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Facetas de uma mesma moeda

– Ô, Zé, traz mais uma!

Sexta-feira. Raí saiu com a noiva. Resolvi sentar, sozinho, num bar próximo de casa pra
pôr as idéias em ordem, fazer um balanço geral de como as coisas iam e foram; da vida.
Isso é algo que deveria ser mais difundido na sociedade. Sei que demanda energia e ela é
justamente o que falta pra maioria das pessoas que chegam tarde e exaustas das suas
jornadas de trabalho rotineiras. Não julgo. Mas que faria um bem danado, faria! Essa vida
cada vez mais "robótica" sempre me incomodou. Afinal, não somos seres pensantes?

Zé trazia mais uma cerveja quando, por cima de seu ombro, vi Toninho – ah, então era
assim que ele teria ficado? – se aprochegando. Impossível não reparar o quanto mancava,
embora ele tentasse ao máximo disfarçar. Ofereci meu copo e ele me contou sua história;
não só de como se envolveu no acidente, mas de tudo o que tinha se dado desde então.
Que fique de lição aos jovens: essa busca incessante pelo prazer, na maioria das vezes
imprudente, frequentemente vem buscar seu pagamento. E não seria diferente pro
Toninho. O culto à aparência e às posses lhe subiria à cabeça. Foi nessa mesma época que
me distanciei dele e segui em frente, por outro caminho. Dali em diante ele encarnaria
James Dean e, pra se mostrar pra namorada, se envolveria num acidente de carro.
Felizmente pra ele, não fatal. Ou seria? Se o ocorrido lhe tiraria a paixão pela vida e o
poria atrás das grades da apatia, isso não seria o mesmo que algo "fatal"?

Eu consolava Toninho, que chorava aos soluços, quando surgiu do meu lado com um
mochilão daqueles maiores que o próprio corpo, Nino. Pele típica de quem passou muito
tempo exposto ao sol e um português "sotaqueado". Ofereci meu copo e ele me contou
sua história; não só de como já tinha estado em todos os continentes, mas de tudo o que
tinha se dado desde então. Do quanto se arrependia por ter sumido do mapa, deixando
pra trás a namorada grávida, por temer a responsabilidade. Foi nesse ínterim que me
distanciei dele e segui em frente, por outro caminho. Teria fugido pra uma cidade vizinha e
arrumado um emprego que, meses depois, lhe daria dinheiro suficiente pra que ele
tentasse a sorte por aí. Acabaria pegando gosto pela vida em movimento. Viajaria de
hostel em hostel, de país em país, trocando trabalho por estadia; máximo de uma
semana. Conhecia todo tipo de gente, mas... Será que realmente passava a conhecê-las?

Eu observava o ponto de interrogação que pairava sobre a cabeça de Nino quando Tonho
– e que barriga era aquela! – deu o ar da graça. De longe consegui ver o reflexo da luz
em sua aliança incrivelmente polida e a cara inegável de "paizão" que ele trazia. Ofereci
meu copo e ele me contou sua história; não só de como acabou se casando com seu
amorzinho da época do colégio, mas de tudo o que tinha se dado desde então. Me contou
com ares de supremo orgulho sobre a bela família que havia construído e o quanto não se
arrependia de ter escolhido se casar com a Nívea logo que soube da gravidez. Falou dos
sacrifícios, do que abriu mão. Teria que abortar a maior parte dos seus planos – pra não
dizer "todos"; momento em que me distanciei dele e segui em frente, por outro caminho.
A partir daquele momento teria uma família pra cuidar, seu foco seria outro. Parecia
satisfeito, mas... O quão saudável é uma vida desprovida de (qualquer) ambição?

Eu via fotos do Tonho, sua mulher e filho, que ele trazia na carteira, quando de uma
BMW brotou Tony e todo o seu poder aquisitivo. "Esse venceu na vida!", diriam. Mas o que
tinha de bem vestido, tinha de "acabado". Ofereci meu copo e ele me contou sua história;
não só de como ganhou seu primeiro milhão, mas de tudo o que tinha se dado desde
então. Do quanto havia deixado em segundo plano, por querer focar na faculdade e
carreira, sua esposa e filho; o que culminaria na sua separação e, mais tarde, afastamento
astronômico em relação ao filho. Foi nesse último que me distanciei dele e segui em
frente, por outro caminho. Me disse ter juntado dinheiro suficiente pra que seus
tataranetos não precisassem trabalhar. Ah, é, mas isso se ele fosse chegar a ter uma
relação ou mesmo contato com algum; o que me traz o questionamento: se a sua vida se
resumiu ao seu trabalho, você viveu? Dinheiro terreno tem serventia no Céu?

Eu analisava a expressão inexpressiva do Tony, onde se lia "a ficha caiu", quando uma
ideia e uma vontade súbita de ir pra casa me ocorreram. Agradeci mentalmente pela
presença de cada um deles naquela noite, me despedi e me pus porta afora. No caminho
pra casa ponderei sobre a história de cada um e o quanto as suas histórias influenciavam
a minha. Eu que, assim como o Toninho, dei asas infinitas ao prazer e acabei por causar
uma gravidez não-planejada; como o Nino, dei valor exacerbado à minha individualidade e
não criei vínculos com a minha esposa – o que nos levou à uma separação; como Tony –
no meu caso pra não deixar faltar nada ao meu filho –, dei atenção demasiada ao
trabalho, negligenciando por vezes os momentos pai-e-filho; como o Tonho, dei prioridade
ao bem-estar e necessidades do meu filho, esquecendo dos meus próprios no processo.

É... Minhas necessidades, vontades e sonhos...


Obrigado, Toninho, Nino, Tonho e Tony. Obrigado, Raí. Obrigado, Nívea.
Cheguei em casa e foi só o tempo d'eu arrumar as malas e deixar uma carta, que dizia:

"Sabia que eu ia te chamar de 'Raimundo', filho?


Mas acabei ficando só com 'Raí', pois o 'mundo' você me deu quando nasceu.
... E agora ele tá me chamando.
Fui viver!
Não me espere acordado!

Do pai que te ama,


Antônio"

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