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UM RIO DE RECEITAS BEIRADEIRAS


Afeto, Resistência e Sabedoria Alimentar na Floresta Nacional de Caxiuanã - Pará.
instituto
de biociências

Apoio
ADAÍLA NEVES SILVA • ANA JÚLIA SALES FERREIRA • ANA MARIA MARQUES DE FREITAS • AUGUSTA
MIRANDA RIBEIRO (MORENA) • BENEDITA ARAÚJO DE SOUZA • BENEDITA GLÓRIA GONÇALVES (BENA)
• CRISTIANA MARINHO MAYMONE • DÉBORA ARAÚJO RODRIGUES BALIEIRO • DOMINGAS COSTA
VALENTE • EDILANDIA BATISTA MARTINS • ELINALVA DA SILVA DE SOUZA • ESTER CORDEIRO SERRIN
• ESTER GLÓRIA DE SOUZA • FRANCINETE DE SOUZA MARQUES (BENEQUINHA) • GLEISSIANE ALVES
BRASÃO • JAMILY SERRIN COSTA • JOSIENE DE MELO DA SILVA (ENE) • JUCIANE SERRIN FREITAS •
LEIDIANE ARAÚJO DIAS COSTA • LETÍCIA DA GLÓRIA • LINDALVA COUTINHO DA SILVA • LISIANE
MÜLLER • LUCIENE ARAÚJO DE SOUZA • MARIA ADELAIDE BALIEIRO MARQUES • MARIA BENEDITA
DA COSTA JARDIM (PRETA) • MARIA CHAVES DA SILVA • MARIA DE NAZARÉ BARBOSA SILVA • MARIA
JERUZA SOUZA LIMA (ELANE) • MARIA JÚLIA PINTO SERRIM • MARIA MADALENA BALIEIRO COSTA
•MARIA RAIMUNDA DE SOUZA VAZ BALIEIRO • MARIA SOUZA CORREA E SOUZA • MARIANA INGLEZ •
MARINETE CORDEIRO SERRIN • MARISTELA BALIEIRO (MARA) • NAZARÉ DE SOUZA RIBEIRO • NELMA
DA SILVA MARQUES • ODETH CORRÊA DE SOUZA • PALOMA DE SOUZA GONÇALVES • PATRÍCIA CASTOR
DA SILVEIRA • RAQUEL GLÓRIA GONÇALVES • RODI SILVA DE FREITAS • ROMANA DOS SANTOS FERREIRA
• ROSA CARDOSO • ROSALINA GLÓRIA PINHEIRO (ROSA) • ROZINETE ALVES FERNANDES • RUTE GLÓRIA
DE SOUZA • SABRINA NASCIMENTO DOS SANTOS • TAYNARA DE SOUZA SANTOS • VALDENORA DE
FREITAS GONÇALVES • VANDRESSA GONÇALVES PANTOJA

UM RIO DE RECEITAS BEIRADEIRAS


Afeto, Resistência e Sabedoria Alimentar na Floresta Nacional de Caxiuanã - Pará.

Organização
Mariana Inglez

São Paulo
2021
Copyright © Adaíla Neves Silva, Ana Júlia Sales Ferreira, Ana Maria Marques de Freitas, Augusta Miranda Ribeiro,
Benedita Araújo de Souza, Benedita Glória Gonçalves, Cristiana Marinho Maymone, Débora Araújo Rodrigues Balieiro,
Domingas Costa Valente, Edilandia Batista Martins, Elinalva da Silva de Souza, Ester Cordeiro Serrin, Ester Glória de
Souza, Francinete de Souza Marques, Gleissiane Alves Brasão, Jamily Serrin Costa, Josiene de Melo da Silva, Juciane
Serrin Freitas, Leidiane Araújo Dias Costa, Letícia da Glória, Lindalva Coutinho da Silva, Lisiane Müller, Luciene Araújo
de Souza, Maria Adelaide Balieiro Marques, Maria Benedita da Costa Jardim, Maria Chaves da Silva, Maria de Nazaré
Barbosa Silva, Maria Jeruza Souza Lima, Maria Júlia Pinto Serrim, Maria Madalena Balieiro Costa, Maria Raimunda de
Souza Vaz Balieiro, Maria Souza Correa e Souza, Mariana Inglez, Marinete Cordeiro Serrin, Maristela Balieiro, Nazaré de
Souza Ribeiro, Nelma da Silva Marques, Odeth Corrêa de Souza, Paloma de Souza Gonçalves, Patrícia Castor da Silveira,
Raquel Glória Gonçalves, Rodi Silva de Freitas, Romana dos Santos Ferreira, Rosa Cardoso, Rosalina Glória Pinheiro,
Rozinete Alves Fernandes, Rute Glória de Souza, Sabrina Nascimento dos Santos, Taynara de Souza Santos, Valdenora de
Freitas Gonçalves e Vandressa Gonçalves Pantoja.

1ª Edição, São Paulo 2021


Diretora Editorial
Mariana Ramos Crivelente

Assistente Editorial
Hadassa De Zen Itepan

Capa e Design gráfico


Luiz Felipe Lala

Consultoria artística
Daiane Pettini

Foto de Capa
Jamil Serrin

Idealização e organização
Mariana Inglez

Ilustrações
Tiago Ferraz

Revisão
Adriana Mariana de Araujo Rodrigues
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

R585 Um rio de receitas beiradeiras: afeto,


resistência e sabedoria alimentar na Floresta
Nacional de Caxiuanã, Pará. / Mariana Inglez
organizadora – São Paulo, 2021.
111p. : il. ; 18x21 cm

ISBN: 978-65-00-31008-5

1.Culinária - receitas. 2. Comunidades


ribeirinhas – Pará. I. Inglez, Mariana II.
Título

CDU: 641.5
CDD: 641

Ficha catalográfica elaborada por Hadassa De Zen Itepan – CRB 8/10585


O que nos nutre é muito mais
do que o que nos enche a boca
Afeto ronda cada ingrediente
Do dia a dia da gente
Há ali muita ação
Na alimentação
Nas histórias que compõem
junto com panelas e mãos

As escolhas das memórias


Que temperam essa mistura
São receitas antigas
que aquecem qualquer candura
Pois unem num mesmo banquete
Tempos passado e presente
Pessoas, lugares, bichos, plantas
Todas sementes
Germinando à duras penas
E a despeito das pragas iminentes

É preciso degustar o mundo


Com todos os sentidos
Nutrir se de saber antigo
E cozinhar com muito gosto
Cada prato do destino

Lara de Paula
Súmario

Dedicatória e agradecimentos...........................................7
Prefácio.............................................................................9
Apresentação...................................................................11

1.A pesquisadora: Escrevivendo esse livro.....................13


2.A Floresta Nacional de Caxiuanã e arredores..............15
3.Lugares e pessoas.........................................................18
4.Receitas e ingredientes de uma alimentação saudável e
baseada na tradição.........................................................31
5.Receitas........................................................................37

Epílogo............................................................................95
O laboratório de pesquisa................................................96
Organizadora...................................................................97
Dedicatória e
Agradecimentos

Este livro faz parte da devolutiva de minha pesquisa de doutorado, seguindo o


acordado com as participantes e colaboradoras desse projeto: mulheres inspiradoras
que encontrei em meu caminho pelos rios da região da FloNa de Caxiuanã. Como
não poderia deixar de ser, começo essa escrita agradecendo a todas as mulheres que
aceitaram participar como coautoras neste livro, tornando-o possível. Nem a pesquisa
de doutorado, nem esse compilado de receitas e ideias seria possível, se eu não tivesse
sido acolhida de braços abertos por cada família em Portel, Melgaço, Pedreira, Ilha
de Terra, Cacoal e Laranjal, no estado do Pará, Brasil. Fica aqui meu agradecimento,
carinho e dedicatória. Me lembro de cada uma/um de vocês, mesmo que não tenha
espaço para mencionar todos os nomes.
Nesse sentido, acho importante agradecer nominalmente: Julinha, Juci – e a todos
os Serrin – pela hospedagem em Portel e por me acolherem como parte da família,
assim como à Benequinha e ao Baiaca, que me hospedaram em Pedreira, à Dona Bena
e ao Seu Raimundo, que, além das conversas, também cederam espaço para armar
minha rede em tranquilidade, em Laranjal. Este trabalho não teria sido possível sem
Jamil Serrin e Alielton Araújo Freitas, que me guiaram e auxiliaram nas viagens entre
Portel e cada uma das comunidades ribeirinhas.
Agradeço aos ensinamentos compartilhados por meu orientador, Prof. Dr. Rui
Murrieta, grande conhecedor da nossa Amazônia e seus povos. Além dos aprendiza-
dos teóricos e metodológicos e das conversas e histórias que tenho sorte em ouvi-lo
contar, foi graças a ele que conheci minha coorientadora na The Ohio State University
(OSU), Profa. Dra. Bárbara Piperata. Não posso deixar também de dedicar este livro a
essa pesquisadora cujos trabalhos me inspiraram e inspiram. Obrigada por abrir meus
caminhos, Profa. Bárbara!
Agradeço aos professores Dr. André Strauss (coorientador no Brasil), pelo apoio
à minha pesquisa e recursos disponibilizados e Dr. Rodrigo Elias Oliveira, pelo aco-
lhimento em nossas conversas. Junto ao Dr. Rui Murrieta, Dr. André Strauss e Dr.
Rodrigo Elias coordenam o Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e
Evolutiva da Universidade de São Paulo (LAAAE-USP), onde realizo minha pesqui-
sa: “Transição dietética em comunidades ribeirinhas da Amazônia Brasileira: escolhas
entre alimentos tradicionais e industrializados na região de Caxiuanã, Pará, Brasil”.

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Ao professor Dr. Mark Hubbe, pelos conselhos, orientações e palavras de incenti-
vo aos meus projetos – acadêmicos ou não – desde meu intercâmbio na OSU.
Aproveito para manifestar meu agradecimento à Universidade de São Paulo, ins-
tituição pública de ensino, pesquisa e extensão, sem a qual esse e tantos outros tra-
balhos, estudos e publicações não seriam possíveis. Na mesma linha, meu doutorado
pôde ser realizado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas (Biologia
Genética), no Instituto de Biociências da USP, graças ao financiamento das agências
CNPq e Capes, aos quais estendo meus agradecimentos.
A edição, impressão e transporte dos livros físicos para distribuição gratuita às
famílias e comunidades participantes foi possível graças ao apoio do Instituto Ser-
rapilheira, que financiou o projeto de divulgação científica “Evolução para Todes:
Compartilhando a ciência do LAAAE-USP”, do qual esse livro é um dos produtos.
Da mesma forma, agradeço o apoio do Portal de Livros Abertos da Universidade de
São Paulo.
Às/aos colegas de laboratório e de projetos, muito obrigada. Importante agrade-
cer nominalmente: Tiago Ferraz, geneticista, cujo talento e amizade possibilitaram
as ilustrações desse livro e Eliane Chim e Lisiane Muller, cuja amizade e parceria
foram fundamentais para tirar nossas ideias do papel com o “Evolução para Todes”.
À Maria Ana Correia, amiga e parceira de trabalhos, pelo apoio e incentivo às nossas
atividades de divulgação científica, assim como pela leitura antecipada desse livro.
Ainda compondo o LAAAE-USP, agradeço ao Max Ernani, técnico de laboratório,
por sua amizade há mais de 10 anos, sendo porto seguro para compartilhar alegrias e
angústias acadêmicas e da vida.
Às amigas Bela Mayá, Marina Gratão, Bia Carmo, Verônica Inagaki, meu mui-
to obrigada por compartilharem caminhos importantes, de flores e pedras, comigo.
Também agradeço à minha psicóloga Lígia Mosolino, sem a qual eu não teria a saúde
mental necessária para realizar qualquer trabalho e, particularmente, sem a qual eu
não teria conhecido Mariana Crivelente, responsável pelos encaminhamentos para
publicação desse livro (sou muito grata).
À Daiane Pettini, pelo estímulo inicial e prático para que a ideia do livro se trans-
formasse em matéria concreta, assim como pelo seu olhar artístico para a editoração.
Frico Guimarães, obrigada por segurar minha mão e por seu carinho – a experiên-
cia do amor traz potência.
Agradeço e dedico este livro, em especial, à minha família: Claudia Inglez, minha
mãe, e ao meu irmão Lucas Inglez, com quem divido as angústias e alegrias dessa
vida. Mãe, além do seu amor e afeto, agradeço por sempre ter confiado em mim e por
me dar forças para continuar meus estudos e seguir meus sonhos, mesmo nos mo-
mentos mais difíceis. Obrigada por aguentar firme cada uma das minhas viagens – e
semanas! – sem comunicação: sei o quanto é difícil para você...

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Prefácio

Muito se tem escrito sobre os alimentos consumidos por populações amazônicas.


Menos atenção, contudo, tem sido dada às formas como esses alimentos são prepa-
rados, ou seja, como são aculturados e transformados para se tornarem parte da dieta
local. Essa transformação é feita principalmente por mulheres. Durante minha vivên-
cia em comunidades da reserva de Caxiuanã, presenciei mulheres transformando cada
ingrediente para criar pratos complexos que alimentavam e alimentam a população.
Serei eternamente grata a essas mulheres por sua generosidade e por compartilharem
esse conhecimento comigo e agora, conosco.
É com muita sabedoria, trabalho e amor, que as mulheres transformam o fruto do
açaí no rico suco púrpura que mancha os lábios e enche a barriga de quem o degusta.
É com muito cuidado que as mulheres cultivam as delicadas ervas – alfavaca, co-
entro, cebolinha – em suas hortas caseiras e, com muita criatividade, que as combinam
para dar origem aos saborosos caldos nos quais cozinham peixes e caça, adicionando
a farinha torrada, item mais importante para o sustento na dieta ribeirinha.
É com muita habilidade que as mulheres preparam a rica diversidade de espécies
de peixes, lavando-os com o suco de limões perfumados colhidos das árvores pró-
ximas das residências e cortando-os para garantir que os ossos pequenos e difíceis
de remover não representem uma ameaça para aqueles que irão consumi-los, ou, em
outras palavras, preparando o famoso tiquinhado.
Este livro de receitas celebra essas mulheres notáveis e serve para nos lembrar do
vasto conhecimento, criatividade, trabalho árduo e profundo amor que elas dedicam
para nutrir suas famílias, suas comunidades, e visitantes, como nós.

Com afeto,
Barbara Piperata

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O estudo da alimentação é a pedra angular para a compreensão das sociedades
humanas. Seja na sua produção, processamento, ou até colapso, os regimes alimenta-
res permeiam todas as dimensões da nossa vida. A culinária não é uma exceção neste
cenário. O fazer comida, seja na intimidade de casa ou nos programas internacionais
de cuisine-fusion, estrutura nossos gostos, motivações e identidades. O cotidiano des-
te fazer, porém, pode ser invisibilizado por conta da maneira que tratamos aqueles e
aquelas que investem sua energia e criatividade na mais antiga das artes.
Na Amazônia, hoje, a culinária tem um lugar de estrelato na cultura nacional e in-
ternacional. Entretanto, nem sempre foi assim. Quando comecei a estudar nutrição na
Amazônia, há sólidos trinta anos atrás, eu preconcebia a culinária rural com relativa
simplicidade e descaso. Acreditava que existia uma certa repetitividade e estrutura-
ção, determinadas por forças do mercado ou do ambiente físico, que não permitiam
grande criatividade. Foram as mulheres, em especial aquelas responsáveis pelo prepa-
ro das refeições do dia-a-dia, que mudaram minha percepção inicial. Via-me comple-
tamente dependente das minhas pacientes tutoras para compreender os mais ínfimos
detalhes e a constante improvisação dos pratos – que observava a feitura – e dos quais
participava, muitas vezes, do próprio consumo.
Muitas dessas senhoras conheci naquele que seria o meu último trabalho na Ama-
zônia: o projeto de Antropologia Nutricional na Floresta Nacional de Caxiuanã. A
este, sentia que faltava a intensidade e consistência que conseguira materializar em
meus trabalhos anteriores. A sequência de estudos de colegas e alunos, em especial
os de Barbara Piperata e, mais recentemente, de Mariana Inglez, diminuiu o gosto de
incompletude que levei comigo quando encerrei o meu último campo.
Foi com imensa alegria que recebi o livro “Um Rio de Receitas Beiradeiras: afe-
to, resistência e sabedoria alimentar na Floresta Nacional de Caxiunã - Pará”. Esta
pequena e delicada obra é uma merecida homenagem às mulheres, que com muita
criatividade e resiliência, criaram seus pratos e receitas. Combinando os recursos da
mata, do rio e da cidade, criaram uma culinária única, mesclada de sabores exóticos
e familiares. Parabéns, Mariana! E parabéns às mães, irmãs, avós, filhas e netas de
Caxiuanã.

Por Rui Sérgio Sereni Murrieta

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Apresentação

Este livro surgiu da vontade comum entre as autoras, de registrar os alimentos


e receitas tradicionais compartilhadas por famílias que vivem na região da Floresta
Nacional de Caxiuanã e nos municípios de Portel e Melgaço, na Amazônia paraense.
A oportunidade desse registro surgiu durante minha pesquisa de doutorado, que
investiga mudanças na dieta local e no estilo de vida ribeirinho, inspirada no estudo
previamente conduzido pela Dra. Barbara Piperata, há 20 anos atrás, com as mesmas
famílias.
Diferentemente do que observamos em outras espécies animais, nós, humanos,
nos relacionamos com o alimento de maneira única. Para nós não se trata somente de
nutrir nossos corpos ou manter o funcionamento de cada órgão, para garantir a vida:
o que definimos como comestível – ou comida – depende não apenas de compostos
bioquímicos que irão nos fornecer nutrientes, mas também da disponibilidade de re-
cursos locais e de diversos aspectos sociais e econômicos, da cultura de cada grupo,
dos costumes e conhecimentos passados de geração em geração.
Os alimentos que “escolhemos” ingerir – e a composição de nossas dietas – cons-
tituem parte central da forma como organizamos nossas sociedades, nossas relações
e nossa rotina, o que se percebe quando observamos os dias de hoje ou prestamos
atenção na história evolutiva da humanidade e das populações que nos antecederam.

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Como humanos, somos animais com diferentes fontes de alimentos e por isso
categorizados como onívoros, ou seja, podemos ingerir alimentos de origem animal,
vegetal, mineral e até mesmo fungos. Passamos a nos importar em preparar esses
alimentos, principalmente depois de dominarmos o uso do fogo, a cerca de 1 milhão
de anos atrás, quando começamos a cozinhá-los, além de alterar seus sabores com o
uso de temperos e adoçantes. Milhares de anos depois, a comida também passou a
ter valores simbólicos e culturais importantes, associados a datas comemorativas ou
períodos específicos, como o resguardo de mulheres puérperas, por exemplo. O que é
receita típica de um lugar pode gerar estranheza em outro e vice-versa, já que, em sua
complexidade, cada grupo cria sistemas únicos de proibições e preferências daquilo
que pode ou não ser ingerido.
Hoje, o mundo todo vive um processo conhecido como “Transição Nutricional”,
o que significa que, de forma muito rápida, estamos substituindo os alimentos frescos
e locais – que constituem nossas histórias e culturas – por alimentos industrializados
e ultraprocessados, que tendem a ser menos nutritivos e com adição excessiva e pre-
judicial de gorduras e açúcares. Essas mudanças não vêm sozinhas. Junto delas, ob-
servamos o aumento do sedentarismo, ou seja, o fato de que estamos fazendo menos
atividades físicas em nossa rotina (aumentando o uso de motores ao invés de remos,
ou de horas em frente ao celular ou à televisão, que substituem horas dedicadas às
atividades ao ar livre, que normalmente levam a mais movimento do corpo).
A soma das mudanças na dieta com menos gasto de energia associada ao seden-
tarismo contribui para o aumento das doenças crônicas (como hipertensão, diabetes,
obesidade, cânceres). Essas doenças são a principal causa de morte e perda de quali-
dade de vida, razão pela qual o complexo processo de Transição Nutricional merece
nossa atenção.
Registrar os alimentos e refeições tradicionais dessa região do Pará, especifica-
mente das(os) comunitárias(os) que me acolheram tão bem em Portel, Melgaço, Pe-
dreira, Laranjal, Cacoal e Ilha de Terra, é lutar contra o apagamento dos seus sabores
típicos e do conhecimento das coautoras deste livro. Em tempos de tantas mudanças
e impactos na região amazônica e no modo de vida tradicional das comunidades, essa
escrita também é resistência.
Aquele cheirinho de bolo saindo do forno que, às vezes, antes de encher a barriga
já nos encheu de memórias gostosas da infância, ou o sabor do açaí azedo com fari-
nha, são exemplos de como o alimento nos “nutre” de diferentes formas. Comida é
afeto, é ancestralidade e identidade. É memória no paladar, no olfato e no coração.
Que possamos degustar mais dessas nossas comidas, valorizar a cultura alimentar
regional e preservar a diversidade socioambiental do Brasil.

Por Mariana Inglez

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1. A pesquisadora:
Escrevivendo esse livro

Nasci e me criei na cidade grande: São Paulo (SP). Cinza de tanto concreto, mas
que aos olhos atentos ainda permite observar a delicadeza da natureza. Fui treinada
pela minha mãe a resistir às adversidades valorizando o simples, buscando ver beleza
mesmo nos tempos de dureza. Talvez por isso tenha me tornado bióloga: ter olhos
atentos para apreciar uma flor que resiste ao asfalto, ou os pássaros que insistem em
cantar e se fazem ouvir entre o barulho dos engarrafamentos, acabou moldando minha
rotina, meus gostos.
A esse estímulo materno se soma a vontade de descobrir o novo, de conhecer o
mundo, para além da realidade que me cercava. Também sempre gostei de gente, da
troca, de ouvir histórias e de aprender com quem compartilho experiências. A partir
desse encontro de vontades, que no fundo já eram minha curiosidade por nossa huma-
nidade – pelo que nos conecta enquanto espécie –, pela infinidade de variações possí-
veis na forma como enxergamos o mundo e lidamos com a natureza da qual fazemos
parte, conheci a Bioantropologia. Essa área de estudo investiga o que nos caracteriza
como humanos, considerando não apenas nossas características biológicas, mas os
aspectos socioculturais de maneira conjunta.

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Na tentativa de descobrir mais sobre as pessoas que nos antecederam, a partir da
leitura dos ossos do esqueleto humano, resolvi expandir minha formação junto às
populações da Amazônia. Se esse bioma, com a grandiosidade de seus rios e matas
me marcou profundamente, as pessoas que conheci não me impactaram menos. Me
lembro de cada um dos rostos que cruzaram meus caminhos, entre os Estados do
Amazonas e Pará.
O primeiro “rio que passou em minha vida, e o meu coração se deixou levar”,
como já dizia Paulinho da Viola, foi o Xingu, em 2013, onde conheci o sabor do tucu-
naré fresquinho, assado na folha de bananeira, em uma praia de areia branca. Em Alta-
mira experimentei meus primeiros tacacás, arroz paraense e açaí de verdade (diferente
desses que a gente encontra aqui pelo Sudeste). Naquela época comecei a entender
como o chamado “desenvolvimento” estava alterando a vida local e a paisagem, de
forma rápida, violenta e irreversível. Já em 2016, tive oportunidade de conhecer algu-
mas comunidades ribeirinhas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
(AM). A reserva me possibilitou experienciar uma Amazônia preservada e rica do
ponto de vista da biodiversidade, mas também do ponto de vista humano.
Todas as vezes em que voltei do Norte, senti que trouxe um pouco da Amazônia e
da sua gente comigo. Nunca voltei igual. Na voz de Elis Regina, passaram a ressoar
em mim as palavras de Maurício Tapajós e Aldir Blanc: “O Brazil não conhece o
Brasil”. Não valorizamos nossa gente, nossos conhecimentos, nossos biomas... talvez
porque nem nós os conheçamos.
Por fim, acho bonito pensar que esse livro é escrito por muitas mãos femininas.
Pelas autoras das receitas aqui partilhadas: mães, avós, tias, irmãs, pela Profa. Dra.
Bárbara Piperata e pelas minhas próprias mãos. Neste caso, minhas mãos também são
as mãos daquelas que me antecederam, que abriram meus caminhos e que têm suas
histórias de panelas e sabores. Peço – e agradeço – as bênçãos das minhas mais velhas.
Minha parte do trabalho diz respeito aos textos iniciais e finais, que contextuali-
zam a leitura e organizam as informações sobre a região, as descrições dos lugares
visitados e das pessoas que cruzaram os caminhos dessa escrita e a transcrição das
receitas compartilhadas pelas demais autoras. Acredito que esses relatos também fun-
cionam como uma fotografia, que nos permite capturar e registrar a paisagem e as
impressões, além da alimentação de um determinado tempo e lugar no espaço. Que
essa fotografia de palavras possa contribuir para que o singelo registro de uma parte
da história local seja conhecido pelas próximas gerações. Às pessoas da cidade gran-
de, como eu, que este livro possa aproximá-las dum pedacinho de Brasil, que, junto a
outros Brasis, constitui quem somos.
Desejo que este livro de receitas materialize as memórias de pessoas que sempre
estarão entre as minhas próprias memórias. Espero que desfrutem.

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2. A Floresta Nacional de
Caxiuanã e arredores

Brazil

Macapá

Ilha
Guarapuru

Reserva
Extrativista
do Rio Cajari
Ilha de Marajó
Ilha Grande Baia de
de Gurupá Marajó

Reserva Reserva
Extrativista Extrativista
Gurupá Terra Grande
Melgaço Belém

Ilha Laguna Estuário


Breves
do Rio
Paré
Floresta Portel
Nacional
de Caxiuanã

Apesar das famílias participantes não necessariamente serem residentes do perí-


metro que compreende a Floresta Nacional de Caxiuanã, a FloNa acaba sendo utili-
zada como referência de localização desde os centros urbanos de Portel, Melgaço e
Breves. Isso se justifica por conta de sua extensão e área de interferência seja pela le-
gislação ambiental, seja por atividades da Estação Científica Ferreira Pena, do Museu
Paraense Emílio Goeldi, ou da presença de base do IBAMA no local. Assim sendo,
acho importante apresentar a região.
Chegar à Floresta Nacional (FloNa) de Caxiuanã, no Pará, saindo de São Paulo
(SP) não é trivial (nem barato). Avião até Belém, navio ou catamarã até Breves e
uma lancha até minha base, sempre em Portel (PA). Até aí são entre 12 e 20 horas de
viagem, dependendo das embarcações e do banzeiro. Na sequência, a carona até cada
uma das comunidades leva em torno de mais 7 horas.
As receitas aqui listadas foram registradas entre os meses de outubro e novembro
de 2019, conforme descritas pelas autoras associadas a cada uma delas. Essas mulhe-
res residem nas quatro comunidades ribeirinhas visitadas, assim como em Portel e

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Melgaço, municípios mais próximos da Flona de Caxiuanã. Trata-se da mesorregião
do Marajó, a cerca de 400 km, navegáveis a partir de Belém, capital do Estado do
Pará.
Caxiuanã foi a primeira Floresta Nacional na Amazônia Legal brasileira, criada
pelo decreto nº 239, de 28 de novembro de 1961, às margens da baía de águas escuras
que dá nome à FloNa. Entre rios Tocantins e Xingu, a Baía de Caxiuanã é um alarga-
mento do baixo rio Anapu, que deságua no estuário do rio Amazonas, região em que
99% da FloNa é formada por floresta ombrófila densa de terras baixas, denominada
localmente de floresta de terra firme (ICMBio, 2012).
É justamente dentro da área dessa FloNa que se localiza a Estação Científica Fer-
reira Penna (ECFPn), inaugurada em outubro de 1993, pelo Museu Paraense Emí-
lio Goeldi. Como uma defensora da memória coletiva, e do conhecimento histórico
como forma de valorização de nosso patrimônio, acho importante registrar a impor-
tância dessa base de pesquisa, no coração da floresta.
Já no final do século XIX e início do século XX, Emílio Goeldi, o naturalista suíço
que dá nome ao Museu Paraense, pleiteava, junto ao Governo do Pará, a aquisição
de uma área para preservação da floresta e estudos a longo prazo, demanda retomada
após a delimitação da FloNa de Caxiuanã, apenas em 1988, com os esforços do Dr.
Pedro L. B. Lisboa – que se tornou o primeiro coordenador da ECFPn – e do diretor
do museu à época, Guilherme de La Penha.
Aproveito para registrar o quanto me senti tocada ao ler os relatos de Lisboa, na
publicação “Caxiuanã”, de 1997, apresentando os processos e pessoas que garantiram
a inauguração da Estação Científica Ferreira Penna e consolidando os resultados dos
dois primeiros anos de estudos e atividades ali realizados. Como pesquisadora, fico
emocionada ao ler sobre os esforços para que uma base de pesquisa como a ECFPn
pudesse existir e que isso, de fato, tenha acontecido. Em um momento de cortes de
financiamentos para museus e para o desenvolvimento científico nacional, essa é uma
dolorosa viagem no tempo.
Em todas as comunidades por onde estive, assim como relataram meus orienta-
dores, Prof. Rui e Profa. Bárbara, a ECFPn é descrita como um marco para o desen-
volvimento de pesquisas nas mais diversas áreas, envolvendo a Floresta Amazônica
e seus povos. Aliás, a pesquisa da Profa. Bárbara foi possível justamente durante a
primeira década dos anos 2000 – auge dessa base de pesquisa – quando cientistas do
mundo todo desenvolviam seus estudos sobre fauna, flora, clima, ecologia e saúde hu-
mana, e quando comunitários locais participavam de atividades educativas, visando o
desenvolvimento sustentável, a qualidade de vida e a manutenção da biodiversidade,
além de terem, na Estação, um centro de assistência a vulnerabilidades relacionadas à
distância de centros urbanos.
Em abril de 2019, 26 anos após a inauguração da sonhada Estação Científica

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Ferreira Penna, tive a oportunidade de conhecê-la, sendo gentilmente recebida pelo
coordenador de campo, André Ravetta. “Num futuro não muito distante, será um dos
polos de pesquisa amazônico mais efervescentes e provavelmente um dos maiores
entre as florestas tropicais do mundo”, vislumbrou Lisboa (Caxiuanã, 1997, p.9). Essa
frase ecoou em meus ouvidos quando encontrei o centro de pesquisa praticamente
vazio e com escassos recursos para manter sua estrutura básica: preciso dizer que foi
desolador. Dona Adelaide, em Pedreira, me contou que gostava de fazer artesanato,
trançar cestarias e tipitis e apresentar seus produtos em mostras culturais ou vender
para os visitantes da Estação – “mas hoje já não tem mais nada... e meus olhos já não
enxergam pra trançar... os jovens já não sabem mais fazer também...”.
Ainda há muita potência, muita vontade de resistir, assim como fazem pesquisa-
dores e defensores de todo o Museu Emílio Goeldi, histórica e importante instituição
pública que marca a pesquisa, a educação e as atividades de extensão da ciência bra-
sileira, e, mais especificamente, da Amazônia. Infelizmente, o descaso com espaços
desse tipo, por parte dos tomadores de decisão do país, assim como com as populações
da floresta, nos conduziu ao tipo de cenário com o qual me deparei em 2019.
Para além destes relatos e informações técnicas, aqui há espaço também para res-
saltar a boniteza das águas negras do rio Anapu, que contrastam com a areia branca
da “prainha da Maloca” (ou do Seu João e da Dona Julinha, como são conhecidos),
na área rural de Portel. O tom escuro das águas, quase preto, também contrasta com o
verde da mata, às margens do caminho para chegar às comunidades. Botos parecem
se divertir nas ondas da baía, emolduradas pelas nuvens do entardecer vermelho, re-
fletido no espelho d’água.
Apesar da beleza natural, é importante não romantizar a realidade das populações
nessa região, que tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH)
do Brasil (Melgaço-PA apresentou IDH de 0.418, em oposição ao primeiro lugar no
ranking, São Caetano do Sul-SP, com 0.862, em uma escala que varia entre zero e
um). Dificuldades no que diz respeito ao acesso à educação e saúde, saneamento bá-
sico, além de insegurança alimentar, são parte da realidade local. Se fazem urgentes
e necessárias políticas públicas que considerem a vulnerabilidade enfrentada nesse
contexto tão específico de comunidades ribeirinhas em todo o Brasil. A invisibilidade
já secular dessas populações contribui para a permanente não garantia de direitos
básicos na vida das ribeirinhas e ribeirinhos amazônicos, em contrapartida àquilo que
está previsto em nossa Constituição. Este livro também visa traçar um caminho que se
opõe ao apagamento e à marginalização desses grupos rurais e tradicionais.

17
3. Lugares e pessoas

Seguindo a cronologia do meu próprio percurso, como um diário de campo, apre-


sento os lugares onde se originam as receitas aqui compartilhadas. Retomando a or-
dem dos eventos e puxando os acontecimentos pelos fios da memória, organizamos
melhor as ideias. Assim, sinto que ajudamos também na viagem de quem nos lê.

Portel e Melgaço
Para começar essa história vale compartilhar que quando estive em campo¹ pela
primeira vez, tinha apenas um nome de referência, dado pela Dra. Bárbara Piperata,
como alguém que me ajudaria a encontrar as famílias que ela conheceu nos anos 2000:
Julinha Serrin. Cheguei sozinha em Portel – com um mochilão nas costas – depois de
15 horas de navio, na esperança de encontrar Dona Julinha, que disse que alguém ia
me esperar no porto (por meio das redes sociais, que me possibilitaram encontrá-la e
me comunicar antes da viagem). Terminei por me desencontrar dessa pessoa que me

18
encontraria, embarquei em um táxi perguntando se o motorista sabia onde morava
D. Julinha. Por sorte, no interior do nosso Brasil as pessoas ainda se conhecem pelo
nome e o motorista me levou ao lugar certo. Toda a família Serrin me acolheu pron-
tamente, garantindo minha ida às comunidades, todas as vezes em que por lá estive,
desde o início de 2019. Juciane, Jamil, Jamily, Alielton (Negão) – e não posso deixar
de lembrar das crianças – Gustavo, Julião, Jordan, Pedro (que nessa idade crescem
demasiado rápido e agora já estão maiores que eu), proporcionaram minha estadia
base em Portel, me fazendo sentir acolhida e em casa. Um abraço também em Jana,
com quem sempre compartilhamos as refeições, e que sempre nos alegrava e fazia rir
com seu bom humor.

Fotos 1 e 2. Dona Julinha mostrando sua produção de polpa


de frutas com seu certificado de agricultura familiar. Seu João
e sua colheita de mandioca, na área rural de Portel.

Fotos 3 e 4. Jana e Juci. Gustavo, Jordan, Mariana e Julião.

¹ Na universidade, chamamos de “etapa de campo” o momento da pesquisa acadêmica em que saímos do


laboratório para realizar a coleta de dados no local de estudo.

19
Na cidade, localizada em frente à baía de mesmo nome (com vista para um pôr-
-do-sol avermelhado), acompanho também a família de Dona Marinete e de Dona
Valdenora, visitando-as, por vezes caminhando, outras vezes em carona de bicicleta
ou moto, com Jamil e Negão.

Fotos 5 e 6. Dona Marinete e Dona Valdenora, também


moradoras de Portel, PA.

Aliás, Jamil se tornou um bom amigo: formado em Ciências Naturais, nascido e


criado em Ilha de Terra, voltou como professor às comunidades locais e foi meu pri-
meiro assistente de campo, sem o qual eu não chegaria aonde precisava, para encon-
trar cada participante desse estudo. Negão, marido de Juci, também foi meu assistente
e garantiu minha ida e volta às comunidades, no final de 2019, sempre em segurança.

Fotos 7 e 8. Jamil Serrin e Alielton Araújo de


Freitas (Negão), auxiliares de campo da pesquisa.

As famílias que hoje encontro em Portel, ainda residiam nas comunidades rurais
da FloNa de Caxiuanã, nos idos dos anos 2000, quando a Dra. Barbara Piperata ini-
ciou seus estudos. Em busca de melhores oportunidades e, principalmente, visando

20
dar continuidade ao estudo das crianças, a migração de famílias, do campo para as
áreas urbanas, tornou-se cada vez mais comum em todo o Brasil, sendo parte também
da realidade ribeirinha. Além de Portel, Melgaço é outro município cuja área urbana e
rural participou desse trabalho, já que a Flona de Caxiuanã faz parte de seu território.

Pedreira
Saindo de Portel, meu primeiro destino costuma ser Pedreira, a comunidade que
tem a sorte de ter o nascer do sol mais lindo que já vi. Quando ele nasce no horizon-
te, podemos ver a silhueta de Seu Bento, com seu casco e seu remo, mariscando nas
águas. Ao final do dia, Rafa, filho de Dona Débora, no auge dos seus 8 anos, também
já demonstra suas habilidades na pescaria. Abel, o mais novo de Dona Benequinha,
da mesma idade do amigo Rafa, me conduziu em seu “casquinho²”, mas fez questão
ressaltar que “gosta mesmo é de ficar na terra e quando crescer quer trabalhar com
madeira”, como seu pai, Baiaca.

Fotos 9, 10, 11 e 12. Seu Bento e sua pescaria ao nascer do sol em Pedreira. Anacã (Deroptyus
accipitrinus). Abel ao lado da mesinha e banco que ele mesmo fez para ser seu local de estudo.

Em Pedreira, Gêneses, com paciência, me contou sobre as técnicas que utiliza para
garantir o peixe, que é uma das bases da alimentação tradicional ribeirinha. Muitos
comunitários praticam essa pesca artesanal, realizada com arpão acionado a partir de
uma base de madeira e borracha, para propulsão, e feito à mão.

² Cascos são pequenas embarcações de madeira, tradicionais da região amazônica, por vezes feita com um
único tronco cavado ou com casca de árvores específicas que podem ser modeladas com uso de fogo.

21
Durante a noite, os experientes pes-
cadores mergulham com lanterna, não
apenas para que enxerguem durante
a pescaria, mas também porque a luz
confunde a visão dos peixes, facilitan-
do o acerto com o arpão. É importante
lembrar que a pesca é uma das princi-
pais atividades de subsistência entre os
povos da floresta amazônica.
Aproveito a oportunidade para lem-
brar que cada uma das pessoas mais
velhas, de cada comunidade, é uma
preciosidade de memórias e conheci-
mentos locais. Fotos 13 e 14.
Gêneses e seu arpão
Há algum tempo, as sociedades ca- utilizado para a
pitalistas e ocidentais têm deixado de pesca artesanal,
uma das atividades
valorizar a experiência dos mais anti- de subsistência das
gos, o que significa incorrer no erro de comunidades ribeir-
inhas às margens do
desconhecermos nossa própria história, rio Anapu.
nossas raízes. Deixamos de acessar bi-
bliotecas inteiras de saberes que muitas
vezes residem apenas na oralidade e na memória. Dona Adelaide, por exemplo, é
grande conhecedora dos trançados tradicionais e uma das fundadoras da comunidade.
Dona Maria Silva, me mostrou a produtividade de sua horta suspensa – sempre pre-
sente na cultura ribeirinha – com seus temperos e ervas para diferentes fins. Por fim,
também aproveito para dedicar esse livro à memória de Dona Maria Antônia, a quem
tive oportunidade de conhecer, alegre e sempre disponível a conversar e contar dos
tempos idos, e que, infelizmente, faleceu após minha primeira ida à campo.

Fotos 15, 16, 17 e 18. Dona Adelaide; Dona Maria Silva e sua horta suspensa, horta atualmente de Mara, em memória de
sua mãe, Maria Antônia.

22
Aliás, além de agradecer especialmente a Baiaca e Benequinha por me hospeda-
rem em sua casa durante minha última estadia na comunidade, aproveito para agrade-
cer o cuidado e recepção de toda a comunidade. De uma ponta a outra, aprendi muito
nas trocas com cada família: Seu Bento, obrigada por sua cortesia, ensinamentos e
histórias; Dona Maria Silva e Seu Afonso, agradeço pelo bolinho de trigo com café;
Dona Adelaide, que enfrentava as dificuldades da idade, prejudicadas por uma fra-
tura no fêmur, espero que esteja melhor e, Dona Madalena, assistente de saúde da
comunidade e dedicada ao cuidado de todos, com quem eu gostaria de ter passado
mais horas conversando; Gêneses, por me ensinar sobre a pesca com arpão, e Sabrina;
Dona Ana e Aelton, pelas fundamentais caronas de barco; Julinha, pelo afeto sincero
e abertura, e Ricardo; Dona Maria Benedita e Seu Jairo, obrigada por sempre me dei-
xarem tomar banho de chuveiro quando queria evitar me banhar no rio, logo cedinho;
Nelma, sempre ocupada, mas que arranjou tempo para responder minhas infindáveis
perguntas, e Tóti; Débora, que sempre me faz sorrir com seu bom humor, assim como
Neto; Maristela (Mara), que já se tornou uma amiga querida de sensibilidade única, e
Manoel, que sempre me engana com suas piadas; Augusta (Morena) e Rildo, sempre
atenciosos, e toda sua linda família; Gleice, que cantou lindamente num evento da
comunidade e Maria Raimunda, por também toparem entrar nessa minha pesquisa,
com seus respectivos companheiros, Valdrik e Marlon.

Laranjal
A partir de Pedreira, andando por trilha ou de rabeta, se chega a Laranjal. Entrando
na mata pelo caminho que forma o igarapé, raso durante a época da seca, é preciso um
piloto experiente, para não bater ou enroscar o motor nas plantas ou troncos submer-
sos. Confesso que a experiência foi uma aventura (bem-sucedida graças à condução
habilidosa de Thiago e Pelado).

Em Laranjal, me senti em casa com Dona Be-


nedita (Bena) e Seu Raimundo e sua família; Ester,
sempre afetuosa e meiga; Rosa (Rosalina), sempre
alegre, e Paulo José; os queridos Raquel e Rosenildo;
Ruth e Edmilson; Romana, tão acolhedora, e Josué;
Odete e Paulo Sérgio; Leidiane e Izael. Obrigada por
terem me acolhido tão bem. Como sempre faço, é
importante lembrar dos mais velhos e fundadores da
comunidade, com um agradecimento especial pelas
conversas e pelo tempo: a Dona Domingas, Dona
Maria e Seu José, Dona Letícia e Seu Odorico.
Foto 19. Dona Letícia e Seu Odorico.

23
Fotos 20 e 21. Dona Maria e Seu José e
Ruth com Dona Domingas.

Em Laranjal, enquanto conversava com Leidiane, senti o tempo parar ao observar


um bando de ararajubas se deliciando no pé de murici. Ouvi histórias de onça e era
frequentemente chamada de Bárbara (minha coorientadora) por engano, o que me
fazia rir. Quanto aos conhecimentos tradicionais, gostei de ouvir sobre a experiência
de Seu Izael na feitura dos cascos, canoas, rabetas. Nem todos ainda dominam a arte
de fazer as embarcações tão necessárias na região, e, muitas vezes, a produção local é
dificultada pela falta de recursos para compra de ferramentas como plainas, lixadeiras
e serra tico-tico.
Assim como nas demais comunidades, pude ver as roças onde são cultivadas as
mandiocas, que exigem trabalho duro, ao sol, nas diferentes etapas: do plantio à co-
lheita, até a manufatura da farinha, sempre presente na alimentação local.

Fotos 22, 23 24 e 25. Bando de ararajubas (Guaruba guarouba) no pé de murici


em frente à casa de Leidiane; Dona Bena e sua colheita de mandioca, ao chegar
de sua roça com um casco; registros das crianças, por elas mesmas, que saíram
por uma tarde com minha câmera, para brincar de posar e fotografar.

24
A abertura das pessoas ao novo, à estranha visitante, o carinho ainda presente nas
lembranças da Profa Bárbara e a curiosidade e alegria das crianças, me emocionaram.
Em tempos de tanta pressa e pouco cuidado com “o outro”, sempre com a desculpa
de que temos nossos próprios problemas – que muitas vezes não envolvem o acesso
a direitos básicos, como saneamento e água potável ou alimentação, nas quantidades
e qualidade necessárias –, fica o chamado para a importância do afeto, do sorriso, da
construção de laços comunitários como diferenciais, também importantes para a so-
brevivência e resistência de nossa humanidade.

Ilha de Terra
Saindo da baía que forma o rio em frente à Pedreira, que não nos deixa ver a outra
margem no horizonte, de tão larga, também sigo à Ilha de Terra – meu percurso favo-
rito – por conta do caminho estreito, que só se alarga novamente já no Lago Camuím.
A mata nas margens próximas fica refletida nas águas escuras, mais protegidas e espe-
lhadas. Ninfeias, aguapés e aningas, plantas aquáticas comuns na região amazônica,
ficam ainda mais bonitas nos seus tons de verde, em contraste com o preto do canal.
Chegando em Ilha de Terra, a pa-
lavra que me vem à mente é aconche-
go. Hoje a comunidade é formada por
Dona Rodi e Seu Rosi; seus filhos Pau-
lo e Takaiama, já casado com a querida
Edilândia; a professora Elane, a quem
admiro como profissional e pessoa, por
sua dedicação e cuidado com as crian-
ças e com todos que a cercam; Dona
Nazaré e Seu Manoel; e Dona Maria
Nazaré e Seu Adamilton, que estavam
em Melgaço por conta de atendimento
médico e acompanhamento de exames
pré-operatórios de Dona Nazaré; além Fotos 26. Caminho para Ilha de Terra, provavelmente
de sua filha Adaíla e seu filho Adanil- minha paisagem favorita na região de Caxiuanã.

ton (Didi) e sua esposa Pati.


Nos tempos idos da pesquisa da Profa. Bárbara Piperata, as famílias que hoje
participam de minha pesquisa, e que moram em Portel, tinham suas casas nessa co-
munidade. Por conta da dificuldade de acesso a alguns serviços, em especial escolas
para as crianças mais velhas, a preocupação em garantir a continuidade do estudo dos
filhos tem levado à migração para as áreas urbanas.

25
Além da calmaria da Ilha, gosto de lem-
brar das conversas sobre a roça com Pauli-
nho e seu irmão Takaiama. Paulinho com-
partilhou comigo sua vontade de investir na
produção das culturas locais, sem agrotóxi-
co, unindo as práticas da agricultura fami-
liar tradicional com o que aprendeu em seu
curso técnico em Agropecuária (no qual seu
irmão também é formado). Pude acompa-
nhá-los em suas roças e presenciar a farta
colheita de melancia docinha, em outubro
de 2019.
Dentre as dificuldades relatadas, Pauli-
nho confessa que gostaria de recursos para
investir em uma placa solar, que permitisse
refrigerar as frutas e suas polpas, garantin-
do também sua preservação, para serem
vendidas em Portel e Melgaço. Importante
lembrar, que a energia elétrica nas comuni-
dades é possível a partir do uso de gerado-
res apenas algumas horas por dia (conforme Fotos 27 e 28. Takaia e as melancias de sua roça
acordado entre os moradores, que rateiam (parte destinada ao consumo local e parte destinada
os custos de combustível e combinam o ho- à venda em Portel para complementação da renda) e
Paulinho, que me mostrou a diversidade de cultivar-
rário de preferência para uso de energia). es de sua produção (que inclui pés de cupuaçu, najá,
pupunha, abacaxi, feijão, abóbora, além da mandioca
Também vale mencionar, com meu afe- e do açaí-anão, variedade mais baixa de açaizeiro).
to, o riso solto de Edilândia, que me acom-
panhou nos mergulhos e banhos de rio; a força da Dona Rodi, incansável e com mo-
vimentos ágeis no forno, torrando a farinha; a família todinha da Dona Maria Nazaré,
que, no mesmo ritmo, descascava a mandioca em outra etapa importante da produção
da farinha d’água. Aliás, me encantei com as habilidades artísticas de Didi, que além
de esculpir em madeira, registrando especialmente a fauna local, me mostrou seus
desenhos e pinturas, que decoram a casa e, especialmente, o quarto de sua filha com
Pati, Ayla, todo enfeitado com peixes e flores, feitos à mão, que caem do teto. Quantos
talentos existem em nossas áreas rurais, florestas e cantos desconhecidos desse Brasil?
Hoje, o morador mais antigo de Ilha de Terra, é Seu Manoel (Manézinho), com-
panheiro de Dona Nazaré. Seu Manoel já contribuiu com inúmeros projetos e estudos
na região de Caxiuanã.
Foi um prazer conhecê-los e agradeço a acolhida de cada uma/um.

26
Fotos 29, 30, 31, 32, 33 e 34. Dona Rodi
e o processo de torra da produção de fa-
rinha; família descascando a mandioca
após colheita; tracajá - arte em madeira
de Adanilton (Didi); Ayla, me mostran-
do sua boneca de mandioca ao lado de
Eduardo; Heitor, filho de Seu Manoel e
Dona Nazaré (lado a lado).

27
Cacoal
Seguindo o percurso pelo estreito caminho que me leva até Ilha de Terra, é surpre-
endente quando a mata ao redor se abre para o grande Lago do Camuím, onde conheci
a comunidade de Cacoal.
Assim que cheguei fui recebida por Ene (Josiene) e seu companheiro, Seu Rai-
mundo. Receptiva, amorosa e alegre, Ene, com seu filho mais novo no colo, Caio,
me fez sentir que conversava com alguém já conhecia há anos. Meus problemas são
pequenos – ou quase nada – perto das batalhas que Ene já enfrentou e que me relatava
enquanto ria das dificuldades. Ene é inteira força e sabedoria.
Também em Cacoal, pude conversar
com Paloma, que estava preocupada com
a continuidade dos estudos, já que deve-
ria estar no Ensino Médio, etapa que não
existe nas escolas próximas. Sua mãe, Dona
Elinalva (Eli) e seu pai, Seu Francisco, por
enquanto aguardam a promessa de que as
aulas de Ensino Médio estão para chegar na
região, o que seria ótimo para Paloma, seus
irmãos e as demais crianças e jovens das
comunidades que visitei.
Rosinete também me recebeu prontamente.
Atenciosa, insistiu em me dar uma das melan-
cias mais doces que já comi na vida. Infeliz-
mente, era época de trabalho pesado nas
roças e na produção de farinha enquanto es-
tive em Cacoal, e, apesar de visitar as casas
de Dona Selma, Dona Dornele e Dona Ode-
te, elas estavam muito ocupadas para parti-
cipar das entrevistas e conversas. De todo
modo, aproveito este espaço para registrar o
quanto sou grata pela abertura, acolhimen-
to e disponibilidade com que fui recebida,
também em Cacoal.
Por fim, tive a oportunidade de conhe-
cer Dona Lindalva e Dona Bené (Benedita),
as mais antigas moradoras que encontrei
nessa comunidade. Se envelhecer traz suas
Fotos 35, 36 e 37. Vista do Lago do Camuím na saída do
dores na cidade, no campo, o trabalho duro estreito caminho que o conecta com Ilha de Terra; Ene e
de toda uma vida – e ainda necessário para Caio durante nossa conversa e Dona Elinalva e Paloma.

28
a sobrevivência – fica ainda mais pesado.
O corpo já está mais frágil, menos forte, os olhos estão cansados. Fica difícil
controlar doenças como diabetes e hipertensão, já tão frequentes em todas as comu-
nidades, em especial entre as/os mais velhas(os). Quando as práticas que garantem
a subsistência dependem tanto de força física, envelhecer é também encarar novas
dificuldades e limitações.
Conforme fui construindo as descrições acima, saibam que revisitar as memórias
de cada canto, rosto e vivência foram me fazendo sorrir e sentir saudades.
Agora que todos já sabem aquilo que mais me marcou em cada lembrança, vamos
ao cerne de um livro de receitas: a comida.
As receitas tradicionais a seguir foram escolhidas por cada uma de suas autoras,
que fizeram questão de compartilhá-las não só para os seus filhos e filhas, netos e ne-
tas, mas também comigo e com quem mais tiver interesse nesse registro.

Fotos 38 e 39. D. Bené, em seu banho de rio diário, e D.


Lindalva, em sua cozinha.

29
30
4. Receitas e ingredientes de uma alimentação
saudável e baseada na tradição

Lisiane Muller1, Mariana Inglez e Cristiana Marinho Maymore2

Além de registrar as memórias das receitas escolhidas por cada uma das autoras,
este livro também visa valorizar os alimentos tradicionais da Amazônia paraense, tão
típicos na dieta, não apenas ribeirinha, mas também dos centros urbanos e comunida-
des indígenas e que, muitas vezes, são exclusivos do Brasil.
Nas receitas aqui descritas, diversos alimentos típicos são utilizados para fazer
diferentes refeições, às vezes um mesmo item é usado tanto para fazer receitas doces
quanto salgadas. São alimentos que fazem parte da cultura e da história da região,
como é o caso da farinha d’água, do fruto do açaí, da castanha-do-pará. Mas vocês
sabem qual é a importância desses alimentos para uma dieta saudável? Aqui nós não
estamos falando sobre aquelas dietas tão conhecidas para emagrecer ou ganhar mus-
culatura, nem daquelas que incluem alimentos caros, de difícil acesso, e que muitas
vezes são encontrados apenas já empacotados em lojas e mercados. Estamos falando
de alimentos que tiramos direto da terra ou dos rios, por exemplo. Uma dieta ou ali-
mentação saudável é fundamental para todos os seres humanos, influenciando a nossa
saúde (garantindo o funcionamento de nossos órgãos e sistemas), a melhora do nosso
humor, sono e até a nossa memória e saúde emocional.

31
Para que uma alimentação saudável possa chegar à nossa mesa, nós dependemos
de muitas variáveis, como os sistemas de produção (por exemplo, o cultivo que pode
ser realizado pela agricultura familiar ou industrial, ou a coleta, a pesca, tudo os-
cilando de pequenas a maiores escalas), dentre diversos outros fatores, que podem
modificar e alterar os alimentos a que temos acesso. Para analisar a comida que chega
em nosso prato, existem diversos estudos e, uma das principais discussões de hoje,
envolve entender as proporções e impactos dos chamados alimentos in natura, mi-
nimamente processados, ingredientes culinários, processados e ultraprocessados. É
possível compreender a diferença entre eles:
Para que uma alimentação saudável possa chegar à nossa mesa, nós dependemos
de muitas variáveis, como os sistemas de produção (por exemplo, o cultivo pode ser
realizado pela agricultura familiar ou industrial, ou pela coleta, caça e pesca, tudo os-
cilando de pequenas a maiores escalas). Além da forma de produção, diversos outros
fatores sócio-políticos e econômicos podem modificar e alterar os alimentos aos quais
temos acesso. Para analisar a comida que chega em nosso prato, existem diversos
estudos e, uma das principais discussões de hoje, envolve entender as proporções e os
impactos dos alimentos in natura, minimamente processados, ingredientes culinários,
processados e os ultraprocessados. É possível compreender a diferença entre eles?
No Box 1 a seguir, encontram-se as definições e exemplos para cada grupo de
classificação dos alimentos:

Grupo Definição Exemplo


1.Alimento Partes comestíveis de plantas Feijões, legumes, verdu-
in natura ou (sementes, frutos, folhas, caules, ras, frutas (naturais, secas
minimamente raízes) ou de animais (músculos, ou desidratadas), tubércu-
processado vísceras, ovos, leite), cogumelos los (como cará e mandioca
e algas obtidos logo após a sepa- e seus derivados), sucos
ração da natureza ou submetidos da fruta sem açúcar, arroz,
a pequenos processos, como re- milho, farinha de milho,
moção de partes não-comestíveis, carnes (peixe, galinha e
secagem, desidratação, moagem, outros animais), ovos, er-
e outros processos que não envol- vas frescas ou secas, cas-
vem a adição de novas substâncias tanhas, sementes, café e
ao alimento. água.

2. Ingredientes Substâncias extraídas diretamente Sal, açúcar, óleo, azeite,


culinários de alimentos do primeiro grupo ou manteiga, vinagre
processados da natureza e utilizadas para tem-
perar os alimentos e criar prepara-
ções culinárias.

32
3. Alimentos Alimentos produzidos pela união Doces, compotas, sucos
processados de outros alimentos do primeiro e com açúcar, conservas,
do segundo grupo fruta em calda, peixes e
outras carnes em lata

4. Produtos Formulações industriais geral- Margarina, refrigerantes,


ultraprocessados mente prontas, ou semiprontas salgadinhos de pacote, gu-
para consumo feitas de inúmeras loseimas em geral, cereais
substâncias extraídas de alimentos matinais, misturas para
(óleos, gorduras, açúcar, amido, bolo, barras de cereais,
proteínas) e derivadas de cons- sopa instantânea, macar-
tituintes de alimentos (gorduras rão instantâneo, temperos
hidrogenadas, amido modificado), prontos, molhos prontos,
muitas de uso exclusivamente in- alimentos industrializados
dustrial, com pouca ou nenhuma congelados (pizzas, lasa-
quantidade de alimentos in natura nhas, hambúrgueres, nu-
ou minimamente processados em ggets, salsichas), pães de
sua composição. Possuem aditi- hambúrguer e de hot dog
vos químicos que alteraram a cor,
o sabor e a textura dos produtos,
tornando-os hiperpalatáveis e atra-
entes.

Uma alimentação balanceada deve ser composta por carboidratos, proteínas, gor-
duras e mais inúmeros nutrientes (como as vitaminas e minerais), cujas quantidades
adequadas dependerão do peso, da altura e do estilo de vida das pessoas. Mas, de
maneira geral, as dietas tradicionais, ou seja, aquelas que eram mais comuns nas an-
tigas gerações, aquelas comidas e receitas consumidas e preparadas por nossas avós e
bisavós, costumam ser compostas por alimentos que se complementam, sendo assim,
mais saudáveis. Em outras palavras, mais do que tentar ficar lembrando qual alimento
é rico em proteínas ou carboidratos, quando preferimos os alimentos frescos, mais
naturais, e caseiros, no geral, estamos contribuindo com nossa saúde.
Como exemplo, dentre os alimentos mais utilizados na dieta ribeirinha e aqui, nas
receitas deste livro, está a mandioca e seus derivados, consumidos principalmente na
forma de farinha d’água e tapioca, além das receitas com macaxeira. Esse tubérculo
tem sido uma das principais fontes de carboidratos para populações rurais amazôni-
cas, por séculos.
Em resumo, uma alimentação saudável é composta principalmente por alimentos
que se encontram no primeiro grupo do Box 1 (alimentos in natura), com uso modera-
do dos alimentos do segundo e terceiro grupo (ingredientes e alimentos processados)

33
e evitando os produtos do último grupo (ultraprocessados). Para ajudar a lembrar,
nas imagens a seguir encontram-se exemplos de que existem variações processadas
e produtos ultraprocessados para cada alimento natural. Se não tomarmos cuidado,
substituímos os primeiros pelos outros que não nos fazem tão bem:

Exemplo 1: Sobre sucos


O “suco em pó” tem quantidade
ALIMENTO
IN NATURA muito pequena de fruta e suas vita-
minas (mesmo que ele se diga adi-
ALIMENTO cionado de vitaminas), e possui alta
PROCESSA
DO concentração de açúcares e aditivos
químicos. O que não é bom. Prefira
Abacaxi
ALIMENTO
ULTRAP
ROCESS
você mesma/o fazer o seu suco a par-
fresco Abacaxi
em calda
ADO
tir da fruta.
Suco em

de abacax
i

Fonte: Guia Alimentar para a População Brasileira (2014)

Exemplo 2: Sobre milho e seus de-


rivados
ALIMENTO
Os salgadinhos de pacote, por IN NATURA

vezes chamados de pipoca, mesmo


que contenham a informação de que ALIMENTO
PROCESSA
são feitos de milho, contêm pouca DO

quantidade de milho de verdade, e


excesso de sal, por exemplo. Quem Espiga de
ALIMENTO
ULTRAP
ROCESS
ADO
aí já ouviu falar nos danos do sal milho Milho em
conserva Salgadin
ho de
para pressão alta? O alto consumo milho de
pacote

de sal tem aumentado a frequência


desta doença. Fonte: Guia Alimentar para a População Brasileira (2014)

Outro item muito consumido por populações ribeirinhas – e não poderia ser dife-
rente na região da FloNa de Caxiuanã – são os peixes. Esse item costuma ser a maior
fonte de proteína da dieta local. Menos gorduroso que a carne vermelha, o peixe
fresco costuma ser servido tanto no almoço quanto no jantar. A pesca é uma atividade
quase diária, sendo importante não apenas em relação à alimentação, como também
um marco da cultura e do estilo de vida ribeirinho.

34
Exemplo 3: Peixes e outras carnes
ALIMENTO
IN NATURA Os peixes empanados, vendidos
congelados nos grandes mercados
ALIMENTO
PROCESSA
ou enlatados, assim como sardinha
DO
enlatada, conserva, charque, diferen-
temente dos peixes frescos, possuem
Peixe fre
ALIMENTO
ULTRAP
ROCESS
pouca quantidade de peixe e alta
sco AD O
Peixe em
conserva Empana
concentração de gordura e sal. Olha
do de Pe
(nuggets ixe
) aí, mais uma vez o sal...
Fonte: Guia Alimentar para a População Brasileira (2014)

Por fim, considerada secundária, apesar de sua inegável importância, a caça para
consumo local, de espécies não ameaçadas, também representa uma fonte proteica
(sendo consumidos animais como tatus, pacas, queixadas, aves diversas e répteis,
como tartarugas e jacarés).
Além dos alimentos essenciais acima citados, para uma alimentação balanceada,
a dieta ribeirinha é complementada por diversos outros itens: cultivados nas roças, te-
mos frutos (como abacaxi e melancia), raízes (mandioca, inhame, cará, batata-doce),
leguminosas (feijão) e cereais (a exemplo do milho e do arroz); além de alimentos co-
letados na forma selvagem ou que ainda não são completamente domesticados (como
cacau, bacaba e açaí), e das castanhas, como a castanha-do-Pará.
A chamada Transição Nutricional (ou mudança nos hábitos alimentares, já men-
cionada na apresentação deste livro) ocorre quando existem mudanças importantes
em características que sempre definiram o estilo de vida ribeirinho e a sua dieta tradi-
cional. Os estudos da Profa. Dra. Bárbara Piperata, conduzidos na região e publicados
entre 2009 e 2011, revelaram que o maior contato com centros urbanos; o aumento do
salário mínimo e da aposentadoria mensal; o aumento da demanda do mercado pelo
fruto do açaí; além de uma maior abrangência de políticas públicas de transferência
de renda das últimas décadas – como o Programa Bolsa Família (PBF) – têm sido os
principais motores dessas mudanças na alimentação.
Se por um lado é ótimo poder escolher variar e complementar nossa alimentação
comprando diferentes alimentos, por outro, é importante lembrar, sempre que possí-
vel, que nem tudo que é vendido nos mercados faz bem pra saúde: na verdade, diferen-
tes estudos indicam que o aumento no consumo de produtos ultraprocessados (como
os exemplos apresentados no grupo 3 do Box 1), está vinculado a um crescimento nas
taxas de sobrepeso, obesidade e doenças crônicas associadas, como diabetes tipo II,

35
hipertensão e doenças cardiovasculares, além do aumento de cáries e alergias.
Que tal darmos uma olhada mais detalhada nos alimentos locais que mais apare-
cem nas receitas?
Peixes: seja na forma de assada ou até em suas ovas, os peixes são alimentos
frescos, abundantes na região, in natura ou minimamente processados. Ricos em pro-
teína, vitaminas e minerais, possuem gorduras saudáveis.
Mandioca e seus derivados (farinha d’água, goma de tapioca): alimentos in natura
ou minimamente processados. Ricos em carboidratos e fibras alimentares. Deve-se
evitar sua preparação frita, pois ela retém muita gordura.
Açaí e outras frutas locais: alimentos muito saudáveis, ricos em fibras alimentares,
vitaminas, minerais e compostos que contribuem para a prevenção de muitas doenças.
Deve-se evitar realizar preparações que levem muito açúcar.
Carne de caça: deve ser preparada com a menor quantidade de óleo e sal possível.
Rica em proteína, ferro, zinco e vitamina B12. Porém, seu consumo deve ser mode-
rado pois ela também é rica em gordura, que pode fazer mal ao coração ou levar a
outras doenças.
Castanha-do-pará: rica em minerais, fibras alimentares, vitaminas e compostos
que previnem doenças. Devem ser evitadas as preparações que adicionem muito açú-
car ou sal.
Agora sim! Vamos às receitas das coautoras desse livro, que gentilmente com-
partilharam os ingredientes de suas refeições favoritas, ou aquelas favoritas de seus
filhos, mães, pais.
Que cada uma dessas receitas possa aproximar as leitoras e os leitores de cada uma
das comunidades, da brisa do rio, do sol quente, da sombra das árvores e das casas de
madeira, caprichosamente feitas a mão.

Nota: É importante reparar que, em muitas das receitas tradicionais, alimentos processados e ultraprocessados já
foram incorporados. Provavelmente, há 50 anos atrás, por exemplo, esses itens não seriam mencionados. Nada
é estático e, em um mundo globalizado, as redes de troca e a economia de mercado chegam a praticamente
todos os lugares. Aqui, estimulamos apenas a reflexão sobre o quanto esses itens processados e ultraproces-
sados são necessários, ou como podem ser evitados, tendo sempre em mente os impactos em nossa saúde.

¹Lisiane Muller
Co-fundadora do projeto de divulgação científica “Evolução Para Todes: Compartilhando a ciência do LAAAE-
-USP, Lisi é bióloga, mestra em Ciências (Biologia/Genética) com experiência em bioarqueologia e em produ-
ção de conteúdos científicos para um público não acadêmico.

²Cristiana Marinho Maymone


Para esse texto, contamos com a participação e revisão da nutricionista, especialista em saúde indígena e in-
teriorização da atenção à saúde, Cris Maymone. Também mestre em nutrição em saúde pública, doutoranda
no programa Mudanças Sociais e Participação Política, sua participação visou garantir que compartilhássemos
informações sobre alimentação que consideramos importantes para a saúde, no contexto ribeirinho.

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5.Receitas

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Periquita-de-Açaí
Maria Júlia Serrim (Dona Julinha)

Ingredientes:
• Fruto do açaí; • Farinha d’água;
• Água; • Açúcar a gosto.

Modo de preparo:
1. O açaí pego no pé é colocado em um coratar/curatá de inajá (pal-
meira da região), que funciona como uma grande cuia, na qual o
fruto fica amolecendo em água que esquenta ao sol.
2. Depois de cerca de 1 hora ou menos – se for o sol do meio-dia – o
açaí já está mole.
3. Deve-se despejar fora a água, acrescentar a farinha e ir misturando
com as mãos a massa que se forma. Acrescentar açúcar a gosto, se
quiser.
4. Como tudo do fruto é aproveitado – casca e polpa – (que a gente
vai raspando com os dentes até sobrar só o caroço), o nome faz
referência aos periquitos, que também comem o fruto raspando-o
com o bico.

* D. Julinha conta que hoje quase não se faz mais a periquita-de açaí. “Hoje
tem mais opção, é difícil ver alguém fazendo... o povo não gosta mais.
Quando eu era criança era uma das únicas coisas que nossa mãe tinha
pra fazer.”

** No lugar do açaí podem ser usadas outras frutas da estação.

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39
Mingau de Açaí
Marinete Serrim

Ingredientes:
• 1 tigela de farinha d’água;
• 1 litro de água;
• Açaí azedo;
• Uma pitada de sal;
• Açúcar a gosto.

Modo de preparo:
1. Colocar água e farinha no fogo, com uma pitada de sal.
Quando a mistura estiver engrossando, adicionar o açaí
azedo* para ferver junto.

* Marinete conta que esse mingau é bom para crianças, mas só “maior-
zinhas de 2 anos” pois é “muito forte para bebê pequeno”. Ela explica
que o açaí azeda com o tempo, especialmente nas comunidades quando
não tinha geladeira, azedava ainda mais rápido. Hoje tem gente que não
gosta do sabor, mas ainda tem quem prefira o sabor do açaí já azedo.

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Unha
Juci Serrin

Ingredientes:
• 250g de farinha d’água;
• 250g de camarão;
• Temperos a gosto: cebolinha em folha,
cebola de cabeça, 1 dente pequeno de alho,
pimenta e sal.

Modo de preparo:
1. Escaldar os camarões previamente salgados, por 5 minutos, para
tirar o excesso de sal.
2. Separadamente, umedecer a farinha com água fria até que “in-
che”. Misturar com os temperos picados e sal a gosto. Amassar a
mistura com as mãos até atingir o ponto de massa.
3. Colocar os camarões na massa, conforme prepara bolinhos alon-
gados, com cerca de 8cm de comprimento. A ponta do camarão
para fora da massa faz lembrar o formato de um dedo, com uma
unha/garra (por isso, o nome da receita).
4. Fritar em óleo quente.

41
Carimã (Mingau de
Farinha D’Água)
Jamile Serrin
(Rende para aproximadamente 6 pessoas)

Ingredientes:
• 1 litro de água;
• 250g de farinha d’água;
• 200g de leite em pó (pode ser feito sem lei-
te, como originalmente);
• Pitada de sal;
• Açúcar a gosto.

Modo de preparo:
1. Ferver a água com a farinha e preparar o leite em pó em outra
panela. Quando o mingau de farinha estiver fervendo, acrescen-
tar o leite. Deixar no fogo por cerca de 5 min. Acrescentar uma
pitada de sal e açúcar a gosto, antes de servir.

* Jamile nos conta que esse é um mingau típico de sua infância


na roça, bom de dar pros bebês ou quando a pessoa está doente
e fraca, sem vontade de comer. Hoje costuma fazer pra Alexia,
sua filha de 1 aninho, mesmo morando na área urbana de Por-
tel (por isso o acréscimo do leite em pó).
** Existem variações do Carimã que incluem banana, arroz
e macaxeira.

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43
Bananada (Vitami-
na de Banana)
Ester Serrim

Ingredientes:
• Cerca de 4 bananas;
• 1 litro de água gelada;
• Açúcar a gosto;
• 4 colheres de leite em pó (opcional).

Modo de preparo:
1. Bater tudo no liquidificador e tomar pela manhã ou à tarde.

Goiabada
Ingredientes:
• Goiabas;
• Açúcar;
• Água.

Modo de preparo:
1. Descascar as goiabas e bater no liquidificador. Coar
para tirar as sementes e levar ao fogo junto com os
outros ingredientes. Mexer enquanto ferve, até che-
gar à textura de geleia. Comer puro, com “beiju” ou
pão.

* Ester, filha de D. Marinete, quis participar do livro e disse que


aprendeu a fazer bananada com o pai e que esse é o “vício” da fa-
mília. Mesmo morando na área urbana de Portel, Neguinho (Seu
José Serrim), tem um pé de bananeira no fundo do quintal.
** também registrou a receita de goiabada, feita com as goiabas
do quintal.

44
Carne de Panela
Vandressa

Ingredientes:
• Paca (geralmente velha e gorda);
• Temperos a gosto - cebola de cabeça, alho,
pimenta cuminho (na região se pronuncia
com “u”), pimenta cheirosa, cheiro verde,
colorau;
• Limão;
• Sal a gosto;
• Óleo de cozinha.

Modo de preparo:
1. Despelar a paca em água quente e limpar bem. Deixar marinando
no sal e limão por 10 minutos. Refogar a carne com os temperos
e água.
2. A tradição é comer com açaí e farinha d’água, mas pode-se comer
com arroz e feijão.

* Vandressa cresceu em Ilha de Terra e disse que gostava de comer


carne de paca antigamente.

45
Tucunaré Frito
Valdenora

Ingredientes:
• Tucunaré;
• Farinha de trigo;
• Óleo;
• Limão;
• Sal a gosto.

Modo de preparo:
1. Limpar o tucunaré, tirando os órgãos e escamas. Lavar com limão
e colocar sal a gosto. Passar na farinha de trigo.
2. Pré-aquecer o óleo e colocar o tucunaré quando já estiver ferven-
te. Deixar bem torradinho. Comer com feijão e farinha d’água
(pode acrescentar arroz). Ou só comer com açaí grosso (tem
quem coloque açúcar no açaí) e farinha. Pode acompanhar com
suco de maracujá.

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47
Caldo de Jiju
Maria Benedita (D. Preta)

Ingredientes:
• 4 jijus (respeitando a pronúncia local, optei por
escrever com “i” a grafia de jeju);
• Temperos a gosto (cebolinha, chicória, alho em
planta e em cabeça, limão, tomate, cheiro verde e
sal a gosto.

Modo de preparo:
1. Para preparar o jiju, tirar toda a escama, fazer um tiquinhado*
bem miudinho e lavar com limão, retirando as tripas. Colocar na
panela, com todos os temperos bem picados e cobrir com água.
2. Levar ao fogo e deixar ferver por cerca de dois minutos. Comer
com farinha d’água e se tiver, açaí.
* Tiquinhar” é o tratamento dado aos peixes com muitas escamas e que consiste
em fazer cortes diagonais posicionados lado a lado no corpo, a fim de mupicar
(quebrar as espinhas).

48
Cabidela de Pato
Augusta (Morena)

Ingredientes:
• 1 pato;
• Temperos a gosto: cebolinha, alho, colorau, pi-
mentinha-de-cheiro e pimenta-do-reino;
• Cabidela (farinha d’água coada, ou seja, a por-
ção mais fina da farinha).
Modo de preparo:
1. Limpar o pato, tirando as penas e o bucho (órgãos internos), se-
parando apenas o fígado, que deve ser colocado em água por 20
minutos para que amoleça. Em seguida, escaldar esse fígado, ou
seja, colocar rapidamente em água fervente, retirar e amassar,
aguando.
2. Picar o pato em pedaços e refogar com os temperos. Quando já
estiver refogado, colocar em panela com água (o suficiente para
cobrir os pedaços) e esperar até que o caldo engrosse (cerca de 30
minutos). Misturar a farinha com o fígado amassado na mesma
panela e esperar mais cerca de 20 minutos até engrossar bem.
3. A cabidela pode ser servida sozinha ou com arroz.

49
Feijão-Baião
Ana Júlia

Ingredientes:
• Feijão branquinho da roça (pelo menos ½ kg);
• Arroz;
• Sal;
• Charque;
• Temperos: couve, cebolinha, tomate, chicória,
alho, cebola, colorau, pimenta-do-reino e pimenti-
nha-de-cheiro.

Modo de preparo:
1. Colocar o feijão para cozinhar por pelo menos 20 minutos (ou até
que amoleça e escorrer). Preparar o arroz (em água fervente, com
sal, e esperar até que amoleça, antes de lavar e escorrer no crivo).
2. Escaldar o charque (jogar água fervente) e depois lavar com água
fria*. Cortar bem miudinho, assim como os temperos e misturá-
-los. Refogar com um pouquinho de óleo.
3. Misturar tudo em uma panela grande: charque já refogado com
temperos, arroz e feijão.
4. Servir com farinha.

* Ao lavar o charque (também chamado de carne-seca por


alguns), se retira um pouco do sal utilizado para conservá-lo.

50
51
Bolo de Macaxeira
Mara

Ingredientes:
• ½ kg de macaxeira ralada e lavada (bem
lavada, se for mandioca)*;
• 3 ovos inteiros;
• 2 xícaras de açúcar;
• 200 ml de leite condensado**;
• 3 colheres de manteiga;
• 1 xícara de água.
Modo de preparo:
1. Bater todos os ingredientes (com exceção do açúcar) para fazer
a massa. Preparar a calda do bolo com o açúcar misturado em
água, ambos levados ao fogo até que ferva e engrosse. A calda é
utilizada para untar a forma e só depois se coloca a massa. Assar
no forno por cerca de 40 minutos.

* Quando se fala na mandioca (brava) lavada, significa que é necessário muito


mais tempo de preparo para retirada de todo seu veneno, antes do con-
sumo.
** Antigamente não se usava o leite condensado, apenas leite co-
mum ou água.

52
Salgadinho de
Macaxeira
Madalena

(Rende 6 porções)

Ingredientes:
• 1 kg de macaxeira;
• Sal;
• Temperos a gosto: pimentinha de cheiro, chicória,
alfavaca, cebolinha, tempero seco (cominho), colo-
rau;
• Manteiga/ margarina;
• Óleo.

Modo de preparo:
1. Descascar a macaxeira e cozinhar até amolecer.
2. Quando mole, esperar esfriar e amassar. Depois de bem
amassada, misturar os temperos e o sal, e usar a man-
teiga ou margarina na massa.
3. Fazer bolinhos com as mãos.
4. Colocar o óleo para esquentar e quando estiver
bem quente, fritar os bolinhos.
5. Comer com feijão.

* Além de ser a assistente de saúde na região, atendendo


algumas comunidades vizinhas, mesmo sem que sejam
disponibilizados muitos recursos para isso, Dona Madalena
também tem sido a cuidadora dedicada de Dona Adelaide.

53
Mingau de Crueira
Gleissi

(Rende 6 porções)

Ingredientes:
• Crueira (parte mais grossa que sobra do preparo da
farinha d’água, o refugo que não passa na peneira);
• Água;
• Castanha-do-Pará;

Modo de preparo:
1. Colocar uma porção da crueira para secar e depois pilar (triturar)
num pilão. Coar em peneira e ficar com o pó, que deve ser coloca-
do em vasilha rasa. Usar a água apenas para umedecer um pouco
o pó de crueira e ir fazendo bolinhas do tamanho de feijões.
2. Esquentar 1 litro de água e despejar as bolinhas (flocos) de cruei-
ra. Em contato com a água quente, os flocos se mantêm sólidos,
como a tapioca no café.
3. Pegar ½ litro de castanha-do-Pará descascada e ralar para ti-
rar o leite. Colocar na mistura da água com a crueira no
fogo e adicionar uma pitada de sal. Esperar engrossar.

* Gleice aprendeu essa receita com sua avó, Dona Maria de


Nazaré, a quem dedica a memória.

54
Sorvete de goiaba
Sabrina

Ingredientes:
• Goiabas (em torno de 20);
• Açúcar e leite ou leite condensado.

Modo de preparo:
1. Descascar e lavar cerca de 20 goiabas e colocar no liquidificador.
Coar num crivo para tirar os caroços. Misturar e bater a polpa com
leite e açúcar, ou leite condensado, até virar um creme. Colocar
em recipiente e levar ao freezer.

55
Pudim de açaí
Nelma

Ingredientes:
• ½ litro de polpa de açaí (bem grossa e fresca, feita
com açaí tirado do pé);
• 1 lata de leite condensado.

Modo de preparo:
1. Colocar a polpa de açaí e o leite condensado em panela para fer-
ver até engrossar.
2. Colocar em forma e depois refrigerar.
3. A textura fica como de pudim. Comer gelado.

56
57
Cuscuz de Milho com
Castanha-do-Pará
Débora

Ingredientes:
• Castanha-do-Pará ralada;
• Açúcar;
• Farinha de milho;

• Modo de preparo:
1. Colocar 1 litro de água para ferver e acrescentar a castanha ralada
e o açúcar e em seguida a farinha de milho, até engrossar e a água
secar. Colocar no prato em forma de bolinho e comer com café.

58
Tapioquinha / Beiju
de Castanha-do-Pará
Maria Raimunda

Ingredientes:
• Goma de tapioca;
• Castanha-do-Pará.

Modo de preparo:
1. Secar a goma e coar no crivo (tipo de peneira) para que a farinha
fique bem fininha. Ralar a quantidade desejada de castanha-do-
-pará. Duas opções são possíveis: misturar o ralado da castanha
na goma e colocar na frigideira para fazer o beiju ou hidratar em
água o ralado da castanha e escorrer o caldo/leite da castanha no
beiju já pronto.

59
Sardinha de
Castanha-do-Pará
Francinete (Benequinha)

Ingredientes:
• Castanha-do-Pará descascada (em torno de
200g);
• Sal;
• Farinha d’água.
Modo de preparo:
1. Ralar a castanha e fritar colocando sal a gosto. Misturar com a
farinha, que fica mais rica. Gostoso de comer com peixe.

60
Doce de castanha-
do-Pará
Dona Adelaide*
Ingredientes:
• 1 litro* de castanha-do-Pará, fresquinha e ralada;
• Óleo.

Modo de preparo:
1. Amassar a castanha ralada nas mãos e ir fazendo bolinhos que
devem ser fritos em óleo já quente. Comer no café-manhã.
* Dona Adelaide é uma das moradoras mais antigas de Pedreira. Todos re-
latam que ela é/era boa em fazer cestarias, tipitis e artesanatos, que vendia na
Estação Ferreira Pena, centro de pesquisa do Museu Emílio Goeldi. Em seus
bons tempos, a Estação era um lugar vivo, com eventos, cursos, pesquisas de
todas as áreas de conhecimento e as populações locais participavam das ativ-
idades ali promovidas. Passados os anos e com a falta de investimento, hoje
a Estação resiste, mas já sem as estruturas de outros tempos. Dona Adelaide
já não enxerga bem e por isso não consegue mais trabalhar. Na época desta
pesquisa, também estava com dificuldade de se locomover, por conta de
uma queda e fratura no fêmur que sofreu no ano anterior. Sem recur-
sos para uma cirurgia em Belém, Dona Adelaide não consegue
caminhar.
** Se fala em 1 litro porque na coleta da castanha o arma-
zenamento se dá em latões que indicam litragem e não
quilogramas.

61
Suco e doce de
buriti / miriti
Dona Adelaide
Ingredientes:
• Buritis / Miritis;
• Açúcar;
• Água.

Modo de preparo:
1. Colocar as frutas para amolecer em água já pré-aque-
cida ou aquecendo no sol, por cerca de 2 horas ou até
ser possível retirar a casca com facilidade. Quando
possível, retirar a casca e raspar toda a massa com
colher. Para o preparo do suco, basta misturar com
água e adoçar a gosto.
2. Para o preparo do doce de miriti, depois de tirar a
casca, deve-se colocar a massa das frutas para ferver
junto com açúcar e água, como se faz para geleias.
Mexer até engrossar e transferir para um vidro. Levar
para gelar.

62
Sopa caseira
“Cabeça de Galo” *
Ana

Ingredientes:
• ½ kg de farinha d’água;
• Tempero a gosto: cheiro-verde, pimenta-do-reino,
pimenta-de-cheiro, cominho, cebola, alho, sal e óleo;
• Água.
Modo de preparo:
1. Colocar 1 litro de água para ferver, e quando estiver fervendo,
colocar os temperos a gosto.
2. Lavar a farinha para tirar os farelos e deixar hidratada.
3. Acrescentar a farinha já “tufada” (inchada), mexer até engrossar,
por cerca de 5 minutos e está pronta para comer.

* Ana aprendeu essa receita com sua mãe, Dona Maria Chaves Silva.
O nome da receita se deve ao gostinho, que segundo Ana, lembra o
de uma canja, mesmo que nenhuma parte de galo faça parte dos
ingredientes. Ana também é coordenadora e professora na escola
de ensino fundamental localizada em Cacoal, onde estudam
crianças e jovens das comunidades vizinhas.

63
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Açaí com caratinga*
e farinha
Rute e Dona Domingas

Ingredientes:
• Vinho do açaí;
• Caratinga;
• Farinha d’água.

Modo de preparo:
1. Quando o açaí estiver pretinho no cacho, está pronto para cole-
tar. Esquentar 5 litros de água (pode deixar no sol ou aquecer no
fogo).
2. Colocar o açaí em uma lata (geralmente de 20 litros) e acrescentar
a água quente para deixar de molho (até amolecer).
3. Tirar da água e lavar o açaí com água fria, despejando-o em outra
vasilha.
4. Acomodar duas peneiras (uma de malha mais grossa e outra de
malha mais fina), e acrescentar novamente água na vasilha
com o fruto. Ir passando o açaí na peneira de malha
maior, com as mãos. Os caroços e a borra vão fican-
do retidos na peneira, enquanto a porção mais fina,
o vinho, vai sendo extraído. Essa será a parte
consumida.
5. Já deixar a caratinga limpa e salgada, com
limão e a brasa preparada para assar o peixe
no muquém**. Comer com o açaí e a farinha
d’água.

* Nome popular de espécie de peixe local.


** Pedaço de madeira sobre o qual o fica peixe a ser defu-
mado.

65
Doce de Maxixe*
Raquel

Ingredientes:
• Maxixe já amarelo (bem maduro) – cerca de 30 unidades;
• Água;
• Açúcar.

Modo de preparo:
1. Limpar bem o maxixe, tirando os “pelos” da casca com colher ou
faca e lavar.
2. Colocar na panela com água suficiente para cobrir todo o maxixe.
Ir fervendo até amolecer e quando a água começar a secar acres-
centar o açúcar (cerca de ½ kg). Continuar fervendo até que a
água seque dando lugar a uma calda com o maxixe.
3. Comer quando esfriar.

* Raquel dedica essa receita à memória Dona Maria, sua avó.

66
Carne assada de panela
(do Seu Odorico)
Dona Letícia

Ingredientes:
• Carne de preferência (pode ser de caça ou de boi);
• Temperos a gosto: cebola, chicória, alfavaca, pimenta-de-
-cheiro, manjericão, sal.

Modo de preparo:
1. Refogar a carne escolhida nos temperos e em água (sem
óleo mesmo). Ir acrescentando um pouquinho de água
cada vez que secar, até que a carne amoleça.
2. Comer com açaí e um pouquinho de farinha (e arroz
se quiser).

67
Rapadura*
Romana

Ingredientes:
• Leite e açúcar (na mesma quantidade, cerca de 5
colheres de cada, por exemplo);
• Na opção sem leite, colocar gengibre amassado
com limão e açúcar.

Modo de preparo:
1. Colocar o leite e o açúcar em panela com um pouco de
água até ferver e ir deixando engrossar a calda, conforme o
açúcar vai queimando.
2. Pegar porções com colheres e colocar rápido em água fria
corrente para esfriar e endurecer.Prontas, ficam como balas
para crianças.
3. Sem leite, a opção é amassar gengibre com limão, acres-
centando água e açúcar em vasilha até que se forme a mes-
ma calda. Esse tipo de bala é boa para gripe.

* Romana aprendeu essa receita com sua mãe, Dona Maria Ferreira, que
costumava fazer para ela, quando criança.

68
69
Tacacá*
Ester Glória

Ingredientes:
• 1 litro de água;
• ½ colher de sopa de sal;
• 250 gramas de goma de tapioca;
• Tucupi.

Modo de preparo:
1. O primeiro passo é preparar o caldo de tucupi, extraído da mandioca brava
utilizada para preparo da farinha d’água. Em resumo, é preciso descascar e
ralar a mandioca, deixando-a em um pouco de água. Essa mandioca hidratada
é envolta em pano e espremida, recolhendo-se o líquido e repetindo o proces-
so, sem exagerar na água, para o caldo se manter grosso. Normalmente se usa
uma prensa para extrair o líquido e poupar a força manual. Esse líquido preci-
sa descansar por algumas horas (de duas a cinco), até que um amido amarelo
decante no fundo. Esse amido é justamente o polvilho ou fécula de mandioca,
que deve ser separado do líquido amarelo, para ser usado como goma. Deixar
que o líquido repouse coberto com um pano para que fermente, de um dia
para o outro. Essa etapa é importante porque o tucupi recém
extraído da mandioca brava é venenoso**.
2. Quando estiver pronto, o tucupi é cozido com tempe-
ros como alfavaca, alho, pimenta, sal e chicória e é
usado para temperar peixes e carnes, ou no tacacá.
3. Deixar a goma de tapioca já seca em água fria
(cerca de 200 ml) por cerca de 2 minutos.
Aquecer o restante da água, e uma vez quente,
acrescentar sal, jogar na goma e ir mexendo até
engrossar. Jogar água fria para chegar no ponto
de consumo (o nome “goma” já indica). Colo-
car a goma pronta na cuia, o caldo de tucupi
quente, camarões salgados e folhas de jambú.

* Esther aprendeu essa receita com sua avó, Dona Letícia, que
já vendeu um famoso tacacá em Portel.
** Sem essa etapa da fermentação, esse líquido ainda venenoso é
utilizado para controle de pragas nas hortas, jardins e roçado. Nada se
perde.

70
Doce de melancia
Benedita (Dona Bena, também conhecida por Glória)

Ingredientes:
• 1 melancia inteira.

Modo de preparo:
1. Com colher, raspar toda a melancia – inclusive a parte que fica
branca – e retirar os caroços.
2. Colocar em panela, levar ao fogo e ir mexendo com colher de pau
até ferver. A melancia vai amolecendo e soltando água, conforme
se continua a mexer. Deve-se deixar a água secar e ir abaixando o
fogo enquanto isso acontece, para não queimar.
3. Quando secar completamente a água, a textura fica igual a de ge-
leia. Comer com farinha d’água ou passar no beiju.

71
Jabuti na castanha*
Leidiane

Ingredientes:
• 1 jabuti;
• Limão;
• Temperos a gosto: cebolinha, alho, pimenta-do-reino,
colorau;
• Castanha;
• Óleo.

Modo de preparo:
1. Limpar o jabuti, tirando a carne do casco e lavando
bem com água e limão, cortando em pedaços.
2. Refogar a carne com os temperos e cozinhar.
3. Ralar a castanha, colocar em vasilha com água. Espre-
mer para extrair o leite.
4. Quando o jabuti estiver pronto (carne cozida e macia),
colocar o leite de castanha por cima.
5. Comer com farinha ou arroz, acompanhado de suco de
laranja**.

* Leidiane conta que essa receita era feita por Dona Maria Júlia,
sua mãe.
** A comunidade de Laranjal recebeu esse nome por ter sido
uma fazenda com produção de laranja no passado.

72
Pipoca de tapioca
Rosa

Ingredientes:
• 100g de goma de tapioca;
• 100g de farinha d’água peneirada bem fininha;
• Água;
• Sal a gosto;
• Óleo.

Modo de preparo:
1. Pegar a goma e ir colocando farinha d’água e sal, umedecendo
aos poucos com água. Não pode colocar muita água.
2. Pegar a massa, com as pontas dos dedos, em pequenas quantida-
des, e colocar em óleo quente para fritar.
3. Na opção doce, substituir o sal por açúcar e, depois de frito, pol-
vilhar com canela.

73
Bolo de pupunha
Rosa

Ingredientes:
• 12 xícaras de pupunhas cozidas e amassadas;
• 2 xícaras de leite de coco;
• 5 ovos;
• 1 colher de sopa de manteiga;
• 2 xícaras de açúcar;
• 2 colheres de sopa de farinha de trigo;
• Uma pitada de sal.

Modo de preparo:
1. O jeito tradicional de fazer é preparando o leite de coco
caseiro (hidratando a carne do coco ralada e extraindo o
leite) e com ovos da galinha de criação.
2. Bater à mão ou no liquidificador, a pupunha já cozida e
amassada, com o leite de coco.
3. Em outra tigela bater a manteiga, o açúcar e os ovos.
4. Em seguida, juntar todos os ingredientes e a farinha de tri-
go, amassando até ficar bem consistente.
5. Colocar a mistura em uma forma untada com manteiga,
para não grudar, e levar ao forno por 30 minutos ou até
dourar.

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Biscoito de
Castanha
Odete

Ingredientes:
• 2 xícaras de castanha ralada;
• 4 xícaras de farinha de trigo;
• 1 pacote de amido de milho (cerca de 200g);
• 500g de manteiga;
• 1 xícara de açúcar.

Modo de preparo:
1. Misture todos os ingredientes até obter uma massa firme.
2. Abra a massa com um rolo e corte no formato que quiser.
3. Polvilhe os biscoitinhos com farinha de trigo antes de co-
locar para assar no forno.

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Beiju-Chica
Dona Maria

Ingredientes:
• Farinha de mandioca;
• Castanha;
• Sal.

Modo de preparo:
1. A farinha de mandioca utilizada em todas as receitas é
produzida pelas famílias, desde o plantio e colheita, até
o seu preparo.
2. É preciso descascar e preparar a ceva (redução da man-
dioca à massa com que se faz a farinha), colocando na
prensa após hidratar em água, e espremer para retirar o
tucupi. Repetir o processo cerca de 4 vezes para retirar
de fato todo o tucupi. Colocar a ceva para secar e passar
a puba num ralador e peneira com tela fina. Acrescentar
castanha ralada e sal, na massa umedecida com água.
3. Pegar a mistura e fazer beijus com a mão, na forma que
preferir, ou, com um terçado, cortar em quadradinhos e
levar ao forno, até ficar crocante.
4. Comer quentinho (pode colocar manteiga), com café.

* Dona Maria é uma das matriarcas e moradoras mais an-


tigas dessa comunidade.

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Foguete de Jiju*
Maria de Nazaré

Ingredientes:
• Jiju tiquinhado** e limpo (sem escama e tripas/entra-
nhas) e lavado com limão ou vinagre;
• Temperos a gosto - cebolinha, chicória, 3 folhinhas de al-
favaca, pimentinha de cheiro, cebola de cabeça picada (tudo
da horta), dois dentes de alho, sal a gosto, colorau, uma pita-
da de cominho e um galhinho de cominho de planta;
• 1 colher de manteiga/margarina;
• Sal a gosto;
• Óleo de cozinha.
Modo de preparo:
1. Deixar o jiju, tiquinhado e limpo, de molho em limão
por cerca de 20 minutos.
2. Colocar na panela uma colher de manteiga (margari-
na), meia colher de óleo e levar ao fogo. Refogar alho
e cebola de cabeça e acrescentar um pouco de colorau
para dar cor. Aos poucos, acrescentar todos os outros
temperos picados.
3. Retirar o refogado do fogo e esperar esfriar, para pas-
sar no peixe com sal. O peixe pode estar aberto com o
tempero sobre a carne, ou fechado.
4. Levar ao forno ou assar na brasa.
5. Comer com farinha d’água e açaí.

* Dona Nazaré escolhe, sorrindo, a receita acima, dizendo que


“era a favorita da Bárbara” (minha coorientadora norte-ameri-
cana). Ela lembra dela pedindo o “Foguete de Jiju” e até imita
seu sotaque. Na época dessa visita, Nazaré tinha acabado de
descobrir um câncer no colo do útero, e seria encaminhada em
breve a Belém, para fazer uma cirurgia de retirada do tumor. Fe-
lizmente ela se recuperou bem.
** Lembrando que se fala que o peixe foi tiquinhado quando são
feitos vários cortes em sua carne, com o intuito de evitar que se
engasgue com as espinhas (que acabam sendo picadas em pedaços
bem pequenos), não sendo necessário retirá-las.

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Ovas de Peixe
Adaíla*

Ingredientes:
• Ovas de peixe, sendo a melhor espécie o jiju;
• Temperos a gosto - cebolinha, pimenta de cheiro; cebola
de cabeça; alho; coentro; chicória; cominho de planta; sal;
• Limão.

Modo de preparo:
1. Tirar as ovas da barriga do peixe e lavar com água e
limão, deixando alguns minutos de molho.
2. Escorrer a água.
3. Picar todo o tempero a gosto e refogar em óleo com um
pouquinho de água. Adicionar as ovas ao refogado, até
que a água seque.
4. As ovas devem ser servidas com limão espremido a
gosto, farinha d’água e açaí.

* Nasceu em Ilha de Terra mas atualmente mora em Melgaço-PA.

80
Tamatá* no tucupi
Dona Rodi

Ingredientes:
• 5 tamatás;
• 2 litros de tucupi caseiro;
• Limão;
• Temperos a gosto: sal, jambú, cebolinha, alfavaca, 2 den-
tes de alho e chicória.

Modo de preparo:
1. Limpar os tamatás, lavando com limão e água quente
para tirar o limo de sua pele. Colocar os peixes junto
com os temperos, para cozinhar nos 2 litros de tucupi,
por cerca de 30 minutos.
2. Servir com farinha d’água e pimenta cremosa.

* Nome popular de espécie de peixe da região.

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Canjica de milho
verde
Edilândia

Rende para 5 pessoas.

Ingredientes:
• 10 espigas de milho;
• Açúcar;
• Sal;
• Água.

Modo de preparo:
1. Ralar o milho verde ou retirar os grãos e bater no liqui-
dificador ou no pilão.
2. Coar no crivo, para tirar o bagaço e ficar apenas o suco.
3. Misturar com açúcar a gosto e uma pitada de sal, levan-
do ao fogo por cerca de 30 minutos, ou até engrossar.
4. Esperar esfriar e tomar morninho ou gelado. Fica com
consistência de gelatina.

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Guisado de Pato*
Nazaré de Souza Ribeiro

Ingredientes:
• 1 pato;
• Tempero a gosto: cebolinha, pimenta-do-reino,
pimentinha-de-cheiro, colorau, alho, sal;
• Óleo;
• Água.

Modo de preparo:
1. Limpar o pato, tirando as penas e vísceras, lavando bem
com limão. Picar em pedaços e lavar mais uma vez,
com limão.
2. Colocar na panela e refogar no óleo com os temperos.
Acrescentar água (cerca de ½ litro), deixando no fogo
até que a carne do pato amoleça e o caldo fique grosso.
3. Fica gostoso com farinha ou com macarronada e suco
de cupuaçu.

84
Feijão frito
Pati Silveira

Ingredientes:
• ½ kg de feijão (comprado ou plantado, branquinho ou ca-
rioquinha);
• Charque, charqueado, camarão, mortadela, calabresa, ou-
tra carne de preferência;
• Tempero a gosto: 1 cebola, 2 dentes de alho, ½ colher de
sopa de coloral, cominho, sal.
• Óleo de cozinha.

Modo de preparo:
1. Colocar o feijão para amolecer em água (normalmente
de um dia para o outro).
2. Colocar o feijão no fogo em panela com água e com
o charque (ou carne de preferência). Em outra panela,
refogar os temperos picados no óleo.
3. Quando o feijão já estiver mais mole, transferir sem
água para a panela do refogado, para fritar por cerca
de 15 minutos.
4. Comer com farinha.

85
Assado com açaí*
Elane (também conhecida por Maria Jeruza)

Ingredientes:
• Escolher uma carne para fazer assada (em sua
infância, Elane se lembra que o assado favorito de
seu pai era com carne de tatu, que costumava ser
salgada para durar mais tempo);
• Açaí grosso;
• Farinha d’água.

Modo de preparo:
1. Deixar a carne já salgada por um tempo na água, lavan-
do para tirar o excesso de sal. Cortar em fatias e colo-
car para assar na brasa. Comer com açaí bem grosso e
farinha d’água.

* Elane dedica a lembrança dessa receita a seu pai, Seu Francis-


co Cavalcante, homem bom e que se foi desse mundo muito cedo,
quando ela ainda tinha seus 15 anos. Infelizmente, talvez o uso
de inseticidas/venenos contra formigas na roça ou carapanãs, sem
orientações ou equipamentos de segurança, pode ter sido a razão da
morte precoce. Elane é professora na escola localizada na comuni-
dade de Cacoal.

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Pé-de-moleca
Elinalva e Paloma

Ingredientes:
• 3 kg de farinha d’água;
• 250 g de margarina;
• 1 pacote de leite em pó.

Modo de preparo:
1. Após garantir o preparo da farinha d’água, desde o
plantio na roça, colocar os 3 kg em água para “tufar”
(absorver a água).
2. Nessa massa, acrescentar os demais ingredientes e mis-
turar até ficar homogêneo.
3. Colocar cada porção da massa achatada envolta em pa-
lha/folha de bananeira e levar ao forno para assar.

88
Cabidela de Jabuti*
Ene (Josiene)

Ingredientes:
• Jabuti;
• Farinha d’água;
• Tempero a gosto: cebola, colorau, alho, ceboli-
nha, tempero-seco (pimenta-do-reino), sal e óleo.

Modo de preparo:
1. Coar/peneirar a farinha d’água para ficar com a parte
mais fina e colocar de molho em água para “tufar”/hi-
dratar.
2. Picar o jabuti e retirar as vísceras, separando apenas o
fígado, e jogar água fervendo para tirar a pele e escaldar,
deixando na água fervente por 2 minutos. Passar a car-
ne no limão e no sal e refogar, acrescentando os outros
temperos.
3. Picar o fígado que foi separado e também fervido, e com
as mãos ir misturando na massa de farinha, acrescentan-
do novamente temperos a gosto. Amassar e misturar até
a massa ficar homogênea e amarronzada. Acrescentar à
panela com o refogado de jabuti e misturar com um
pouco de água, se for necessário, mas deixando ainda
bem grosso.
4. A cabidela pode ser servida com açaí.

* Ene fez questão de dizer que essa é uma receita de sua que-
rida mãe, Dona Maria Raimunda de Melo, que faleceu muito
mais cedo do que ela gostaria. Uma memória de afeto e de
saudade da infância.

89
Beiju/Tapioquinha
Rosa e Dona Lindalva

Ingredientes:
• Farinha de tapioca caseira*;
• Margarina.

Modo de preparo:
1. Passar a farinha de tapioca no crivo para que fique bem
fininha e acrescentar uma pitada de sal.
2. Levar ao fogo em panela rasa e rechear como quiser,
inclusive passando margarina. Comer acompanhando
de café preto.

* Rosa e Dona Lindalva plantam, colhem, descascam e preparam


a farinha, assim como acontece com todas as receitas envolvendo
farinha d’água ou de tapioca.

90
Jiju assado
Rosinete

Ingredientes:
• Jiju;
• Temperos a gosto: cebolinha, alfavaca, chicória,
pimentinha-de-cheiro e tempero seco moído (com
cominho, pimenta do reino e sal, ou preparado de
condimento seco misto).

Modo de preparo:
1. Limpar cada jiju com limão, tirando os órgãos internos
pela boca (não abrir o peixe) e retirando as escamas.
2. Encher o peixe com os temperos a gosto, também pela
boca.
3. Untar recipiente com óleo para não grudar e colocar os
peixes no forno para assar.
4. Servir com farinha (arroz opcional).

91
Assado de panela
Luciene e Taynara

Ingredientes:
• Carne de boi cortada em pedaços grandes;
• Temperos a gosto: cebolinha, cominho, chicória, alfavaca.

Modo de preparo:
1. Refogar a carne e os temperos em óleo e sal, por cerca
de 30 minutos até cozinhar bem. Para chegar ao ponto,
sem queimar, deve-se ir acrescentando água aos pou-
cos.
2. Comer com farinha e suco de caju do pé.

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Mingau de milho-
branco
Dona Benedita (Dona Bené)

Ingredientes:
• ½ kg de milho-branco;
• Leite de coco;
• Água (ou leite em pó);
• Açúcar;
• ½ colher de farinha de trigo.

Modo de preparo:
1. Deixar o milho-branco de molho em água até que fique
tufado (cheio de água), geralmente de um dia para o
outro.
2. Colocar todos os ingredientes em uma panela e mexer
até engrossar (em torno de 15 minutos).
3. Pode-se tomar quente ou frio.

94
Epílogo

Sou casada e mãe de dois filhos maravilhosos. Atualmente moro numa cidadezi-
nha por nome Portel, mas vim de uma comunidade chamada Ilha de Terra. Sou mulher
ribeirinha com muito orgulho, porque, pra mim, ser ribeirinha é sinônimo de força e
superação: apesar de todas as dificuldades estamos sempre ali, lutando, com esperan-
ça de dias melhores.
Para mim, participar da pesquisa da Mariana é uma honra, poder contribuir nem
que seja um pouquinho para a formação de alguém é muito importante, sem contar
que falar de nossa alimentação, cultura, conquistas e dificuldades é, de alguma forma,
eternizar em um livro nossas memórias e garantir que as próximas gerações conheçam
um pouco de seus antepassados.
Falar de minha memória alimentar é muito bom. Me faz lembrar de minha infân-
cia, quando eu saía com meu pai para pescar ou colocar armadilha para pegar algum
animal para o jantar. Lembro que nossa alimentação era toda retirada da natureza:
carne de caça, peixe, farinha e frutas. Aliás, frutas como pupunha, melancia, cupuaçu,
abacate, pequiá, uxi, mari e muitas outras que coletávamos ou eram cultivadas, faziam
parte de nosso café-da-manhã ou substituíam alguma outra refeição quando faltava
alimento. Com o tempo e com programas sociais a que muitas famílias tiveram aces-
so, pudemos incrementar nossa alimentação, mesmo nas comunidades, com itens da
conhecida cesta básica e alimentos mais industrializados.
Mulheres ribeirinhas, assim como as mulheres de todo o Brasil, ou do mundo,
lembrem-se: somos fortes, guerreiras, inteligentes, lindas e maravilhosas, cada uma
com seu conhecimento e experiências, de acordo com sua região.
Esperamos que gostem desse livro e de nos conhecer. Existimos e resistimos nos
interiores do país.

Por Juciane Serrin

95
O laboratório
de pesquisa

O Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva da Univer-


sidade de São Paulo (LAAAE-USP) foi fundado em 2018, pelos professores Dr. Rui
Sérgio Sereni Murrieta, do Instituto de Biociências, e Dr. André Strauss, do Museu
de Arqueologia e Etnologia, em um esforço interdisciplinar de unir pesquisadores de
diferentes áreas para estudar a humanidade com ênfase em seus aspectos ambientais
e históricos.
As linhas de pesquisa do LAAAE-USP se concentram em torno de três eixos temá-
ticos: Ecologia Histórica, Bioarqueologia e Evolução Humana e o laboratório também
hospeda, sob a coordenação do Dr. Rodrigo Elias Oliveira, um centro de curadoria de
remanescentes esqueletais humanos de origem arqueológica.
Além das atividades realizadas em laboratório, os pesquisadores do LAAAE-
-USP coordenam diversos trabalhos de campo, incluindo escavações arqueológicas e
pesquisas em comunidades tradicionais, em diferentes regiões do Brasil e da América
Latina. Este livro é um dos resultados de devolutiva para as comunidades participan-
tes da pesquisa de doutorado de nossa aluna, Me. Mariana Inglez.
Somado ao ensino e pesquisa, dentro da Universidade de São Paulo, o LAA-
AE também desenvolve uma série de atividades de extensão, incluindo a montagem
de exposições, palestras junto às comunidades locais e estratégias inovadoras de di-
vulgação e ensino em redes sociais.
Deixamos o convite para que acompanhem nosso trabalho em nosso site (https://
sites.usp.br/laaae/), e nossos perfis no Instagram (https://www.instagram.com/laa-
ae_usp/), Facebook (https://www.facebook.com/laaaeusp) e Twitter (@LaaaeUsp) e
esperamos que apreciem esse livro.
Coordenação LAAAE_USP
Rui Sérgio Sereni Murrieta, André Strauss e Rodrigo Elias Oliveira

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ORGANIZADORA Mariana Inglez é formada em Ciências
Biológicas (Licenciatura e Bacharelado)
pela Universidade Presbiteriana Macke-
nzie (2010) e mestra em Ciências (Bio-
logia/Genética) pelo IB-USP (2015).
Atuou desde a graduação nas áreas de
bioarqueologia e bioantropologia, re-
alizando as etapas de escavação, cura
e análise de esqueletos humanos. Em
seu mestrado aprofundou-se no estudo
da influência de processos microevolu-
tivos na morfologia craniana humana.
Trabalhou como professora de Ciências
e Biologia na rede pública de ensino do
Estado de São Paulo (2011-12); como
bioarqueóloga em consultoria na região
do Médio Xingu (2013-14); e como an-
tropóloga forense, via PNUD e Comis-

são Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Presidência da República


(CMDP-PR), no caso da Vala Clandestina de Perus, em que contribuiu com o proces-
so de busca e tentativa de identificação de desaparecidos políticos na ditadura civil-
-militar brasileira (2014-18).
Atualmente, como doutoranda no LAAAE-USP, estuda o processo de transição
nutricional em comunidades ribeirinhas da Amazônia, a partir de uma abordagem
bioantropológica, sob orientação do Prof. Dr. Rui S. S. Murrieta. Realizou etapa san-
duíche no Departamento de Antropologia da The Ohio State University (Columbus,
OH, EUA), sob orientação da Profa. Dra. Bárbara Piperata (Bolsista CAPES-Print/
USP – 2020).
Por fim, é cofundadora e coordenadora do projeto “Evolução para Todes”, de di-
vulgação científica, que tem como objetivo aproximar um público mais amplo de
temas em arqueologia, evolução humana, antropologia e das pesquisas do LAAAE-
-USP, considerando também as pautas de inclusão racial e gênero, entendidas como
fundamentais para tornarmos a academia mais diversa. Também é bolsista CNPq e
Grantee do Instituto Serrapilheira.

Foto: Verônica Inagaki Marques

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