combinam de maneira arbitréria em funco do deslocamento do olho do observador. As interagGes entre as diversidades niio sao arbitrérias. Elas se organizam de acordo com as relagdes de forgas manifestas nas situagées hist6ricas. Existem ordem e hierarquia. Se as diferengas sao pro- duzidas socialmente isso significa que revelia de seus sentidos simbéli- cos elas serdo marcadas pelos interesses e pelos conflitos definidos fora do Ambito de seu citculo interno. Dito de outra forma, a diversidade cultural é diferente ¢ desigual porque as instncias e as instituigdes que as constréem possuem distintas posig6es de poder e de legitimidade (pafses fortes x paf- ses fracos; transnacionais x governos nacionais; civilizagao “ocidental” x mundo islamico; Estado nacional x grupos indfgenas). 7. No contexto da modemidade-mundo uma instituigao social adquiriu um peso desproporcional. Refiro-me ao mercado. Trata-se de uma instncia nfo apenas econdmica, como imaginam as vezes os economistas. Ele € também produtor de sentido. Longe de ser homogéneo, como pen- savam os tedricos da comunicagao de massa, 0 mercado cria diferengas e desigualdades?!, Basta olhar 0 universo do consumo e dos estilos de vida. Os individuos, através dos objetos consumidos, exprimem e reafirmam suas posiges de prestigio ou de subalternidade. O consumo requer disponil dade financeira e capacidade de discernimento (ha uma educagio para o consumo). As marcas dos produtos nao sio meros rétulos ela agregam aos bens culturais um sobrevalor simbélico consubstanciado na griffe que o sin- gulariza em relacdo & outras mercadorias. Em termos da sociologia de Pierre Bourdieu eu diria que o mercado é fonte de distingao social, reforgando a separacio entre grupos ¢ classes sociais?2. Redimensiona-se assim 0 que se entende por valor cultural — sobretudo quando estamos tratando das indis- Latina, onde os estudos de Herskovitz, Robert Redfield, Margaret Mead e Ruth Benedict tiveram grande influéncia. O mesmo ocorreu no Japio. O culturalismo colocava a disposi¢io ‘um conjunto de conceitos apropriados para a elaboragao da “diferenga nacional”. A esse respeito consultar Harumi Befu, “A Critique of the Group Model of Japanese Society”, Social Analysis, vol. 5, n° 6, 1980. 21 Para uma discussio sobre 0 conceito de massa ¢ sua inadequago para o entendimento da problemitica da mundializagao da cultura ver Renato Ortiz “Cultura, comunicagao e massa” in Um Outro Territério, op. cit. 22 Pierre Bourdieu, La Distinction. Paris, Ed. Minuit, 1979. DIVERSIDADE CULTURAL E COSMOPOLITISMO. 87 trias culturais. Como o mercado tem uma amplitude globalizada ele deslo- ca as outras instdncias de legitimidade que conhecfamos, por exemplo, a grande arte ou as tradigdes populares. Estabelece-se portanto uma hierar- quizagao entre as diversas producdes culturais, assegurando aquelas que se ajustam A sua ldgica um lugar de destaque. Por isso, qualquer discussao sobre a diversidade que deixe de lado este aspecto mercadolégico acaba por ser inécua. Nao que a cultura tenha se tornado uma mercadoria (ndo creio que este conceito se aplique, a ndo ser como metéfora, aos universos sim- bolicos). Entretanto, no conjunto das relagdes das forgas mundializadas, devidos aos interesses em jogo, o mercado cultural adquiriu uma dimensio da qual nao desfrutava até entdo. Para aqueles que discutem integragio, sobretudo no marco de uma politica de formagio de blocos — Nafta, Mercosul, Comunidade Européia — é crucial que 0 debate ultrapasse os interesses econdmicos imediatos. Sem 0 que 0 quadro da reflexao estaria atrofiado, circunscrito aos temas legitimados pelo status quo. 8. Num mundo globalizado a diversidade cultural deve ser pen- sada de um ponto de vista cosmopolita. Somente uma visdo universalista pode valorizar realmente 0 que denominamos “diferenca”. Isso exige, queiramos ou nao, relativizar a maneira como estavamos habituados a pen- sar a cultura nacional. Os ideais do Huminismo europeu preconizavam que universal se realizaria através da nagao. Liberdade, igualdade e demo- cracia foram principios que nortearam a emergéncia das nacdes (digo isso mesmo sabendo que eles nunca se realizaram por inteiro). A propria luta anticolonialista se fundamentava nessas premissas. Para existirem enquan- to povos livres foi necessério aos pa(ses colonizados romper com as metrépoles ¢ constitufrem-se em nagdes independents. No entanto, a relagdo entre nagdo e universal se rompeu. A modernidade-mundo recolo- ca problema em outras bases. Diante do surgimento de uma sociedade globalizada a nagdo perde a primazia em ordenar as relagdes sociais. Seu territério & atravessado por forgas que a transcendem. As formacées nacionais constituem-se agora em diversidades (e no em ponto terminal da hist6ria como queriam os pensadores do século XIX), 0 que significa dizer que as culturas nacionais adquitirem um peso relativo. Passam a ser vistas no ambito das outras diversidades existentes. Sei que a histéria do universalismo encerra imimeros percalcos. Da razao instrumental, como dizia Adorno, ao etnocentrismo arrogante. Nao tenho por esse presente/passado da “razao ocidental” nenhuma predilecao ou nostalgia (associar a idéia de razdo & de ocidentalidade é um tour de force 88 LUA NOVA N°47— 99 eurocéntrico; alimenta-se, como se faz nos departamentos de Filosofia, 0 mito da razio grega como ponto de origem de todo pensamento racional, deixando-se de lado a riqueza das outras culturas: chinesa, érabe, indiana”). universal ndo existe em abstrato, espécie de a-priori kantiano cuja pre- senga seria imanente & mente humana. Foi necessdrio que as sociedades pas- sassem por profundas transformagées para que a universalidade do pensa- mento pudesse se exprimir. Uma delas foi o advento da escrita. Como sub- linha Jack Goody ela possibilitou &s culturas um grau de abstragio e de transcendéncia que Ihes permitiu escapar as imposigdes locais (dos deuses, poderes crencas)*, Por isso Weber considera como universais as religides que se fundamentam em textos escritos: budismo, confucionismo, islamis- mo, bramanismo, cristianismo. Como as “diferencas”, 0 que denominamos universal encontra-se sempre situado historicamente. Neste sentido, também o debate sobre o universalismo nao se reduz a uma postura teérica, a um jogo de argumentos em contraposigao a outros (por exemplo, ao relativismo). As instituigdes sociais, sejam as religides, os Estados, ou as transnacionais, carregam com elas elementos de universalidade (religiosa, politica ou mercadolégica). No entanto, mesmo admitindo que o universal seja um constructo hist6rico (muitos filésofos pensam de outra forma), nao posso deixar de compreender que esta é a tinica via possivel para que os ideais de liberdade e de democracia venham a se concretizar. Apenas uma perspectiva cosmopolita pode afir- mar, por exemplo, o direito dos povos indigenas de possuirem suas terras. Ao reconhecé-los como diferentes ¢ ndo iguais (0 que € distinto de desiguais) eu Ihe atribuo, por causa dos ideais anteriores, uma prerrogativa de direito. Nao estou pois me referindo ao universal colonizador de nossos antepassados. Apenas uma perspectiva cosmopolita permite-me criticar a pretensio do mercado em se constituir como tinica universalidade poss{vel. De nada adianta considerarmos a categoria “totalidade” como um andtema (um sinal de totalitarismo). Historicamente as “diferengas” sé podem exis- tir quando recortadas por forcas integradoras que as englobam e as ultra- passam, O mercado, independente de o considerarmos como perverstio ou realizagao do “projeto da modernidade”, por sua dimensdo planetéria, transcende as fronteiras ¢ os povos. Daf sua vocagao para se constituir num 23 Ver Samin Amin L’Eurocentrisme. Paris, Anthropos, 1988. 24 Jack Goody, A Légica da Escrita e a Organizagao da Sociedade. Lisboa, Edigoes 70, 1986 Consultar também Walter J. Ong, Oralidad y Escrinura: tecnologias de ta palabra, Ciudad de México, Fondo de Cultura Econémica, 1987. DIVERSIDAI E CULTURAL E COSMOPOLITISMO 89 “grande relato”, isto é, um discurso no qual sua universalidade conve- niente apenas para os grandes grupos econémicas e financeiros. Por isso 0 debate sobre a diversidade cultural tem implicagées politicas. Se quisermos escapar & ret6rica do discurso ingénuo, que se contenta em afirmar a existéncia das diferengas, esquecendo-se que elas se articulam segundo interesses diversos, 6 preciso reivindicar que se dé a elas os meios efetivos para se expressarem e se realizarem enquanto tal. Ideal politico que no pode evidentemente se circunscrever ao horizonte deste ou daquele pais, deste ou daquele movimento étnico, desta ou daquela “diferenca”. Ele vis- Jumbra uma sociedade civil que ultrapassa o cfrculo do Estado-naco e que tem 0 mundo como cenério para o seu desdobramento. RENATO ORTIZ € professor no Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas — IFCH da UNICAMP 248 LUA NOVA N° 47 — 99 DIVERSIDADE CULTURAL E COSMOPOLITISMO RENATO ORTIZ Num mundo globalizado a diversidade cultural deve ser pensa- da de um ponto de vista cosmopolita. Somente uma visio universalista pode valorizar realmente o que denominamos “diferenga”. CULTURAL DIVERSITY AND COSMOPOLITISM In a globalized world cultural diversity should be conceived RESUMOS/ABSTRACTS 249 ‘from a cosmopolitan viewpoint. Only an universalist view is able to actu- ally value “difference” .

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