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Ss @ = rs 3 G f = Sumdrio Para entrar neste livro quando se € jover... ¢ mais tarde, 9 1. A IDADE Meoia, 11 2, OS CAVALEIROS, A DAMA F Nossa SENHORA, 23 3. CASTELOS FORTIFICADOS & CATEDRAIS, 37 4. AS PESSOAS DA [DADE MEDIA, 51 5. Os roneROsoS, 65 6. A RELIGIAO E A UNIDADE DA EuRoPA, 75 7-0 IMAGINARIO RELIGIOSO DA IDADE MeDIA, 89 8. A curTuRA, 99 ConcLusio O nascimento da Europa, 109 PEQUENA CRONOLOGIA, 115 PARA ENTRAR NESTE LIVRO QUANDO SE E JOVEM... E MAIS TARDE £ importante conhecer o passado para compreeader melhor © presente, para saber em que estamos dando continuidade a le, em que estamos nos separando dele. s historiadores perceberam que compreendiam melhor 0 passado ¢ podiam explicé-lo melhor, particularmente para as criangas e 0s jovens, quando o dividiam em sucessivas épocas, cada uma delas com suas caracteristicas. Em relaglo & época ‘que chamamos de “Idade Média”, temos dois problemas: duracdo e seu significado, pois existe uma interpretacio favoré- vel e outra desfavorivel desse perfodo. A Idade Média inspirou romances histéricos aos escritores, entre os quais alguns tiveram grande sucesso, e filmes aos ci- neastas, desde que existe o cinema, fascinando os espectadores, particularmente as criangas. Mais uma razo para tentar expli- car a vocés o que foi a Idade Média e 0 que ela deve representar para nés. ua Capitulo 1 Aldade Média A IDADE MEDIA Quanto tempo durou? A Idade Média “boa” e a “ma” Aprendemos na escola que 0 século XVI é o séeuio do Renasci- ‘mento. Chamamos o século XVII de “classicismo”. © século XVIII €0 “século das Luzes". E a Idade Média: quando comega e quando termina? A Idade Média durou muito tempo: pelo menos mil anos! £ verdade que quando falamos de [dade Média pensamos quase sempre no perfodo que vai de 1000 a 1500. Mas ela comegou pelo menos cinco séculos antes, por volta do ano 500, portanto, durante 0 século V depois de Cristo. © tltimo imperador ro- ‘mano foi expulso de Roma e substituide por um rei birbaro, Odoacro, em 476. E 0 fim do Império Romano, porém, muito mais do que esse grande acontecimento politico, é também 0 fim da Antiguidade. “4 A lade Medio ‘Mas nem sempre hé mudanca de época toda vez que um rei de- saparece, ou toda vez que uma linhagem (uma dinastia) de reis ow imperadores é extinta E verdade: no século V depois de Cristo, houve outras mu- dangas muito importantes. J4 no século IV, haviam comegado as “grandes invasdes” por povos que os romanos chamavam de “barbaros”. Eles vieram, primeiramente, do norte (germanicos ‘outros povos do norte da Europa) e do oeste (celtas), mais tarde, do leste (hiingaros e eslavos). A palavra “invasao” nos faz pensar em bandos de barbaros passando como uma onda e devastando tudo, Na realidade, eram apenas pessoas que se deslocavam, pa- cificamente, para irem se instalar mais ao sul. Vejam os vikings: talvez vocés ja tenham visto imagens onde eles so mostrados de- sembarcando nas costas da Normandia, no norte da Franga, pa- ra saquear e destruir o interior. Na verdade, é provavel que fossem apenas mercadores vindos dos paises do norte para comerciar —e alguns deles acabaram se instalando na Franga. Entdo, houve também mudanca de religiao? Sim, mas nao por essa razio. A partir dos séculos IV e V, 0 Império Romane tinha se tornado cristio, depois que os impera- dores romanos se converteram, o que significou o fim do paga- nismo — essa era a palavra usada pelos cristdos para designar a religiao romana, com seus iniimeros deuses e deusas. Entlo, 0 paganismo desaparece — mais ou menos rapidamente, sem dii- vida nunca por completo — e, pouco a pouco, vai deixando lugar para o cristianismo. Os miiltiplos deuses pagios sto substituidos por tum dinico deus, o da Biblia (Antigo e Novo Testamento), em- Jacques Le Goff ay bora 0 Deus dos cristios compreenda trés pessoas (0 Pai, Filho € 0 Espirito Santo). E os proprios barbaros se batizam para se tornarem cristdos: na Franca, 0 mais famoso convertido é um rei franco, do qual vocés talvez jé tenham ouvido falar, Clovis (por volta do ano 500 depois de Cristo). Diz a lenda que ele se tornou cristo por insisténcia de sua mulher, Clotilde, Por que é uma lenda? E, eu disse de propésito: “Diz a lenda...”. Queria que voces prestassem atengdo ao fato de que, no comeco da Idade Média, principalmente, os historiadores possuem poucos documentos —a narrativa da conversio de Clévis, por exemplo —¢ eles nao contam, necessariamente, as coisas exatamente como elas se pas- saram. £ preciso, portanto, vé-las com um olhar critico, comparar ‘com outros documentos — ow outras “fontes”, como nés, os his- toriadores, dizemos. Aqueles que escreveram sobre esses aconte- cimentos tinham intengdes diversas na cabega. Nesse caso, por ‘exemplo, tratava-se de mostrar que, desde as origens, o pafs que mais tarde iria se tornar a Franga tinha sido batizado, era cristao desde o comego. A realidade é muito mais complicada. Nossa projessores também nos falam de uma “longa” Idade Média, HA uma razio para isso, pois se discute bastante para saber ‘quando ela termina. Eu disse a vocés “por volta de 1500”, porque € assim que esta nos livros escolares, é assim que ela é apresen- tada: segundo eles, por volta do final do século XY, primeiro na Italia e depois no resto da Europa, comega um novo periodo, 0 6 A Made Media “*Renascimento"; em alguns programas escolares, 6 0 comeco dos chamados tempos “modernos”. Mas, para certos historiadores, entre os quais me incluo, a Idade Média durou, na verdade, até 0 final do século XVIII. Por qué? Porque, resumindo, s6 nessa época é que trés acontecimentos vio mudar tudo, completamente, na vida da sociedade (entenda- -se: da sociedade ocidental europeia, e na verdade, em alguns paf- ses mais desenvolvidos como a Inglaterra, a Franca, a Europa do Norte). Primeiro, a ciéncia faz extraordindrios progressos, surgem instrumentos e métodos de pesquisa cada vez mais precisos. De- pois — ¢ isso é uma consequéncia dos progressos realizados nas diversas ciéncias —, por volta do final do século XVII, comegam a ser construidas e utilizadas méquinas cada vez mais eficientes, € sio inventadas técnicas de produgao cada vez mais ripidas. A primeira maquina a vapor surge na Inglaterra, em 1698 (gracas ao francés Denis Papin e ao inglés Thomas Savery). Ou seja, € 0 ‘comeco daquilo que iremos chamar de “Revolucao Industrial”. Fi- nalmente, ha as revolugGes politicas, particularmente a Revolugio Francesa, que é considerada um verdadeiro divisor de aguas na historia da Franca, da Europa, e até mesmo do mundo: ela acaba com o antigo sistema politico, o “Antigo Regime”, e como sistema chamado “feudal’, que é o proprio simbolo da Idade Média “ma”. ‘Mas de onde vem a expressdo “Idade Média"? Por que “mé Essa ideia surgiu no decorrer da propria Idade Média, princi- palmente perto do fim, primeiro entre estudiosos ¢ artistas que Jocques Le Goff y sentem que os séculos transcorridos antes deles — que para n6s S40 0 coragao da Idade Média — foram um intermédio, uma tran- sisdo, e também um periodo obscuro, um tempo de declinio, em relagdo & Antiguidade, da qual eles tém uma imagem idealizada. Eles sentem saudades dessa civilizagio antiga, mais refinada (se- gundo eles). $40 principalmente os poetas italianos, chamados de “humanistas”, que tiveram esse sentimento, por volta do final do século XV e comeco do século XVI. Eles achavam que os seres humanos tinham mais qualidades do que as que Ihes eram atri- buidas pela fé crista medieval, que insistia no peso dos pecados do homem diante de Deus. Existe uma segunda razo. O século XVIII, principalmente — © século das Luzes, como vocés bem lembraram ainda hi pouco —, conheceu uma onda de desprezo pelos homens e pela civiliza- fo da Idade Média, A imagem dominante era a de um periodo de obscurantismo, no qual a fé em Deus esmagava a raziio dos ho- mens. Os humanistas e os iluministas,filésofos do sécalo das Lu- zes, nao compreendiam a beleza e a grandeza daqueles séculos. Resumindo, a Idade “Média” ¢ aquela que se estende entre dois perfodos que sdo tidos como superiores: a Antiguidade e os Tem- os Modernos, que comegam com 0 Renascimento — uma pala- vra também muito particular, a Antiguidade “renasce”, a partir dos, séculos XV e XVI, como se a Idade Média fosse um paréntese! Temos entao a imagem de uma Idade Média “ma”, Mas nao foi ssa a imagem que predominow, ndo é? Isso mesmo. Quem reencontrou a dimensio da bela e gran- diosa Idade Média foram os escritores chamados “roménticos”, 8 A Idede Media no século XIX. Por qué? Ainda nao pronunciamos a palavra “gotico”, que esti colada as catedrais medievais. Mas “gotico”, ue foi utilizado apenas a partir do Renascimento, queria dizer “barbaro”. Aqueles que insistem na Idade Média “ma” acham que suaarte ¢ “barbara”. Os roménticos, pelo contrério, admiram essa arte refinada e maravilhosa que ¢ 0 estilo gético, em particular 0 das catedrais. Um exemplo dessa admiracao, que vocés talvez co- mhesam, € 0 romance O Corcunda de Notre Dame, no qual Victor Hugo imortalizou a catedral que tem esse nome, que acolhe sempre milhares de visitantes, no coragio de Paris. Mas é preciso reconhecer: hoje em dia, as duas visdes — a de uma Idade Média obscura e a de uma Idade Média dourada — sobreviveram. Ouvimos com frequéncia esta expressao, inclu- sive de pessoas instruidas: “Nao estamos mais na Idade Média!” ‘Tratar alguém ou alguma coisa de “medieval” nao é propriamente um elogio.. Fmbora nao seja totalmente falso! Eu diria que a Idade Média nao 6 0 periodo dourado que cer- tos romanticos quiseram imaginar, mas também nao 6, apesar das fraquezas e aspectos dos quais nao gostamos, uma época obs- curantista ¢ triste, imagem que os humanistas ¢ os iluministas quiseram propagar, E preciso consideré-la no seu conjunto. Em relagio a Antiguidade, ¢ um periodo de progresso e desenvolvi- ‘mento em diversos pontos, e vou mostrar isso. Existe, é verdade, uma Idade Média “ma”: os senhores oprimiam os camponeses, a Igreja era intolerante e submetia os espiritos independentes (que eram chamados de “hereges”) & Inquisiglo, que praticava Jocques Le Goff 9 a tortura e matava os revoltosos nas fogueiras... Havia muita fome muitos pobres; todos tinham medo, um medo exagerado, por exemplo, do mar e das florestas...e do diabo. Mas hoje temos ou- tros medos que s2o ainda mais numerosos, e alguns mais assus- tadores (medo dos extraterrestres, por exemplo, ou aquele, bem real, da bomba at6mica). No entanto, existe também a “bela” Idade Média, presente, principalmente, na admiragio das criangas: diante dos cavalei- 10s, dos castelos fortificados, das catedrais, da arte romanica e da arte gética, da cor (dos vitrais, por exemplo) e da festa. Tam- bem esquecemos quase sempre que, na Idade Média, embora as mulheres ainda tivessem um lugar inferior ao des homens, adquiriram ou conquistaram uma posicao mais justa, mais igual, de mais prestigio na sociedade — posigao que nunca tinham tido antes, nem mesmo em Atenas, na Antiguidade. E depois, volta- so com certeza, a [dade Média € 0 momento do remos a falar nascimento da Europa! O senhor disse “Europa”... Sim, isso é muito importante: a Europa comega e se cons- titui com a Idade Média. A civilizagdo da Antiguidade romana s6 compreendia uma parte da Europa: os territérios do sul, situados na sua maioria em torno do Mediterraneo. A partir do século V, 08 paises do norte (Alemanha, ¢ depois a Escandina- via), do oeste (Bretanha, Inglaterra ¢ Irlanda) ¢ do leste (Hun- gria, pafses da Europa Central) foram pouco a pouco entrando ‘num espaco politico ¢ religioso comum — que iri constituir a futura Europa, 20 A ldade Media Podemos entao dizer que a grande unidade do Império Romano terminou por volta do ano 560 depois de Cristo? sso mesmo. Daf por diante, os novos habitantes da futura Eu- ropa vao formando grupos e se fixando em te de onde sai- rio as nagdes, 3 frente das quais haverd quase sempre um novo ersonagem, muito importante, do qual voltaremos a falar: o rei, E étambém o fim do latim, a lingua falada no Império Romano. ‘Quanto mais ao norte ficam os que vao chegando, mais conser- vam sua lingua de origem, com varios empréstimos de todos os tipos ao latim, é claro, Este iltimo toma-se a lingua erudita escrita, assim sera até o século XV. Nos pafses do sul, o latim que era fa- lado no Império Romano evolui muito, ao longo dos séculos. Dele ‘nasceu o grupo das “linguas latinas”: o francés, 0 italiano, 0 espa- nol, o portugués e também, ndo nos esquecamos, o romeno. O senhor acha qiue 0 estudo do latim na escola seria itil? Acho importante ter acesso a heranca do passado através do latim. Para aqueles que pretendem escolher profissoes liga- das as “letras” seria timo se pudessem estudar bastante latim. Mas os que querem se dedicar a uma profissao cientifica pode- tiam aprender menos, sem contudo deixi-lo completamente de Jado. A meu ver, um minimo de latim iria ajudé-los mais tarde, (Ogrego, lingua da parte oriental do Império Romano, foi comple. tamente deixado de lado, no Ocidente? ‘Sim, a parte oriental grega do Império Romano formou um ‘mundo a parte: 0 Império Bizantino, pois este havia conservado & Jacques Le Goff a sua frente um imperador estabelecido em Bizincio (ou Constan- tinopla). Essa cidade era também a sede da Igreja grega, chamada de ortodoxa, cujo chefe se considerava superior a0 papa. © mundo cristao ocidental logo se separou politicamente (a partir do século VII) do Império Bizantino. © papa conquistou ‘mais lentamente sua independéncia, que s6 foi alcangada defini- tivamente no século XI. As relagdes entre o cristianismo ocidental romano ¢ 0 tianismo oriental bizantino esfriaram muito e tornaram-se con- fituosas. Em 1204, os cristfos romanos, a caminho da cruza- da contra os muculmanos no Oriente, tomaram e saquearam Constantinopla. Capitulo 2 Os cavaleiros, adama e Nossa Senhora Os CAVALEIROS, A DAMA E Nossa SENHORA Os cavaleiros A palavra “cavaleiro® lembra “cavalo”. Ha uma ligagdo entre as duas? Claro, Estamos tao habituados a ver o cavaleiro sozinho com sua armadura que, as vezes, esquecemos daquilo que esta na ori- ‘gem do seu nome: 0 cavalo. O cavaleiro ¢ 0 homem que possui uum cavalo, Mais exatamente: um cavalo de combate, ¢ ndo um cavalo de tracio que trabalha puxando 0 arado (o boi, durante ‘muito tempo, e até recentemente, preencheu essa fungio). Tam- bém nao € um cavalo de corrida, muito menos o pu-o-sangue ‘abe. Trata-se de um cavalo vigoroso, chamado “deste, um ca- valo de batalha, 26 A Idede Media E uma novidade da Idade Média? E sim, Esse tipo de cavalo veio provavelmente da Asia, por vol- ta do século VII. Em todo caso, ele nao estava presente na Antiga, Roma, ¢ nio tinha, entdo, nenhum papel na batalha. Sua utiliza- ‘s20 para o combate, no tempo da cavalaria, é novidade, ¢ tinica, ‘avaleiro" também faz pensar em “cavalheiresco” Sim, e essa palavra também nos leva, certamente, a uma das imagens mais fascinantes dos homens da Idade Média. Pode- ‘mos ver bem isso nas narrativas que chegaram até nés: nelas, © cavaleiro o heréi principal; espera-se dele atos de coragem {que o transformarao num personagem fora do comum. Varias, narrativas da Idade Média contam suas aventuras, suas facanhas, © prestigio que o envolvia, e também suas virtudes “cavalheires: cas”: sua nobreza de espirito e sua coragem. O senhor disse que 0 cavaleiro montava um “cavalo de batalha’. Por que essa precisto ¢ importante? Porque o combate a cavalo, na luta, por ocasiao de manifesta- 4g0es como 0s torneios, vai produzir invengoes, objetos e gestos que nio eram conhecidos anteriormente. A primeira grande no- vidade sio os estribos, que permitem segurar melhor 0 cavalo durante o combate. Aparece também a sela— que sera cada vez mais refi nada. O proprio cavalo é protegido por uma armadura {que Ihe cobre a cabega. O cavaleiro também usa armadura, e ain- da tem uma espada e uma langa... ‘Tudo isso porém — 0 cavalo, a armadura, as armas... — custa caro, E isso explica as diferengas exteriores — entre cavaleiros Jacques Le Goff 7 ricos e bem equipados, que tém auxiliares ¢, portanto, “enchem os olhos”, e cavaleiros pobres, que tém equipamentos mais mo- destos e nao tém ajudantes. ‘S40 muito impressionantes as imagens do cavaleiro com sua ar- madura, sentado num cavalo também equipado com sua crmadura, E mesmo, e posso acrescentar que o efeito causado era 0 mesmo, no tempo da cavalaria. Esse aspecto exterior impres- sionava seus contemporaneos, pois era algo excepcional. & a armadura que mais chama a atenglo. Com a cota de malha sobre 0 peito, 0 elmo sobre 0 rosto, 0 cavaleito parece um, homem fora do comum. Ao se movimentar sobre o cavalo, a armadura fazia barulho, e esse tilintar no passava despercebi- do. Ao contrario do padre que, fora do servigo religioso, € um homem silencioso, o cavaleiro é um homem barulhento que se exibe publicamente. (O que faziam os cavaleiras, como ocupavam 0 dia? Sua principal atividade era o combate. No entanto, ao contré- rio do que geralmente se acreditava, ndo se trata, na maioria das vezes, de um combate individual, um contra 0 outro, mas de um. combate coletivo, de um grupo contra outro grupo. AME nos tomeios? Até mesmo nos torneios. Os combates eram limitados no tempo e no espaco: por exemplo, eram realizados quase sempre nna primavera. E havia dois tipos de jogos: a caca e a diversio. Os cavaleiros eram grandes cagadores e a caga também era praticada s A Idede Média ‘em grupo. Por outro lado, ha os tomeios, onde uma tinica coisa ‘esti em jogo: o prestigio, a honra. E eles também sao coletivos, havendo dois partidos, ou dois campos opostos. Os torneios eram s6 uma brincadeira, ou eram levados a sério? Havia mortos, nos toreios? Claro que eram levados a sério: geralmente s6 havia feridos (pois a armadura protegia das espadas e das lancas) e, assim como nna guerra, era preferivel fazer prisioneiros ao invés de mortos, pois eram liberados mediante o pagamento de um resgate. Era uma fonte de lucro, Mas também se podia perder a vida — como aconteceu com o rei da Franca, Henrique II, morto num torneio, em 1559. Alids, precisamos saber que a Igreja Catélica, durante muito tempo, manifestou sua oposicao & guerra e & violéncia ar- ‘mada, e que cla condenow os torneios (0 que mostra que nao era apenas para se divertir que eles se enfrentavam). A Igreja (quan- do digo “Igreja’, estou falando do papa e dos bispos) conseguiu até proibi-los, a partir do século XII. No entanto, eles voltaram 4 moda, nos séculos XV e XVI. A tal ponto que, na metade do século XV, o rei René, prestigiado conde de Anjou e da Provenca futuro rei da Sicilia, escreveu um livro sobre os torneios, que fez muito sucesso. Por que os torneios acabaram? Antes de tudo porque a invengao e a generalizasio das armas de fogo mudou as regras, nilo apenas dos tomeios, alids, mas de todos os combates, e mudou também o jeito de fazer a guerra. Jacques Le Goff 29 Sabemos que, na Europa, 0s professores costumam lesar seus alu- nos para visitar lugares onde so realizados esperéculas medievais, inclusive tomneios. Como o senhor explica esse interesse? © tomeio é uma das imagens fortes e, por assim dizer, eternas que nos restam da Idade Média, Na literatura moderaa, ele tam- bem “ressuscitou’, assim como as catedrais, por obrados escrito res rominticos, no século XIX. Vocés leram Ivanhoé, do escocés Walter Scott? Esse famoso romance, publicado em 181g, tem uma ‘magnifica narrativa de um tomeio, No século XX, ceramente por causa de sua forma de grandioso espeticulo, os torreios foram ‘muitas vezes adaptados para 0 cinema. Mas para mim, o filme ‘mais belo e o mais fielmente dedicado & Idade Média é um filme de Robert Bresson, chamado Lancelote do Lago (1974), onde ha ‘um tomeio. Apesar de ser um pouco dificil, aconselho a todas as criangas, a partir de dez anos, e a todos os jovens que o vejam. ‘Nas reconstituigdes da Idade Média, vemos também espetdcules de Jfaleoaria. Os cavaleiros praticavam mesmo a caga com o falco? Sim, essa e outras formas de caga faziam parte das suas ocu- pagdes. Mas cles também passavam muito tempo visitando suas, terras, fazendo peregrinacdes, organizando festas, assistindo a espeticulos de trovadores (ino sul) ou troveiros (como eram cha- mados no norte), de acrobatas, ouvindo miisica.... No fundo, eles se dividiam entre o combate e a paz, mas sem diivida eram mais, apaixonados pelo primeiro, provavelmente porque acreditavam que a vida na terra é uma luta pela vida eterna, Hoje em dia, achamos que, em parte, foi para ocupar os cavaleiros que a Igreja organizou as Cruzadas, na Terra Santa. ny A ldade Média Ha cavaleiros muito conhecidos, como Ricardo Coragdo de Leao, ‘ou aqucles que o senor citoustvanhoe, Lancelote, Percival. n um instante, e prestem atengdo! Existem, de fato, entre ‘os cavaleiros de prestigio, cujas aventuras e faganhas foram nar- radas, personagens historicos, homens que existiram de verdade, como Ricardo Coragio de Ledo, rei da Inglaterra, morto em 1199. Mas ha também os personagens de romance, unicamente de r0- ‘mance! £ 0 caso dos famosos “cavaleiros da Tivola Redonda”. Incrivel! Quase todo mundo acha que eles existiram realmente! Pois é, tem muita forca essa lenda contada numa série de romances que surgiram em versos, durante a segunda metade do século XII, ¢ em prosa, na primeira metade do século XIII (portanto entre 1150 € 1250). Tudo se passa em torno de um rei do século V, do qual nao se sabe praticamente nada e que, no entanto, tornow-se 0 heréi mais espetacular da Idade Média: 0 rei Artur, chefe dos bretoes da Gra-Bretanha. Em torno dele, a imaginagao dos contadores teceu uma historia que conguistou lum enorme sucesso: a dos doze cavaleiros da Tivola Redonda. £ uma historia que prodigiosamente encantou os homens e as mulheres da Idade Média, entre outras coisas porque é fundada sobre uma rigida igualdade entre os cavaleiros, uma igualdade ‘que é expressa por um achado muito simples: eles se sentam em volta de uma “mesa redonda”, uns ao lado dos outros, sem que exista entre eles a menor hierarquia. Por outro lado, eles con- correm entre si para realizar uma ag3o de destaque, ou entdo 0 feito de maior prestigio para um cavaleiro medieval: cumprir a promessa ligada ao seu compromisso com Deus. gues Le Goff a essa promessa era 0 Santo Graal! Isso mesmo. De fato, essa sociedade cavalheiresca era também profundamente crista. A literatura arturiana inventou uma bela his- ‘ria, para que se honrasse a Deus ¢ ao Cristo, seu filho. Talvez seja ‘um pouco dificil para vocés compreenderem isso: na lenda da Té- vola Redonda, os cavaleiros prestam um servigo “mistico”, ou seja, cles estao a servigo de Deus para realizar uma missio divina, miste- riosa; esto comprometidos numa aventura que nao esté limitada a este mundo, que vem de outro mundo, do mundo celeste, ou divino, Foi Deus quem os enviow e prometeu a eles a recompeasa. A histé- ria logo se tornou “mitica”, ou seja, algo inacreditivel mas que, no fundo de nés mesmos, desejamos que seja verdade. Muitos, ainda hoje, gostariam de ser cavaleiros da Tavola Redonda, encarregados de encontrar esse objeto misterioso chamado de Santc Graal. Mas 0 que é 0 “Santo Graal"? £ uma taca magica, uma espécie de calice no qual a héstia da comunhao se transforma de verdade no corpo de Deus. Foi assim que a lenda do rei Artur conquistou, na Idade Média — e no apenas na Idade Média — a imaginagao dos homens e ain- da mais, talvez, das mulheres. £ bom lembrar que as ocupacdes © as proezas dos cavaleiros da Tivola Redonda sio unicamente agdes feitas por homens: os herdis sto todos rapazes, porque a sociedade dos cavaleiros ¢ antes de tudo uma sociedade mascu- lina, dominada pelos homens. » A ldade Medio A dama e Nossa Senhora Também se fala, na Idade Média, do papel da “Dama”! Na verdade, a dama ou as senhoras sto personagens de ro- ‘mance, heroinas inventadas, Apesar de saber que isso pode decep. ionar as mocinhas, € preciso dizer as coisas como elas so: na vida real houve poucas “damas", como aquelas de que falam os romances que contam a lenda de Artur... A verdade é que os auto- res medievais inventaram e deram destaque a mulheres notiveis por sua beleza e virtude, mulheres ideais, e os leitores acreditaram alguimas vezes — raramente, diga-se — que havia mulheres reais por trés dessas narrativas, que elas eram a encarnago de damas, de verdade. Nas histérias que eles contam, cada cavaleiro tem sua senhora e... raramente ela é sua esposa. Quer dizer que,'na vida real, na Idade Média, as mulheres eram inferiores aos homens? Eram sim, infelizmente, como em todas as sociedades anti- gas. Mas insisto em um ponto: na mesma época em que se es- palhou a lenda dos cavaleiros da Tavola Redonda, vemos nascer € se generalizar 0 casamento, no sentido moderno da palavra. De fato, a Igreja proibe, cada vez com mais firmeza, a poligamia (ter varias esposas) ¢ o divorcio. E concede as mulheres um lugar quase to importante quanto o dos homens. Particularmente, 0 consentimento da mulher (0 fato de que ela mesma diga “sim”, ‘quando se casa) torna-se obrigatério, enquanto que antes etam 2 familia e os pais que the impunham um marido, e ela nao po- dia dizer nada. £ claro que, no fimn das contas, todas as pressdes, Jecques Le Goff 3B podem ser feitas sobre as mogas para que elas fagam a escolha “certa” — ou seja, para que decidam por aquele que os pais esco- Iheram. Mas o principio & importante. E, gragas a el2, a maioria das mulheres fara, mais tarde, casamentos livres... Talvez vocés achem isso curioso hoje, quando temos a liberdade de casar, de no casar, de divorciar. No entanto, mesmo hoje em dia, 0 dirci- to das mulheres de escolherem 0 homem que amam ainda nao existe em numerosas civilizagdes. Entao, apesar de tudo, a “Dama” das lendas cavalheirescas tem uma certa influéncia na vida corrente! Certamente. Mas o papel mais importante é de outra dama, uma outra senhora da qual praticamente todas as criangas jé ou- viram falar, mesmo nao sendo cristas: estou faland> de Maria, a Virgem Maria, mae de Jesus. Do século XI ao século XIII, a devogdo por Maria, ou melhor, pela “Nossa Senhora’, teve uma grande importancia na religiosidade da Idade Média. O que é devogao? A devogao & Maria sao as oragdes ¢ as siplicas dirigidas a ela, as imagens ¢ as esculturas dela, os livros que foram escritos so- bre ela, 05 lugares de peregrinacdo onde ela 6 venerada, as igrejas as catedrais que the foram (e sio até hoje) dedicadas e levam seu nome, “Nossa Senhora” é a grande intermediéria entre os fiéis e Deus. De fato, para conseguir um favor de Jesus, o filho de Deus — uma cura, por exemplo —, as pessoas da Idade Média passam pela Virgem, a quem pedem para “interceder” por eles junto a Ele. E assim, Maria torna-se, de certa forma, “a” Dama da sociedade medieval. A Idade Media 1 Nossa Senhora também é importante para os cavaleiros? hela ‘que 08 socorra nas dificuldades... Ela tem um papel muito im- es também a invocam e suplicam que ela os ajude, Pportante nas promessas deles. Além dessa importancia de Maria, precisamos compreender o seguinte: durante a Idade Média, a ‘avalaria vai se tornando, cada vez mais acentuadamente, uma coisa sagrada, religiosa. © ato de se tornar cavaleiro € uma es- pécie de “sacramento”, realizado através de uma ceriménia reli giosa, com um ritual religioso. Para se tornar cavaleiro, é preciso passar pela Igreja e seus representantes, bispos, padres e monges — dos quais falaremos mais adiante (ver pigs. 56 a 59). O cava leiro faz seu juramento diante de Deus, diante de seu filho Jesus, diante de Nossa Senhora ¢ dos santos, durante uma ceriménia especial: a “sagracao”. ‘Mas havia também os cavaleiros “maus"! E como! Embora a Idade Média nos tenha deixado muitas imagens de cavaleiros “bons”. O prestigio excepcional desses ti: timos vem de duas qualidades: um comportamento fisico que suscita a admiracao das pessoas, e a pratica de diversas virtudes, como a defesa dos pobres, dos fracos, dos clérigos (os clérigos s0 0s homens cultos da Idade Média, principalmente padres € ‘monges, sem esquecer as mulheres que também se dedicavam a Deus e viviam, principalmente, nos monastérios). Mas é claro que também havia os cavaleiros “maus". Nos romances dos quais falamos, € também nas “gestas" (grandes narrativas poéticas que contam as facanhas dos cavaleiros, das Jacques Le Goff 3 quais a mais conhecida é a Cangio de Rolando), aparecem trai- dores, mentirosos, cavaleiros que perseguem as pessoas € matam. por prazer, senhor falou dos cavaleiros “bons”: Percival, Ivanhxé, Lancelote, ‘Também ficaram guardados os nomes de cavaleiros “maus"? HG 0 célebre traidor Ganelon, na Cangao de Relando. Mas, além dos traidores, ha umas espécies de monstros, como 0 gi gante Morholt, no romance Tistdo e Isolda, Mesmo que a ima- gem dos cavaleiros seja com mais frequéncia positiva, simpa- tica, ndo se pode esquecer os cavaleiros “maus", detestados € condenados pelos autores que falavam deles e pelos leitores que liam suas maldades. ‘A Idade Média gosta de descrever um mundo onde se opdem os bons € os maus, onde se desenrola um combate entre os anjos © os deménios. Vocés logo vio encontrar muitos cavaleiros ange- licais, ¢ outros que sto diabélicos, to maus quanto o deménio. (Os romances de cavalaria exploram essa tensio entre 0 Bem € 0 Mal, entre a honra e a desonra; a intriga (isto é, a historia que é contada) avanga gracas a essa oposigdo entre 0s bons os maus, Capitulo 3 Castelos fortificados e catedrais CASTELOS FORTIFICADOS E GCATEDRAIS Quem diz “Idade Média” pensa em “cavaleiro’, ¢ também em “castelo fortificado” ¢ “catedral”. E com toda a razao. E preciso dizer, porém, que os castelos fortificados e as catedrais sao edificagdes excepcionais. Na Ida- de Média, as construgdes eram geralmente modestas ou muito simples — as casas dos camponeses, particularmente, eram muito pobres, as vezes miseraveis. Mesmo nas cidades, sera preciso esperar um bom tempo para que surjam as constru- ‘goes de peda; durante muito tempo elas eram de madeira, 0 que explica os incéndios, tao frequentes na [dade Média: além das casas, foram muitas as igrejas, aldeias ¢ cidades que pega- ram fogo! Mas ha duas edificagdes que se impuseram no nosso imagi- nario, que fazem parte dos grandes simbolos da Idade Média: 0 castelo fortificado ¢ a catedral, a casa dos cavaleiros e a casa de 7° A ldade Média Deus ou, mais exatamente, dos representantes de Deus, isto 6, dos bispos. De um lado, o castelo fortificado ressalta 0 poder ¢ 0 prestigio dos cavaleiros; de outro, a catedral prolonga o prestigio de Deus através de seu representante mais importante, o bispo: este 0 chefe de um territério religioso chamado “diocese”, que corresponderia hoje a uma regito de virias cidades; na cidade onde ele mora, a sua igreja, a ‘casa de Deus” na qual ele vai rezat, pregar e celebrar as missas, chama-se “catedral’. Por que associamos o castelo ¢ a catedral? Porque esses dois tipos de construgao indicam, tanto para as pessoas instrufdas quanto para o povo, a dimensio ou a diregio da altura. Na Idade Média, a oposigao entre o alto e 0 baixo é “pro- jetada no espaco"; sdo construidas torres e muralhas muito altas, muito visiveis, para mostrar que se quer fugir do “baixo". Em outras palavras, aquilo que é alto, a altura, designa o que é grande e belo, Essa oposigdo entre o alto ¢ o baixo expressa na construcio dos castelos fortificados e das catedrais — o que quero dizer & que ela deve ser visivel — & muito importante na Idade Média. Corresponde, evidentemente, a oposicdo entre 0 céu ea terra, en- tre “ld em cima” e “aqui em baixo”. f dai que vem a importancia dada a elementos como a muralha e a torre. As igrejas medievais, possuem, geralmente, torres extraordindrias. As casas dos habi- tantes ricos das aldeias também tinham torres que, infelizmente, foram destruidas depois da Idade Média. Mas vocés talvez saibam que as mesquitas muculmanas tam- bém tém uma torre, chamada “minarete”, geralmente muito fina, que se ergue na diregao do céu: isto significa que as duas Jacques Le Goff # religides também faziam concorréncia entre si, através da arqui- tetura da sua “casa de Deus”. Quero lembrar que o isla, ow a reli- ‘gido mugulmana, foi fundado no comego do século VII (em 622) pelo profeta Maomé e que, portanto, € quase contemporineo da Idade Média. Mas voltaremos a falar disso mais tarde. Os castelos fortificados Quando se fazem castelos de areia, na praia, geralmente sdo cas telos fortificados, com torres e muralhas de ameias,fossos, caminhos ‘em forma de espiral que sobem ou descem, escadas estreitase escuras, cantinkos.. Vocés tém razio: tanto para as criangas quanto para os adultos, © castelo fortificado também faz parte da “bela” Idade Média. Mas para que servia, exatamente, o castelo fortificado? Para o cavaleiro ele tem duas funcdes, igualmente importan- tes. De um lado, faz o papel de defesa, logo, tem uma fungio militar (¢ uma fortaleza), e de outro, serve de moradia (€ um cas- telo). © tamanho dos castelos fortificados depende do niimero de pessoas que moram nele: na verdade, eles alojam e protegem, a0 mesmo tempo, a numerosa familia do senhor, seus servicais (e suas familias), e até mesmo os camponeses mais préximos. Alguns castelos fortificados s4o os ancestrais da cidade, que tam- bém compreende todos os tipos de individuos, de todas as idades € de todas as profissdes. ” A lade Medio No nlanto, temos a impressdo de que a maioria dos castlos fort- fiaidos, em bom estado ou em ruinas, se encontra no interior. fi verdade: os cavaleiros geralmente se mantinham afastados do povo da cidade, em particular dos “burgueses". Preferiam a proximidade dos territérios de caga e das terras cultivadas pelos camponeses. Mas também temos castelos nas cidades como, or exemplo, em Paris. O Palais-Royal, antigo castelo medieval, ou ainda 0 Louvre ficam em pleno centro da cidade. Na Itélia, a ‘maioria dos castelos fortificados fica nas cidades. Por que hé tantos castelosfortificados em toda a Europa? Porque, durante toda a Idade Média, entre outras razdes, a Europa passou por guerras e lutas muito s porque toda a Europa levava mais ou menos 0 mesmo modo de ias e numerosas, ¢ vida. Se quiserem ver belos castelos fortificados, procurem na Espanha, por exemplo, pois este pais ¢ uma grande terra de cas- telos. Ou ainda, na Europa Oriental. Na Polonia, por exemplo, a Ordem Militar Teut6nica (ou Ordem dos Cavaleiros Teut6nicos) construiu castelos espetaculares (em Malbork, principalmente). ‘Mas 0s castelos no permaneceram semelhantes ao longo da Idade Média? Claro que nao, eles evoluiram bastante. A mudanga se deu em dois aspectos. Por volta do século XI, a pedra substituiu a madei- 12, € isso muda o papel do castelo. Do século X ao século XII, tra- tase principalmente de construir um abrigo para o senhor e suas familias, mas cle também servia para guardar armas e provisoes —e €ai que surge o torredo, Em seguida, com o castelo fortificado Jacques Le Goff 4 de pedra, alojamento e provisoes sto protegidos por paredes es- pessas, fossos, pontes levadicas, seteiras e outras aberturas por onde sao lancados os objetos destrutivos sobre os agressores. O castelo fortificado torna-se uma verdadeira fortaleza, muito difi- cil de ser tomada. Como é possivel entao tomar um castelo fortficado? Principalmente pela traigio! Basta que um habitante, ou uma parte dos habitantes, dé uma ajuda aos agressores para que eles consigam entrar, de um jeito ou de outro, As vezes, nos filmes e nas histérias em quadrinhos, podemos ver © verco a um castelo fortificado: os agressores tentam subir por es- cadas encostadas na muralha, enquanto os habitantes do castelo tentam derrubé-los quando eles chegamt 1d em cima, ou entdo jogam sobre os agressorescaldeirdes de éleo escaldante. Era isso mesmo que acontecia? ‘Sim, mas repito, 0 cerco podia durar muito tempo, e o niime- ro de castelos que resistiram vitoriosamente com certeza ultra- passa aqueles que foram tomados. Os castelos fortificados eram construidos de tal forma e em lugares to especiais que quase disstadiam os inimigos de ataci-los (como os castelos Gaillard Coucy, a0 norte de Paris). ‘Mas entdo, o que fez com que os castes fortificados deixassem de ser construidos,e por que s6restam ruinas de muitos deles? Primeiramente, por causa do canhao: a partir do final do sécu- lo XIV e comego do século XV, o canhao, que é uma grande no- 4“ A Tdede Media Vidade técnica, consegue destruir as paredes mais espessas. De- ois, porque os castelos fortificados vao servindo cada vez mais de lugar para moradia — no Renascimento s6 servirdo para isso +0 que modifica, evidentemente, por completo, sta arquitetura © construsio. Além disso, depois da Idade Média, o rei da Franca, ara garantir seu dominio sobre os senhores, mandava destruir seus castelos fortficados, se eles fossem muito poderosos. © castelo forficado era conforsivel? Nio, Ele s6 ganhou conforto no perfodo posterior & chega- 4a do canhiio, quando se tornou, principalmente, um lugar para ‘morar. Até entdo, a vida dentro dele era muito dificil: 0 senhor e as pessoas mais préximas reservavam para si o uso das almofa- as; havia poucos méveis, as roupas eram guardadas em bais; as. mesas eram portiteis, ¢ as cadeiras, rudimentares. Nos castelos dos mais ricos, entretanto, as paredes eram decoradas com ta- esarias. O elemento mais importante era a lareira, ao mesmo tempo porque podia ser feita por um artista, considerada, por- tanto, como uma “obra de arte”, e também porque oferecia essa coisa tao preciosa para aqueles castelos tao frios: o calor. A lareira @ a sala onde ela fica sio 0 sfmbolo do lar, lugar de encontro, de conversas, de jogos. Como a alimentagao tem uma grande im- Portancia, a cozinha é geralmente um cémodo muito amplo (por exemplo, 0 pavilhao das cozinhas, construido por volta de 1350 sob a Conciergerie, antigo palicio real do século X ao XIV, em Paris). Na Idade Média, as pessoas se esforcavam para viver de forma higiénicae, portanto, havia latrinas de verdade (banheiros) nos castelos fortificados. Jacques Le Goff As catedrais senhor disse que 0 ponto comum entre o castelo ortificado e a catedral é a preocupagao com a altura... ‘Sim, as catedrais so imensas mas, acima de tudo, sio altas, ara impressionar aquele que as vé e as visita, ¢ fazer com que sinta uma coisa muito importante: a altura do lugar reflete a al- tura de Deus no céu. As catedrais sio dedicadas a de, so a sua casa. E seu prestigio se estende aquele que o representa na terra: © bispo. Um outro aspecto mais banal teve certamente sua im- portancia: as catedrais estilo quase sempre situadas nas cidades, que concorrem entre si para ver qual delas ter a maior, a mais alta, a mais bela catedral, Para que serviam as catedrais? Antes de tudo, elas eram, como se diz, um “lugar de cult”, ou seja, as pessoas se reuniam ali para rezar, celebrar a missa, par- ticipar dos oficios ¢ das ceriménias religiosas. Na catedral, que €a casa do bispo, representante de Deus, ha sempre dignitarios religiosos, que chamamos de “cénegos”, e que constituem o con- selho do bispo; de manha, & tarde e & noite, eles cantam 0 “oficio” — digamos simplesmente que louvam a Deus, o verdideiro dono da casa. Eles realizam esse “oficio” — 6 uma palavra que vem do latim que significa “ocupacao’, “trabalho” — no coro da cate- dral. Se vocés visitarem uma catedral, poderao constatar como é grande a parte reservada ao coro, e verao os bancos de madeira com encostos altos, as vezes magnificamente esculpidos, onde cles se sentavam para cantar. 6 A Lede Medio ‘Mas como era possivel, nessas catedrais imensas, ouvir as palavras do padre ow o canto dos cénegos? £ principalmente no século XIII, portanto a partir de 1200, {que a catedral se torna um lugar de pregacdo: um pregador se dirige aos fiéis, explica a eles a vida e o ensinamento de Cristo, fala da Virgem, dos profetas do Antigo Testamento, comenta 0 Evangelho,o livro sagrado dos cristaos cujo personagem central é Cristo. Ele também fala dos santos, encoraja a assembleia, critica, ‘exorta... Os féis, de pé, ouviam talvez mal, mas ele se expressava tanto pelo gesto quanto pela voz. A Idade Média é uma grande época de palavras e de expressio corporal. As pessoas se reuniam na catedral para outra coisa, além das ati- vidades religiosas? Sim, ela também serve de lugar de reunio, assembleias, fes- tas. Mas quero lembrar que, na Idade Média, jé existiam salas de reunido comunais: nao era preciso ir igreja para se reunir! Como eram construidas as catedrais? As catedrais que ainda existem sao quase todas de pedra. Mas, no inicio, nas regides pobres, com muitas florestas, as igrejas eram feitas de madeira: ainda restam algumas, magnificas, na Escandinévia, ou no sul da Polénia, Na Idade Média, as catedrais s40 os monumentos mais deco- rados. Particularmente, ha um aspecto que desapareceu, ou que nao vemos mais, quando olhamos as catedrais hoje em dia: elas tam pintadas, portanto, cheias de cores. Na decoragio entravam. também tapecarias, afrescos (pinturas feitas diretamente sobre Jacques Le Goff a as paredes de gesso), esculturas. Os lugares mais omamentados com esculturas eram, no interior, os capitéis (0 altoi das colunas, €, no exterior, 0 portico, a entrada principal. A forma ou o esti- Jo dessas esculturas evoluiu muito, Ainda uma palavra sobre 0 interior das catedrais: proximo & entrada, temos geralmente um. “batistério, ou seja, uma bacia de pedra situada num pequeno espago & parte; era preenchida com dgua-benta, no momento do batismo. Esse batistério é quase sempre ricamente decorado, Por qué? Porque o batismo é o “sacramento”, a ceriménia mais importante da religiao crista. As pessoas nascem judias ou mu- culmanas, mas ndo nascem cristas: elas se tornam cristas, pela gua do batismo que é jogada na testa do recém-chegado, seja ele bebé ou adulto. O senhor disse que a escultura das catedrais evoluiu muito... E verdade, mas o conjunto do edificio também, eisso gragas & descoberta de novas técnicas de construgdo. Distinguimos, prin- cipalmente, duas épocas. A partir do século X (por volta, portan- to, do ano 900), as catedrais vio se “arqueando” cada vez mais, ou seja, nao ha mais teto, mas sim uma abdbada onde as paredes se encontram, de certa forma. Até 0 século XII, porém, as igre- jas permanecem relativamente escuras, ndo se tem necessidade de clareé-las: € a arte ou o estilo que chamamos de “romanico”. Em seguida, busca-se a luz, ¢ acaba-se até identificando Deus, antes de tudo, 2 luz. Os progressos técnicos, a busca de grandes espacos, 0 uso cada vez mais desenvolvido do ferro e de metais diversos, permitem o nascimento, do século XI ao XIII, das gran- des catedrais que sto chamadas de “goticas”. Acho que ja disse “ A ldode Media ue "gotico” significa “barbaro": os godos eram o protétipo dos bbirbaros germanicos que tinham invadido o Império Romano, a partir do século V; portanto, no Renascimento e, principalmente, 4 partir do século XVII, essa arte “barbara” foi chamada de “g6- tica” — e, como jé vimos, os romiinticos, no comeco do século XIX, vao recolocar o gético na moda. Ouvimos dizer, as vezes, que haveria “segredos” nas catedrais, ow nna construcio das catedrais.. Nao € bem assim. As catedrais so magnificas e sua constru- ‘40 € muito complexa, digamos até complicada, dai a ideia de ue elas guardariam segredos. Mas essa ideia nasceu muito mais. tarde, no século XVIII, em corporasdes (ou associagdes) mais ou ‘menos secretas, os “franco-magons” (ou “macons livres”), que se diziam originérios dos construtores das catedrais. Por outro lado, é verdade que um certo néimero de catedrais tinha um tragado que representava um trajeto secreto, como se fosse um “labirin- to", 0 que desorientava o visitante, no inicio (por exemplo, em (Chartres, na Franca). As catedrais custaram caro? Sim. Alguns disseram que elas talvez tivessem sido cons- truidas por operarios que os senhores “emprestavam gratui- tamente” para a obra. Mas as coisas nao se passavam assim, Aqueles que trabalhavam no canteiro de obras eram pagos: arquitetos, pedreiros, artesdos de todos os tipos. Esses cantei- ros de obras duravam muito tempo, em seguida se deslocavam para outro lugar. Jacques Le Goff E quem pagava? © dro, principalmente, algumas vezes os burgueses € 0s ri- cos da cidade, mais raramente 0 rei e os senhores. Mas uma ca- tedral custava muito caro, e sua construgio podia se estender por muito tempo — ainda mais porque as obras paravam, \ustamente por falta de dinheiro. Bastava que a situacdo econémica piorasse, que estourasse uma guerra, que uma epidemia se propagasse, € a construgdo parava por falta de dinheiro para pagar os operirios. Por isso, varias catedrais ficaram inacabadas como, por exemplo, a de Narbonne, na Franca, e a de Colénia, na Alemarha (que s6 foi concluida no século XIX). O exemplo mais famoso, porém, & oda catedral de Siena, na Toscana (Italia) Ainda ndo falamos dos vitrais. Quando visitamos uma catedral, 1 de Chartres, por exemplo, ficamos sabendo que as pessoas simples, da Idade Média, aprendiam a Btblia e 0 Evangelho gracas as cenas representadas nos vitrais. 0s vitrais ormamentam, principalmente, as catednais géticas: ‘naquela época, para fabricar as janelas, usavam-se pedacos de vi- dro coloridos reunidos com ferro. Sao essencialmente os vitrais, que, hoje em dia, dio uma ideia desses edificios coloridos que foram as catedrais e certas igrejas. Para admirar essas cores, visi- tem, por exemplo, se ainda nao o fizeram, a Sainte-Chapelle, em Paris, construida por Sao Lufs, em meados do século XIII. Capitulo 4 As pessoas da Idade Média AS PESSOAS DA IDADE MEDIA Clérigos e leigos, senhores ¢ servos, burgueses, comerciantes e artesdos, viajantes e peregrinos, pobres e doentes ‘Até aqui, falamos, principalmente, da “bela” Idade Média, ‘mas hé também coisas menos belas. Por exemplo, quardo dizemos “sociedade feudal” é sempre para condenar a Idade Mécia... IE verdade, mas, como todas as sociedades, a Idade Média é ‘complexa. Por que a chamamos de “feudal"? Antes de tudo por- ‘que ela 6 dominada por “senhores” que tém subordinados cha- mados “vassalos”, aos quais eles concedem (“emprestam’, se preferirem) terras que lhes proporcionam uma renda e que so chamadas de “feudos”, daf o nome “feudal”. Essa palavra designa ‘um sistema social que os fil6sofos do século XVIII e os homens da Revolucio Francesa detestam e denunciam, porque 0 povo, os camponeses, as “pessoas simples” sao oprimidas pelos ricos € poderosos. Essa imagem permanece colada a Idade Média. 7 A Iede Média Os clérigos: "seculares” e “regulares” Podemos dizer que era uma sociedade por definigdo desigual, na qual os senhores oprimiam os servos? ‘Vamos falar disso. Mas antes, é preciso nao esquecer uma ou- tra divisio, ainda mais importante para as pessoas daquela época. Na Idade Média ha, ptimeiramente, uma grande separacao entre dois tipos de homem: de um lado, aqueles que dedicaram sua vida a Deus e a religito, e que sto chamados de “clérigos”; de outro, homens que, embora sendo bons cristios que honram a Deus, tém uma familia, uma profissio, so mais independentes em relagio a Igreja: sio os “leigos”. Os clérigos sao unicamente homens, nao hd mulheres? Quase isso: sto essencialmente homens — bispos, padres € também religiosos que chamamos de “monges”. Entretanto, ha também mulheres religiosas, que vivemem comunidades, nos monastérios (dai seu nome: sao as “monjas”). Os clérigos eram solteiros mas, durante os primeiros séculos da Idade Média, os Dispos e os padres viviam as vezes com uma mulher e tinham filhos. A partir do século XII, a Igreja proibiu definitivamente os casais e, mais tarde, essa proibi¢ao tornou-se rigorosa. Na mes- ‘ma época, os monges que viviam nos monastérios e, as vezes, acolhiam comunidades de mulheres, foram, a partir de enti, obrigados a exclui-las ou a manter separagdes muito rigorosas. Como alguém se torna clérigo? Aquele que tem essa “vocacao” pede ao bispo para ser admi- tido como clérigo. Depois, aprende a piedade, a devogao, Os que Jacques Le Gaff 5 vio se tornar padres recebem uma série de categorias, Je “graus”, cada vez mais importantes. 0 tiltimo € um sacramento, a “orde- nag2o": o padre se torna entao um clérigo superior, autorizado a ministrar os sacramentos (isto é, batizar, confessar, celebrar a missa) e a pregar. Acima do padre esta o bispo. Havia muitos clérigos? ‘Sim, principalmente se compararmos com os dias de hoje! Mas & preciso distinguir entre dois tipos de personagem religioso, no lero medieval — essa distinglo, aliés, ainda é valida. De um lado, ha os clérigos que estio em contato com os fiéis, tendoa frente os padres, geralmente encarregados de uma “paréquia’, no ambito de uma diocese dirigida pelo bispo. Eles constituem aquilo que chamamos de “clero secular’, pois vivem “no século’, isto é no mundo, Do outro lado, temos 0 clero que é solitirio e que vive isolado do mundo, mesmo que tenha mais contatos com 0 mundo do que podemos imaginar: s20 os monges, os “regulares”, aqueles que vivem sozinhos ("monge” vem do grego monakhés, e signifi- ca “que vive s6") e obedecem a uma “regra’. Esse nome “monge” (solitério) permaneceu, embora eles vivessem, na sua maioria, em comunidades, por sua vez bastante isoladas do resto do mundo. Mas ha varios tipos de monges... Eles eram numerosos, a partir dos séculos V e VI. Os mon- ges irlandeses, particularmente, destacaram-se pela fundagio de monastérios, nas regides francesas dos Vosges e dos Alpes. No século VI, um monge italiano, Bento de Nirsia, editowuma regra moderada (quer dizer, no muito severa), na qual 0 trabalho ma- 36 A ldade Medio nual e os oficios religiosos eram bem equilibrados. No comeco do século IX, 0 filho de Carlos Magno, Luis, 0 Piedoso, impés essa regra ao conjunto dos monges: sao os beneditinos. Mas nao parou por ai. A partir do século X, numerosas ordens religiosas foram criadas, inspiradas na regra de Sao Bento adapta- das evolusées da sociedade. Uma delas, fundada em Cluny, espa- Ihou-se por toda a Europa de forma extraordinéria, a tal ponto que seus monges se tornaram muito poderosos, e seu chefe, 0 abade de Cluny, era tido como um personagem respeitivel — certos pa- pas dessa época eram antigos monges de Cluny. No século XII, +houve uma nova onda de monges reformados, quer dizer, monges reocupados em retomar um estilo de vida mais rigoroso, mais, literal, mais proximo do espirito da regra de So Bento. Os mais ‘conhecidos foram os cistercienses: esse nome vem da sua “casa mie", situada em Citeaux, na Borgonha. © mais famoso deles € Sao Bernardo, que viveu na primeira metade do século XII. ‘Mas os Templrios também nao eram uma ordem religiosa? Justamente, eu estava chegando li. As Cruzadas contra os mugul- ‘manos (a primeira Cruzada aconteceu no final do século XI — ver ‘mais adiante pigs. 90 a 92) eo desejo de converter pela forga os pagaos suscitaram a findagéo de ordens militares, das quais as principais foram, ao sul ea ceste, os Templirios e os Hospitalérios, ea leste, o5 Cavaleiros Teuténicos. Houve outras também, na Espanha. Francisco de Assis era um monge? Nao exatamente. No comego do século XIII, foram fundadas as ordens chamadas “mendicantes": os franciscanos, por S30 Jocques Le Goff ” Francisco de Assis, ¢ 0s dominicanos, por Sao Domingos. Nao 20 monges, sdo irmios. Nao vivern isolados, vivem em conven: tos situados nas cidades. So chamados de “mendicantes” por: que vivem de oferendas e doagdes, e nao da renda de suas terras, cede suas propriedades — “amigos” leigos administram essas ter- ras ¢ essas propriedades para eles. Rapidamente, eles obtiveram um grande sucesso. Os irmaos mendicantes cuidaram de muitas pessoas e de familias, nas cidades, mas alguns leigos os critica- vam por se meterem nos seus assuntos particulares, por serem “intrometidos”. A partir do século XIV, o nimero e a importncia dos monges e dos religiosos diminuram muito. Os leigos: senhores e servos, habitantes das cidades e burgueses (Os leigos so todos aqueles que ndo sto clérigos? ‘Sim, mas é preciso fazer a distingao entre trés ti le leigos: 1s senhores ou nobres, os camponeses ou servos, os habitantes das cidades ou citadinos. Primeiro, ha aqueles que ocupam a posigo mais elevada, e dos quais jé falamos: os cavaleiros. Estes itimos podem ter dois nomes cou dois titulos: podem ser chamados de “senhores”, porqueas terras, que possuem sto designadas de “senhorias”, e porque tém direito & renda vinda da agricultura e das taxas (ou seja, quantias de dinhei- ro) dos camponeses; ou ainda receber o titulo de “nobres”, vindo da Antiguidade, o que os coloca num grupo social superior, a nobreza. Esta domina aqueles que no fazem parte dela: os plebeus. A Lode Média Abaixo dos senhores temos todo o povo dos nao nobres, geral- mente camponeses. Até 0 século XII, os camponeses no eram verdadeiramente livres, eram chamados de “servos”, uma palavra ue vem do latim servus, “escravo". Mas nao se pode comparar os Servos aos escravos da Antiguidade: a servidao nao era tao dura Quanto a escravidio a que estava submetida a maioria dos antigos camponeses; os servos podiam se casar e constituir uma familia legal, 0 que nio era permitido aos escravos, Cada vez com mais frequéncia, a partir do século XI, os senhores thes dao a liberda- de, uma liberdade que eles exigiam em troca do seu trabalho; de sua parte, os senhores precisavam de novas taxas, por causa do Progresso econémico, e no poderiam obtélas mantendo os ser- vos nesse estado de “servidao". Os camponeses também queriam ter mais independéncia para se deslocar ¢ exercer outtas ativida- des, em outros lugares (por exemplo, desmatar terras, principal- ‘mente as florestas, ou vender seus produtos nas feiras). Lembro, finalmente, que alguém era servo ou senhor pelo nasci- ‘mento, Entretanto, um senhor podia “alforriar” libertar um servo. Falta a terceira categoria: o pessoal das cidades... De fato, do século XI ao XIII, houve um grande desenvolvi- ‘mento das cidades. A maioria de seus habitantes devia sua con- diggo nao ao nascimento — contrariamente aos senhores e aos, servos —, mas ao trabalho. Alguns enriqueceram, ou através do artesanato (fabricagao de cobertas e roupas, de ferramentas — usando cada vez mais o ferro), ou através do comércio, e obtive: ram, pacificamente ou pela forga, 0 dreito de fabricar e de vender sem ter que pagar taxas a um senhor: sao as “franquias” (“franco” Jocgues Le Goff 59 quer dizer “livre’). As cidades, na primeira fase da sua existéncia € do seu desenvolvimento (do século IX ao XII), eram, em geral, chamadas de “burgos”, ¢ seus habitantes eram os “burgueses” —a palavra “burgués” acabou designando os citadinos de origem mais antiga e os mais ricos. Quando os burgos se desenvolviam além do limite de seu proprio territ6rio, isso dava origem aos “subtirbios”. Estes foram quase sempre cercados, em determinado momento por uma muralha: foi o caso de Paris, sob 0 reinado de Filipe Augusto, de 1190 a 1210. Ainda na Franga, hd também o exemplo extraor- dinério das muralhas de Carcassonne, que foram construidas ._no século XIX. Os burgueses tinham quase sempre direitos especiais sobre os subiirbios: par- imitando as cidades medievais ticularmente, eles recebiam taxas daqueles que atravessavam 0 tervitério para construir ali uma casa ou instalar uma ‘oja, Comerciantes, feiras e viajantes (O senhor fez alusdo ao comércio € aos comerciantes. Mas como isso Jfuncionava na Idade Média? Como se compravam e vendiam os ali- Imentos, as roupas ¢ todos os outros produtos necesséirios para se viver? ‘Ainda hé pouco, disse a vocés que, nos séculos XI e XII, mo mento de mudanga marcante da Idade Média, tinhamos assistido 2 um aumento da producto agricola (o desmatamento das florestas tomara a terra cultivavel); ao mesmo tempo, 0 attesanato se desen- volveu muito, na cidade. Dessa forma, a quantidade de produtos {que podiam ser vendidos ¢ trocados também aumentou. Rapida- 60 A Idade Média ‘mente, os pontos de encontro para a venda ¢ a troca de produtos se concentraram ese multiplicaram, e assim nasceram as “feiras"! Havia feiras por toda a Europa. Nos séculos XII e XIII, as mais frequentadas € as mais famosas eram as da regido de Champagne, na Franca, onde se sucediam e proliferavam durante © ano todo, nas cidades de Provins, Lagny, Troyes, Bar-sur-Aube. Num outro nivel, havia também os “mercados" locais ou regionais, que eram grandes pontos de encontro. Eram feiras “internacionais"? Certamente. Como vocés sabem, quando vamos a um outro pais, se quisermos comprar alguma coisa, devemos ter 0 dinheiro desse pais: preciso, portanto, as vezes, “trocar” dinheiro. (Ha pouco tem- po, antes do euro, a moeda europeia, trocava-se sistematicamente de moeda ao mudar de pais.) Na Idade Média, havia, as vezes, no ‘mesmo pais, moedas diferentes, e por isso uma das atividades des- sas feiras era o cimbio, feito por pessoas especializadas e muito hé- Deis nesse comércio de dinheiro. Pois bem, no final desse periodo, alguns desses cambistas, mais felizardos ou espertos do que outros, tomnaramse “banqueitos". E por que se chamavam assim? Porque faziam seus negécios em cima de bancos! Pelo menos no comeso, ois, é claro, depois eles construiram prédios, os futuros bancos. Mas 0 grande niimero de moedas na Idade Média foi prova- velmente uma das razBes que inibiram 0 progresso econdmico rnaquela época. |sso também quer dizer que se vigjava muito, na Idade Média? Claro! Contrariamente a uma velha ideia bastante difundida, que devemos absolutamente abandonar, os servos eram rara- Jacques Le Goff 6 mente ligados a terra (a “gleba"). Nas senhorias, principalmente, 4s taxas recolhidas pelos senhores entre os camponeses — quer dizer, exatamente, as taxas “feudais” — eram pesadas. Os servos ‘ram, portanto, levados a ver se achavam coisa melhor em outro lugar. Mas, além disso, vocés jé devem ter entendido, depois de tudo o que dissemos sobre a Idade Média, os homens eas mulhe- res, mesmo modestos, estavam sempre se deslocando, para mu- dar de senhoria ou de cidade (porque pensavam que poderiam encontrar vantagens, viver melhor etc.), ou para ir a uma feira, ow ainda fazendo uma peregrinagio. Homens e mulheres sdo “itinerantes”, eles se deslocam. E isso é valido tanto para os clérigos quanto para os leigos, mesmo {que 0s monges e as religiosas vivam confinados nos seus monas- térios. Fu diria até: eles se deslocam na medida em que religito crista ensinava aos figis que o homem é um viajante sobre a ter: 1a (em latim: homo viator), um viajante, um homem na estrada. Essa ideia nunca foi tio verdadeira quanto na Idade Média, Os pobres. A fome, doencas e epidemias or varias vezes, o senhor falou de “progressos” que acorreram nos séculos XI, XI e XIII. Mas uma das imagens que temos na cabeca é, aapesar de tudo, a de uma Idade Média pobre. Ela ¢ falsa? Infelizmente nao: as cidades da Idade Média eram também habitadas por intimeros pobres, e essa pobreza é certamente um dos pontos negros daquilo que chamamos no comece de Idade Média “ma”. A Idade Média Podlia-se morrer de fome na Idade Média? Sim, apesar dos progressos da cultura agricola e das profissdes. ligadas & alimentacdo, a comida era desigual entre ricos e pobres, senhores e servos. A fome, que atingia frequentemente as cida- des, também nao era rara no campo, onde também havia pobres. Ela diminuiu no século XIII, mas voltou no século XIV. Alimentar 08 famintos e os pobres tornou-se ento um dos mandamentos da Igreja: era, primeiramente, uma obrigacao dos clérigos, mas também um dever dos senhores e dos ricos e ainda, no podemos esquecer, dos reis. Foi principalmente no setor da alimentacio, ara dar uma resposta a fome, que a Idade Média se esforcou para desenvolver a caridade e a solidariedade. Os clérigos atribuiram 3 palavra latina caritas seu sentido tradicional, que é “amor”. Havia muitos mendigos? Sim, muitos. Ainda mais porque a mendicancia nao era sem- pre desprezada. Na Idade Média, a imagem de um Jesus que teria vivido como mendigo estava muito presente e, no século XIII, quando surgiram nas cidades os novos religiosos dos quais jé falamos (ver neste capitulo, pig, 59), os dominicanos e os fran- Ciscanos, suas ordens foram chamadas de “ordens mendicantes™ —o que, na época, na maioria das vezes, era compreendido como ‘um elogio. E 0s doentes? Como se cuidava deles? O modo de tratar os doentes ¢ complicado. Durante muito tem- Po (de fato, durante toda a Idade Média, e mesmo depois), eles, eram tratados, principalmente, com remédios populares (ou seja, Jocques Le Goff 6 quase sempre com rituais migicos — gestos, formulas, posdes, “fltros’, unguentos, aos quais eram atribuidos poderes de cura). & preciso que se diga: nas regides nao cristas, os homens eas mulhe- res que aplicavam esses tratamentos eram considerados feiticeiros e feiticeiras. Nas terras cristas, a eitigaria era proibida (falaremos ‘um pouco mais sobre isso depois), mas havia “curandeiros” cristaos a quem Deus havia dado um saber endo — em todo caso, oficial- ‘mente — um poder. As pessoas mais ricas (senhores ¢ burgueses) ceram quase sempre tratadas por médicos judeus, pois os judeus posstiiam conhecimentos de medicina vindos da Antiguidade. Mas também nesse aspecto, a partir do século XIII, a medi- cina fez grandes progressos e foi criado um curso de medicina nna universidade. Houve, entdo, uma faculdade de medicina em Paris, mas a maior universidade medieval nessa area foi a de ‘Montpellier, no sul da Franga. Ainda nao havia hospitais? Havia sim. Ainda nessa época (século XIII), a Igreja e, mais particularmente, certas ordens religiosas, construiram os primeiros hospitais, que eram chamados “casas de Deus” (“hotels Diew). Ain- da subsistem em duas cidades: em Beaune, na Borgon’a (data do século XV), e em Siena, na Itélia. Em Paris, ainda existe, na ilha da Cité, um hospital, em pleno funcionamento, que se chama “Hétel- -Diew", mas o edificio nao é da Idade Média, é do século XIX. ‘Quais eram as ‘grandes doengas” da Idade Média? Até o século XIV, houve uma doenga muito disseminada ‘muito temida: a lepra. Nas cidades, foram construides hospitais, 6 A Idode Medio ‘especializados para os leprosos, os “leprosérios", erguidos sob a rotegao de Maria Madalena — em Paris e em Lille, na Franca, ainda existe o “bairro da Madalena”, Como se pensava que a lepra ra contagiosa, 0s leprosos que andavam pelas ruas deviam sacu- dir uma espécie de sineta, a “matraca”. Provavelmente por causa dos progressos da alimentagio dos cuidados com a pele, a lepra desapareceu quase totalmente no século XIV. Uma doenga terrivel, extremamente contagiosa, propagou-se fem seguida: a peste negra. Ela foi trazida do Oriente, da Crimeia (ao norte do Mar Negro), por marinheiros genoveses, e espalhou- “S€ por quase todos os territérios cristaos, em intervalos irregula- tes, mas bastante fequentes. A primeira grande epidemia, em 13484349, surpreendeu os cristdos: ela provocou o desapareci- ‘mento de familias ¢ de conventos inteiros. Depois, houve a pro- ‘cura por remédios, mas recorria-se, principalmente, a quarentena dos doentes para evitar que as pessoas tivessem contato com eles. Na cidade, a popuilagdo foi submetida a regras contra a peste. A mia alimentacao também estava, frequentemente, na ori- gem de epidemias de disenteria, quase sempre mortais, prin- cipalmente para os recém-nascidos e criancas muito pequenas. Dizem que Sao Luis morreu atingido pela peste, na Tunisia, em 1270. £ mentira: ele morreu de disenteria (ou tifo). Capitulo 5 Os poderosos

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