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Bey tt em _ MANUEL BANDEIRA . CRONICAS “PROV INCIA DO BRASIL — *, Pe CIVILIZACAO BRASILEIRA S/A-EDITORA-RIO ARQUITETURA BRASILEIRA A guerra de 1914 provocou em todo o mundo uma como revivescéncia do sentimento nacional, que an- dava adormecido por varias décadas de propaganda socialista ativa. As elites sonhavam com uma orga- nizagao politica e social mais justa numa humanidade sem fronteiras. Mal, porém, se declarou o conflito, © espirito feroz de pitria apoderou-se de todos, in- elusive de socialistas. Nas nagdes beligerantes 0 mo- vimento nacionalista assumiu naturalmente as formas do patriotismo mais agressivo. Em paises mais re- motamente interessados, como foi o caso do nosso, © sentimento nativista exprimiu-se nas artes por uma yolta aos.assuntos nacionais. A mésica culta entrou a recolher sistematica- mente a misiea popular desde o tempo da colonia. As artes plisticas tomaram um qué de primitivo, como que procurando imitar a ingenuidade de cor e dese- nho das promessas de Congonhas do Campo e Bom Jestis de Pirapora. Os modernistas da literatura, aps um breve perfodo de treino técnico em que refletiram 4 94 Manuel Bandeira a sensibilidade dos poetas europeus de vanguarda, pu- seram-se de repente a considerar “em que maneira a terra é graciosa”... E foi entéo uma verdadeira corrida para aproveitar tudo. Foi ésse movimento que a arquitetura procurou também acompanhar tentando criar a casa brasileira. O fim do segundo império assinalou a decadéncia do espirito tradicional na construgio. Nao havia mais nem a lembranga daqueles sargentos de engenheiros que riscavam com mio forte e sébria os projetos de igrejas e de casas de cAmara e govérno. Os Calheiros e os Alpoins foram, 4 falta de arquitetos, sucedidos pelo mestre-de-obras portugués, insigne introdutor do lambrequim, das compoteiras de platibanda e do mar- more fingido. Mas éste ainda fazia os casardes re- tangulares com, ao lado, a acolhedora varanda. O que yeio depois era ainda peor: tinha pretengdes a estilo. A Avenida Atlantica, colecdo de aleijées, ilustra essa época, a mais detestével da arquitetura em nosso pais. O mau gésto tomou tais proporgées, que as velhas casas pesadonas do tempo da colénia e da monarquia assumiram por contraste um ar distinto e ragado, um ar de nobreza para sempre extinta na reptblica. “Foi dessa contemplacio melancélica que nasceu, de uns quinze anos para c4, um movimento de elite em favor da casa brasileira. Era preciso, aconselha- va-se, construir a casa brasileira dentro da tradigio secular que a afeigoara segundo as necessidades do nosso clima, dos nossos costumes e das nossas ne- cessidades. Orénicas da Provincia do Brasii 95 - ‘ * O movimento pegou, — pegou demais. Fabrica- ram com detalhezinhos de ornato um estilo, deram- lhe um ‘nome errado, e ai esta, nas casinhas catitas de telhas curvas e azulejos enxeridos, em que deu o renascimento da velha, arquitetura brasileira comega- do a pregar em Sio Paulo pelo sr. Ricardo Severo. O meu amigo José Mariano anda agora com um trabalho danado para mostrar que nada disso é “casa brasileira”, que nio basta azulejo e telha curva para fazer arquitetura brasileira, que os profitewrs da moda (porque hoje é moda ter o seu “bangald colonial”) sacrificaram inteiramente o espirito arquiteténico da renovacdo a exterioridades bonitinhas. E é de fato o que esta acontecendo. Os grupos escolares, os edificios de Camaras municipais que se esto construindo dentro do estilo representam o que ha de mais contrario ao cardter da construciio em que soi-disant se inspiram. Fiquei horrorizado em Saba- ré quando vi a nova casa da Camara, que apesar de todos os matadores neo-coloniais nfio passa de um casebrezinho ridiculo, ao passo que ao lado o antigo sobrado da Camara guarda uma linha de robusta di- gnidade, ésse ar de casa que nio é enfeite urbano, mas na definigio de Le Corbusier — maquina de mo- rar. O caso da Camara de Sabaré é tfipico, porque poe um ao lado do outro o padrdo inspirador e o pastiche desvirtuado, num contraste verdadeiramente grotesco. E’ preciso repetir a essa gente as palayras de Licio Costa, um dos poucos arquitetos novos que sen- 96 Uanuel .Bandeira i ‘ : tem o passado arquiteténico da nossa terra: a nossa arquitetura é robusta, forte, maciga; a nossa arqui- tetura é de linhas calmas, tranqiiilas; tudo nela & estavel, severo, simples, — nada pernéstico. E’ a ésse cardter de simplicidade austera e ro- busta que devem visar os que pretendem retomar o fio da tradigio brasileira na arquitetura.

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