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cs ‘Copyright© 2018 by ure: Cin do Santos ator Responsive Aline Gostinki Capa Diagromagia: Cal Bott de Barros ‘CONSELHO EDITORIAL CIENTIFICO. Eovanno Fenaen Mac Guscon Powor rsa Cram tan de Dati Haman resid itt dela Juansz Tavanes (atric de Dry Peal a ried Ro defer Gunn Tal ope de Dots Haman Caters de iio Contin da Uk jor ll de Madison ‘owex M. Fass Ctr mrt de Thr de Dita da Criveredade de Yae-BUA ‘Tous, Vives Anton (Ctr de Dv Penal Universe de Velcon Cao. CATALOGACKO NA PURLACACSO. Mes hoe Rigas de Sonatina CR 1 {Chie ra aH 85 en 05 ttc Todos as drtos desta edie erervadoriant to Blanch Bindefto-R) CEP 275000 vet Prof. Dr, Juarez Cirino dos Santos Doutor em Direito Penal (UFRJ) Mestre em Ciéncias Juridicas (PUCRJ) Pés-doutorado no Institut flir Rechts- und Sozialphilosophie (Universidade do Saarland, Alemanha) A CRIMINOLOGIA RADICAL 4 Edigto 2018 emporio direito ee J. InrRoDUGAO O desenvolvimento de teorias radicais sobre crime, desyio € controle social esta ligado as lutas ideolégicas ¢ politicas das sociedades ocidentais, na era da reorganizagio monopolista de suas economias. Esse movimento tedrico pode ser explicado, nas suas formas basicas, pelas transformagdes econdmicas ¢ politicas, nacionais ¢ internacionais, do periodo da planetarizagio das relagdes de produgiio e de comercializacaio de bens, da divisio internacional do trabalho e da polarizagio universal entre paises desenvolvidos e hegem@nicos e povos subdesenvolvidos e dependentes. O estudo das teorias radicais sobre crime e controle social deve, portanto, fixar as linhas tedricas e metodolégicas ‘comuns aos movimentos ¢ tendéneias criticas em Criminologia ¢ indicar os vinculos desses movimentos © tendéncias com as estruturas econémicas ¢ politicas ¢ as relagdes de poder e de dominacio das sociedades capitalistas. A construgio intelectual das coordenadas cientificas das teorias radicais exige, além do exame de produgdes tedricas particulares representativas desse movimento e tendéncias, 0 uso de categorias capazes de captar as transformagées historicas ¢ as lutas sociais, politicas e ideolégicas que, simultaneamente, produzem e explicam a Criminologia Radical. A Criminologia Radical surge como critica radical da teoria criminol6gica tradicional, assim como ~ guardadas as devidas proporgdes — 0 marxismo surgiu de uma critica Intreduio radical da eccnomia politica clissica: ambas as construgdes assumem na pritica e desenvolvem na teoria um ponto de vista de classe (a classe trebathadora), em cujo centro se encontra 0 proletariado. Mas enquanto 0 marxismo é a estruturagdo de conceitos radicalmente novos sobre as forgas €a diregao domovimento histérico, a Criminologia Radical se edifica com base no métode e nas categorias cientificas do marxismo, desenvolvendo ¢ especializando conceitos na area do crime e do controle social, mediante a critica da ideologia dominante, como exposta ¢ reproduzida pelas teorias tradicionais do controle social: as teorias chissicas e positivistas, c algumas variantes da fenomenologia moderna. As Teorias Tradicionais Apés a Segunda Guerra, nos paises industrializados do Ocidente se desenvolve uma criminologia concentrada no estudo de causas ambientais, preocupada com privagdes materiais, lares desfeitos, areas desorganizadas e pobres etc., abandonando as teorias genéticas ¢ psicolégicas, ¢ outras teorias conservadoras sobre a “perversidade humana” na explicagio da etiologia do crime. Essa orientagio tedrica, conhecida como criminologia fabiana por causa de sua tendéncia ao compromisso, tratalhava com dois grupos de fatores basicos: a subsocializagéo (insuficiente assimi de valores culturais por deficiéncias de educago) e a corrupedo individual (assimilagio deformada dos valores Ineradugio culturais). A punigio, como medida anticriminal oficial, justificava-se naturalmente como corregio ressocializadora e oportunidade para arrependimento (Taylor, Walton c Young, 1980, p. 10-11). A posigtio de compromisso do enfoque representa uma composigdo entre tendéncias conservadoras (teorias classicas e positivistas biolégicas) ¢ liberais (teorias positivistas sociol6gicas e as fenomenologias do crime) da criminologia dominante. As teorias conservadoras caracterizam-se pela descrig&o da organizagio social: a ordem estabelecida (status quo) € 0 parametro parz 0 estudo do comportamento criminoso ou desviante e, por isso, a base das medidas de repressio e corregdio do crime e desvio. A ideologia das teorias conservadoras é essencialmente repressiva: fundada na hierarquia ena dominagao, como bases da lei e da ordem, tem um significado pratico de legitimagio da ordem social desigual (Taylor e¢ alii, 1980, p. 22-23). As teorias liberais se caracterizam pela prescrigao de reformas, concentrando-se em pesquisas sociolégicas para sugerir mudangas institucionais (descriminalizagao, tratamento penitenciario etc.) ¢ sociais (habitagao, assisténcia etc.) como meios de prevengdo do comportamento anti- social. A ideologia liberal separa a atividade tedrica do cientista, limitado a sugerir ou aconselhar, e a pratica politica do administrador, o homem de decisio atento as necessidades concretas: 0 assessoramento do administrador por cientistas e técnicos, incumbidos do trabalho abstrato, exprimiria a subordinagio da ciéncia aos imperativos politicos. A maioria da criminologia atual, especialmente Intradesto em instituigdes ligadas a realidade oficial, concentrada em pesquisas sobre reincidéncia, métodos de prevengio, regimes penitencidiios etc., segue o esquema liberal (Taylor et alii, 1980, p. 23-25). Mas a conexio ideolégica entre conservadores liberais para formagao de uma criminologia correcionallsta estii na nogaio comum de que a maioria do comportamento social é convencional, ou seja, ajustado aos parametros normativos, enquanto 0 comporiamento ndo-convencional, constituido pelo crime e desvio, seria a minoria do comportamento social. O enfoque comum de conservadores e liberais nao questiona a estrutura social, ou suas instituigdes juridicas e politicas (expressivas de consenso geral), mas se dirige para o estudo da minoria criminosa, elaborando etiologias do crime fundadas em patologia individual, em traumas ¢ privagdes da vida passada, em condicionamentos deformadores do sistema nervoso auténomo, em anomalias na estrutura genética ou cromossémica individual ete., em relagio com as circunstncias presentes, cuja recorréncia produz, tendéncias fixadas, psicol6gicas, fisiolégicas ou outras. No estudo dessa etiologia (e suas relagdes), 0 crimindlogo realizaria uma tarefa neutra, independente de interesses pessoais e do sistema de reago contra o crime, com seus condicionamentos politicos e ideolégicos (Young, 1980, p. 75). Mas nao se trata de estudar em detalhes, neste texto, as teorias conservadoras ¢ liberais, objeto especifico de estudo em A Criminologia da Repressdo (Cirino, 1979), com ampla andlise de seus postulados ideolégicos ¢ estruturas tedricas, dentro do seguinte esquema: a) teorias classicas; b) teorias positivistas bioldgicas (genéticas, Fr Inirodapio psicolégicas, psiquidtricas ete.) ¢ socioldgicas (patologia social, desorganizagaio social e comportamento desviante) 2. A Formagao das Teorias Radicais em Criminologia Sem desmerecer contribuiges anteriores, geralmente incompletas ¢ limitadas, ou com distorgdes reformistas ou formalistas, um dos primeiros estudos sistematicos do desenvolvimento da teoria criminoldgica sob um método dialético, aplicando categorias do materialismo histérico, € 0 trabalho coletivo The New Criminology (Taylor, Walton e Young, 1973). O texto apresenta uma critica intema das teorias do crime, desvio ¢ controle social, desde as concepsies classicas, passando pelos positivismos biolégicos e sociolégicos, as contribuigdes fenomenoldgicas ¢ interacionistas e, finalmente, as teorias conflituais, destacando, nas conclusdes, os estigios analiticos da criagdo ¢ da aplicagéo da norma criminal: as origens do comportamento desviante (estruturais e imediatas), 0 comportamento desviante conereto ¢ as origens da reagio social (imediatas e estruturais), Esse texto acelerou a formagio da Criminologia Radical, ao exprimir a revolta de teéricos critics (Laurie Taylor, Stan Cohen, Mary MeIntosh, Ian Taylor, Paul Walton, Jock Young etc.) contra © pragmatismo puritano ¢ correcionalista da criminologia convencional, em Cambridge, 1968, formando a propria conferéncia, a National Devianey Conference (Mintz, 1974, p. 33). Esse encontro, realizado em York, no ano de 1968, com mais de 400 participantes, marca uma ruptura coletiva ¢ coordenada com a criminologia tradicional, 5 Intradugéo conservadora ¢ liberal, com a superagao de suas elaboragdes mais sofisticadas, como a teoria da rotulagao, por exemplo, definida como “criminologia cética”, O livro de Taylor, Walton e Young, com o titulo irénico de“A nova criminologia”, trata de uma vetha criminologia: sua critica pretende, remotamente, o desenvolvimento de uma criminologia marxista, colocando as questdes do crime edo controle sozial em perspectiva histérica e reconhecendo aurgéncia de uma economia politica do crime, alternativa & criminologia micro-sociolégica, conflitual ou interacionista (Mintz, 1974, p. 33-39). Crimindlogos radicais criticaram o estilo tradicional do trabalho, definindo-o como “histéria das idéias criminol6gicas” nao situadas nas condigdes reais de seu desenvolvimento, espécie de “critica da critica” etc. (del Olmo, 1976, p.64). Em autocritica posterior os autores reformularam as tendéncias formalistas ¢ o estilo idealista do livro (Taylor e¢ alii, 1980), afirmando a necessidade de redefinir a problematica do crime e do controle social como fenémenos inteiramente inseridos no processo social, ligados & base material ¢ A estrutura legal do capitalismo contemporaneo: a economia politica— ou methor, a estrutura econdmica em que se articulam as relagdes sociais no capitalismo — surge como o determinante primario da formagao social, formalizado nas superestruturas juridicas ¢ politicas do Estado. Mas 0 acontecimento crucial da formagio da Criminologia Radical é a criagao do Grupo Europeu para 0 Estudo do Desvio e do Controle Social, em Florenga, Itélia, em 1972, com a publivagiio de um Manifesto Intredugio (reeditado em 1974), denunciando os modos dominantes de anilise do crime — produto de defeitos psicoldgicos ou de personalidades anormais—e do controle social, avaliado em termos de efetividade e eficiéncia e, portanto, como variantes do positivismo, concentrados em estatisticas criminais. A importincia do evento residiu no estabelecimento de uma base ideolégica e cientifica para um trabalho tedrico coletivo e organizado, cuja proposta geral compreendia a critica radical da teoria criminolégica e social dominante, a participagdio em movimentos politicos de libertagiio de minorias oprimidas e no trabalho de massa, a organizagio © coordenagiio das lutas de presos etc. — em summa, um programa tedrico e pratico no contexto das relagdes entre os sistemas de controle social ¢ a estrutura de classes do modo de produgiio capitalista (Manifesto, 1974). A tarefa de esclarecer a relagao crimejformacdo econdmico-social leva’ insergilo do fendmeno criminoso na esfera de produgdo (endo apenas na esfera de circulagdio): as relagdes de produgao e as questiies de poder econémico ¢ politico passam a constituir os conceitos fundamentais da Criminologia Radical (del Olmo, 1976, p. 64). Reunides sucessivas definem alguns postulados tedricos e metodolégicos do questionamento radical: a critica da ideologia conservadora e liberal (conceito de delingiiente como anormal ou patolégico, necessitado de tratamento ou de reabilitagdo), se baseia na concepgaio materialista da historia, que estuda o crime e os sistemas de controle do crime como fenémenos enraizados nas contradigdes de classe de formagdes econdmico- sociais particulares, estruturadas pelo modo de produgao dominante. A ligagao da teoria criminolégica com a teoria do Estado, através da ciéncia da histéria, permite identificar Intrusion 0 desenvolvimento das instituigdes de controle social com a historia superestrutural da dominag4o do capital, bem como relacionar os fendmenos do crime com a histéria da sobrevivéncia do trabalho assalariado, em condigdes de exploragao e de miséria, na contextura de classes das sociedades capitalistas (del Olmo, 1976, p. 66-67) A hipétese de que desigualdades econdmicas politicas entre as classes sociais sfio determinantes primarios do crime revigora teses radicais sobre sociedades livres de crimes ~ ou livres da necessidade de criminalizar para sobreviver—e orienta 0 esforgo coletivo paraa elaboragiio de uma teoria criminolégica comprometida com a construcao do socialismo: a libertagao do potencial de desenvolvimento humano pela libertagdo da luta de sobrevivéncia material de comer, consumir etc. Na linha dessa proposigao, teoria e pesquisa criminolégica constimem uma praxis social, em que uma precisa concepgao da utilidade do conhecimento como instrumento de libertagio encoraja e promove as transformagées indicadas por seus preceitos. Admitindo a centralidade da classe trabalhadora como forga politica capaz de edificar 0 socialismo, a Criminologia Radical reavalia o significado e destaca a importancia crescente das minorias oprimidas pela condigdio de classe (a populagao das prisdes), de raza (negros, indios etc.), de sexo ou de idade para a execugo daquele projeto politico (Taylor et alii, p. 25-32). Na época do capitalismo monopolista, em que menos de um tergo da forga de trabalho potencial esta integrada nos processos produtivos, e mais de dois tergos dessa forga de trabalho se encontra em situagaio de marginalizago forgada do mercado de trabalho, como mao-de-obra ociosa Intradusio controlada diretamente pela pristo, nas suas conexdes com apolicia e a justica criminal, parece sem sentido considerar © preso como /umpenproletariado, sem consciéncia ou organizagao politica e sem papel na luta de classes: a populago carceriria é extraida da classe trabalhadora, engajada nas lutas sindicais por direitos trabalhistas ¢ leva para a pristo a experiéncia na organizagio de movimentos de reivindicagdes (a luta pela obscrvncia das regras minimas, pela preservacao dos direitos nto afetados pela privagio da liberdade etc.) e de protestos contra violéncias na prisio, contra a exploragio do trabalho do preso etc., elevando © nivel de consciéncia e de organizagao da populagao reprimida (Mintz, 1974, p. 50-53) Na Europa ¢ nos EUA, a partir da década de 60, as teorias radicais germinam nas lutas politicas por direitos civis, no caso dos ativistas negros americanos, nos movimentos contra a guerra, generalizados durante © genocidio do Vietna, no movimento estudantil, em 1968, nas revoltas em prisdes ¢ nas Iutas de libert anti-imperialistas dos povos e nagdes do Terceiro Mundo. Esse vinculo pratico de criminlogos radicais com as lutas politicas e movimentos sociais da segunda metade do século desenvolve-se, progressivamente, em uma critica vertical 4 criminologia convencional-liberal que hegemoniza a teoria e a pesquisa sobre crime, desvio e controle social, com a literatura mais influente, técnicos ¢ consultores governamentais, o predominio em comissdes para o estudo do comportamento anti-social e a elaborago de programas de prevengao, geral e especial (Platt, 1980, p. 113-14). Introdugao ‘A hegemonia conservadora e liberal em teoria & pesquisa criminolégica ndo se explica por convergéncias teéricas ou metodolégicas, pois so muitas as divergéncias internas entre socidlogos positivistas, te6ricos do confito ou do labeling approach etc., mas pelo significado ideolégico comum de seus postulados fundamentais (Platt, 1980). O processo de formagao e estruturactio da Criminologia Radical é inseparavel da critica aos componentes ideolégicos fandamentais da criminologia dominante, na medida em que constitui seu préprio perfil ideoldgico e cientifico por diferenciacao e oposigdo aquela. A génese critica da Criminologia Radical comega nas questées conexas do conceito de crime e das estatisticas criminais, deslindando as implicagdes politicas e as premissas ideoldgicas que fundamentam as teorias criminolégicas tradicionais informam as ciéncias sociais, em geral, nas sociedades de classes, ¢ prossegue nos aspectos superestruturais fetichizados das relagdes de produgao, sob a teoria da inseparabilidade das lutas sociais contra a exploracao econémica, nc contexto das relagdes de produgao, e contra a dominagaio politica, no contexto das relagdes de poder, em que a prisio secaracteriza comoa forma especifica do poder burgués, “direiamente determinada pelo modo de produgio capitalista” (Fine, 1980, p. 26) A Critica 4s Teorias Tradicionais © ponto de partida da criminologia dominante 0 conceito de crime: comportamentos definidos legalmente como crimes ¢/ou sancionados pelo sistema de justiga criminal come criminosos so « base epistemol6gica dessa 10 ee Introdusio. criminologia (Lyra Filho, 1980, p. 10). Crime é 0 que a lei, ou a justiga criminal, determina como crime, excluindo comportamentos nao definidos legalmente como crimes, pot mais danosos que sejam (0 imperialismo, a exploragao do trabalho, o racismo, 0 genocidio etc.), ou comportamentos que, apesar de definidos como crimes, niio so processados nem reprimidos pela justiga criminal, como a criminalidade de “colarinho branco” (fixa¢do monopolista de pregos, evasio de impostos, corrupgao governamental, poluigao do meio ambiente, fraudes ao consumidor, ¢ todas as formas de abuso de poder econdmico e politico, que niio aparecem nas estatisticas criminais). A questo aparentemente neutra ¢ incontroversa da definigao legal de crime — ou da atuagio, da justiga criminal, indicada nas estatisticas criminai como base do trabalho teérico da criminologia tradicional, manifesta um contetido ideolégico nitido, que condiciona ¢ deforma toda a teoria e pesquisa, reduzida A descoberta das causas do comportamento criminoso (Chambliss, 1980; Lyra Filho, 1980). A distorgao ideolégica da criminologia tradicional niio se reduz ao que esta excluido da definigao legal, ou da sango da justiga criminal, mas resulta diretamente do que esta incluido nas definigdes legais ou nas sangdes da justiga criminal, como indicado nas estatisticas e registros oficiais sobre o comportamento criminoso, a base permanente daquela criminologia. Um simples exame empirico (Fragoso, Cato e Sussckind, 1980) mostra a natureza classista da definigao legal de crime e da atividade dos aparelhos de controle e repressio social, como a policia, a justiga ¢ a pristio, concentradas sobre os pobres, os it Introdugio membros das classes ¢ categorias sociais marginalizadas ¢ miserabiizadas pelo capitalismo. A situagao geral dos paises capitalistas pode ser exemplificada por seu modelo mais representativo, a sociedade amaricana (Taylor et alii, 1980, p. 39), cuja populagdio contém 20% de pessoas do Terceiro Mundo, como negros, mexicanos ¢ porto-riquenhos, que constituem 50% da populagio carcerdria; existem mais negros nas prisées do que nas universidades e, enquanto categoriais ds populagao trabalhadora (operdrios, artifices, operadores ete.) representam £9% da forga de trabalho da sociedade, constituem 87,4% da populagao das prisdes. Nas sociedades capitalistas, a indicago das estatisticas & no sentido de que a imensa maioria dos crimes é contra 0 patriménio, de que mesmo a violéncia pessoal esta ligada busca de recursos materiais eo proprio crime patrimonial constitui tentativa normal ¢ consciente dos deserdados sociais para suprir caréncias econémi A insisténcia de tedricos liberais e conservadores sobre estatisticas, como indicarao da extensao do crime na sociedade, ou de que criminosos condenados so a maior aproximagao possivel da quantidade real de violadores da lei, decorte da explicagao da criminalidade por fatores pessoais (bioldgicos, genéticos, psicol6gicos etc.) ou sociais (ambiente, familia, educagao etc.), que seriam responsiveis pela super-representag&o das classes dominadas e pela sub-representagao das classes dominantes nas estatistis criminais. Mas a confiabilidade das “evidéncias” (no caso, © dado estatistico) e a validade das teorias da criminologia tradicional sio destruidas pela relatividade do crime e pelas chamadas cifras negra e dourada da criminalidade: 2 Introduo o crime varia conforme o tipo de sociedade eo estigio de desenvolvimento tecnolégico, o que significa auséncia de crimes naturais ¢ identidade entre criminosos e niio- criminosos, exceto pela condenagao criminal; a cifra negra representa a diferenga entre a aparéncia (conhecimento oficial) e a realidade (volume total) da criminalidade convencional, constituida por fatos criminosos nao identificados, ndo denunciados ou nao investigados (por desinteresse da policia, nos crimes sem vitima, ou por interesse da policia, sob pressio do poder econémico e politico), além de limitagdes técnicas ¢ materiais dos orgios de controle social. Na verdade, a cifra negra afeta toda a criminalidade, desde os crimes sexuais, cujos registros no excedem a taxa de 1% da incidéncia real, até o homicidio, freqilentemente disfargado sob rubricas de “desaparecimentos”, “suicidios”, “acidentes” etc. (Aniyar, 1977, p. 80-83); por outro lado, a cifra dourada representa a criminalidade do “colarinho branco”, definida como priticas anti-sociais impunes do poder politico ¢ econémico (a nivel nacional ¢ internacional), em prejuizo da coletividade e dos cidadaos e em proveito das oligarquias econémico-financeiras (Versele, 1980, p. 10 € ss.): caracteres sociais do sujeito ativo (portador de alto status sécio-econdmico) ¢ a modalidade de execugdo do crime (no exereicio de atividades econémico-empresariais ou politico-administrativas), conjugados As complexidades legais, as cumplicidades oficiais ¢ 4 atuagdo de tribunais especiais, explicam a imunidade processual e a inexisténcia de estigmatizagdo dos autores (Aniyar, 1977, p. 92-93). A Criminologia Radical define as estatisticas Introd criminais como produtos da luta de classes nas sociedades capitalistas: a) os crimes da classe trabalhadora desorganizada (lumpenproletariado, desempregados crénicos e marginalizados sociais, em geral), integrantes da chamada criminalidade-de-rua, de natureza essencialmente econdmica e violenta, sic super-representados nas estatisticas criminais, porque apresentam os seguintes caracteres: constituem ameaca generalizada ao conjunto da populagao, séo produzidos pelas camadas mais vulneriveis da sociedade e possuem a maior transparéncia ou visibilidade, com repercussdes e conseqiléncias mais poderosas na imprensa, na ago da policia ena atividade do judiciario; b) os crimes da classe trabalhadora organizada, integrada no mercado formal de trabalho (a chamada criminalidade de fébrica, como pequenas apropriages indébitas, furtos e danos), no aparecem nas estatisticas criminais por forga da inevitével obstrugao dos process ctiminais sobre os processos produtivos; c) a criminalidade da pequena burguesia (profissionais liberais, burocratas, administradores etc.), geralmente danosa ao conjunto da sociedade por constituir a dimensao inferior da criminalidade do “colarinho branco”, raramente aparece nas estatisticas criminais; d) a grande criminalidade das classes dominantes (burguesia financeira, industrial ¢ comercial), definida como abuso de poder econdmico ¢ politico, a tipica criminalidade de “colarinho branco” (especialmente das corporag6es transnacionais), produtora do mais intenso dano & vida e & saide da coletividade, bem como ao patriménio social e estatal, esta excluida das estatisticas criminais: a origem estrutural dessa criminalidade, caracterfstica do modo de produgao sos “4 Inerodupio capitalista, e o lugar de classe dos autores, em posigao de poder econdmico e politico, explicam essa exclusio (Young, 1979, p.16 e ss.; Cirino, 1980, p. 38-52). Esse quadro geral explicativo da distribuigao social da oriminalizagao de condutas, claborado segundo a posictio social do autor, orienta a pesquisa da Criminologia Radical para a base econémica e para as relagdes de poder da sociedade, excluidas da pesquisa da criminologia tradicional: as relagdes de classes nos processos produtivos da estrutura econémica da sociedade e nas superestruturas de poder politico e juridico do Estado. Assim, a Criminologia Radical descobre o sistema de justiga criminal como prética organizada de classe, mostrando a disjungiio concreta entre uma ordem social imagindria, difundida pela ideologia dominante através das nogées de igualdade legal e de prote¢iio geral, e uma ordem social real, caracterizada pela desigualdade e pela opressio de classe. Essa revelagao esti na base das formulagGes tedricas e da pratica transformadora da Criminologia Radical, em diregdo a uma sociedade capaz de superar as desigualdades sociais que produzem 0 fenémeno criminoso (Taylor et alii, 1980, 44-45). Nesse contexto, o significado ideolégico da ctiminologia tradicional aparece na sua proposta de reforma: do criminoso, do sistema de justiga criminal e, mesmo, da sociedade — neste caso, em formulagées dentro do modelo de capitalismo corporativo, sob a égide de “administradores esclarecidos” ¢ como ajustamentos funcionais para as condigdes econdmicas e politicas existentes. O resultado hist6rico alcangado pela criminologia correcionalista é 0 15 Intrugio constante aumento do poder do Estado (capitalista) sobre os trabalhadores, os setores marginalizados do mercado de trabalho ¢ as minorias, com ampliagdo da rede de controles, como 0 “sursis”, 0 livramento condicional, a justiga juveail, os reformatérios, as prisdes abertas etc., cujos manifestos e inegdveis beneficios pessoais abrigam um aspecto contraditério, que significa controle mais geral © dominagao mais intensa (Platt, 1980, p. 116). Esse pragmatismo reformista, fundado em técnicas de comportamentalismo e de engenharia social, nos limites da organizagao politica e juridica do Estado, resolve- se em represso pura e simples: volta as costas para os movimentos de massas, nao coloca as alternativas de cooperagao/competi¢’o, ou de valores humanos/valores da propriedade, nem considera a perspectiva histérica de eliminar a exploragao do trabalho, a opressio politica de classes, de ragas ¢ de out:as minorias, Na verdade, a posigo basica da ideologia correcionalista manifesta-se como um paternalismo despético: homens iluminados (politicos, administradores e cientistas) so as forcas motoras da histria, e 0 povo ignorante é, apenas, objeto € massa de manobra, sem poder nem consciéneia (Platt, 1980, p. 117-22). Por outro lado, a prépria tradicao académica em teoria politica, econémica e social descreve a historia dos grupos dominantes como registrada por lideres politicos, empresarios etc, e, na rea do sistema de justiga criminal, como registrada por juizes, diretores de prisio e delegados de policia. A pesquisa criminolégica, dependente de financiamentos ¢ vinculada a interesses institucionais, transforma o criminélogo, freqiientemente, em técnico neutro e pronto-para-aluguel, um instrumento 6 Ineradusie yoluntariamente subserviente, a servigo do controle em qualquer ordem — de grande importincia em periodos de rebeliao politica, de incremento das reivindicagdes operarias sobre salarios, condigdes de trabalho, direitos democriticos ¢ o mais (Platt, 1980, p. 117- 119). Adistorgiio ideolégica da criminologia correcionalista pode ser destacada no contexto das alternativas do trabalhador na sociedade capitalista, indicadas por Engels ou conformar-se a brutalizacao, transformando-se num homem sem vontade, destruido pela rotina, a monotoni« ea exaustao fisica e mental dos processos produtivos; ou aceitar a ideologia dominante, aderindo aos valores de competigao para encontrar uma “saida pessoal”; ou furtar a propriedade do rico para satisfazer necessidades bisicas, com os riscos da criminalizagao; ou, finalmente, fazer a revolugio, incorporando-se a atividade politica ¢ 4 ago coletiva como alternativa para superar a opressao social ¢ a explorago pessoal, restaurando a humanidade perdida ¢ a esperanga de liberdade real (Young, 1980, p. 94-94) Esse quadro real ¢ encoberto pela “indignagio moral” promovida pela ago oficial e os meios de comunicagia de massa contra 0 criminoso convencional, o “bode expiatério” til para esconder (¢ justificar) problemas sociais reais — a0 contrario do criminoso de “colarinho branco”, protegido pelas instituigdes de privacidade da sociedade burguesa -, produzidos (como 0 proprio criminoso) pelas desigualdades intrinsecas do sistema de relagdes sociais (Young, 1980, p. 101). Intradugio 4. Tendéncias Criticas e Radicai: Na década de 60, especialmente nos EUA, desenvolve-se uma criminologia de percepgdes ¢ atitudes, com estudos sobre o criminoso, a vitima, a policia, o juiz, © piiblico, as testemunhas ete., uma multiplicidade de pesquisas centradas teoricamente nos trabalhos de David Matza (1969), Edwin Lemert (1964), Howard Becker (1963), Edwin Schur (1965) ¢ ontros, cujos fundamentos mais distantes se encontram em Georges Mead (1934) ¢ Alfred Schultz (1962), ligando-se, enfim, a Edmund Husserl ¢ a Max Weber, as matrizes originais. A mais elaborada construgio criminolégica da fenomenologia é a teoria da rofulagdo (também conhecida como teoria interacionista, ou teoria da reagao social), crigida sobre os trabalhos de Edwin Lemert e de Howard Becker, com os acréscimos vigorosos (na area da psiquiatria © da psicologia social), de Ronald Laing (1959), Erwing Goffman (1970), Thomas Szasz (1975) e outros. Assumindo que, em sociedades pluralistas, todos experimentam impulsos desviantes ¢ realizam condutas exorbitantes dos parametros normativos, a teoria da rotulacao constréi uma “cencepgao do mundo” numa dupla perspectiva: das pessoas definidas (por outras) como desviantes ¢ das pessoas que definem (os outros) como desviantes. Amudanca de enfoque, em relagio & criminologia positivista dominante, esté na orientago paraa subjetividade, enfatizando questées de valore de interesse e abandonando 05 estudos etioldgicos e as explicagdes causais do crime 18 Introd (Rubington & Weinberg, 1977, p. 191 e ss.). O objeto de estudo da teoria darotulagdo compreende a constituigao das regras sociais ¢ as priticas de aplicagdo dessas regras (por quem, contra quem, quais as conseqiiéncias etc), dentro da concepgao fenomenolégica de Mead sobre a personalidade como “construgiio social”: o modo como pensamos ¢ agimos é 0 produto parcial do modo como os outros pensam e agem em relagdo a nés. Nessa perspectiva, a explicagaio da ordem social é baseada em tipificagdes, uma transmutagio do esquema fenomenolégico de Schutz: a) qual a esséncia de um fendmeno particular? — qual a esséncia do desvio? b) como as pessoas fazem tipificagdes? — como as pessoas aplicam o rétulo de desviante? c) como as tipificagées sto compartilhadas? — como as pessoas reagem ao rétulo de desviante? (Rubington & Weinberg, 1977, p. 195). Ateoria da rotulagao se fundamenta em duas ordens de conceitos principais: 1) a existéncia do crime depende da natureza do ato (violagao da norma) e da reacdo social contra 0 ato (rotulagao): 0 crime “ndo é uma qualidade do ato, mas um ato qualificado como criminoso por agéncias de controle social’ (Becker, 1963, p. 8);2) no é 0 crime que produz 0 controle social, mas (freqiientemente) 0 controle social que produz o crime: a) comportamento desviante ¢ comportamento rotulado como desviante; b) um homem pode se tornar desviante porque uma infragAo inicial foi rotulada como desviante; c) os indices de crime (e desvio) siio afetados pela atuagao do controle social (Lemert, 1964) ‘A teoria da rotulagio distingue entre desvio primdrio, um processo de natureza “poligenética” excluido do esquema explicativo da teoria ¢ (b) desvio secundério, uma resposta Introdugéo seqtiencial A criminalizagao pelo desvio primario, que marca ‘© comprometimento do criminalizado em uma “carreira desviante”, como impacto pessoal da reagio oficial — na verdade, 0 ponto de incidéncia das analises da teoria. ‘A concepgio de crime como produto de normas (ctiagao do crime) e de poder (aplicagao de normas) define a lei e 0 processo de criminalizago como “causas” do crime, rompendo © esquema teérico do positivismo e dirigindo © foco pare a relagdo entre estigmatizagdo criminal ¢ formagao de carreiras criminosas: a criminalizagao inicial produz estigmatizagéo que, por sua vez, produz criminalizagdes posteriores (reincidéncias). O rétulo criminal, principal elemento de identificagio do criminoso, produz as seguintes conseqiéncias: assimilagao das caracteristicas do rétulo pelo rotulado, expectativa social de comportamento do rotulado conforme as caracteristicas do rétulo, perpetuagio do comportamento criminoso mediante formagio de carreiras criminosas ¢ criagio de subculturas criminais através de aproximagiio reciproca de individuos estigmatizados (Aniyar, 1977, p. 111-14). De certa forma, a estigmatizago penal é a tinica diferenca entre comportamentos objetivamente idénticos, porque a condenagao criminal depende, além das distorgdes sociais de classe, de circunstancias de sorte/azar relacionadas a esteredtipos criminais, que cumprem fungSes sociais definidas: 0 criminoso estereotipado é 0 “bode expiatério” da sociedade, objeto de agressdo das classes categorias sociais inferiorizadas, que substitui ¢ desloca sua revolta contra a opressio e exploragao das classes dominantes (Chapman, 1968, p. 197). 20 ; i Ineredugis Esse esquemaanalitico,aplicado.a todasas modatidades de desvio (criminal, sexual, psicolégico, politico etc.), se erige como exercicio inter-disciplinar nas reas da sociologia do desvio ¢ da psiquiatria, com 0 objetivo de constituir a base teérica de uma politica e psicologia humanista, uma espécie de frente popular da fenomenologia ¢ do marxismo, conhecida como “sociologia do desajuste” (Pearson, 1980, p. 178). A preocupagao principal dessa orientago, que se transforma no enfoque mais popular da criminologia americana dos anos 70, esté no chamado “crime expressivo”, ligado & produgio de prazer: a maconha, ¢ no o roubo; a prostituigdo, e no o homicidio; o crime sem-vitima, e nao © crime utilitario (Young, 1980, p. 80). A proposta pritica dessa orientagdo esté na base das tendéncias modernas na drea do crime ¢ do controle social: descriminalizagao, despenalizagao, desinstitucionalizagao, substituigao de sang6es estigmatizantes por ndo-estigmatizantes etc. (Aniyar, 1977, p. 146) O radicalismo da sociologia do desajuste estaria em sua tendéncia para “quebrar as cadeias pré-fabricadas” da imaginagdo reificada — que mostra a ago humana como coisa “la fora” — e da metodologia positivista, com suas causalidades mecanicas ¢ taxas “dadas” de crime. A orientagio “desreificante” surge como desafio 08 profissionais do controle, representados por tedricos positivistas; 4 sua competéncia técnica e a sua autoridade moral (Pearson, 1980, p. 179 ¢ s.). Distinguindo, na ordem social, a existéncia de regras técnicas — com validade demonstrada em proposigdes testaveis ¢ corretas, cuja violagdo reflete “incompeténcia” e cuja consequéneia & a 2 Intradupio “falha da real:dade” —e regras da personalidade — dotadas de validade na Area das relagdes sociais, cuja violag’ & 0 crime ou desvio, punido pelo sistema de controle conforme um esquema de Habermas (1971, p. 91-94), a sociologia do desajuste mostra que 0 desvio é tratado como “incompeténcia técnica” pelos aparelhos de controle social, reduzindo a corregéio a uma questio de “intervenges técnicas” na personalidade do desviante. Desmistificando essa metodologia, a sociologia do desajuste redescobre 0s dilemas morais na aplicagao de “padrdes de estigma” (criminoso, louco, desajustado etc.), inventados pelos profissionais do controle e aplicados aos rotulados ~ que se conformam ao rétulo (“auto-realizagdio”), mostrando 0 desvio como “negociagaio” entre 0 piblico (autoridade) ¢ 0 cliente (criminoso, louco etc.) (Pearson, 1980, p. 180-82). Finalmente, verificando que a ideologia do controle determina, em parte, o desvio (formas, imagens ¢ taxas) ¢ definindo 0 controle do crime como politica, a sociologia do desajuste pretende se constituir como teoria politica contra a politica do controle, A politica de sua teoria enfatiza a violencia sutil da vida didtia, 0 crime como forma de “tebeliao politica primitiva”, ou “expressio de liberdade” ‘nos moldes da esquerda idealista (Pearson, 1980, p. 184 e's.). Goflmaa, por exemplo, pesquisando as relagdes de poder das instituigdes totais (prisdes, hospitais etc.), mostra 05 internos reduzidos a um “remanescente de identidade” pessoal, desde a cerimOnia de “degradago inicial”, com a invasio da fala, das vestes e maneiras, a colonizagio dos habitos, sob a opressao dos doutores, enfermeiros guardas — 0s técnicos do comportamento —, mas capazes de 2 Irtvaduo certas “titicas pessoais” para salvar a propria identidade: a jovem bonita, com dois cachimbos na boca; outra, com um mondculo de papel no olho, ou equilibrando sabonetes na cabega raspada; ou outros, ainda, sentando-se relaxados, mas mantendo o brago, ou um dedo, rigido, para mostrar que nao estdo relaxados ~ ou seja, 0 paciente age “marcadamente como louco para provar que é, claramente, so” (Pearson, 1980, p. 187-89) Assim, enquanto 0 positivismo nega vontade prépria aodesviante,asociologia do desajuste se dirige parao interior dele, em atitude de defesa e de compreensio, rejeitando a nogio de que “pode ser como nés”, vendo-o no como homem cujos “mecanismos de cépia falharam”, mas como ser dotado de racionalidade, com método em sua loucura. O positivismo destaca a ordem e as regras, sua respeitabilidade e violago, mas a sociologia do desajuste indica que o “outro ado da ordem” é liberdade ~ ¢ nao caos -, envolvendo o desvianie em uma aura romantica: © homem “duro”, que niio treme, que prova seus nervos e habilidades ao extremo, cuja “natureza esté saturada de risco”, experimentando sua liberdade contra “as sensibilidades submetidas & camisa- de-forga” (Pearson, 1980, p. 191-200) Mas essa posigéio de simpatia da sociologia do desajuste 6 repudiada como “mascara de liberalismo”, que niio assume compromissos: a psicologia social de Goffman ma “acomodagdo a organizagao de poder existente” & sua dramaturgia “uma impostura” que permite “suportar derrotas” sob 0 pretexto de que “niio silo para valer”; a sociologia de Becker é um “novo tipo de carreirismo”, que 2B Intredupto aponta as deficiéncias do controle social mas se limita aos funcionérios inferiores (Gouldner, 1973) ou, entdo, como expresso de um radicalismo aparente, que exclui as relagdes de poder (¢ de classes) da sociedade e, de qualquer forma, nao esclarece o desvio inicial, origem da rotulagao (Walton, 1972), A novidade da teoria foi colocar a problematica do ctiquetamento, da estigmatizacao e da estereotipia criminal em relagao com a atividade dos aparelhos de controle social, mas com umé critica reduzida a0 nivel descritivo, como “a outra cara da criminologia liberal” (del Olmo, 1976, p. 68), que completa o quadro explicativo desta (Baratta, 1975). A teoria da sociologia do desajuste é politicamente limitada ¢ historicamente confusa: nio compreende a estrutura de classes da sociedade, no identifica as relagdes de poder politico e de exploragiio econdmica (¢ sua interdependéncia) do modo de produgao capitalista e, definitivamente, nao toma posigio nas lutas fundamentais da sociedade moderna. Enfim, a estrutura teérica e metodoligicae a politica subjetivista e romantica da teoria, embora de utilidade — e relativamente critica — nos limites inter-subjetivos de seu marco teérico (Bustamente, 1977, P. 213-26), néo define uma posigao radical, no sentido do radicalismo da Criminologia Radical. Entretanto, & preciso reconhecer que os setores mais avangados da antipsiquiatria fundamentam as instituigdes de controle, como o cdrcere ¢ © manicémio, na divisto da sociedade em classes antagénicas, cuja clientela sio 0s segmentos marginalizados, sem poder nem utilidade econdmica na produgao: os objetivos corretivos ou uw Insradgio terapéuticos do cércere ou do manicomio, sob a aparéncia de resolver “contradigGes naturais’ da vida social, ocultam a finalidade real de preservar a divisao de classes da estrutura social, mediante ameaga permanente de violéncia contra a forga de trabalho ativa, integrada no mercado de trabalho (Basaglia, F. e Basaglia, F, 1976, p. 85). Destacando 0 crime ¢ 0 desvio, em geral, como tentativas individuais, fragmentérias para resolver problemas existenciais, a antipsiquiatria aponta para a necessidade da luta politica coletiva como alternativa adequada aos interesses dos grupos sociais subalternos, cujos membros so qualificados como “anormais naturais”, com uma historia pessoal feita de “antecedentes penais” — ao contrario da burguesia ¢ outras categorias sociais dominantes, que dispdem da psicanalise e das psicoterapias em clinicas particulares, com 0s recursos materiais ¢ 0 espaco social para explicar seus distarbios pessoais por categorias cientificas neutras, como neuroses, destitmias, fobias, complexos ou simplesmente stress, assegurando sua “reinsergdio social” sem traumas ou dificuldades (Basaglia e Basaglia, 1976, p.90-1). O movimento teérico que comega nas teorias conservadoras, classicas e positivistas, continua pelas teorias liberais até a construgiio mais critica da teoria da rotulagao, nos anos 60, ¢ evolui, na década de 70, para as posigdes do chamado “idealismo de esquerda”, conhece variantes de revolta impotente, com amplo impacto popular, como, por exemplo, a criminologia da demincia. O enfoque da criminologia da dentincia se concentra no comportamento dos poderosos, denunciando os defeitos das elites de poder econémico e politico da sociedade, para mostrar que os que 2B Ineroduséo fazem as leis so, também, os maiores violadores dessas leis (Taylor ef alii, 1980, p. 33 e ss.). A utilidade da dentincia social dos ebusos do poder econdmico e politico, em estreita relago com um jorna ismo “exposé”, alimentando as pesquisas sobre criminalidade do “colarinho branco”, & prejudicada pela auséncia de definigao clara de seus objetivos politicos e compromissos ideolégicos, no quadro das lutas sociais do capitalismo monopolista transnacional: 0 enfoque carece de uma estrutura conceitual e metodolégica capaz de extrair todas as conseqiiéncias tedricas ¢ praticas do seu objetc de estudo. O resultado € sua agonia resignada, em espasmos de indignacaio moral diante das desigualdades Sociais nos processos politicos de definigo de crimes ¢ nas priticas judiciais de gestio diferencial do processo penal e de aplicagzio da pena criminal, escandalizado com os duplos padries de moralidade das classes dominantes. A origem pequeno-burguesa dessa linha criminoldgica explica sua desorientagao estratégica ¢ a perplexidade inconseqiiente de sua teoria: as questdes levantadas podem chocar a classe média urbana e seus intelectuais refinados — mas nfo comovem 0 poderoso impune, nem sensibilizam o sem-poder reprimido, que conhecem bem tais distorgdes, cada qual de sua perspectiva. Além disso, a criminologia da demincia parece supor que os poderosos dominam por uma espécie de “direito moral” — e nao pelo poder material, que os capacita a converter forga em “autoridade”, pelos procedimentos estabelecidos (Taylor et alii, 1980). Uma criminologia conseqiiente deveria mostrar que a ctiminalidade do poder econémico ¢ politico n&o é um fendmeno irregular ou acidental, mas fenémeno regular ¢ institucionalizado, ligado a posigio estrutural de 26 Inaroduio classe na formagao social capitalista e, por exemplo, sobre a base da posigio de classe, explicar por que a apropriagao de riqueza, pelo método de expropriagdo de mais-valia, na relagio capital/trabalho assalariado do modo de produgao capitalista, é legal c estimulada, mas se essa apropriagio de riqueza ocorre por outras vias fraudulentas ou violentas, 6 criminosa e punida. ‘A multiplicagdo de estudos criticos ¢ radicais sobre crime ¢ controle social, nem sempre coincidentes nas bases ideolégicas, compromissos politicos ¢ orientagées cientificas, desde a critica de esquerda, passando pela “nova criminologia”, até as construgdes mais elaboradas de criminélogos marxistas, em uma convergéncia de preocupagées interdisciplinares ¢ internacionais de socidlogos ¢ historiadores, advogados, juristas ¢ crimindlogos, parece justificar 0 esforgo de definir tendéncias dentro dessa perspectiva, em um esquema que facilite a campreensiio das limitagdes e desvios existentes, Um estudo recente (Young, 1979, p. 11 ess.) define duas tendéncias principais nos aportes criminolégicos ligados a teoria marxista, representando desvios voluntaristas ¢ economicistas nas questdes do crime e do controle social: o idealismo de esquerda ¢ 0 reformismo. O chamado idealismo de esquerda se constitui, historicamente, como a ideologia radical de grupos sociais marginalizados, como 0s militantes do “poder negro”, nos Estados Unidos: George Jackson (1971, p. 156 ess.), Angela Davis (1971, p. 21-47), Bobby Seale (1971, p. 121-2), Huey Newton (1971, p. 60-64), Stockely Carmycheel (1968, p. 46-68) etc., cuja Y Irtrdato oposigo A violencia ¢ a coercitividade da ordem social assume um cardter voluntarista; homens livres devem rejeitar uma sociedade desigual e opressiva. Na experiéncia histérica desses grupos (negros, presos e outras minorias), a ordem significa coergao sistematica, 0 “consenso social” do capitalismo monopolista é uma aparéncia ilusGria reproduzida pela escola, a imprensa, 0 Parlamento etc., que oculta um controle totalitario e mistificador: a lei se destina a protegao dos interesses dos poderosos, enquanto a policia ea prisio sio garantias violentas de uma ordem social injusta. A escola, a fibrica ¢ a prisdo si instituigdes ideolégica e politicamente similares: a educagdo nao passa de um “processo de lavagem cerebral”, a disciplina da fabrica é a base da disciplina da prisio ¢ 0 aparelho penal (policia, justiga e prisdo) funciona como mecanismo central de controle das classes e grupos sociais submetidos (Young, 1979, p. 12-13) Atese da lei como “expresstio direta” dos interesses das classes dominantes, que controlam os meios de produgao material e de reprodugao ideolégica da sociedade, permite definir 0 comportamento da classe trabalhadora e dos marginalizados sociais normalmente como crime, porque se opde aos interesses das classes dominantes ¢ A lei que expressa esses interesses. O crime é, simultaneamente, produto das estruturas econdmicas e politicas do capitalismo © evento proto-revolucionério, como desafio as relagdes de propriedade existentes, ou forma de manifestagio da violéncia pessoal dos marginalizados sociais contra o poder organizado das classes dominantes, representadas pelo Estado, que ‘egaliza a violéncia de classe dos criminosos 28 i Inaradugio reais que esto no poder (Young, 1979, p. 14-15). O controle social de classe tem na prisao sua instituigao central — e na policia, seu agente principal —, ambos caracterizados por uma eficiente ineficiéncia no controle do crime: 0 objetivo oculto seria constituir uma ameaga permanente contra as classes sociais objeto de exploragdo econdmica ¢ de dominagiio politica. Esse objetivo é disfargado pelas “mistificagdes positivistas” do tratamento penitencidrio, da reabilitagdo pessoal ou da ressocializagaio, pseudo-cientismo que esconde o rigor punitivo e, de fato, aumenta o castigo, mediante técnicas de isolamento, privagdo sensorial ou administrago de drogas psicotrépicas — sem falar nas penas indeterminadas do sistema prisional americano, que colocam ‘© preso A mercé dos administradores e guardas da prisiio. A cstratégia do radicalismo da esquerda idealista objetiva a aboligao do controle social burgués, com a extingdo da prisdo, da policia, da escola, dos meios de comunicagio de massa, da familia nuclear etc., definidos como “instituigdes inimigas da classe trabalhadora”, mas inteiramente “funcionais” para o capitalismo: niio se trata de reformar, mas de destruir essas instituigdes e promover sua substituigdio por instituigdes proletirias. Finalmente, o idealismo de esquerda proclama a contradigao irredutivel do direito burgués, caracterizado por um discurso de justiga igualitdria e uma pritica real opressiva e discriminatéria, justificando a titica politica de exposigtio sistemética da realidade desigual promovida pela retérica da igualdade e, assim, desmascarar a aparéncia iluséria da ideologia juridica. O crime, fendmeno social ligado ao capitalismo, em geral — cujas instituigdes so denunciadas como » Intra essencialmente criminosas ¢ erimindgenas -, e a repressio criminal, fendmeno institucional concentrado nos segmentos sociais subalternos e marginalizados, colocam a necessidade politica de alianga dos grupos sociais explorados, reprimidos € miserabilizados objeto dos processos de criminalizagio, como meio de auto-protegao e de realizacio final de sua estratégia (Young , 1979, p.16). reformismo, um desvio economicista da critica criminologica, desenvolve-se como espécie de “marxismo” bem-educado, absorvido pelo sistema, assimilado pelos curriculos universitérios, sem a origem rebelde, 0 aguerrimento combativo, a tradigo militante ea importancia politica do idealismo de esquerda, A caracteristica basica da ideologia reformista, em relagao ao Direito ¢ ao Estado, por exemplo, & a crenga passiva no “proceso de dissolugio do capitalismo no socialismo” — portanto, uma projegio histérica da II Internacional ~ e, por outro lado, a crenga ativa no Estado intervencionista, capaz de realizar a corregio progressiva de desigualdades sociais por reformas juridicas. O reformismo afirma ser contririo aos interesses das classes trabalhadoras 0 conteitdo das instituigdes (e nao a sua forma), 0 controle da policia (e nfo o aparelho policial), a ilegalidade da prisio (¢ nao a propria prisio), a limitagio de oportunidades de acesso a escola (¢ nao o sistema escolar), © conteiido da lei (¢ no a forma legal) etc. O crime € definido como fenémeno “natural”, existente em qualquer sociedade — embora em maior quantidade no capitalismo -, redutivel por mudangas sociais que eliminem os fatores da “criminalidade determinada” (ligada & patologia individual, como caréncias, subnutrigao, defeitos mentais ete.) e do 30 Inerdupéo “crime voluntario” (relacionado ao individualismo egoista da competig%o capitalista). O comportamento humano & classificado nas categorias de normal, préprio da maioria “livre” (nos limites de liberdade da economia de mercado) e de determinado, caracteristico da minoria “sem liberdade”, por condicionamentos biolégicos, psicologicos ce sociais. Enfim, o reformismo trabalha com uma etiologia criminal que aponta na diregao de uma dupla origem do comportamento criminoso, explicado ou por constituigdes biolégicas atipicas, origem de disposigdes anti-sociais de individuos deformados, ou pelo ambiente social de {o individual pela existéncia material, acentuanda malistas ¢ agressivos (Young, 1979, p.16 e 8s.) De modo geral, a perspectiva reformista do economicismo “marxista” ndo se distancia da monotonia positivista e suas causalidades mecénicas, trabalhando com hipéteses deterministas similares, com a diferenga da crenga — de resto, também positivista-marxista — na inevitabilidade histérica da evolugio do capitalismo para o socialismo, na seqtiéncia de um processo linear e fatalista que ignora a influéncia da ideologia e da politica na génese da capacidade de sobrevivéncia do capitalismo, como mode de produgio de classes sociais antagénicas. A influéncia desse desvio reformista na estruturagao da Criminologia Radical ¢ insignificante, funcionando mais como modelo de reformulago ou discurso de legitimagio da ideologia do controle social, esgrimido por tedricos “marxistas” engajados no “carreirismo” em instituigdes oficiais. As limitagdes mais importantes, comuns s tendéncias 3 da esquerda idealista ¢ do reformismo, sio a auséncia de cexplicagdes estruturais da criminalizago dos grupos sociais subjugados ¢ marginalidados ~ esclarecendo a posigaio do pobre como “bode expiatério” da violéncia institucional -, a falta de aprofundamento nas contradig&es do capitalismo na era da transnacionalizagao do capital monopolista ¢ a caréncia deadequada compreensio da natureza contraditoria da aparéncia dos fendmenos sociais ¢ institucionais da sociedade capitalista, que vinculam problemas de contetido com questées de forma, como mostra a mais autorizada teoria marxista sobre crime, controle social, Dircito e Estado (Young, 1979, p.21 ¢ ss.) ‘Criminélogos radicais proclamam que as contradigé da teoria nao podem ser resclvidas sem mudangas da base estrutural da sociedade ~ enjas contradigées concretas produzem cexplicam as contradigdes da teoria—e propdem uma luta em dois niveis: a) no nivel formal, a rejzicho da ideologia da esquerda idealista, expressa em slogans como “o direito burgués uma vergonia”, ow “a legalidade ¢ uma forma de cooptagio” etc., argumentando que a conquista formal da igualdade nas areas da protego individual, do direito criminal ¢ da prisio, por exemplo, pode determinar uma redugiio da populagao das prisdes, a reconstituigio de sua “clientela” ¢ a progressiva trans formagao ca pris, de instituigtio seme lei para instituigdo legalizada—o que coincide como interesse das classes trabalhadoras e de todos os marginalizados sociais e opsimidos, em geral, no capitalismo; 4 4 i i | | | | 4 i Introduce b) no nivel material, a rejeigio da posigdo reformista da luta formal como fim-em-si, omitindo-se das questdes politicas e ideolégicas do capitalismo contempordneo. Paralclamente, a construgdo de uma concepgio de crime fundada na posigo de classe do autor ¢ orientada para a definigdo de responsabilidades coletivas, capaz de superar 08 ctitérios individualistas e pessoais da moderna teoria do crime e da pena, como alternativas para o trabalho criminolégico radical (Young, 1979, p.26-28; Cirino, 1980). 33

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