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Capítulo 4

Funções Implícitas

1 Uma função implícita

Os pontos de Rn+1 serão escritos sob a forma (x, y), onde x = (x1 , . . . , xn ) ∈ Rn
e y ∈ R. O teorema abaixo dá significado preciso à afirmação de que “a equação
f (x, y) = c define implicitamente y como função de x” e estabelece uma condição
suficiente para que ela seja verdadeira.

Teorema 1 (Teorema da Função Implícita). Dada a função f : U → R, de


classe C k (k ≥ 1) no aberto U ⊂ Rn+1 , seja (x0 , y0 ) ∈ U tal que f (x0 , y0 ) = c
∂f
e (x0 , y0 ) = 0. Existem uma bola B = B(x0 ; δ) e um intervalo J = (y0 −
∂y
ε, y0 + ε) com as seguintes propriedades:

∂f
1) B × J¯ ⊂ U e (x, y) = 0 para todo (x, y) ∈ B × J¯;
∂y
2) Para todo x ∈ B existe um único y = ξ(x) ∈ J tal que f (x, y) =
f (x, ξ(x)) = c.

A função ξ : B → J , assim definida, é de classe C k e suas derivadas parciais


em cada ponto x ∈ B são dadas por

∂ξ − ∂x
∂f
(x, ξ(x))
(x) = ∂f i .
∂xi ∂y
(x, ξ(x))

∂f
Demonstração. Para fixar as idéias, admitiremos que (x0 , y0 ) > 0. Pela con-
∂y
tinuidade de ∂f/∂y, existem δ > 0 e ε > 0 tais que, pondo B = B(x0 , δ) ⊂ Rn
∂f
e J = (y0 − ε, y0 + ε) ⊂ R, temos B × J¯ ⊂ U e (x, y) > 0 para todo
∂y

69
70 CAPÍTULO 4: FUNÇÕES IMPLÍCITAS

(x, y) ∈ B × J¯. Então, para todo x ∈ B, a função y  → f (x, y) é crescente no


intervalo [y0 −ε, y0 +ε] = J¯. Como f (x0 , y0 ) = c, segue-se que f (x0 , y0 −ε) < c
e f (x0 , y0 + ε) > c. Sendo f contínua, podemos supor δ tão pequeno que
f (x, y0 − ε) < c e f (x, y0 + ε) > c para todo x ∈ B. Pelo Teorema do Valor
Intermediário, para cada x ∈ B, existe um único y = ξ(x) ∈ J¯ tal que f (x, y) = c.
Tem-se necessariamente y ∈ J . Mostremos que a função ξ : B → J possui
derivadas parciais em todo ponto x ∈ B.

Figura 1.

Com efeito, pondo k = k(t) = ξ(x + tei ) − ξ(x), vem ξ(x + tei ) = ξ(x) + k,
logo f (x + tei , ξ(x) + k) = f (x, ξ(x)) = c.
Pelo Teorema do Valor Médio, para todo t existe θ = θ (t) ∈ (0, 1) tal que

0 = f (x + tei , ξ(x) + k) − f (x, ξ(x))


∂f ∂f
= (x + θ tei , ξ(x) + θ k) · t + (x + θ tei , ξ(x) + θ k) · k .
∂xi ∂y
Logo

ξ(x + tei ) − ξ(x) k


∂f
∂xi
(x + θ tei , ξ(x) + θ k)
= = − ∂f .
t t ∂y
(x + θ tei , ξ(x) + θ k)

Neste ponto, admitamos a continuidade de ξ , que será provada abaixo. Então


lim k(t) = 0. A continuidade das derivadas parciais de f nos dá então
t→0

∂f
∂ξ ξ(x + tei ) − ξ(x) ∂xi
(x, ξ(x))
(x) = lim = − ∂f , (1 ≤ i ≤ n) .
∂xi t→0 t ∂y
(x, ξ(x))
SECTION 1: UMA FUNÇÃO IMPLÍCITA 71

A expressão de ∂ξ/∂xi mostra que se f ∈ C k então ∂ξ/∂xi ∈ C k−1 para


i = 1, . . . , n, portanto ξ ∈ C k .

Demonstração da continuidade de ξ

Pelo Teorema 19 do Capítulo 1 (v. observação que o segue), basta mostrar que,
para todo conjunto fechado F ⊂ J¯, a imagem inversa ξ −1 (F ) é fechada em B.
Ou seja: se a seqüência de pontos xk ∈ B é tal que ξ(xk ) ∈ F para todo k ∈ N e
lim xk = x̄ ∈ B então, ξ(x̄) ∈ F . Ora, F é compacto, logo uma subseqüência de
pontos xk ∈ B é tal que lim ξ(xk ) = a ∈ F . Logo f (x̄, a) = lim f (xk , ξ(xk )) = c.
Mas f (x̄, ξ(x̄)) = c. Pela unicidade de ξ(x), segue-se que ξ(x̄) = a ∈ F . 
Considerando o aberto V = B × J ⊂ Rn+1 , o teorema acima diz que, nas
condições das hipóteses, tem-se

f −1 (c) ∩ V = {(x, ξ(x)) ∈ Rn+1 ; x ∈ B} .

Noutras palavras, f −1 (c) ∩ V é o gráfico da função ξ : B → R.


Observação. Evidentemente, não há nada de especial quanto à última coordenada,
exceto simplificar a escrita na demonstração. Se, para algum inteiro i ∈ [1, n + 1],
∂f
tivermos (z0 ) = 0 onde z0 ∈ U e f (z0 ) = c, existirá um aberto V  z0 , tal
∂xi
que, para z ∈ V , a equação f (z) = c definirá xi = ξ(x1 , . . . , xi−1 , xi+1 , . . . , xn+1 )
como função das outras n coordenadas e f −1 (c) ∩ V será o gráfico dessa função
ξ , de classe C k . De um modo geral, se grad f (z0 )  = 0 e f (z0 ) = c então existe
V  z0 aberto tal que f −1 (c) ∩ V é o gráfico de uma função real de n variáveis,
de classe C k .
Exemplo 1. Seja f : R2 → R definida por f (x, y) = x 2 + y 2 . Para todo (x, y) ∈
∂f ∂f
R2 , temos (x, y) = 2x e (x, y) = 2y. A equação x 2 + y 2 = c define o
∂x ∂y
conjunto vazio quando c < 0. (O Teorema 1 não se aplica, pois não existe o ponto
(x0 , y0 ) tal que f (x0 , y0 ) = c.) Quando c = 0, a equação x 2 + y 2 = 0 é satisfeita
∂f ∂f
apenas quando x = y = 0. (Agora existe (x0 , y0 ) mas (0, 0) = (0, 0) = 0.)
∂x ∂y
Quando c > 0, a equação x 2 + y 2 = c define a circunferência de centro na

origem e raio c, a qual não é gráfico de função alguma do tipo y = ξ(x) nem
x = ζ (y), pois há retas verticais e horizontais que a cortam em dois pontos. Mas,
se considerarmos os abertos

V 1 = {(x, y) ∈ R2 ; y > 0}, V 2 = {(x, y) ∈ R2 ; y < 0},


V 3 = {(x, y) ∈ R2 ; x > 0}, V 4 = {(x, y) ∈ R2 ; x < 0},
72 CAPÍTULO 4: FUNÇÕES IMPLÍCITAS

veremos que f −1 (c)∩V √ 1


e f −1 (c)∩V2 são gráficos
√ das funções ξ1 , ξ2 : (−1, 1) →
R, dadas por ξ1 (x) = 1 − x 2 , ξ2 (x) = − 1 − x 2 , enquanto f −1 (c)∩ V3 e
f −1 (c) ∩ V4 
são os gráficos de ξ3 , ξ4 : (−1, 1) → R, dadas por ξ3 (y) = 1 − y 2
e ξ4 (y) = − 1 − y 2 . Assim, em V1 e V2 a equação x 2 +y 2 = c (com c > 0) define
implicitamente y como função de x enquanto em V3 e V4 define x como função de
√ √
y. Evidentemente, salvo na vizinhança dos 4 pontos (± c, 0), (0, ± c), tem-se
a opção de tomar y como função de x ou x como função de y. 

2 Hiperfícies

Um conjunto M ⊂ Rn+1 chama-se uma hiperfície de classe C k quando é localmente


o gráfico de uma função real de n variáveis de classe C k . Mais precisamente, para
cada p ∈ M deve existir um aberto V ⊂ Rn+1 e uma função ξ : U → R, de classe
C k num aberto U ⊂ Rn , tais que p ∈ V e V ∩ M = gráfico de ξ .
A afirmação “V ∩ M = gráfico de ξ ” significa que, para um certo inteiro
i ∈ [1, n], tem-se

V ∩ M = {(x1 , . . . , xn+1 ) ∈ Rn+1 ; xi = ξ(x1 , . . . , xi−1 , xi+1 , . . . , xn+1 )} .

Evidentemente, dada qualquer função f : U → R de classe C k no aberto


U ⊂ Rn , seu gráfico é uma hiperfície M = {(x, f (x)) ∈ Rn+1 ; x ∈ U } de classe
Ck.
Quando n = 1, uma hiperfície em R2 chama-se uma curva e, quando n = 2,
tem-se uma superfície em R 3 .

Exemplo 2. A esfera S n = {x ∈ Rn+1 ;  x, x  = 1} é uma hiperfície C ∞ em Rn+1 .


Com efeito, chamando de U a bola aberta de centro 0 e raio 1 em Rn , pondo, para
cada i = 1, . . . , n + 1, Vi = {x ∈ Rn+1 ; xi > 0}, Wi = {x ∈ Rn+1 ; xi < 0} e
escrevendo x ∗ = (x1 , . . . , xi−1 , xi+1 , . . . , xn+1 ), temos:

x ∈ S n ∩ Vi ⇐⇒ |x ∗ | < 1 e xi = 1 −  x ∗ , x ∗  ;

x ∈ S n ∩ Wi ⇐⇒ |x ∗ | < 1 e xi = − 1 −  x ∗ , x ∗  .

Logo, considerando
√ a função ξ : U → R, de classe C ∞ , definida por
ξ(u) = 1 −  u, u , vemos que, para cada i = 1, . . . , n + 1, S n ∩ Vi é o gráfico
da função xi = ξ(x ∗ ) enquanto que S n ∩ Wi é o gráfico de xi = −ξ(x ∗ ). Como
todo ponto p ∈ S n pertence a algum Vi ou a algum Wi , concluímos que S n é uma
hiperfície de classe C ∞ em Rn+1 .
Seja M ⊂ Rn+1 uma hiperfície de classe C k (k ≥ 1). A cada ponto p ∈ M
associaremos o conjunto Tp M, formado por todos os vetores-velocidade v = λ (0)
dos caminhos λ : (−δ, δ) → M que são diferenciáveis no ponto 0 e cumprem a
SECTION 2: HIPERFÍCIES 73

condição λ(0) = p. O conjunto Tp M é chamado o espaço vetorial tangente de M


no ponto p. Esta denominação se justifica pelo 
Teorema 2. Tp M é um subespaço vetorial de dimensão n em R n+1 .
Demonstração. Seja ξ : U → R uma função de classe C k no aberto U ⊂ Rn , cujo
gráfico, formado pelos pontos (x, ξ(x)) ∈ Rn+1 , x ∈ U , é a interseção M ∩V , onde
V ⊂ R n+1 é um aberto que contém p = (p0 , ξ(p0 )), p0 ∈ U . Para todo caminho
λ : (−δ, δ) → M, com λ(0) = p, tem-se λ(t) = (x1 (t), . . . , xn (t), ξ(x(t)), onde
x(t) = (x1 (t), . . . , xn (t)). Portanto
 
dxn  ∂ξ dxi
n
dx1
λ (0) = ,..., , · ,
dt dt i=1 ∂xi dt

as derivadas dxi /dt sendo calculadas no ponto t = 0 e ∂ξ/∂xi no ponto p0 . Isto


mostra que todo v = λ (0) em Tp M é uma combinação linear dos vetores v1 =
(1, 0, . . . , 0, ∂ξ/∂x1 ), . . . , vn = (0, . . . , 0, 1, ∂ξ/∂xn ). (Derivadas no ponto p0 .)
n
Reciprocamente, toda combinação linear v = αi vi é o vetor-velocidade λ (0)
i=1
do caminho λ : (−δ, δ) → M assim definido: tomamos v0 = (α1 , . . . , αn ) ∈ Rn
e pomos λ(t) = (p0 + tv0 , ξ(p0 + tv0 )), sendo δ > 0 escolhido de modo que o
segmento de reta (p0 , −δv0 , p0 + δv0 ) esteja contido em U .

Observação. Como subespaço vetorial de Rn+1 , o espaço vetorial tangente Tp M


contém a origem 0 ∈ Rn+1 e não contém necessariamente o ponto p, embora nas
figuras ele apareça passando por p. Ocorre que, nas ilustrações, o que se vê é a
variedade afim p + Tp M, paralela a Tp M por p.

Exemplo 3. O espaço vetorial tangente Tp S n é, para todo p ∈ S n , o complemento


ortogonal de p, isto é, o conjunto [p]⊥ de todos os vetores v ∈ Rn+1 tais que
 v, p  = 0. Com efeito, sendo Tp S n e [p]⊥ ambos subespaços vetoriais de
dimensão n em R n+1 , para mostrar que eles coincidem, basta provar que Tp S n ⊂
[p]⊥ . Ora, se v ∈ Tp S n então v = λ (0), onde λ : (−δ, δ) → S n é um caminho
d
diferenciável no ponto 0, com λ(0) = p. Neste caso, 0 =  λ(t), λ(t)  =

dt
2 λ (0), λ(0)  = 2 v, p . 
A seguir, apresentaremos um critério bastante útil para dar exemplos de hiper-
fícies.
Um número c ∈ R chama-se um valor regular de uma função f : U → R, de
classe C 1 , quando não há pontos críticos de f no nível c, isto é, quando f (x) =
c ⇒ grad f (x)  = 0. Diz-se também que c é um nível regular de f . Quando existe
x ∈ U tal que f (x) = c e grad f (x) = 0, diz-se que c é um nível crítico de f .
74 CAPÍTULO 4: FUNÇÕES IMPLÍCITAS

Figura 2.

Teorema 3. Se c é um valor regular da função f : U → R, de classe C k no aberto


U ⊂ Rn+1 , então M = f −1 (c) é uma hiperfície de classe C k , cujo espaço vetorial
tangente Tp M é, em cada ponto p ∈ M, o complemento ortogonal de grad f (p).
Demonstração. O fato de que f −1 (c) é uma hiperfície é apenas uma reformulação
verbal do Teorema da Função Implícita. (Ver Observação após a prova do Teorema
1.) Quanto ao espaço vetorial tangente Tp M, como M é uma superfície de nível
da função f , vemos que todo vetor v ∈ Tp M é ortogonal a grad f (p), logo
Tp M ⊂ [grad f (p)]⊥ . Sendo ambos subespaços de dimensão n em R n+1 , conclui-
se que Tp M = [grad f (p)]⊥ .

Exemplo 4 (Mais uma vez a esfera). À luz do Teorema 3, a esfera unitária S n é


a superfície de nível 1 da função f : Rn+1 → R, dada por f (x) =  x, x . Como
grad f (x) = 2x, vemos que zero é o único nível crítico de f . Em particular, 1
é valor regular e S n = f −1 (1) é uma hiperfície C ∞ e, para todo p ∈ S n , tem-se
Tp S n = [grad f (p)]⊥ = [p]⊥ . 
Exemplo 5. Seja A : Rn → Rn um operador linear auto-adjunto. A função
f : Rn → R, definida por f (x) =  A · x, x  é o que se chama uma forma
quadrática. Se [aij ] é a matriz (simétrica) de A na base canônica de R n en-
n 
n
tão f (x) = aij xi xj . Logo ∂f/∂xi = 2 aij xj e conseqüentemente
i,j =1 j =1
grad f (x) = 2A · x. Supondo agora que o operador A seja invertível, o único
ponto crítico da função f é a origem 0, onde f assume o valor zero. Então, para
todo c = 0 a equação f (x) = c define uma hiperfície. Costuma-se tomar c = 1 e

n
a hiperfície definida pela equação f (x) = 1, ou seja, aij xi xj = 1, chama-se
i,j =1
SECTION 2: HIPERFÍCIES 75

uma quádrica. Em particular, se o operador A é positivo, isto é, se f (x) > 0 para


todo x  = 0, a quádrica f −1 (1) chama-se um elipsóide. 
2
Exemplo 6. Seja f : Rn → R a função que associa a cada matriz x = [xij ] de n
linhas e n colunas seu determinante f (x) = det x. O desenvolvimento de Laplace
nos dá
 n
f (x) = (−1)i+j xij · Xij ,
j =1

onde o ij -ésimo menor Xij é o determinante da matriz (n − 1) × (n − 1) que


se obtém de x omitindo a i-ésima linha e a j -ésima coluna. Segue-se daí que
∂f
(x) = (−1)i+j Xij . Em particular, se x = I = matriz identidade n × n, temos
∂xij
∂f
(I) = δij (delta de Kronecker, igual a 1 quando i = j e 0 quando i = j ).
∂xij
2
Portanto grad f (I) = I. Seja U ⊂ Rn o conjunto aberto formado pelas matrizes
(invertíveis) x tais que det x = 0. Para toda x ∈ U , o desenvolvimento de Laplace
nos mostra que algum menor Xij é = 0, logo grad f (x) = 0. Portanto a função
f : U → R não possui pontos críticos: todo número real c é um valor regular
de f . Logo M = f −1 (1) = conjunto das matrizes reais n × n com determinante
1 é uma hiperfície C ∞ . M é um grupo em relação à multiplicação de matrizes,
conhecido como o grupo unimodular. O espaço vetorial TI (M), tangente a M
na matriz identidade I, é formado pelas matrizes x que são perpendiculares (em
2
termos do produto interno de Rn ) ao gradiente grad f (I) = I. Ora,


n 
n
 x, I  = xij δij = xii = traço de x.
i,j =1 i=1

Assim, o espaço vetorial tangente a M no ponto I é o conjunto das matrizes de


traço nulo. 

Observação. O Teorema 3 é uma boa fonte de exemplos de hiperfícies. Mas nem


toda hiperfície M ⊂ Rn+1 pode ser obtida como imagem inversa M = f −1 (c)
do valor regular c de uma função f : U → R. Com efeito, as hiperfícies desse
tipo admitem um campo contínuo de vetores não-nulos v = grad f : M → Rn+1 ,
tais que, para todo x ∈ M,  v(x), w  = 0 qualquer que seja w ∈ Tx M. (Diz-se
então que v = grad f é um campo de vetores normais a M.) Tais hiperfícies são
chamadas de orientáveis. Um exemplo bem conhecido de superfície não-orientável
é a faixa de Moebius. Logo, a faixa de Moebius não é imagem inversa de um valor
regular de uma função de classe C 1 definida num aberto de R3 .
76 CAPÍTULO 4: FUNÇÕES IMPLÍCITAS

3 Multiplicador de Lagrange

O método do multiplicador de Lagrange se aplica na seguinte situação: tem-se


uma função f : U → R, de classe C 1 no aberto U ⊂ Rn+1 (função-objetivo), uma
hiperfície M = ϕ −1 (c), imagem inversa do valor regular c da função ϕ : U → R,
de classe C 1 , e procura-se determinar quais são os pontos críticos da restrição
f |M, ou seja, os pontos críticos x de f sujeitos à condição ϕ(x) = c.
Não se trata de determinar os pontos críticos de f : U → R que estão locali-
zados sobre a hiperfície M mas sim os pontos críticos da função f |M : M → R.
É preciso definir o que se entende por isto.
Um ponto x ∈ M chama-se um ponto crítico da restrição f |M quando, para
todo caminho diferenciável λ : (−δ, δ) → M com λ(0) = x tem-se (f ◦ λ) (0) =
0. Pondo v = λ (0), esta condição significa  grad f (x), v  = 0. Como v é um
vetor arbitrário pertencente ao espaço vetorial tangente Tx M, vemos que x ∈ M é
um ponto crítico de f |M se, e somente se, grad f (x) é ortogonal ao espaço vetorial
tangente Tx M.
Ora, grad ϕ(x) é um vetor (não-nulo) ortogonal a Tx M. Como o complemento
ortogonal de Tx M em Rn+1 tem dimensão 1, segue-se que grad f (x) ⊥ Tx M se, e
somente se, grad f (x) é um múltiplo de grad ϕ(x). Portanto, podemos enunciar:
O ponto x ∈ U é um ponto crítico da restrição f |M de f à hiperfície M =
ϕ −1 (c) se, e somente se:

1) ϕ(x) = c;

2) grad f (x) = λ · grad ϕ(x) para algum λ ∈ R.

As condições acima representam um sistema de n + 2 equações (pois a igual-


dade vetorial 2) acima significa n + 1 igualdades numéricas) nas n + 2 incógnitas
x1 , . . . , xn+1 (coordenadas de x) e λ. O fator λ é chamado o multiplicador de La-
grange. Sua presença torna o número de incógnitas igual ao número de equações,
o que viabiliza a solução na prática.
Deve-se notar que se x ∈ M é um ponto de mínimo ou de máximo local de f |M
então, para todo caminho diferenciável λ : (−δ, δ) → M com λ(0) = x, a função
f ◦ λ : (−δ, δ) → R tem um mínimo ou um máximo local no ponto 0, logo
(f ◦ λ) (0) = 0. Portanto os mínimos e máximos locais de f |M estão incluídos
na definição de ponto crítico dada acima.
É também evidente que todo ponto crítico x da função f : U → R é, com
maior razão, ponto crítico da restrição f |M pois, sendo grad f (x) = 0, tem-se
 grad f (x), v  = 0 para todo v ∈ Rn+1 .
Muitas vezes, a condição adicional ϕ(x) = c é posta sob a forma ϕ(x) = 0.
Isto não representa perda de generalidade. Basta usar, em vez de ϕ, a função
SECTION 3: MULTIPLICADOR DE LAGRANGE 77

ψ(x) = ϕ(x) − c. Então ψ(x) = 0 ⇔ ϕ(x) = c e c é valor regular de ϕ se, e


somente se, 0 é valor regular de ψ.

Exemplo 7. Seja f : R2 → R definida por f (x, y) = ax + by, com a 2 + b2 = 0.


O gradiente de f é, em todo ponto (x, y), o vetor constante não-nulo v = (a, b),
ortogonal às linhas de nível ax + by = c, que são retas, duas a duas paralelas. A
função f não tem pontos críticos. Mas

Figura 3.

se ϕ : R2 → R for dada por ϕ(x, y) = x 2 + y 2 então grad ϕ(x, y) = (2x, 2y), 1


é valor regular de ϕ e M = ϕ −1 (1) é a circunferência unitária x 2 + y 2 = 1. Como
M é compacta, a restrição f |M possui pelo menos dois pontos críticos, nos quais
assume seus valores mínimo e máximo. Os pontos críticos de f |M são as soluções
(x, y) do sistema

grad f (x, y) = λ · grad ϕ(x, y) , ϕ(x, y) = 1 ,

ou seja:

2λx = a , 2λy = b , x2 + y2 = 1 .

Portanto (x, y) é um ponto crítico de f |M se, e somente se, o vetor unitário


z = (x, y) é um múltiplo do vetor v = (a, b). Isto nos dá

a b −a −b
(x, y) = √ ,√ ou (x, y) = √ ,√ .
a 2 + b2 a 2 + b2 a 2 + b2 a 2 + b2
Estes são os pontos nos quais f (x, y) assume seus valores máximo e mínimo
em M = S 1 . 
78 CAPÍTULO 4: FUNÇÕES IMPLÍCITAS

Exemplo 8. Seja f : Rn → R uma forma quadrática. Para todo x = (x1 , . . . , xn ),



n
tem-se f (x) = aij xi xj , onde a = [aij ] é uma matriz simétrica n × n.
i,j =1
Alternativamente, tem-se f (x) =  Ax, x , onde A : Rn → Rn é o operador linear
auto-adjunto cuja matriz na base canônica de Rn é a. Quais são os pontos críticos
da restrição f |S n−1 , onde S n−1 é a esfera unitária de Rn ? Temos S n−1 = ϕ −1 (1),
onde ϕ : Rn → R é definida por ϕ(x) =  x, x  e, como grad ϕ(x) = 2x, 1 é valor
∂f  n
regular de ϕ. Por sua vez, (x) = 2 · aij xj , portanto grad f (x) = 2A · x.
∂xi j =1
Portanto os pontos críticos da restrição f |S n−1 são as soluções x do sistema Ax =
2λx,  x, x  = 1, isto é, são os autovetores do operador A que têm comprimento
1. Como S n−1 é compacta, f admite pelo menos 2 pontos críticos em S n−1 , a
saber, os pontos em que assume seus valores mínimo e máximo. Isto fornece uma
prova de que todo operador auto-adjunto em Rn possui autovetores, o que é o passo
fundamental para a demonstração do Teorema Espectral. 

Exemplo 9. Seja U ⊂ Rn o conjunto dos pontos cujas coordenadas são positivas.


Consideremos as funções f, ϕ : U → R definidas, para todo x = (x1 , . . . , xn ) ∈
U , como f (x) = x1 · x2 . . . xn e ϕ(x) = x1 + x2 + · · · + xn . Fixando s > 0,
procuremos os pontos críticos de f |M onde M = ϕ −1 (s). Observemos que
grad ϕ(x) = (1, 1, . . . , 1) para qualquer x ∈ U , de modo que
M é uma hiperfície.
Por sua vez, temos grad f (x) = (α1 , . . . , αn ) com αi = xj . Assim, x ∈ M
j =i
é ponto crítico de f |M se, e somente se, para algum λ, tem-se xj = λ(i =
j =i
1, . . . , n). Dividindo a i-ésima dessas equações pela k-ésima, obtemos xk /xi = 1.
Assim, o único ponto crítico de f |M é aquele que tem suas coordenadas iguais, ou
seja, é p = (s/n, s/n, . . . , s/n). Afirmamos que f (p) = (s/n)n é o maior valor
de f |M. Com efeito, a fórmula de f define uma função contínua no compacto
M̄, onde possui um ponto de máximo, o qual não pode estar em M̄ − M pois
x1 · x2 . . . xn = 0 se x ∈ M̄ − M. Logo esse máximo está em M, portanto é
um ponto crítico, mas p é o único ponto crítico de f |M. Conclusão: quando n
números positivos têm soma constante s, seu produto é máximo, igual a (s/n)n
quando eles são iguais. Ou ainda, se x1 , . . . , xn são positivos então

n
x1 + x2 + · · · + xn
x1 · x2 . . . xn ≤ .
n

A desigualdade acima, posta sob a forma

√ x1 + x 2 + · · · + x n
n
x1 · x2 . . . xn ≤ ,
n
SECTION 3: MULTIPLICADOR DE LAGRANGE 79

diz que a média geométrica de números positivos é menor do que ou igual à média
aritmética. Além disso, elas coincidem somente quando os números dados são
iguais. 

Exemplo 10. Dadas a função f : U → R, de classe C k no aberto U ⊂ Rn+1 e a


hiperfície M ⊂ U , os pontos críticos da restrição f |M são os pontos x ∈ M para
os quais grad f (x) é ortogonal ao espaço vetorial tangente Tx M, mesmo quando
M não é obtida como imagem inversa ϕ −1 (c) de um valor regular de uma função
ϕ : U → R de classe C k . Isto ficou claro na discussão feita no início desta seção.
Como exemplo, consideremos uma hiperfície M ⊂ Rn+1 , um ponto a ∈ Rn+1 não
pertencente a M e indaguemos quais são os pontos p ∈ M situados à distância
mínima de a. Trata-se de obter os pontos que tornam mínima a restrição f |M,
onde

Figura 4.

f : U → R, dada por f (x) = |x− a|, tem U = Rn+1 − {a} por domínio, por isso
é de classe C ∞ . Temos f (x) = (xi − ai )2 , logo ∂f/∂xi = (xi − ai )/|x − a|
e daí grad f (x) = x − a/|x − a|. Assim, os pontos críticos de f , entre os quais
estão os pontos de M situados à distância mínima de a, são os pontos x ∈ M tais
que x − a é um vetor normal a M no ponto x, isto é,  x − a, v  = 0 para todo
v ∈ Tx M. Em particular, se M = S n , x − a ⊥ Tx S n significa x − a = α · x isto
é, x = a/(1 − α). Portanto, neste caso, os únicos pontos críticos de f |S n são os
pontos x ∈ S n pertencentes à reta 0a, os quais são ± a/|a|. Um deles minimiza
|x − a| e o outro maximiza f . 

Observação. Os pontos críticos da restrição f |M da função f : U → R à hi-


perfície ϕ −1 (0), onde ϕ : U → R tem 0 como valor regular, são, como vimos,
as soluções x do sistema de equações grad f (x) = λ · grad ϕ(x), ϕ(x) = 0. Se
considerarmos a função L : U × R → R, definida por L(x, λ) = f (x) − λϕ(x),
vemos que as equações acima são satisfeitas se, e somente se, grad L(x, λ) = 0,
ou seja, os pontos críticos de f sujeitos ao vínculo ϕ(x) = 0 são precisamente os
80 CAPÍTULO 4: FUNÇÕES IMPLÍCITAS

pontos críticos (livres) da função L, chamada a Lagrangiana do problema.

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