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“far” PROA | revista de antropelocta e arte O olhar sobre uns de outros: desnudando rastros e racas de Louis Agassiz MACHADO, Maria Helena P’T:¢ HUBER, Sasha (Orgs.). (Traces of Louis Agassiz: Photography, body and science, yesterday and today/ Rastros ¢ racas de Louis Agassiz: fotografia, corpo eciéncia, ontem e hoje. Sio Paulo: Capacete Entretenimentos, 2010, 189p. Natalia Corazza Padovani Doutoranda do Programa de Pés-graduagio em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas. Fundagio de Amparo Pesquisa de Sio Paulo ~ Fapesp. Rastres ¢ ragas de Louis Agassiz 6, acima de tudo, um estranho exercicio de meméria. Estranho porque o texto completo remonta a uma costura de fatos e reflexes que, tradicionalmente, nio seriam parte de uma mesma compilagio de artigos. Estranho, também, por ser um livro essencialmente mestigo, uma obra que se propoe ser outra. O exercicio de meméria proposto pelos autores Maria Helena Pereira Toledo Machado (brasileira), Flavio dos Santos Gomes (brasileiro), John M. Monteiro (norte-americano residente no Brasil), Hans Fissler, Sasha Huber (ambos suigos), Petri Saarikko (finlandés) e Suzana Milevska (maced6nia) é um esforco interdisciplinar que une preocupagies das Ciéncias Humanas, particularmente da Histéria e da Antropologia, das Artes Plisticas e do ativismo antirracista. A intersegio desses campos disciplinares tem, entretanto, uma fundamentagio histérica anterior A produgio do livro, Nio sio seus autores que assiz. (1807- 1873): compilacio de retratos feitos durante expedigdo que realizou ao Brasil, nos anos de 1865 os intersectam, mas o proprio arquivo da Colecéo Fotogrifica Brasileira de Louis 1866, sobre o qual se dedica a primeira parte dos textos de Rastres ¢ rasas de Louis Agassiz. Composta por quase duzentas imagens, esta colegio fotogrifica permaneceu guardada, e, em grande parte, intocada, no Museu Peabody de Arqueologia e Etnologia da Universidade de Harvard. Somente com a publicagio do livro, organizado pela historiadora Maria Helena Pereira Toledo Colhar sobre uns de outros: desnudando rastros e racas de Louis Agassiz | PROA - revista de antropologia arte Machado e pela artista plastica Sasha Huber, € que parte significativa desse material fotogrifico pode, enfim, ser publicado, ‘As autoras escolheram quarenta fotografias do acervo da colegio de imagens produzidas durante a expedigto de Agassiz.ao Rio de Janeiro A Manaus na segunda metade do século XIX. As fotos retratam homens ¢ mulheres; negros ¢ indios; corpos nus, seminus ou adornados com vestimentas; pessoas, sem identificagio nominal, fotografadas de frente, de costas ¢ de perfil Essas imagens davam seguimento aos estudos feitos pelo naturalista sobre os escravos africanos do estado da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. Nestes, Agassiz, preocupou-se em estudar “tragos” que, segundo ele, compunham as “ragas puras” dos escravos do Sul dos Estados Unidos da secessii Como explicita Maria Helena Machado no artigo de abertura do livro, Louis Agassiz. foi uum naturalista poligenista, adepto da teoria da degeneracao das racas, que argumentava em prol do abolicionismo. A teoria da degeneragao, da qual Agassiz. foi apenas um dos expoentes, apoiava-se na ideia de que a espécie humana decorre de miiltiplas origens (poligénese), 0 que implicava considerar a existéncia de ragas humanas biologicamente incompativeis. Deste modo, a miscigenagio apresentava-se como principal forma de degeneragio da humanidade, pois uma raga contagiava a outra. As relagdes escravistas, nesse registro, favoreciam uma proximidade das ragas que, para Agassiz, era melhor evitar, O naturalista suigo nao se inquietava com a escravidio, mas, tacitamente, com a manutensio de relagdes erdticas, ou melhor, sexuais, entre brancos e negros. Ao retomar as teses da teoria da degeneragio, Machado cnuncia ¢ centraliza (scm necessariamente citar) 0 coito, 0 sanguc ¢ © esperma nas anilises de Louis Agassiz. sobre tragos e racas humanas. E 0 que faz, também, John Monteiro em As mos manchadas do sr. Hunnewell, terceiro artigo desta compilasio, em que o historiador desnuda o carder sexual da atividade pseudocientifica do naturalista e de seu fotégrafo aprendiz, Walter Hunnewell, ao entrar na cozinha do prédio de Manaus denominado Bureau d’Anthrepologie pelo entio estadista brasileiro Tavares de Bastos. Monteiro expoe a intimidade do espaco usado para fotografar supostas indias puras, questionando modo como aquelas mulheres, a principio fotografadas com vestidos de estilo vitoriano, adornadas com joias e aliangas (objetos densos de significagdes religiosas, politicas e econdmicas que passa Jonge da imagética pureza indigena), eram convencidas a serem, também, fotografadas nuas ou semidespidas Em sua reflexto, 0 autor abre precedente para pensar as relagdes de poder produzidas por meio das ragas, mas, principalmente, pelo género que a elas € agregado, A desericio do ambiente jocoso onde mulheres indias, ou melhor, brasilciras, cram fotografadas no remete a0 ambiente asséptico laboratorial que as cigncias modernas do século XIX pretendiam encenar, Antes, remetem a uma cena marcada pelo suor decorrente do calor amazénico ¢ do esforso empreendido pelo homem branco europeu e cientista em explorar esse ambiente: desnudando mulheres mestigas ou corpos repositérios do imagético racial ¢ sexual de Agassiz. Natalia Corazza Padovani | resenha | vol. 01 n°03 O que John Monteiro captura na cena por ele descrita ultrapassa a relagio do cientista com © pretenso objeto de estudo, A cena desvela ragas marcadas por eroticidades, géneros ¢ sexos em oposigao: a masculinidade branca e viril euro-americana em contraposiglio ao feminino miscigenado e submisso de Manaus. Mais do que modelos de hierarquia, 0 autor desse capitulo procura inverter o jogo fotogrifico de Agassiz retratando a produgio de relagées de poder em nome das Ciéncias Antropolégicas. Como em toda a primeira parte do livro Rastros ¢ raras de Agassiz, neste capitulo fica claro que a intengdo dos ensaistas nfio ¢ fazer uma antropologia e uma hist6ria a partir da colegio fotogrifica do naturalista, ¢ sim uma antropologia e uma histéria da colesiio fotogrifica de Louis Agassiz. E 0 que faz Flavio dos Santos Gomes no segundo capitulo do livro. Em seu texto, 0 historiador questiona: “Mas que africanos procurava Louis Agassiz2”. A pergunta posiciona 0 olhar do cientista (ou do explorador?) em relagao as referéncias tedricas ¢ sécio-histéricas que direcionavam as maquinas fotogrificas, os retratos e as impresses de viajantes como Rugendas, Debret ¢, claro, Agassiz. Essa pergunta também recoloca o foco no estranho, ou melhor, no estrangeiro, Este, no texto de Flivio dos Santos Gomes, aparece no olhar que os afticanos, residentes no espaco urbano carioca do Brasil colonial, lancam a Madame Agassiz. Exposa de Louis Agassiz, Elizabeth Agassiz acompanhou as expedigoes fazendo anotagoes de campo. Em parte delas, transcritas no texto de Flivio dos Santos, ela evidencia a dificuldade para conversar com os africanos “Minas” ou da “Costa da Mina", que, segundo seus registros, nfo eram “tio affiveis e comunicativos como os negros Congos”. A partir das impresses da esposa de Agassiz, Flivio dos Santos Gomes ilustra 0 entusiasmo do casal com aqueles negros aos quais os Agassiz descreveram como uma raga de homens “grandes, bem-feitos” com tragos ¢ fisionomias “pouco africanas” ¢ de mulheres “de formas muito belas ¢ porte quase nobre” (grifos meus). Louis e Elizabeth, assim, categorizaram entomologicamente os afficanos “Minas” e os afticanos por eles encontrados nas fazendas da Carolina do Sul, colocando-os em uma escala referenciada por duas polaridades opostas: o negro selvagem, natural, ¢ 0 branco civilizado, racional. Os africanos “Minas” eram postos, portanto, como menos negros, mais urbanos, menos selvagens pelas atribuigdes “pouco africanas” e “quase nobres”. Flavio dos Santos Gomes, no capitulo intitulado “Agassiz e as ‘ragas puras’afficanas na cidade atlintica”, nto pretende, contudo, chamar a atengio para os eritérios classificat6rios das ragas utilizados por Agassiz. Ao contririo, procura enfatizar a criteriosa falta de método do naturalista e de sua esposa naquela empreitada cientifica, questionando: “Como teriam sido as tardes e manhis de observagio dele no mercado carioca?”, Por meio dessa anilise metodolégica, o texto de Gomes elucida, ainda, o lugar dos viajantes € naturalistas europeus e brancos na cena cotidiana do centro urbano do Rio de Janeiro em meados do século XIX, na qual cram eles os outros, os estranhos sobre os quais os nativos formulavam percepgdes. Gomes altera o lugar da subjetividade e da observagio ¢ as localiza Colhar sobre uns de outros: desnudando rastros e racas de Louis Agassiz | PROA - revista de antropologia arte no olhar daqueles que eram observados. O historiador, portanto, faz de Agassiz e sua equipe 0 objeto de anilise dos sujeitos por eles fotografados, classificados e nomeados como africanos. ‘A segunda parte do livro, aberta pelo texto da artista phistica Sasha Huber e de Petri Saarikko, segue a mesma Idgica dos artigos anteriores. Ao perguntar “Louis, quem?”, Huber e Saarikko invertem a posigio de veyeurismo do pesquisador em relagio aos corpos por ele pesquisados (ou vasculhados ¢ apalpados?). E colocam sob o jugo da pesquisa histérica e da intervengiio artistica © proprio Agassiz. Observam-no, estudam-no, o vasculham e, principalmente, tornam publica a vida do sujeito Louis Agassiz. Explicam, afinal, quem foi ¢ o que fez 0 naturalista que dé nome a0 alpe suigo Agassizhorn, a praca Agassiz, as Furnas de Agassiz e i pedra Agassiz na cidade do Rio de Janciro. Hans Fissles, em “O que diz. um nome?”, por sua vez, discute a dimensio politica dos nomes ¢ explica a campanha, langada por ele, Demounting Agassiz, que demanda a troca do nome do monte Agassizhorn para Rentyhorn. O debate inaugurado por Fissler deu suporte as intervengdes artisticas de Sasha Huber e Petri Saarikko, que procuram desconstruir o renome de Louis Agassiz indo aos espagos publicos para revelar aquilo que foi obscurecido pela histéria, Esse ato manifesto, assim como a Colegio Fotogrifica de Louis Agassiz, foi registrado em retratos fotogrificos; Huber, inclusive, fez. 0 proprio triptico somatolégico nas Furnas de Agassiz. © ponto alto da intervengto de Sasha Huber, entretanto, néo se faz em solo brasileiro (colonial), mas no branco territério suigo. De modo bastante emblemitico, ela finca uma placa renomeando como Rentyhorn o monte branco suigo Agassizhorn, evidenciando a necessidade de por no mapa os outros, os nomes daqueles que foram fotografidos, investigados, observados, desnudados, explorados, violentados e torturados por homens que hoje dao nome as ruas e 20s lugares piblicos. Renty foi um escravo afticano das fazendas da Carolina do Sul fotografado nu, de frente, de lado € de costas, por Louis Agassiz. O ato de colocar seu nome no alpe branco sugo tem © significado de localizé-lo no mapa mundial geopolitico, de lembrar que a histéria nao foi produzida unilateralmente, e sim A custa de pessoas obscurecidas ¢ quase nunca identificadas. O texto e a campanha de Hans Fissler pretendem questionar a aparente fixidez dos nomes, desalojé-los e fazer a histéria dos titulos para, assim, propor uma nova histéria que assuma o olhar daqueles pensados como estranhos, como os outros. Uma histéria e uma geografia que passe a localiza-los nos centros das cidades, dando seus nomes a ruas, montanhas, parques, pracas e todo tipo de espago piiblico. Desestruturar 0 um e 0 outro, desalojar o centro e a periferia, implica tornar piiblica a intimidade da obra historia, antropolégica ¢ politica. Implica, ainda, levar a sério a anilise dos métodos (ou da falta deles) da produgio cientifica de uma época que transborda a atualidade, que institui verdades e posigdes de poder ¢ sujeigio. E 0 que pede Rastros ¢ ragas de Louis Agassiz: Natalia Corazza Padovani | resenha | vol. 01 n°03 fotografia, corpo, ¢ ciéncia, ontem ¢ hoje: colocar a produsio académica e cientifica no lugar do estranho, inverter as posigdes e fazer ciéncia da ciéncia produzida — ciéneia que fundamenta programas politicos, econdmicos, educacionais e sociais e que, portanto, nao deve ser deixada no passado, mas trazida para o presente, vasculhada ¢ desnudada. Nas palavras de Suzana Milevska, autora do tltimo artigo da compilagio: esse livro “é, na verdade, um comentirio sobre como poderfamos facilmente imaginar um passado ou um futuro em que nés proprios seriamos os esquadrinhados outros”, Milevska, mais uma vez, propse alterar o lugar da subjetividade, pensé-la nos olhares registrados pela colegio fotogritica de Louis Agassiz. Por tudo isso, Rastras ¢ ragas de Agassiz. apresenta-se, orgulhosamente, como um estranho exercicio de meméria, pois, assim como demanda inverter a hierarquia politica, deseja ser 0 ‘outro que olha para o olhar do um. Recebidto para publicagio em agosto de 2011 Aprovade para publicagao em janciro de 2012 + "Mina era uma identidade heterinoma atsibuida aos eseravos oriundos da costa atlantica do continente africano. Sobre a produgao de identidades afticanas, ver: BEZERRA, Nielson Rosa (2010), Mesaicos da exravidia:identidades africanas ¢ conexdesatlantcas do Reconcavo da Guanabara (1780-1840), Nitersi, Universidade Federal Fluminense, ‘Tese de doutorado; SOARES, Mariza de Carvalho (2007), Rotasatlinticas da diaspora africana: entre a Bata do Benin ¢ 0 Rio de Janciro, Niversi, EAUFF: PARIAS, Juliana Barreto; SOARES, Carlos E.; GOMES, Flivio dos Santos (2005), No abirinto das mazes: africanoseidentidades no Rio de Jancira, se. XIX. Rio de Janeio: AN.

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