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SELLTIZ / JAHODA / DEUTSCH / COOK METODOS DE PESQUISA NAS RELACOES SOCIAIS Edigaéo Revista e nova tradugéo de DANTE MOREIRA LEITE 2.4 Reimpressao — 1972 EDITORA HERDER EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO 1972 Os que se recusam a ir além dos fatos raramente chegam a éstes. T. H. Hoxtey A Fungéo da Teoria M todo o livro indicamos as limitagdes inerentes aos resultados de um unico estudo e a urgente necessidade de conhecimento sistematico, fundamentado em base mais ampla. Sem ésse conhecimento mais amplo, as contribuicdes da ciéncia social estarao necessariamente limitadas a situagdes e problemas especificos, nos quais foram realizadas as pes- quisas. Déste ponto de vista, a criagao de leis cientificas e de teoria_cientifica tém uma fungado muito pratica. Uma lei cientifica é um resumo do conhecimento existente sobre a relagio entre caracteristicas, apresentadas em térmos mais gerais que Os resultados empiricos em que se baseia. Leis cientificas sio hipdteses consideradas como verdadeiras. Braithwaite (1955) define uma teoria como um: ..conjunto de hipéteses que formam um sistema dedutivo; vale dizer, organizado de maneira que, consi- derando-se como premissas algumas das hipéteses, des- tas decorram, logicamente, a as outras. As propo- sigdes num sistema dedutivo -podem ser consideradas como dispostas numa ordem de niveis, onde as hipéteses de nivel mais elevado so aquelas que aparecem como premissas no sistema, enquanto que as de nivel mais baixo s&o as que aparecem apenas como conclusées do sistema, e as de nivel intermediario sao as que apa- recem como conelusGes de dedugées das hipéteses de nivel mais elevado e que servem de premissas para as de nivel mais baixo. E importante distinguir o sentido cientifico atual da palavra teoria de outros sentidos que possa ter. Na lingua- 540 METODOS DE PESQUISA NAS RELAGOES SOCIAIS gem didria, teoria é freqiientemente identificada com espe- culagio; 0 que 6 “tedrico” € irrealista, visionario. Embora seja verdade que no inicio de uma ciéncia as teorias resul- tam, freqiientemente, de especulagGes de gabinete, e podem ter pouco e fraco apoio em dados empiricos, 4 medida que a ciéncia se desenvolve, a teoria e a observacao se tornam cada vez mais ligadas. No estado atual das ciéncias sociais, a pesquisa e a teoria nem sempre estio estreitamente ligadas, as teorias tendem a conter elementos especulativos que ultra- passam de muito as provas dds dados existentes. Por exem- plo, alguns aspectos da teoria psicanalitica tém pouca confir- magiio em pesquisas empiricas; no entanto, verificou-se que é muito util para o trabalho clinico e como fonte de novas perspectivas para.considerar 0 comportamento humano. De modo geral, porém, a intengio de uma teoria na ciéncia con- temporanea é sumariar o conhecimento existente, apresentar, a partir de prinefpios explicativos contidos na teoria, explicagao para relacgdes e acontecimentos observados, bem como pre- dizer a ocorréncia de relagdes e acontecimentos ainda nao observados. Deve-se notar uma outra caracteristica das teorias na ciéncia contemporanea: seu cardter provisério. Antiga- mente, uma teoria era considerada como explicagio final. Hoje, uma teoria é sempre aceita como tentativa, por maior que seja 0 actimulo de resultados consistentes com ela. Con- sidera-se a teoria como a forma mais provdvel ou mais eficiente de explicar tais resultados, diante do conhecimento atual, mas que esté sempre aberta a revisio. Nao é uma formulagao estdtica ou final. UM EXEMPLO DE EXPLICAGAO TEORICA No século III, Tertuliano observou uma coincidéncia curiosa e aparentemente regular de acontecimentos: “Se o Tibre inunda uma cidade, se 0 Nilo nao invade os campos, se os céus niio se movem, se a terra treme, se existe fome e peste, imediatamente aparece 0 clamor: Lancemos os crist&os aos ledes.” Mil e setecentos anos depois, varios cientistas sociais (Raper, 1933; Hovland e Sears, 1940) descreveram outra observagao: se o valor por acre do algodao, na parte sudoeste PESQUISA E TEORIA 541 dos Estados Unidos, é baixo, o numero de linchamentos de negros nessa area é elevado. Suponhamos que a exatidao das duas observagGes esteja fora de divida.! A semelhanga subjacente nas duas afirma- gdes — a catdstrofe conduz a perseguigio — é ainda mais notavel por terem sido feitas em momentos bem distantes do tempo e se referirem a pessoas e acontecimentos inteiramente diversos. Qual a explicagao para essa seqiiéncia de aconteci- mentos? Segundo Gibbon, as massas romanas tinham uma explica- gao pronta para isso: “Os pagaos SE eee estavam con- vencidos de que os crimes e a impiedade dos cristaos, poupa- dos pela excessiva condescendéncia do govérno, tinham final- mente provocado a justiga divina.” Como os cristaéos eram responsaveis pela firia dos deuses, sua morte “naturalmente” aplacaria os deuses, que entdo fariam o Tibre voltar ao seu leito. Verifiquemos se esta explicagao se aplica ao ultimo acon- tecimento. Permitindo-se a mudanga nas superstigées atra- vés dos séculos, o argumento seria mais ou menos 0 seguinte: os negros provocaram a queda nos pregos do algodio; se forem mortos, 0 preco do algodao aumentaré. Ambas as explicagdes dependem da suposigio de que os cristéos e os negros eram culpados de um crime, pelo qual mereceriam castigo. No entanto, existem certas videzenpaa entre as duas seqiiéncias, e tais diferengas tornam a explicag&o insatisfaté- ria para o segundo caso. Embora nao aceitemos as supers- tigdes do século III, precisamos admitir que o comportamento dos pagaos tinha, pelo menos, coeréncia interna; agiam com a suposigéo de que o castigo dos cristaos faria cessar a cala- midade. As multidées que fazem os Jinchamentos, ao con- trario, nado ligam suas agdes ao prego do algodao; em vez disso, justificam os linchamentos através de estupro, suposto ou real, ou de quebra, ameacada ou real, do sistema de casta. Os pregos de algodao nao aparecem como um motivo cons- ciente. Apesar disso, a correlagio existe. ? 1 Na realidade, parece que isso nfo ocorre. A segunda obser- vagio foi discutida por Mintz (1946). 2 Como foi indicado nos Capitulos 4 e 11, a existéncia de uma correlagio entre duas varidveis mao constitui prova de que estejam casualmente relacionadas. No entanto, é uma pesquisa razodvel pro~ curar uma explicagio para o fato de dois fatéres variarem juntamente. 36 542 “METODOS DE PESQUISA NAS RELAGGES SOCIAIS Quando duas observacées de uma estrutura_semelhante nao podem ser compreendidas através de determinada expli- cacao, o cientista social é obrigado a uma de duas alternati- vas: demonstrar que a semelhanca era mais aparente que real, ou procurar outra explicagio que se aplique aos dois: aconte- cimentos. Existe uma teoria explicativa que pode aplicar-se a nossos dois exemplos. Inclui os conceitos de frustragio, agressio, inibigiio e deslocamento. ° Como todos os conceitos, asses nio podem ser observados diretamente. No entanto, podem ser inferidos de aconteci- mentos que podem ser observados. A frustragdo é definida por Dollard et al. (1989) como “condigao que existe quando as respostas para 0 objetivo sofrem interferéncia.” A agresséo refere-se a uma classe de atos destinados a atacar alguém ou alguma coisa. A inibigdo refere-se 4 tendéncia para evitar determinados atos por causa das conseqiiéncias negativas que a pessoa espera déles. O deslocamento refere-se 4 tendéncia ara participar de atos de agressio dirigidos, nfo contra a onte de frustragio, mas contra outro alvo. Tais conceitos esto relacionados entre si por um sistema de hipéteses inter- ligadas, denominado “teoria de frustragio-agressio” (ver Dollard et al., 1939). As principais hipéteses da teoria so as seguintes: 1. A quantidade de frustragio é uma fungio de trés fatéres: a) A forga de instigagao da resposta de objetivo que foi frustrada; b) O grau de interferéncia com a resposta de obje- tivo que foi frustrada; c) O mimero de seqiiéncias de respostas de objetivos que foram frustradas. 2. A férca de instigacgio 4 agresséo varia diretamente de acérdo com a quantidade de frustragao. 8, A mais forte instigagao provocada Ee uma frustra- g&o refere-se a atos de agressio dirigida contra o 3 Para uma discusséo da natureza de conceitos, ver o Capitulo 2, pags. 49-50. Para discussio mais minuciosa dos conceitos de frustragéo, agressiio, inibicéo e deslocamento, bem como apresentacéo mais minu- ciosa da teoria de frustracio-agresséo, ver Dollard et al. (1989). Sob muitos aspectos, nossa apresentacdo da teoria de frustracio-agressio é diferente da realizada por ésses autores. ies PESQUISA E TEORIA 543 agente percebido como fonte de frustragao; instiga- gagdes progressivamente mais fracas sio provocadas por atos progressivamente menos diretos de agressao. 4. A inibiggo de qualquer ato de agressio varia dire- tamente com a férca da punig&o esperada por sua expresso. A punicdo inclui mau trato a objetos amados e ao fato de ser impedido de realizar um ato desejado, bem como As usuais situagGes que provocam ‘dor. 5. A inibig&o de atos diretos de agresséo é uma frustra- cdo adicional que instiga agressio contra o agente percebido como responsivel por essa inibigao, e aumenta a instigacéo para outras formas de agressio. Conseqiientemente, existe uma forte tendéncia para que a agressio inibida se desloque pers diferentes abjetos e se exprima sob formas mo ificadas. 6. A expressio de qualquer ato de agressio é uma catarse que reduz a instigagao para todos os outros atos de agressio. Essas hipdteses intezrelacionadas auxiliam a explicar muitos e diferentes fendmenos, todos os quais parecem ser reflexos do mesmo processo subjacente — isto é, quando uma pessoa est4 frustrada e inibida de exprimir diretamente sua agressao contra a fonte percebida de frustracao, deslocar& sua agressio.* De acérdo com essa teoria, a agressdo contra os cristaos, pelos romanos, depois da ocorréncia de catdstrofes naturais, e 0 aumento de linchamentos de negros, por brancos sulinos, depois da queda dos pregos de algodao, sao explicd- veis através dos mesmos térmos. A frustracdo, provocada por catastrofe natural ou por queda nos pregos do algodio (e, por isso, em rendimento), provoca agressdo, mas a inutilidade ou o médo de agredir diretamente os deuses ou a sociedade 4 Esperamos que o leitor compreenda que, ao apresentar a teoria de frustracao-agressao, ndo supomos que deva ser vista sem qualquer cmitica, A teoria foi aqui apresentada para exemplo. Como teoria psicolégica, foi muito criticada (ver Lewin et al., 1944). Algumas das principais criticas centralizaram-se nas suposigdes de que a frus- tragdo sempre conduza a atos agressivos, de que o deslocamento seja, de certo modo, cego, e de que a expressio da agressio seja necessi- riamente catartica. Apesar de suas limitacgdes, a teoria de frustragiio- agressio foi marco importante na psicologia. 544 METODOS DE PESQUISA NAS RELACOES SOCIAIS inibe a expressao direta da agressio e faz com esta se desloque para grupos cujo baixo status social impede que se vinguem e também que inibam a agressio. Assim, com a ajuda dos conceitos de frustrag’o, agressio, inibigao e deslocamento, é possiyel dar uma explicagao nao apenas para as observagdes sébre linchamentos e para as ocorréncias observadas por Tertuliano, mas também para muitos outros acontecimentos — por exemplo, a agao agres- siva de uma crianga contra um irm&o menor, depois de ser frustrada por seus pais. Isso atende a uma exigéncia da explicacio teérica: reduz um certo nimero de fendmenos dife- rentes a princ{pios gerais subjacentes. Quanto mais diversos os fendmenos que uma teoria pode explicar, maior a confianga que temos para fazer predigdes com os principios que admite. RELACAO ENTRE OBSERVACAO E TEORIA Hempel (1952) comparou uma teoria cientifica a uma réde, na qual os térmos ou conceitos so representados pelas intersecgGes, e as definicdes e hipdteses pelos fios que ligam as interseccées: > 5 O leitor pode admirar-se com um aspecto do modélo de Hempel, isto é, a representagdo de definigées ¢ hipdteses através de fios. A definigéo nao serd apenas uma caracterizagio de uma inter- seccfio, uma especificagio do que é representado por uma interseccio? Evidentemente, em certo sentido, isso é verdade. No entanto, é facil deixar de lado o fato de téda definigio que tem um objetivo cientifico guardar consigo uma proposigao cientifica — isto €, que as coisas, processos on acontecimentos abrangidos pela definigio esto reunidos, na medida em que o fato de trata-los em conjunto, como mtituamente equivalentes, sob a inicfo, facilita a descoberta de relagdes que cbedecem a leis ¢ facilita a organizacio dos dados, Por exemplo, podemos definir os peixes como criaturas que vivem na Agua. Segundo essa definicio, as baleias e os planctos seriam peixes. Mas’ os cien- tistas acharam mais Util classificar as baleias como mamfferos e colocar os planctos em outra categoria. A definicio anterior de peixe deixa de lado relagées importan De forma semelhante, se definissemos os negros através de grau de pigmentagio da pele, colocariamos, muma categoria, grupos de individuos que deveriam scr separados e exclui- ramos outros que deverlamos incluir na definicao (ver Klineberg, 1985). Sera que uma definigdo ¢ “boa” ou “correta”? Isso depeade inteiramente daquilo a que conduz. Nao se discute a palavra, mas a proposigZo de que algumas coisas sio equivalentes para determinados objetivos e que, para tais objetivos, as coisas que sio excluidas pela definigio n’o sio equivalentes as coisas que s&o incluidas, PESQUISA E TEORIA 545 Tudo se passa como se todo o sistema flutuasse acima do plano de observagao e a éste estivesse préso pelas regras de interpretagao. Estas poderiam ser vis- tas como linhas que nao fazem parte da réde, mas que ligam determinados pontos desta com lugares espect- ficos no plano de observagao. Em virtude dessas liga- gGes de interpretacdo, a réde pode funcionar como uma teoria cientifica: de certos dados de observagio, pode- mos ascender, através de uma corrente de interpretagio, a algum ponto na réde teérica, e depois passar, através de definigdes e hipdieses, para ‘putros pontos, a partir dos quais outra corrente interpretativa permite descer ao plano da observagio. Sao evidentes as vantagens dessa comunicagio mitua entre o plano dos fenémenos observaveis e o plano da teoria, desde que sigamos as regras que governam o transito nos dois planos e entre éles. A consciéncia dessa especifica for- mulagao tedérica da relagaéo entre frustragao e agressao suge- rir4 orientagdes para o estudo de. situagdes que incluem frus- tracao. Explica situagdes que, de outra forma, seriam incompreensiveis. Aplicada a problemas sociais de discrimi- nagao e perseguicdo, sugere que o ataque 4 causa real de frustracdo pode ser recurso mais adequado para impedir a perseguico que as medidas que procuram atingir diretamente. a perseguicéo. Apresenta uma alternativa para a teoria racis- ta da discriminagao, pe uody a qual a perseguigéo de um grupo externo resulta dos atributos déste grupo e nfo das necessidades do grupo agressor — uma teoria que nao é muito diversa da explicacgio popular que satisfazia aos pagaos romanos. L No entanto, segundo Zawadzki (1948), algumas observa- g6es de preconceito e discriminagio apresentam questées para as Ta a teoria ndo tem uma resposta imediata, e por isso revelam limitagdes da teoria como principio explicativo. Por que a agressio se desloca mais freqiientemente contra os. negros nos Estados Unidos, onde existem muitos outros gru- pos minoritarios que poderiam desempenhar a mesma fungao? Por que alguns povos — como os indios comanches, descritos por Kardiner — participam de agressao contra seus vizinhos, ainda que entre éles nao seja possivel distinguir nenhuma das frustragdes' comuns, seja nos padrées de educagao de criangas, seja em sua situagio econémica? O que dizer das provas 546 METODOS DE. PESQUISA NAS RELAGOES SOCIAIS apresentadas por Freud, segundo as quais a frustraco pode conduzir 4 atividade construtiva, bem como A agressio? Nenhuma dessas perguntas é respondida satisfatdriamente pela teoria de frustragdo-agressao, sem colocar tais limitagdes aos fatos ou sem diluir de tal forma as definigdes, que estas perdem seu contetido. Em outras palavras, em sua forma atual a teoria 6 inadequada porque nao pode explicar a diver- sidade de fendmenos significativos. Isso nao significa que a teoria de frustragdo-agressio seja errada. Significa que ¢ insuficiente, que nao é bem espe- cifica, e que nao é adequada para abranger todos os fend- menos significativos observaveis, embora tenha prestado bom servigo para um numero limitado de tais fendmenos. No entanto, ainda nao foram definidas as situagdes limitadores sob as quais se aplica,® e isso interfere sériamente em seu valor para ‘predigio. Um levantamento do estado das teorias nas ciéncias sociais revelara que existem poucas que possam ser usadas com seguranga para explicagio e predicéo. Freqiientemente, para empregar os térmos usados na analogia de Hempel, des- cobre-se que ha intersecgdes com fios frouxos, A espera de esfOrco sistemdtico para aperté-los e ligé-las. E, mais fre- qiientemente, sequer existem intersecgdes. Por exemplo, em levantamentos realizados em 1948, 66 por cento de uma amos- tra da populagao norte-americana concordaram com a afirma- gio de que “é possivel acreditar na maioria das pessoas”, enquanto que na Alemanha apenas 6 por cento concordaram com tal afirmagao (National Opinion Research Center, 1948). Pensa-se, intuitivamente, que essa ¢ uma diferenga importante. No entanto, procura-se em vao uma. teoria bem definida do carter nacional ou do impacto psicolégico de derrota militar e de acontecimentos histéricos turbulentos, nos quais 0 con- ceito ‘de “confianga em outras pessoas” tenha um lugar siste- mAtico. Sob, tais circunstancias, o acréscimo potencial ao conhecimento que tais ntimeros possam representar permanece oculto, a nao ser que se formule uma hipétese significativa, depois verificada em diferentes situages. A pesquisa e a teoria precisam caminhar juntas para aumentar 0 conhecimento. Cada uma delas tem uma con- 6 Ver a compreensiva discussiio de Allport (1950) da teoria de frustragGo-agressio, na medida em que se aplica aos fendmenos do preconceito. PESQUISA E TEORIA S47 tribuigio importante para a outra. Qualquer cientista social pode partir de uma ou de outra, mas, em determinado ponto, precisa considerar a importancia de seu trabalho para a inter- relagio de ambas. Se se concentra em pesquisa emipirica, precisa examinar sua significag&o para a teoria social, para que se efetive sua contribuicéo. Se seu principal interésse se refere ao desenvolvimento de teoria social, precisa considerar maneiras de verificar e expandir, através de pesquisa empirica, a sua teoria, para que esta se tone mais do que especulagio interessante. A Teoria como uma Base para a Pesquisa As teorias — mesmo fragmentos de teoria parcialmente desenvolyida — apresentam um guia importante para a orientagéo de pesquisa, pois indicam 4reas que tendem a ser produtivas — isto 6, em que ha probabilidade de encontrar relagGes significativas. Segundo Merton (1957): .+.8@ 0s conceitos selecionados séo de tal ordem que n&o aparecem relagées entre éles, a pesquisa ser4 estéril, por mais meticulosas que sejam as observagées e inferéncias subseqiientes. A importancia désse truismo est na suposicio de que, na pesquisa empirica, os processos que sejam realmente de ensaio-e-érro tendem a ser comparativamente improdutivos, pois o nimero de varidveis que nao estéo ligadas de maneira signifi- cativa é infinitamente grande. A tentativa de Cohen (1955) para formular uma teoria que explique o aparecimento de uma “subcultura delingiien- te”, em algumas partes de comunidades norte-americanas, exemplifica essa fung’o de teoria para pesquisa estimulada jor necessidades sociais especfficas, assim como a teoria de rushiagiy ete foi estimulada pela pesquisa psicolégica experimental e clinica, e serviu de orientagSo a esta. Ao criar sua teoria, Cohen utilizou os resultados de pesquisas ante- tiores sdbre delingiiéncia, a sua experiéncia pessoal com bandos de delingiientes, bem como de outras teorias de psico- logia e sociologia. Em resumo, a teoria supde os seguintes estagios: 548 METODOS DE PESQUISA NAS RELAGOES SOCIAIS O objetivo de todo comportamento humano é a solu- gao de problemas. Embora todos os individuos tenham problemas, os diferentes tipos de problemas nao sao casualmente distribuidos por téda a sociedade; alguns tipos de problemas siéo mais provavelmente encontrados por pessoas das classes operarias que por pessoas das pro- fissdes liberais, mais por pessoas jovens que por pes- soas mais velhas, mais por rapazes que por médcas, etc. Uma condicao crucial para o aparecimento de novas formas culturais é a existéncia, em efetiva interagdo entre si, de certo ntimero de pessoas com problemas semelhantes de ajustamento. Uma condigao importante para o ajustamento de um individuo é que seja bem aceito pelos que sao impor- tantes para éle, bem como por si mesmo. Para muitas criancas das classes operdrias, é dificil atingir essa condicéo. Na escola, nos centros de recreacio, em todas as atividades da comunidade mais ampla, sdo julgadas ‘através de padrées de clas- se média, que muitas criangas das classes operdrias nao estio, por muitas razdes, em condigdes de satisfazer. A subeultura delingiiente enfrenta ésse problema ao apresentar critérios de status que tais criangas podem satisfazer. Como quase tédas as criancas das classes operdrias conhecem e, em parte, interiorizam os padroes de classe média, existe um conflito entre tais padrées e os do bando delingiiente. A fim de eliminar ésse conflito, a subcultura delin- qiiente explicitamente rejeita (isto é, nao se limita a ignorar) os padrées de classe média, sobretudo os que se referem aos simbolos e realidade de status conseguido; no bando. delingiiente, os critérios de status sio opostos aos aceitos pela sociedade “respeit4- vel.” oc =e PESQUISA E TEORIA 549, Cohen. indica que essa teoria sugere a necessidade do dados de um tipo um pouco diferente dos que geralmente tém sido coligidos na pesquisa sdbre delingiiéncia. Em pri- meiro lugar, saree a necessidade de dados mais exatos sébre a ocorréncia de atos delinqiientes. As estatisticas atuais baseiam-se em registros oficiais (policia e justiga), ou em registros semi-oficiais de servigos de assisténcia social, centros de bairro, etc. Existe muita razio para acreditar que tais estatisticas esto muito longe de refletir todos_os atos delin- qiientes. O problema nao é apenas, nem fundamentalmente, o de subestimar a extensfio da delinqiiéncia; nao existe a cer- teza de que tais registros déem uma imagem exata da. dis- tribuigdo da delingiiéncia nos varios setores da sociedade (em outras palavras, nao existe certeza de que constituam uma amostra nao-viesada de comportamento delinqiiente). Os estudos que comparam criangas delingjientes e nao-delingiien- tes geralmente selecionam seus casos de delingiientes em registros oficiais ou semi-oficiais, e seus n&o-delingiientes entre criangas, presumivelmente compardveis as delingiientes, que nao aparecem em tais registros. Cohen sustenta que, a fim de conseguir estatisticas exatas e conseguir amostras nao-viesadas de criangas delingiientes e nao-delinqiientes, é necessério comecar pela selegio de uma amostra casual da populagao juvenil de determinada drea e depois verificar, através de entrevistas cuidadosas e compreensivas, a ocorrén- cia real de delingiiéncia nessa Area. Pode-se perguntar 0 que, na teoria de Cohen, conduz a essa recomendacao especifica. Serd que todos os estudiosos de delingiiéncia nao esto cientes das limitagdes das estatisticas atuais, e serA que por isso nfo concordariam com a necessidade de um estudo como o sugerido por Cohen? Talvez isso ocorra. Mas uma verificagaio = teoria de Cohen. exige tais dados, pois a teoria depende, explicitamente, da suposicao de que os bandos delinqiientes sejam mais comuns em bairros operdrios que em outras partes da eomunidade. Embora as atuais estatisticas oficiais e semi-oficiais mostrem incidéncia muito mais elevada de delingiiéncia nos bairros operdrios, alguns pesquisadores sugeriram que isso reflete o processo social pelo qual as criangas chamam a atengio de servicos oficiais, e nao a incidéncia real de delingiiéncia. Se se provasse que a existéncia de bandos de delingtientes com relagio a padroes e simbolos de status adquirido de classe 550 METODOS DE PESQUISA NAS RELACOES SOCIAIS média ¢ tao tipica de bairros de classe média quanto de bairros operdrios, téda a teoria de Cohen seria negada.” Em segundo lugar, Cohen recomenda uma acentuagao diferente nos tipos de informagao procurada nos estudos de criangas delinqiientes e nio-delinqiientes. A maior parte des- sa Perdue se interessou pelos aspectos correlacionados com a delingiiéncia — antecedentes familiares, personalidade, caracteristicas do bairro, etc, Embora reconhecendo que tais dados sao titeis, Cohen sugere que é ainda mais Util a infor- magio sdbre o comportamento delingiiente e, sobretudo, a respeito da natureza coletiva ou individual da atividade delin- quente, bem como sébre a maneira pela qual a delingiiéncia lifere em situacdes individuais ou coletivas. Essa informa- go, combinada com inforinacio a respeito de fatéres antece- dentes que, geralmente, tém sido estudados, auxiliaria uma compreenséo da maneira pela qual a atividade delingiiente serve como solugio para os problemas de ajustamento dos membros dos bandos. Finalmente, a teoria de Cohen sugere a necessidade de mais pesquisa a respeito dos grupos delingiientes como siste- mas sociais — isto 6, sdbre a estrutura, os processos, a histéria e subcultura dos bandos delingiientes —, e nao a respeito do individuo delingiiente. Até aqui, o exemplo apresentou maneiras pelas quais uma teoria sugere processos produtivos de pesquisa dos fené- menos da Area geral a eee se refere a teoria — neste caso, a delingiiéncia juvenil. Mas a teoria.apresenta indicagdes para pesquisa de uma outra forma — pela sugestao de outros tipos de fendmenos que talyez possam ser compreendidos nos mesmos térmos gerais. Os quatro primeiros estégios na teoria de Cohen, apresentados na pagina 548, constituem uma forma para compreender como aparece qualquer sub- cultura. Embora Cohen nao desenvolva ésse aspecto, sugere qe algumas subculturas diferentes — por exemplo, fraterni- lades de universidade © o mundo dos misicos de jazz — podem ser entendidas da mesma forma. A pesquisa sobre tais grupos se concentraria na descoberta de problemas 7 Cohen recomhece a existéncia de bandos de delinqiientes em bairros de classe média e sugere algumas condicées que, de acdrdo com sua teoria, poderiam explicé-los. No entanto, a teoria depende da suposicéo de que os bandos de delingiientes aparecam, fundamental- mente, nos baitros operdrios. PESQUISA E TEORIA 551 comuns enfrentados pelos membros dos grupos e na desco- berta das maneiras pelas quais os padrées especificos de tais subculturas ajudam as pessoas a enfrentar tais problemas. Muito ligada a essa fungio da teoria, encontramos outra contribuigio que faz 4 pesquisa: aumentar o sentido dos resultados de determinado estudo, ao possibilitar sua percep- gio, néo como partes isoladas de informagio empirica, mas como um caso especial na construgéo de um conjunto de proposigdes mais abstratas. Por exemplo, se os estudos estatisticos mais adequados confirmarem a suposigéo de que os bandos delingiientes so mais comuris nos bairros opera- rios que nos bairros de classe média, ésse fato, em si mesmo, nao ampliaria muito 0 nosso conhecimento da delingiiéncia. No entanto, se considerarmos os bandos delingiiéntes como um caso de uma ‘tendéncia geral para que as pessoas com problemas comuns encontrem uma solugao comum, isso nos ajudar4 a explicar a ligacao entre bairros operarios e bandos delingiientes. * Essa ligagaio dos resultados empiricos especificos a um conceito mais geral tem ainda outra vantagem: dé uma base mais segura para a predicao dos resultados isolados. A pre- digéo pode Pera avaliar se uma relagao entre duas varia- veis — j& observada anteriormente — continuara a sé-lo no futuro, ou pode procurar avaliar se as mudangas em deter- minadas condigdes provocarao mudangas na relagéo observa- da. Para voltar ao exemplo da delinqiiéncia: diferentes medidas foram sugeridas como formas de reduzir a delin- qiiéncia — recreagio mais adequada, servigos de aconselha- mento nai escolas, censura de histérias em quadrinhos, multas aos pais dos delingiientes, aumento do numero de policiais nas Areas de elevada delinqiiéncia, etc. Cohen nio discute as possiveis medidas de cura, e indica que nao existe, neces- siriamente, uma relagio entre a compreensio da “causa” de um fendmeno e a descoberta de uma “cura.” Apesar disso, sua teoria parece sugerir que uma medida que pretenda redu- zir a delingiiéncia dos bandos tende a obter éxito na medida em que mude os padroes através dos quais as criangas das classes operarias sao julgadas na escola e na comunidade de modo geral, ou as ajude a satisfazer a ésses padroes. 8 Esta funcio da teoria foi discutida mais minuciosamente no Capitulo 2. 552 MEZODOS DE PESQUISA NAS RELACOES SOCIAIS Em resumo: a teoria aumenta a produtividade da pes- quisa, pois apresenta indicagées significativas para esta, liga resultados aparentemente isolados através de processos sub- jacentes semelhantes, e presenta explicacio para relagdes observadas. Quanto mais a pesquisa seja orientada por teoria sistem&tica, maior a probabilidade de que seus resultados contribuam diretamente para o desenvolvimento ¢ maior organizagio do conhecimento. A Contribuigéo da Pesquisa para o-Desenvolvimento da Teoria As relagdes entre a teoria e a pesquisa naio se dao em apenas uma diregao. A teoria estimula a pesquisa e aumenta © sentido de seus resultados; a pesquisa empirica, de outro Jado, serve para verificar as teorias existentes e apresentar uma base para a criac&o de novas teorias. De uma teoria bem formulada, é possivel chegar a de- dugdes sdbre o que ocorrerd, sob condicdes especificas, em diversas situagdes, Assim, da teoria de reforgo de aprendi- zagem, criada por Hull, é possivel chegar a dedugdes sébre diversos problemas — por exemplo, a rapidez da aprendi- zagem de diferentes partes de uma tarefa, os efeitos de pratica concentrada ou espagada, os efeitos de recompensa regular ou ocasional a um ato, etc. Essas dedugées apre- sentam hipdteses para pesquisa empirica. Se determinada hipétese é confirmada por estudos planejados para verifi- eé-la, os estudos contribuem para verificar toda a estrutura teérica a partir da qual foi feita a dedugao. Se, ao contrario, uma hipétese n&o é confirmada pela pesquisa, a teoria precisa ser reexaminada, a fim de verificarmos se deve ser afastada como nio-valida ou se alguma modificacio a tornaria coerente com os resultados de pesquisa. No ultimo caso, evidentemente, hi necessidade de outros estudos para veri- ficar se as dedugdes a partir da teoria modificada serdo confirmadas por observac’0 empirica. Atualmente, nas ciéncias sociais existem poucas teorias suficientemente minuciosas para sugerir estudos que verifi- quem sua validade. Por isso, é mais freqiiente que a teoria PESQUISA E TEORIA 553 tenha como func&o contribuir para a criagéo de teoria, e nao para sua verificagao. As contribuigGes para a criagéo da teoria podem ser conscientemente procuradas, ou podem ser mais ou menos acidentais. O cientista social, que intencionalmente procura desenvolver determinado aspecto de teoria, tende a seguir uma dessas abordagens ou ambas. Pode reexaminar os es- tudos existentes, ou pode planejar um programa’ de estudos relacionados, focalizados na questao pela qual esta interes- sado. Em qualquer caso, é improvavel que comece realmente do nada; a partir de estudos anteriores, ou de outras teorias, ou de suas observagGes pessoais, geralmente tem alguns con- ceitos em mente, algumas possibilidades de formulacées alternativas, etc. Seu exame de estudos existentes ou seu plano para estudos que devem ser realizados serio feitos diante de tais conceitos e de suas formulagées alternativas. A criagao de teoria a partir de. estudos existentes foi demonstrada por Merton e Rossi (1957), em “Contribuicdes para uma Teoria de Comportamento de Grupos de Referén- cia.” Merton e Rossi usam, como material, numerosas pesqui- sas de The American Soldier (Stouffer et al., 1949a), que se referem as maneiras pelas quais os individuos escolhem os grupos como pontos de referéncia para a avaliagdo de seu status pessoal. Embora os estudos de The American Soldier nao tenham sido planejados em fungao do conceito de grupos de referéncia, alguns dos estudos referentes a moral e satis- facao foram interpretados através de tais conceitos. O fato de as pessoas avaliarem seu status pessoal em comparagao com o de outros nae é uma nogao nova. Merton e@ Rossi, em sua busca de uma formulagao teérica, examinam os esforcos realizados por outros cientistas sociais que usaram. ésse conceito ou conceitos semelhantes. Com o emprégo de “interseccdes” e “fios soltos”, os autores discutem os elementos comuns em nove estudos de The American Soldier; em cada um désses estucos as atitudes dos soldados sao explicadas em fungao da relativa privagao que’ sofreram, comparada com 0 grupo de referéncia que usavam como padrao. Os. autores indicam como a selegio de um grupo para comparagio varia de situagao para situagao. As vézes, os soldados avaliam sua situagao através de referéncia a membros de seu préprio grupo, As vézes através de referéncia a outro grupo! Podem 554 METODOS DE PESQUISA NAS RELAGOES SOCIAIS usar, como bases de comparagao, grupos no mesmo status do seu, ou de status superior ou inferior. Désse reexame doy resultados de pesquisa, Merton e Rossi véem aparecer uma questio de: .-. importancia central para o desenvolvimento de uma teoria de comportamento de grupo de referéncia: em que condigdes os companheiros do mesmo grupo siio considerados como referéncia para auto-avaliagdo e formagdo de atitudes, e em que condigées grupos es- tranhos ou grupos de ndo-participagdo apresentam a referéncia significativa? Se essa pergunta fésse respondida, teriamos uma teoria de grupos de referéncia, ¢ nfo apenas os primeiros passos para a sua criagio. Essa teoria seria um instrumento impor- tante para a predig&o e compreensio do moral em muitas situagdes. Neste exemplo, Merton e Rossi fizeram o que equivale a uma interrelacio ex post facto de partes separadas de pesquisa, através do emprégo de um unico conceito unifi- cador — o de grupos de referéncia. Ao fazé-lo, ampliaram e esclareceram 0 conceito de grupo de referéncia e indica- ram em que direg&o se precisa de mais pesquisas, para que © conceito adquira um lugar numa teoria de comportamento de grupo de referéncia. O Programa de Pesquisa de Comunicagio de Yale apresenta um exemplo do planejamento. e realizagao de pes- quisa sisternatica e coordenada, com o objetivo de criar uma teoria, O objetivo e a natureza désse programa foram des- critos por Hovland, Janis e Kelley (1953): Ja existe grande actmulo de informagao descritiva a respeito de comunicagoes de persuasio — por exemplo, programas educacionais, campanhas de publicidade, antincios e propaganda — e seus efeitos no comporta- mento e na opiniao. A maior parte dessa informagao é dada por estudos que focalizam questoes praticas pro- postas pelos transmissores que utilizam meios de comu- nicagéo de massa. No entanto, para a criagdo de pro- PESQUISA E TEORIA 555 posigdes cientificas que especifiquem as condigdes em que aumenta ou diminui a eficiéncia de um ou de outro tipo de comunicagao de persuasiio, as provas existentes s&o muito limitadas. Embora a pesquisa aplicada possa ser util para sugerir hipéteses provisérias e para propor problemas tedricos para andlises mais comipletas, a acentuagao pritica redunda, freqiientemente, no esque- cimento de questées significativas e “provocantes”, que nao parecem ter aplicagio imediata. Por isso, existe grande necessidade de pesquisa bAsica para comple- mentar os resultados derivados de pesquisas prdticas. Tal pesquisa, que inclui experimentos psicolégicos numa situagéo de comunicagéo, pode contribuir para nossa compreensao dos processos de meméria, pensamento, motivacao e influéncia social. A primeira fase do Brogranns, de acérdo com a des- crigao de Hovland e seus colaboradores, focalizou questées relativamente especificas s6ébre fatéres e condigdes que influem na eficiéncia das comunicagdes para provocar mu- danga de opiniao; por exemplo: “De que maneira as dife- rengas na credibilidade do transmissor influem: (1) na maneira pela qual a apresentag’o e o contetido sao perce- bidos e valorizados? (2) no grau em que as atitudes e crengas séo modificadas?”. “Sob que condigdes o confor- mismo verbal explicito facilita a aceitagao das crengas e opinides defendidas pelo transmissor ou nela interfere?” E assim por diante. Os estudos iniciais apresentaram, pelo menos, respostas provisérias a essas perguntas, Ao mesmo tempo, sugeriram novas maneiras para organizar o proble- ma que pareciam mais produtivas pata a criagdo de uma teoria unificada de comunicagio e mudanga de opinifio. Esses novos tépicos “atravessam as categorias usuais de pesquisa de comunicagao”, e acentuam os processos existen- tes na mudanga de opiniao, e nao as condigdes em que ocorre. Incluiram o estudo de processos de interiorizagao, através dos quais o “conformismo externo” se transforma em “conformismio intimo”; a relagéo entre conflito e mudanga de opiniéo; as relagdes entre percepgao, julgamento e for- magao de coneeito. 556 METODOS DE PESQUISA NAS RELACOES sOcIAIS A pesquisa contribui para a criacio de teoria também em formas menos planejadas. Esclarece os conceitos; refor- mula e estabelece novas focalizagdes para a teoria.® Uma das contribuigées mais freqiientes da pesquisa empirica é 0 esclarecimento dos conceitos usados nas teorias. Isso ocorre porque a pesquisa nao pode utilizar conceitos apresentados em térmos gerais; para a pesquisa, é preciso encontrar’ algum indicador do conceito.!° A fim de escolher um indicador observavel de um conceito, é preciso escla- recer o que éste significa. Por exemplo, se, um pesquisador deseja estudar a influéncia de alguns aspectos da estrutura da comunidade na satide mental, precisa ter alguma forma de avaliar a saide mental dos sujeitos do estudo, No entanto, a fim de criar uma medida adequada, precisa esclarecer 0 que entender por “satide mental”. A necessidade de “defini- ges de trabalho” na realizagao de pesquisa freqiientemente indica imprecisbes nos conceitos usados pela teoria e exige definigses mais precisas. Também de maneiras nfo-planejadas a pesquisa pode conduzir ao inicio da teoria. Uma pesquisa, quer tenha como origem alguma formulagio tedrica, quer se baseie em abordagem mais préxima do ensaio-e-érro, pode apresentar um resultado inesperado, por ser incompativel com as teorias existentes ou com outros fatos. Em sua busca de uma explicagio, o pesquisador pode formular uma nova hipétese, que entao se torna a base para pesquisa subseqiiente. Stouffer (in Merton e Lazarsfeld, 1950) descreve, nos se- guintes térmos, o incidente que inicialmente conduziu a introdugSo do conceito de “privag3o relativa” na interpreta- gfo dos estudos de The American Soldier: Lembro perfeitamente a nossa perplexidade, du- rante varios meses, na Divisio de Pesquisa, ao verifi- carmos que Os negros nortistas, deslocados para os Estados sulinos, apesar de dizerem que ressentiam a discriminagio nos énibus e pela policia, mostravam respostas tio favordveis ou mais favordveis, nos itens 9 Nesta seccio utilizamos a discussao feita por Merton (1957, Capitulo 3). 10 Este é, naturalmente, o processo de estabelecimento de “defi- nigdes de trabalho”, discutido no Capitulo 2, pags. 50-52. f } PESQUISA E TEORIA 557 que indicavam ajustamento pessoal no Exército, que os colocados em acampamentos do Norte. Alguns de nossos analistas estavam quase desesperados diante dessa discrepancia. Na _realidade, guardaram o rela- tério de seu estudo por mais de um més, enquanto verificavam e reverificavam 0 trabalho, na va esperanca de encontrar erros, nos dados ou na anilise, que expli- cassem 0 paradoxo, Quando, finalmente, se sugeriu que o soldado negro do Norte, quando colocado no Sul, tinha grandes vantagens com relag&o aos negros civis do Sul e que as vantagens com relagaio aos negros civis do Norte eram muito menores, surgiu uma indicaczo para explicar o paradoxo, Depois de algumas dessas experiéncias, tornou-se evidente, para algutis, que um conceito, como “privagao relativa”, poderia ser util. Certamente, a nogio de que as pessoas valorizam seu status através de comparagdo com os de outros nao era inteiramente nova. Tinha sido sugerida antes por George H. Mead, Herbert Hyman e Muzafer Sherif. Apesar disso, a formulagao apresentada em The American Soldier tinha alguns elementos novos e ampliava consideravelmente o conceito, Raramente ocorre que um resultado inesperado conduza, num tnico momento, a criagio de um conceito tedrico inteiramente névo. Outras vézes, a pesquisa pode conduzir a reformulagao ou ampliagéo da teoria, por acentuar fatos até entao esque- cides. Esta fungdo é diversa da precedente, pois, aqui, os fatos nfo sio incoerentes com as teorias existentes ou com outros fatos. Nao hd necessidade de encontrar alguma explicagéo nova, mas sim de. reformular uma_teoria ja existente que é capaz de explica-los, Por exemplo, nos conhecidos “Estudos de Hawthorne” (Roethlisberger e Dickson, 1939), os pesquisadores come- garam com’a teoria de que as condigées fisicas influem no rendimento do trabalho, Na realidade, essa relagio tinha sido bem verificada; os pesquisadores se interessavam pela identificagao dos efeitos de mudancas especificas, a fim de encontrar condigées dtimas. Inicialmente, encontraram o que esperavam: a melhoria nas condigées fisicas Pprovocava aumento de produtividade. No entanto, depois verificaram a7 558 METODOS DE PESQUISA NAS RELACGES SOCIAIS que as mudangas na diregio de condigdes objetivamente piores também provocava aumento na produg&o. Isso con- duziu a um reexame da teoria inicial, A dificuldade, apa- rentemente, nao residia na incorregao da teoria, mas no fato de omitir varidveis importantes. As condigées fisicas influiam na produg&o, mas ésse efeito era obscurecido pelo efeito muito maior de outras mudangas que acompanhavam os contrdles experimentais. Os operdrios no grupo experi- mental sabiam que estavam tomando parte num experimento e se interessavam por seu resultado; tinham, com o super- visor, relacdo diferente da encontrada nos departamentos normais da fdbrica; o fato de serem isolados como um pe- queno grupo féz com que houvesse um aumento de coesio entre éles. Esses fatdres sociais e de atitudes eram tao impor- tantes que obscureciam os efeitos de mudangas nas condig6es fisicas, Disso resultou uma grande ampliagao da teoria de que a produgo é influenciada por fatéres da situagio de trabalho, a fim de incluir, além das condigGes fisicas, as condigdes sociais. A pesquisa empirica também pode dar nova focalizacdo para a teoria, ao provocar interésse por novas Areas. Isso ocorre, sobretudo, através do desenvolvimento de novos processos de pesquisa, o que provoca um rapido crescimento de pesquisa sdbre assuntos que podem ser investigados por tais técnicas. A medida que a pesquisa se acumula, o inte- résse tedrico muda na mesma diregao, nao porque os resul- tados de pesquisa conduzam automaticamente a teorias, mas porque uma grande quantidade de observagédes empiricas apresenta um campo feértil para o desenvolvimento ¢ a veri- ficagio de conceitos tedricos. Considere-se, como exemplo, o problema da natureza e da organizagéo das capacidades humanas. Mesmo antes do aparecimento do que hoje consi- deramos a psicologia cientifica, ésse problema tinha provo- cado algum interésse. Mas os psicdlogos das “faculdades” e os frenologistas, interessados em alguns aspectos do pro- blema, no tinham meios eficientes para estudd-lo; estavam, necessariamente, limitados a teorizagio especulativa de -ga- binete e a exemplos dramiaticos (ou, como ocorria freqiiente- mente, a coincidéncias dramaticas). Com a criacio de técnicas para a mensuracio de capacidades, a dependéncia com relagio a casos dramaticos péde ser substituida por ; : PESQUISA E TEORIA 559 dados sistematicamente coligidos; uma especulagao, que de outra forma poderia ser estéril, péde interagir com tais dados, propor novos problemas para mensuragio, exigir experimen- tagio com fatéres que influiam nos resultados das medidas @ assim se desenvolver em teoria produtiva. Portanto, nao é surpreendente que a solugao de Binet para o problema pratico de algum método seguro para o diagnéstico de debi- lidade mental marcasse o inicio de uma nova era na histéria da psicologia — uma era em que os éxitos, os fracassos e abusos do movimento dos testes de inteligéncia nao apenas conduziram a um exame critico das premissas bdsicas e ao desenvolvimento da teoria psicométrica, mas também servi- ram como ponto de partida para esforgos que procuravam responder ao desafio da mensuracio de outros aspectos complexos da personalidade. E, evidentemente, a ampliagao das medidas para o dominio da personalidade inevitavelmente apresentou questdes referentes & conceituagao de varidveis da personalidade, etc. etc. Para considerar um exemplo menos conhecido cujas re- pereussdes atingiram um dominio muito mais restrito que as do movimento de testes: quando Zeigarnik decidiu veri- ficar uma inferéncia da teoria de Lewin — segundo a qual as pessoas lembrariam melhor as tarefas que n&io, puderam terminar que aquelas que tivessem completado — introduziu uma técnica experimental que permitiu a verificagio de grande variedade de hipoteses. Disso decorreu uma prolife- ragaio de pesquisa e teoria sébre os efeitos, em sistemas de tensio, de diferentes varidveis, tais como éxito e fracasso, orientagio para a tarefa e para o ego, realizagao de agées substitutas que, sob alguns aspectos sistematicos, diferem de tarefas interrompidas, ete. ! Interrelagdo de Teoria e Pesquisa — Um Sumdrio A relacao entre teoria e pesquisa é de contribuigées mituas. A teoria pode indicar areas em que a pesquisa tende a ser produtiva, pode sumariar os resultados de varios estudos 11 Para uma discussiio extraordiniriamente completa da interacio do teoria e pesquisr, de acdrdo com essa orientagao, ver Lewin (1951), “Formalization and Progress in Psychology”. 560 METODOS DE PESQUISA NAS RELAGGES SOCIAIF especificos, pode dar uma base para explicacéo e predigio De outro lado, os resultados da pesquisa podem verificar as teorias j4 criadas, podem. esclarecer conceitos tedricos e su- gerir novas formulagées tedricas ou ampliar as j4 apresen- tadas, Além disso, o processo de contribuigéo reciproca é continuo; a pesquisa estimulada por consideracées_tedricas pode propor novas questdes tedricas, que por sua vez con- duzem a outras pesquisas, e assim por diante, indefinida- mente. Em qualquer ponto dessa espiral em que o cientista social decida trabalhar, a significagao de sua contribuigio aumentar4 com sua compreensio dos processos que ligam os resultados de estudos isolados as formulagées tedricas. Reali- zax pesquisa sem interpretagado teérica, ou teorizar sem pesquisa ¢ ignorar a fungéo essencial da teoria como um instrumento para conseguir economia de pensamento.

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