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» Nd 4 = am a EDITORA oS see © 5/09 ap ADI 0s indios na Historia do Brasil Maria Regina Celestino de Almeida Livros publicados pela Colegio FGV de Bolso (01) A Histéria na América Ratina— ensaio de critica historiogrdfica (2009) de Jurandir Malerba. 146 p. Séric ‘Historia® (02) Os Bries e a Ordem Global (2009) de Andrew Hurrell, Neil MacFarlane, Rosemary Poot ¢ Amrita Narlikar. 168 p. ie “Entenda 0 Mundo” (03) Brasil-stadas Unidos: desencontros ¢ afimiclades (2009) de Monica Hirst, com ensaio analitico de Andrew Elurrell. 244 p Série “Entenda o Mundo’ (04) Gringo na laje — Produgdo, circulasde & consumo da favela turistica (2009), de Bianca Freire-Medeiros Série ‘Turismo’ (05) Pensando com a Sociologia (2009) de Jojo Marcelo Ehlert Maia e Luiz Fernando Almeida Pereira. 132p, Série ‘Sociedade & Cultura’ (06) Politicas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao séeulo XX1 (2008) de Lia Calabre, 144 p. Série ‘Sociedade & Cultura’ (07) Politica externa ¢ poder militar no Brasil: universos paralelos (2009) de Joao Paulo Soares Alsina Jainior. 160 p. Série ‘Entenda 0 Mundo’ (08) A Mundiatizacdo (2009) de Jean-Pierre Paulet, 164 p. Série ‘Sociedade & Economia’ (09) Geopolitica da Africa (2009) de Philippe Hugon, 172 p. Série ‘Entenda 6 Mundo” (10) Pequena Introdugado & Filosofia (2009) de Francoise Raffin. 208 p. Série ‘Filosofia’ (11) Indtiseria Cultural — uma introdusio (2010) de Rodrigo Duarte. 132 p. Série ‘Filosofia’ (12) Antropologéa das emogbes (2010) de Claudia Barcellos Rezende e Maria Claudia Coelho. 136 p. Série ‘Sociedade & Cultura” (13) 0 desafio historiagrdfico (2010) de José Carlos Reis. 160p. Série “Histéria’ (14) 0 que @ China quer? (2010) de G. John tkenberry, Jeffrey W. Lepro, Rosemary Foot, Shaun Breslin. 132p. Série ‘Entenda o Munda’ (15) Os indtios na Histdria do Brasil (2010) de Maria Regina Celestino de Almeida. 164p, Série ‘Historia’ ASO yom FGV z2 EDITORA = 2 Ss zs 3 S indios na Historia do Brasil Maria Regina Celestino de Almeida A AL Copyright © 2010 Maria Regina Cefertine de Nimelila 1P align — 2010; 14 telmpeessin — 2018. —P > Atvipeesso mo Brasil | Prinded aw Fea! “Todos os dietos reservados 4 EDEFORA FGV A reprodagie mio autnrizada desta pablieagio, ne todo om em, parte, costa violagao-do apy (Le 8 9.10/98). ‘Ot eomaritr evi ete res oe intins reponse a anton. ‘CouFdenadares da Golegao; Marra de Moraes Terreira ¢ Renato Prarcor Peeparagao de originaix: Paulo Frederico elles Ferreira Guailhaued Revisao: Livia Duarte, Tathyana Viana, Absidis de Beltran diageamagao: PA Editoraghe projcto prafico © capa: Dudesiige Ficha caralogrifica dborade ‘pela Biblioteca Mario Henrique Siaonsen/FGV Para Paula. Alms, Maia Regn (este he ‘Oc nox historia do Brasil / Mana Reygoa Celestine ‘Almeida. ~ Rae Janciny « Edrora GN, 2010, 168 ps (Colegio, POV abe bys Sine Hasta) rch biblografia SBN: 07H 85225-08284 1-fnuhin da América do Sul Bras Hines. 2 ire Brasil 8 Inudios da América do Sul ~ Stra Idenbdade deme, 1. Funalagie Gotu Nanas. MTiawo. TUL Sere epb— ait Wditom FGV Reis Jornalites Orlando Dantas, 37 DAWN | Rio de Janeiro, fe} | Beasil “Tels: OMO-OZ1-7777 | 21-3790-4427 Fax 21-3799-4430 eafiioraitigube | peelidoseditoralaifigcbe wewrwilipebe edits Sumario Introdugao 9 Capitulo 1 O lugar dos indios na historia: dos bastidores ao palco 13 No tempo dos bastidores 13 Conquistando um lugar no paleo... 18 E (quem diria?) a agao dos indios também move a historia... 25 Capitulo 2 Os indios na América portuguesa 29 Tupis ¢ tapuias em tempos de mudanga 29 Guerras € trocas entre os tupinambas 36 Os primeiros contatos 38 Capitulo 3 Guerras indigenas e guerras coloniais/pés-coloniais 45 A conquista da capitania de Pernambuco e suas anexas 49 A conquista da capitania da Bahia, Ilhéus e Espirito Santo 53 A conquista da Guanabara 57 5, para além do século XVI, as guerras continuam... 62 Capitulo 4 Politica de aldeamentos e colonizagao 71 As muitas fungdes e significados das aldeias coloniais 73 Qs indios e as leis 82 Viver e mudar nas aldeias: ressocializagao ¢ catequese 88 Tornar-se indio aldeado: ago politica, mestigagens € reconstrugées identitarias nas aldeias 98 Capitulo 5 Politica indigenista de Pombal e politicas indigenas 107 0 Diretério dos Indios: rupturas € continuidades 109 De aldeias indigenas a vilas ¢ lugares portugueses: as primeiras experiéncias na Amazonia 113 Politica de igualdades ou manutengao das diferenga: 118 Principais x comuns: enobrecimento de liderangas € hierarquias nas aldeias 119 Barbaros x civilizados: incorporagdo dos povos do | sertao e permanéncia das distingdes 122 indios x nao indios: propostas de assimilacao ¢ resisténcias indigenas 126 Capitulo 6 Etnicidade e nacionalismo no século XIX 135 137 Imagens do indio Politica indigenista ¢ politicas indigenas 14. Conflitos agrarios ¢ resisténcias indigenas nas antigas aldeias 15k Consideragées finais 159 Referéncias 161 Introdugaéo Os povos indigenas tiveram participagdo essencial nos processos de conquista e colonizacgdo em todas as regiGes da América. Na condigao de aliados ou inimigos, eles desempe- nharam importantes e variados papéis na constru¢ao das so- ciedades coloniais e pés-coloniais. Foram diferentes grupos nativos do continente americano de etnias, linguas e culturas diversas que receberam os europeus das formas mais variadas e foram todos, por eles, chamados indios. Eram, em sua gran- de maioria, povos guerreiros, e suas guerras e historias se en- trelagaram, desde o século XVI, com as guerras e historias dos colonizadores, contribuindo para delinear seus rumos. Este livro trata da historia desses indios em contato com as sociedades coloniais e pés-coloniais no Brasil. Indios que, ate muito recentemente, quase nao mereciam a atengao dos historiadores. Nas ultimas décadas, no entanto, os estudos historicos sobre eles tem se multiplicado e contribuido para desconstruir visdes equivocadas ¢ preconceituosas sobre suas telagdes com os colonizadores. De personagens secundarios 10 FGV de Bolso apresentados como vitimas passivas de um processo violento no qual nao havia possibilidades de agao, os povos indigenas em diferentes tempos € espagos come¢aram a aparecer como agentes sociais cujas agoes também sao consideradas impor tantes para explicar os processos historicos por eles vividos. Essas novas interpretagdes permitem outra compreensao so- bre suas histérias e, de forma mais ampla, sobre a propria historia do Brasil. O objetivo deste livro é apresentar uma revisdo das leitu- ras tradicionais sobre o tema, a partir de pesquisas recentes que tém revelado o amplo leque de possibilidades de novas interpretagdes sobre as trajetorias de grupos € individuos in- digenas. Nessas pesquisas, os indios aparecem como sujeitos ativos nos processos de colonizagao, agindo de formas varia- das ¢ movidos por interesses proprios, A violéncia da con- quista e da colonizagao nao os impediu de agir, mobilizando as possibilidades a seu alcance para atingir seus interesses que se transformavam com as novas situagdes vivenciadas. E importante assinalar que essas novas leituras nao re- sultaram apenas da descoberta de documentos inéditos, mas principalmente de novas interpretagoes fundamentadas em teorias e conceitos reformulados. Em outras palavras, um mesmo documento pode revelar realidades bem diversas, conforme as referéncias tedricas e conceituais que emba- sem as interpretagdes dos investigadores. Essas novas in- terpretagGes tornaram-se possiveis quando historiadores ¢ antrop6loges comegaram a dialogar e a trocar experiéncias a respeito de seus temas ¢ ferramentas de trabalho — as teo- rias, os conceitos ¢ os métodos — com os quais analisam seus objetos de estudo. Pesquisas interdisciplinares, que conjugam teorias e mé- todos historicos e antropolégicos, vao aos poucos descons- ‘Os indios na histéria do Brasil " truindo compreensées simplistas e interpretagdes equivoca- das sobre os indios e suas relagdes. Da mesma forma, ideias preconceituosas que, por muito tempo, predominaram e in- fluenciaram o pensamento dos intelectuais responsaveis pela construgao do saber sobre os indios, também vao sendo ultra- passadas. Por essa razdo, para pensar sobre essa revisado histo- riografica, que tem dado um novo lugar aos indios em nossa historia, é importante abordar algumas questGes tedricas ¢ conceituais da histéria e da antropologia que nos ajudam a compreender essas diferentes leituras a respeito dos papéis atribuidos aos indios, Capitulo 1 O lugar dos indios na historia: dos bastidores ao palco No tempo dos bastidores Como os indios tém sido vistos tradicionalmente em nossa historia? Desde a Histéria do Brasil de Francisco Adolfo Var- nhagen (1854) até um momento bastante avangado do século XX, os indios, grosso modo, vinham desempenhando papeis muito secundarios, agindo sempre em fungao dos interesses alheios. Pareciam estar no Brasil a disposigao dos europeus, que se serviam deles conforme seus interesses. Teriam sido uteis para determinadas atividades e inuiteis para outras, alia- dos ou inimigos, bons ou maus, sempre de acordo com os objetivos dos colonizadores. Além disso, em geral, apareciam na historia como indios apenas no momento do confronto, isto ¢, quando pegavam em armas e lutavam contra os ini- migos. Assim, 0s tamoios, os aimoreés, os goitacazes e tantos outros eram vistos como indios guerreiros, que resistiram bravamente 4 conquista de suas terras. Foram, no entanto, derrotados e passaram a fazer parte da ordem colonial, na qual nado havia brecha nenhuma para a agao. Tornavam-se, a FGV de Bolso entao, vitimas indefesas dessa ordem. Na condigao de escra- vos ou submetidos, aculturavam-se, deixavam de ser indios e desapareciam de nossa historia. Essas ideias, até muito recentemente, embasavam © de- saparecimento dos indios, em diversas regides do Brasil, j4 nos primeiros séculos da coloniza¢éo. Desapareciam, porém, deve-se ressaltar, apenas da historia escrita. Estudos recentes tém demonstrado que, do século XVI ao XIX, os indios inse- ridos no mundo colonial, em diferentes regides da América portuguesa, continuavam muito presentes nos sertoes, nas vilas, nas cidades e nas aldeias. Inimeros documentos pro- duzidos pelos mais diversos atores sociais evidenciam essa presenga, Como se explica terem desaparecido da historia do Brasil? Em grande parte, parece-me, devido a ideia acima apontada e predominante, por muito tempo, entre antropologos e histo- riadores. Trata-se da ideia segundo a qual os indios integra- dos 4 colonizagao iniciavam um processo de aculturagao, isto é, de mudangas culturais progressivas que os conduziam 4 assimilagao e consequentemente a perda da identidade étni- ca. Assim, as relagdes de contato com sociedades envyolventes e os varios processos de mudanga cultural vivenciados pelos grupos indigenas eram considerados simples relagdes de do- minacado impostas aos indios de tal forma que nao lhes restava nenhuma margem de manobra, a nao ser a submissdo passiva a um processo de mudangas culturais que os levaria a serem assimilados e confundidos com a massa da populagao. Nessa perspectiva assimilacionista predominante, por lon- go tempo, no pensamento antropoldgico, os indios integrados a colonizagao tornavam-se individuos aculturados e passivos que, junto com a guerra, perdiam culturas, identidades ét- nicas e todas as possibilidades de resisténcia. Tal concepgao Os indios na hist6ria do Brasil 15 tedrica, hoje bastante questionada, tinha ampla aceitagao num tempo em que historiadores e antropdlogos andavam afastados e seus campos de estudo eram nitidamente disti tos, Culturas, identidades étnicas, relagdes culturais € varios outros temas relacionados ao cotidiano de homens comuns e de povos nao ocidentais eram assunto de antropologos e, em geral, estudados num plano sincrénico, isto ¢, sem levar em conta processos de mudanga. A cultura dos chamados “povos primitivos’’, vista como pura e imutavel, era objeto de investigagao dos antropélogos preocupados em compreendé-la em suas caracteristicas ori- ginais € aut€nticas. Processos historicos de mudan¢a por eles vividos nao eram valorizados por pesquisadores interessados em desvendar a légica e o funcionamento da cultura entendi- da de forma essencialista, isto é, como fixa, estavel e imutavel. Além disso, os chamados povos primitivos eram considerados isolados e sem historia. Moviam-se com base em suas tradi- gdes ¢ mitos considerados também a-histdoricos. Essas ideias, com excegGes e nuances que nao serao aqui abordadas, pre- dominaram entre as principais correntes do pensamento an- tropoldgico, ao longo do século XX, e orientaram importantes e excelentes trabalhos sobre os povos indigenas da América e suas culturas, porém nao numa perspectiva historica, Embora algumas vozes jd alertassem, em meados do século XX, para a importancia de se considerar a trajetoria histori- ca dos povos para o melhor entendimento de suas culturas, predominou, entre os antropdlogos, a concepgio de que os processos histéricos portadores de mudanga nao eram im- portantes para a compreensao de seus objetos de estudo. Ao contrario, eram vistos como propulsores de perdas culturais sucessivas que levavam a extingao dos povos estudados. Afi- nal, sea cultura era vista como algo fixo e estavel, relagoes de 16 FGV de Bolso contato, principalmente com povos de tecnologia superior, s6 poderiam desencadear processos de aculturagao que con- duziriam necessariamente a perdas culturais € a extingao ét- nica. As relagdes de contato eram, entao, grosso modo, vistas como relagdes de dominagao/submissao, na qual uma cultura se impunha sobre a outra, anulando-a. Nessa perspectiva, os indios integrados 4 colonizagao, seja como escravos ou como aliados, eram vistos como submissos € aculturados, nao cons- tituindo, pois, categoria social merecedora de maiores inves- tigagdes, A partir dessa perspectiva, as interpretagoes sobre as relagdes de contato eram pensadas com base em dualismos simplistas que estabeleciam rigidas oposigées entre indio aculturado e indio puro; aculturagao ¢ resistencia cultural (entendida esta tltima como negagao dos novos valores cul- turais impostos); estrutura cultural (fixa, imutavel ¢ orien- tadora do comportamento dos povos primitivos) e processos histéricos (responsaveis por introduzir mudangas ¢ conduzir 4 extingdo desses mesmos povos). Esses dualismos foram, em grande parte, responsaveis por abordagens redutivistas que conduziram a visdes equivocadas sobre a atuagao dos indios nos processos hist6ricos. A percepgao de que os indios em contato com sociedades envolventes caminhavam inevitavelmente para a assimilagao predominou até quase os nossos dias, mesmo entre os mais de- dicados defensores das causas e dos direitos indigenas, Entre esses, vale citar Florestan Fernandes. O autor procurou des- mistificar algumas visGes equivocadas da historiografia quanto ao comportamento passivo dos indios face a colonizagao, Enfa- tizou a resisténcia indigena, buscando entendé-la a partir das caracteristicas da organizacao social dos tupis, desconstruindo a ideia do baixo nivel civilizatorio dos indios. Apresentou-os Os indios na historia do Brasil 17 como bravos inimigos dos portugueses que lutaram ardorosa- mente, mas que, uma vez vencidos, tornaram-se aculturados, submissos ¢ escravizados. Ao perderem a cultura “auténtica”, passaram a fazer parte de um outro sistema, no qual eram der- rotados e nao tinham possibilidades de escolha. Foram bravos, mas perderam e “,,.0 seu heroismo e a sua coragem nao mo- vimentaram a historia, perdendo-se irremediavelmente com a destruigdo do mundo em que viviam” (Fernandes, 1976:72), como destacou o autor. Sem desmerecer 0 importante trabalho de Fernandes, responsavel em desvelar, ainda que com limi- tes, a logica de funcionamento da sociedade tupinamba, cabe reconhecer que sua abordagem reforcava a concep¢ao de Var- nhagen segundo a qual para os “...povos na infancia nao ha historia: ha s6 etnografia” (Varnhagen, s/d:42, v. 1). Essa frase de Varnhagen evidencia claramente o papel re- servado aos indios também pelos historiadores. Ainda que distantes dos antropologos quanto as tematicas analisadas e as formas de aborda-las, comungavam com eles quanto as ideias assimilacionistas a respeito dos indios. Para eles, os indios também eram povos primitivos, espécies de fésseis vivos da humanidade, portadores de culturas auténticas e puras que deviam ser estudados por etndgrafos, antes que desapare- cessem. O Instituto Historico ¢ Geografico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 com a intengdo de criar uma histéria do Brasil que unificasse a populagao do novo estado em torno de uma memoria historica comum ¢ heroica, iria reservar aos in- dios um lugar muito especial: 0 passado. Nessa historia, os in- dios apareciam na hora do confronto, como inimigos a serem combatidos ou como herdis que auxiliavam os portugueses. Os indios vivos € presentes no territorio nacional, no século XIX, nao eram incluidos. Para eles, dirigiam-se as politicas de assimilagao que, desde meados do século XVIII, tinham 0 ob- 18 FGV de Balso jetivo de integra-los acabando com as distingdes entre eles e os nao indios, primeiro na condigao de suditos do Rei, depois como cidadaos do Impéria. Fssas formas de compreensdo sobre os indios iriam se manter até muito avangado o século XX e eram respaldadas e incentivadas pelas politicas indigenistas. A politica assimila- cionista para os indios, iniciada com as reformas pombalinas em meados do século XVIII, teve continuidade no Império brasileiro e também na Republica. Ainda que diferentes le- gislagées garantissem as terras coletivas ¢ alguns outros cui- dados especiais para os indios enquanto eles nao fossem con- siderados civilizados, a proposta de promover a integragado e extingui-los como grupos diferenciados iria se manter até a Constituicdo de 1988. Essa foi a primeira lei do Brasil que garantiu aos indios o direito a diferenga, marcando uma vira- da significativa na legislagao brasileira. A nova lei, em gran- de parte influenciada pelos movimentos sociais e indigenas do século XX, veio, na verdade, a sancionar uma situagao de fato: os indios, nos anos 1980, contrariando as previs6es aca- démicas, davam sinais claros de que nao iriam desaparecer. Até os anos 1970 do século XX, no entanto, a perspecti- va pessimista do inevitavel desaparecimento dos indios pre- dominava entre os intelectuais brasileiros, incluindo os mais dedicados defensores de seus direitos. Ainda que denuncian- do violéncias ¢ lutando por legislagdes favoraveis aos indios, intelectuais, indigenistas e missionarios buscavam, grosso modo, apenas retardar um processo visto por cles como irre- versivel. Os indios, nao resta dtivida, iriam desaparecer. Conquistando um lugar no palco... Surpreendentemente, as previsdes ndo se cumpriram, Os povos indigenas nao desapareceram. Ao invés disso, crescem Os indios na historia do Brasil 19 e multiplicam-se, como demonstram os ultimos censos. Tor- nam-se cada vez mais presentes na arena politica brasileira, ao mesmo tempo em que despertam o interesse dos historia- dores e lentamente comegam a ocupar lugar mais destacado no palco da historia. A que se deve esse movimento? O cha- mado processo de aculturagao continua em curso e¢, deve-se convir, cada vez mais intenso nesses tempos de globalizacao. Porém ao invés de levar a extingao das diferengas étnicas, parece que tem contribuido para reforga-las. O recente episddio envolvendo os conflitos e o julgamento sobre as terras da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, é significativo a este respeito. Em dezembro de 2008, cinco povos indigenas (macuxi, wapixana, ingaricé, patamona e taurepang), ha 30 anos em disputa pela demarcagao de suas terras nessa reserva, tiveram seus direitos defendidos pela advogada indigena Joénia Batista de Carvalho, india wapi- xana, Joénia foi a primeira indigena a defender uma causa no Supremo Tribunal Federal. Acontecimento histérico, nas palavras da propria Joénia, que nos convida a refletir sobre a historia dos indios em nosso pais. Sem entrar no mérito da questao, cabe assinalar a atuagado de Joénia que, formada em direito, atuou como defensora de seu proprio grupo. Partici- pou do ritual do julgamento com a toga que a fungdo exige e com o rosto pintado conforme as tradigdes de seu povo. Com coragem e determinagao, defendeu os direitos dos indios, que acabaram ganhando a causa. Alguém duvida que ela seja india? Com certeza, sim. En- tre os argumentos contrarios 4 demarcagao continua daquelas terras, inclui-se o argumento de que muitos dos grupos ali envolvidos ha muito deixaram de ser indios. Percebe-se, pois, que as disputas politicas por esses direitos envolvem disputas sobre suas classificagdes étnicas. Ser ou nao ser indio implica 20 FGV de Bolso ganhar ou perder direitos e isso ndo acontece apenas em nos- sos dias. Desde meados do século XVIII, disputas politicas em torno de classificagdes étnicas para assegurar ou nao direitos indigenas concedidos pela legislagao ja ocorriam. Por ora, para 0 argumento em questao, importa reconhe- cer que os movimentos indigenas da atualidade evidenciam que falar portugués, participar de discussdes politicas, rei- vindicar direitos através do sistema judiciario, enfim, parti- cipar intensamente da sociedade dos brancos e aprender seus mecanismos de funcionamento nao significa deixar de ser in- dio e sim a possibilidade de agir, sobreviver e defender seus direitos. S40 os proprios indios de hoje que nao nos permitem mais pensar em distingdes rigidas entre indios aculturados ¢ indios puros. Cabe aqui retomar a questao sobre as mudang¢as nos ins- trumentos de analise dos antropdlogos e historiadores e reco- nhecer que, em grande parte, essas mudangas foram e con- tinuam sendo influenciadas pelos movimentos indigenas da atualidade, Afinal, se os indios deveriam desaparecer, con- forme as teorias do século XIX e de boa parte do XX, mas, ao invés disso, crescem ¢ multiplicam-se, é hora de repensar os instrumentos de analise. E 0 que tem sido feito, nas ultimas décadas, por historiadores e antropologos que cada vez mais se aproximam e reformulam alguns conceitos e teorias funda- mentais para pensar sobre as relag6es entre os povos. Nessa aproximacao, os antropélogos passam a interessar- se pelos processos de mudanga social, percebendo que seus objetos de estudo nao sdo imutaveis e estaticos, e os histo- riadores passam a valorizar comportamentos, crengas e coti- dianos dos homens comuns, tradicionalmente considerados irrelevantes, bem como a interessar-se por estudos de povos nao ocidentais que tiveram importancia fundamental em nos- sa historia, tais como os indios e os negros. Os indios na historia do Brasil a A nogao de cultura no sentido antropolégico, incluindo todos os produtos materiais, espirituais e comportamentais da vida humana, bem como as dimensoes simbélicas da vida social tém sido amplamente adotadas pelos historiadores. fm suas andlises, valorizam os diferentes significados das agdes humanas para entender os processos histéricos. Os antropologos, por sua vez, valorizam os processos historicos de mudanga como elementos explicativos e transformadores das culturas dos povos por eles estudados, na medida em que abandonam a antiga ideia de cultura fixa e imutavel. Reconhecem que as trajet6rias histéricas vividas pelos po- vos sio importantes para uma compreensdo mais ampla de suas culturas. Cabe destacar a contribuigao fundamental do historiador E. P Thompsom que enfatizou a importancia de se considerar a historicidade da cultura. De acordo com ele, a cultura é um produto historico, dinamico e flexivel que deve ser apreendi- do como um processo no qual homens e mulheres vivem suas experiéncias. O antropélogo Sidney Mintz, comungando tais percepgées, destacou a importancia de se perceber que um sistema cultural apresenta variabilidade no que se refere as intengdes, consequéncias e significados dos atos escolhidos pelos individuos. Pessoas situadas em posigdes socialmente diferentes podem até agir da mesma forma, mas essas agGes muito provavelmente nao terao para clas 0 mesmo sentido, nem tampouco as mesmas consequéncias, Os homens agem ¢ se relacionam, conforme seus lugares sociais e seus objetivos. Dai a importancia de se estabelecer o entrosamento dinamico entre sociedade e cultura. As estruturas culturais orientam © comportamento dos homens, mas nao podem ser vistas como malhas de ferro que nao lhes possibilitem agir fora delas. 22 FGV de Bolso Dessa forma, processos histéricos e estruturas culturais ine fluenciam-se mutuamente e ambos sdo importantes para uma compreensao mais ampla sobre os homens, suas culturas, his- torias e sociedades. A partir dessas novas concepgées tedricas, antropdlogos ¢ historiadores tém analisado situagoes de contato, repensando e ampliando alguns conceitos basicos sobre o tema. A compre ensao da cultura como produto histérico, dindmico e flexivel, formado pela articulagao continua entre tradigdes e novas ex- periéncias dos homens que a viyenciam, permite perceber a mudanga cultural nao apenas enquanto perda ou esvaziamento de uma cultura dita auténtica, mas em termos do seu dinamis- mo, mesmo em situagdes de contato extremamente violentas como foi 0 caso dos indios e dos colonizadores. Nesse sentido, 0 conceito de aculturagao também se altera € ao invés de se opor a resisténcia passa a caminhar junto com ela. Desde os anos 1970, esse conceito vem sendo problema- tizado e visto como processo de mao dupla, no qual tedos se transformam. Em nossos dias, as ideias de apropriagao e res- significagao cultural tém sido mais utilizadas e realmente sao mais adequadas ao estudo de situagdes nas quais se leva em conta os interesses e motivagGes dos proprios indios nos pro- cessos de mudanga. Ao invés de vitimas passivas de imposi- g6es culturais que so lhes trazem prejuizos, os indios passam a ser vistos como agentes ativos desses processos. Incorporam elementos da cultura ocidental, dando a eles significados pro- prios e utilizando-os para a obtengao de possiveis ganhos nas novas situagdes em que vivem. O conceito de tradigao também tem sido repensado, pre- valecendo, hoje, o pressuposto de que ela sempre se modifica ao ser transmitida. Tudo que se transmite é recebido con- forme a maneira do recebedor, o que implica em valorizar Os indios na histéria do Brasil 23 mais a apropriagao do que a transmissao. No caso da historia indigena, trata-se de deslocar o foco da analise dos coloniza- dores para os indios, procurando identificar suas formas de compreensao e seus proprios objetivos nas varias situagdes de contato por eles vividas, Essa tem sido a tendéncia dos trabalhos das ultimas deéca- das, através dos quais podemos perceber que as atitudes dos indios em relagao aos colonizadores nao se reduziram, abso- Jutamente, a resisténcia armada, a fuga ¢ a submissao passiva. Houve diversas formas do que Steve Stern chamou de resis- téncia adaptativa, através das quais os indios encontravam formas de sobreviver e garantir melhores condigdes de vida na nova situagao em que se encontravam. Colaboraram com os europeus, integraram-se a colonizagao, aprenderam novas praticas culturais ¢ politicas ¢ souberam utilizd-las para a ob- tencdo das possiveis vantagens que a nova condigao permitia. Perderam muito, nao resta duvida, mas nem por isso deixa- ram de agir. A ideia de que os grupos indigenas e suas culturas, longe de estarem congelados, transformam-se através da dinami ca de suas relagdes sociais, em processos historicos que ndo necessariamente os conduzem ao desaparecimento, permite repensar a trajetoria historica de inumeros povos que, por muito tempo foram considerados misturados e extintos. Nao € 0 caso de desconsiderar a violéncia do processo de conquis- ta e colonizagao. A mortalidade foi altissima, intimeras etnias foram extintas e os grupos ¢ individuos que se integraram a colénia ocuparam os estratos sociais mais inferiores, sofrendo preconceitos, discriminagées e prejuizos incalculaveis. Ape- sar disso, no entanto, encontraram possibilidades de sobrevi- véncia e souberam aproveita-las. Como lembrou Jonathan Hill, os grupos sociais huma- nos, mesmo reduzidos 4 escravidao e 4s piores condigées, 24 FGV de Bolso sio capazes de reconstituir significados, culturas, historias e identidades. Os indios integrados misturaram-se muito, nao resta dtivida, entre si, ¢ com outros grupos étnicos e sociais, Porém, muitos chegaram ao século XIX ainda afirmando a identidade indigena e reivindicando direitos que a legisla~ cao thes concedia. Sobre isso, cabe ainda uma breve reflexao sobre o concei- to de identidade étnica, também repensado a partir dessas novas perspectivas histérico-antropolégicas. Tal como a cul- tura, a identidade ja nao é vista como fixa, tinica e imutavel. Ao contrario, é entendida também como construg¢ao historica de carater plural, dinamico e flexivel. Com base nos trabalhos de Max Weber e, mais recentemente, de Frederick Barth, os estudos atuais sobre etnicidade ja nao consideram a cultu- ra como elemento definidor de grupo étnico. Ao invés dis- so, priorizam suas dimensdes politicas ¢ historicas. Nos anos 1920, Weber ja alertava para o papel da agao politica comum como elemento de formacgao e manutengao do sentimento de comunhao étnica. Barth, no final dos anos 1960, bastante in- fluenciado pelas ideias do primeiro, enfatizava que as distin- des étnicas nao dependem da auséncia de interacdo social, nem tampouco sao destruidas por processos de mudanga e aculturagao. O autor yalorizava também a agao politica, o carater organizacional ¢ o sentimento subjetivo de pertenci- mento ao grupo como fatores ¢ssenciais nos processos de sua formagao. Entendem-se, hoje, as identidades como constru- cdes fluidas e cambiaveis que se constroem por meio de com- plexos processos de apropriagoes ¢ ressignificagdes culturais nas experiéncias entre grupos e individuos que interagem. Assim, se os povos indigenas foram capazes de reelaborar, em situagées de contato, suas culturas, fizeram 0 mesmo com Os indios na histéria do Brasil 35. suas identidades. Os inimeros e diferenciados grupos étnicos que habitavam a América tornaram-se todos indios na clas ficacao dos europeus. Identidade genérica e imposta, porém em muitos casos assumida pelos indios como condigdo que Ihes garantia alguns direitos juridicos. Estudos realizados em diferentes regides tem revelado as intmeras possibilidades de reconstru¢ao identitaria por parte dos indios. Do exposto, percebe-se que os movimentos indigenas da atualidade somados aos novos pressupostos tedricos da his- toria e da antropologia conduzem ao abandono de antigas concep¢des que contribuiram para excluir os indios de nos- sa historia. Os dualismos entre indio aculturado/indio puro, tradi¢do/aculturagao, estruturas culturais/processos histori- cos vao sendo superados, 0 que permite um outro olhar so- bre populagdes indigenas inseridas nas sociedades coloniais e pds-coloniais. E (quem diria?) a agao dos indios também move a historia... A partir dessas novas abordagens interdisciplinares, alguns pontos pacificos da historia do Brasil tém sido des- montados e dado lugar a interpretagdes nas quais os indios surgem como agentes dos processos de mudanga por eles vividos. Fontes histéricas, algumas ja bastante trabalhadas, quando lidas de outra forma revelam realidades distintas das tradicionalmente apresentadas. De inicio, convém ressaltar que as relagdes de contato estabelecidas na América entre europeus e grupos indige- nas ndo devem ser vistas simplesmente como relagdes entre brancos e indios. Essa abordagem generaliza e simplifica uma questdo que é extremamente complexa. Afinal, os grupos in- digenas no Brasil cram muitos e com culturas e organizagoes sociais diversas, que os levavam a comportar-se de diferentes 2 FGV de Bolso formas em relacio aos estrangeiros. Os indios nao estavam na América a disposigdo dos europeus, e se muitos os receberam de forma extremamente aberta e cordial, oferecendo-lhes ali- mentos, presentes e, inclusive, mulheres, nao 0 fizeram por ingenuidade ou tolice. A abertura ao contato com 0 outro € uma caracteristica cultural de muitos grupos indigenas ame- ricanos ¢ especialmente dos tupis. Outros grupos, no entanto, tinham caracteristicas culturais distintas e alguns foram bas- tante arredios e hostis aos estrangeiros, como os aimorés, os muras, os guaicurus € muitos outros. Por outro lado, os europeus também nao devem ser vistos como um bloco homogéneo. Colonos, missionarios, bandei- rantes, autoridades metropolitanas ¢ coloniais tinham inte- resses diversos na colonia e nao se relacionavam com os in- dios da mesma forma, Cabe ainda lembrar que a colonia era um mundo em construgdo, no qual todos se influenciavam mutuamente e€ se transformavam. Nos primordios da colo- nizagao, ocorridos em épocas variadas conforme as regiGes, os portugueses eram extremamente dependentes dos indios, que souberam perceber e usar isso a seu favor, como tém re- velado varios estudos, Além disso, nao se pode esquecer a continua transforma- gao da experiéncia do contato. Os interesses e objetivos dos varios atores sociais que interagiam na coldnia, incluindo os indios, modificavam-se com a dinamica da colonizagao e das relagdes entre eles. Assim, do século XVI ao XIX, os compor- tamentos e agdes dos atores sociais cram impulsionados por motivagdes que se alteravam e podiam ter significagées di- versas, conforme tempos ¢ regides. Deduz-se dai que € pra- ticamente impossivel falar de uma historia indigena geral do Brasil. Nas tiltimas décadas, estudos especificos tém se desen- volvido e revelado a amplitude de situagdes que caracteriza- Os indios na histéria do Brasil a ram as trajetdrias historicas ¢ as relagées dos diversos grupos e individuos indigenas em diferentes regides ¢ temporalida- des. A partir desses estudos regionais, no entanto, algumas generalizagoes sao possiveis e até necessarias, principalmente num livro de sintese como este. Outras contribuigGes teéricas importantes para 0 estudo sobre os indios e suas relagées partem das revises historio- graficas no Ambito da historia politica e da historia econdmica da América e do Brasil. Desde a década de 1970, as interpre- tagdes historicas que partiam das metrépoles para explicar a forma¢ao e o desenvolvimento das colénias vém sendo ques- tionadas. As pesquisas atuais priorizam os aspectos internos das sociedades americanas para a compreensao de suas histo- rias. Enfatizam a importancia de se levar em conta os agen- tes, as instituicdes € as dinamicas locais sem desconsiderar as necessarias articulagdes com as metropoles. Nesse sentido, estudos regionais de carter politico e econdmico tém se mul- tiplicado e evidenciado as inimeras e necessarias adaptagoes de normas, leis ¢ projetos metropolitanos nas colonias, con- forme as peculiaridades locais. Entre essas peculiaridades, incluem-se, cada vez mais, as agdes dos povos indigenas que deram limites ¢ possibili- dades aos projetos coloniais desenvolyidos na América. Um excelente exemplo a respeito disso sdo as capitanias heredi- tarias do Brasil. Criadas em 1534, a maioria delas fracassou, em grande parte, pelos ataques de grupos indigenas. As duas capitanias que mais prosperaram, Sao Vicente e Pernambuco, foram aquelas cujos donatdrios puderam contar com 0 apoio inestimavel de liderangas indigenas com as quais estabele- ceram estreitos lagos de alianga. O projeto de catequese da Companhia de Jesus constitui outro exemplo interessante, na medida em que passou por intimeros ajustes na Provincia do 28 FGV de Bolso Brasil para fazer frente as dificuldades locais, como ressaltou Charlotte de Castelnau- Estoile. Essas dificuldades foram, em grande parte, impostas pelos proprios indios. Do ponto de vista da historia politica, cabe ainda destacar as atuais tendéncias tedricas que visam a questionar a ideia de oposi¢ao rigida entre dominadores e dominados. A percep- go segundo a qual os primeiros exereeriam um controle total sobre os tltimos anulando suas possibilidades de agao ja nao se sustenta. No caso dos indios submetidos a ordem colonial, os documentos tém revelado que eles tiveram possibilidades de agir e fizeram isso. Sua acao fundamentava-se, em grande parte, na propria lei. Isso nos remete a outra questao importan- te que tem sido valorizada na historiografia contempordnea. Trata-se de repensar o papel das legislagdes, vistas como resul- tantes de acordos, negociagées e confrontos entre os agentes interessados e suas respectivas capacidades de fazer valer seus interesses. As leis nao foram inventadas maquiavelicamente apenas para dominar e oprimir, pois ainda que legitimassem as relagdes desiguais, elas sempre permitiram mediagdes. Em outras palavras, as leis sempre deixaram brechas para as rei- vindicagdes dos menos favorecidos, e foi nessas brechas que os indios incorporados 4 colonia agiram, do século XVI ao XIX. Os documentos analisados com base nessas novas abor- dagens apresentam indies que mesmo “aculturados’ e “do~ minados”, nao deixaram de agir, nao deixaram de ser indios e, embora por longo tempo ausentes da historiografia, nao sairam da nossa historia. Capitulo 2 Os indios na América portuguesa Tupis e tapuias em tempos de mudanca Nao cabe aqui abordar a controvertida questao sobre o numero de indios habitantes do Brasil no momento da che- gada dos portugueses. As estimativas, de acordo com John Monteiro, podem variar entre 2 ¢ 4 milhées de habitantes, Importa, no entanto, admitir que eram muitos, sobretudo se comparados 4 reduzida populagao portuguesa calculada em cerca de 1.500.000 habitantes no século XVI. Importa também assinalar que era uma populagao extremamente di- versificada, com estimativas, segundo Aryon Rodrigues, de mais de 1.000 etnias no tempo da conquista. Em 1994, se- gundo dados do Cedi/Instituto Socioambiental (ISA), havia 270.000 indios e 206 etnias. No censo de 2001, esses dados subiram para 701 mil indios, evidenciando o crescimento an- teriormente apontado. As incertezas desses ntimeros nao nos impedem de constatar 0 impacto violento da conquista ¢ da colonizagao sobre os indios, que resultou em mortalidade al- tissima e extingdo de centenas de etnias. FGV de Bolso Os indios na historia do Brasil aL 1 et dino de | tordestthae 1 1 1 1 1 lt I I I 1 1 1 ! ! ! 1 ! 1 ' ' 1 1 1 | ! 1 1 | po 1 1 Y | | ! 1 O Brasil no final do século 16 E quem eram eles? Dificil questao, se considerarmos a di- versidade de grupos etno-linguisticos da América portuguesa cujo conhecimento nos chegou através das descrigdes limita- das e preconceituosas de cronistas e missionarios que, grosso modo, nao compreendiam bem suas linguas e culturas. Em toda a América, havia inimeros povos distintos que foram todos chamados indios pelos europeus que aqui chegaram. Desde cedo, no entanto, os portugueses preocuparam-se em classificar os indios, estabelecendo distingées entre eles. Identifica-los e distingui-los era importante para os objeti- vos da colonizagao. Os portugueses fizeram isso de acordo com suas formas de compreensdo e com critérios relacio- nados aos seus interesses. Assim € que os indios foram, em geral, divididos em dois grandes grupos: os aliados dos por- tugueses e os inimigos. Apesar dos etnocentrismos, precon- ceitos e confusdes que faziam com os vocabulos indigenas, muitos desses narradores do século XV1 foram observadores cuidadosos e descreveram o suficiente para permitir que es- tudos posteriores nao sé desvendassem, ainda que de forma limitada, a logica e o funcionamento de algumas_ dessas so- ciedades, sobretudo dos tupis, como também classificassem Os grupos de acordo com critérios linguisticos, reunindo, em uma classe, povos de mesma origem linguistica. No século XVI, os tupis predominavam ao longo da costa brasileira © na bacia do Parand-Paraguai. Estabeleceram con- tato mais estreito com os portugueses e foram os mais bem co- nhecidos e descritos por eles. Consequentemente, foram tam- bém os mais bem estudados por antropélogos ¢ historiadores. De acordo com as classificagdes etno-linguisticas, o tupi é um dos quatro grandes troncos linguisticos indigenas presentes no Brasil, composto por intimeros grupos subdivididos em varios subgrupos com linguas e culturas bastante semelhantes. MARANHAO gavaler® yeh

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