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Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação.

José Manuel Paquete de Oliveira


Gustavo Leitão Cardoso
José Jorge Barreiros

(Organizadores)

1
Traduções de:
Catarina Lorga [Socióloga, investigadora na área da Sociologia da Comunicação no
ISCTE].
Alexandra Lemos [Socióloga, investigadora no Observatório da Comunicação]

Revisão Científica: Gustavo Leitão Cardoso e José Jorge Barreiros

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ÍNDICE

Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação.


José Manuel Paquete de Oliveira, Gustavo Cardoso e José Jorge Barreiros

Capítulo I : desafios globais


O século dos media: a evolução da comunicação de massa no século XX
Peppino Ortoleva (Itália)

Desafios globais e respostas nacionais na Era da Informação


Frank Webster (Reino Unido)

A Internet na construção de uma cidadania participada


José Manuel Paquete de Oliveira, José Jorge Barreiros e Gustavo Cardoso (Portugal)

Capítulo II: as diferentes faces da Internet


A world wide web da vigilância: a Internet e os fluxos de poder “offworld”
David Lyon (Canadá)

Apoio Comunitário virtual? A política social e a emergência da ajuda social mediada


por computador
Brian D. Loader (Reino Unido)

A Internet e os seus Jornalismos: Teoria, Pesquisa e Estratégia da Produção de


Notícias Online
Mark Deuze (Holanda)

Capítulo III: complementariedade tecnológica e apropriação social

A indústria discográfica e o desafio da rede


Giuseppe Richeri (Itália)

A utilização do telemóvel em Itália nos anos 90: Modelos interpretativos


Fausto Colombo (Itália)

A Internet e a Sociedade em Rede

3
Manuel Castells (Espanha)

Capítulo IV: a ética da informação

Porquê estudar os media?: 11 de Setembro e a ética da distancia.


Roger Silverstone (Reino Unido)

Desafios Morais na Sociedade de Informação


Cees J. Hamelink (Holanda)

4
SOBRE OS AUTORES

José Manuel Paquete de Oliveira, licenciado em Sociologia pela Faculdade de


ciências sociais da Universidade Gregoriana – P.U.G., de Roma, Doutorado em
Sociologia da Cultura e da Comunicação pelo Instituto Superior de Ciências do
Trabalho e da Empresa - ISCTE da Universidade Técnica de Lisboa. Actualmente
Vice-Presidente do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – ISCTE,
onde exerce também funções de docência e coordenação científica no Mestrado em
Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação. Avaliador de projectos de
investigação junto da European Science Foundation /Standing Commmitee for the
Social Sciences (desde 1996). Coordenador científico de projectos nacionais e
internacionais: Ciberfaces A Sociedade da Informação em análise. Internet, Interfaces
do social, Lisboa, ISCTE/FCT-MCT (2000); MSSTUDY I and MSSTUDY II- “Study on
Assessing the Situation of the Markets for Electronic Information Services in the
European Economic Area” - European Commission DGXIII (1996/1997 e 1998/1999);
Membro da equipa internacional por parte de Portugal, do Projecto "News Media and
European Unity" - Press Analysis, Info Europa (1992-1993).

Gustavo Cardoso é docente no Departamento de Ciências e Tecnologias de


Informação do ISCTE em Lisboa, Portugal. É membro do editorial board da revista
académica ICS - Information, Communication & Society - e do conselho técnico
científico da revista Trajectos do ISCTE e da revista Observatório do Obercom -
Observatório da Comunicação. Tem vários artigos publicados em revistas académicas
e publicou na Editora Celta "Para Uma Sociologia do Ciberespaço", e na editora
Quimera " O que é Internet " em 2003. É director do Centro de Tecnologias
Audiovisuais do ISCTE (CAV_ISCTE) onde coordena a participação portuguesa nos
projectos europeus, COST A14 (Government and Democracy in the Information Age) e
COST A20 (The Impact of the Internet in the Mass Media in Europe)

José Jorge Barreiros, licenciado em sociologia. Docente do Departamento de


Sociologia do ISCTE, com actividade de leccionação e orientação de dissertações na
licenciatura em Sociologia e no Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da
Informação. Investigador na área, da Sociologia da Comunicação e dos Media, com
participação em várias pesquisas com destaque para: Ciberfaces A Sociedade da
Informação em Análise. Internet, Interfaces do Social, Lisboa, ISCTE/FCT-MCT, 2000

5
e Study on Assessing the Present Situation of the Markets of Electronic Information
Services in the European Economic Area, Lisboa, ISCTE/JNICT/Comissão Europeia
(DGXIII), 1996.

Peppino Ortoleva. Docente universitario, publicou mais de uma centena de trabalhos


científicos (livros, artigos, publicações em obras colectivas) sobre media, história,
sociedade; em particular, têm-se ocupado, com o uso dos media na investigação
histórica e na transmissão do conhecimento sobre o passado, e as consequências
sociais e culturais da inovação no campo dos media. Entre 1992 e 1997 ensinou
Comunicação de massa na Università di Torino; posteriormente ensinou Novos media
na Università di Siena, onde é docente de Comunicação de massa. É também membro
do Conselho de admministração da Scuola nazionale di cinema.

Frank Webster é actualmente docente na City University de Londres. Até essa data foi
Director do Departamento de Cultural Studies e Sociologia da University of
Birmingham. Têm ensinado ao longo dos anos em variadas universidades inglesas e
nos Estados Unidos e desde 1997 que é Professor visitante no Departamento de
Jornalismo e Comunicação de Massa na Universidade de Tampere University na
Finlândia.
Desde há muito que têm interesse no ensino sobre sociedades contemporâneas,
mudança social, assim como sobre o papel da informação e comunicação na
sociedade. O seu interesse na investigação tem sido centrado nas tendências da
comunicação e informação, e têm incluído analíse conceptual e crítica às mesmas, os
efeitos das tecnologias nas bibliotecas, mudança urbana e novos media. Desenvolve
actualemnte investigação osbre a democratização e novos media. Os seus livros
encontram-se traduzidos para diversas línguas.

David Lyon é investigador na Universidade de Queens, Canadá. Os seus interesses


de pesquisa e ensino centram-se em torno das grandes transformações sociais no
mundo moderno. Questões sobre a sociedade de informação, globalização, vigilância,
secularização e pós-modernidade são uma presença constante no seu trabalho. O
trabalho actual de David Lyon preocupa-se com o surgimento das denominadas
sociedades de informação na Europa, América do Norte e Asia-Pacífico. Aspectos
particulares merecedores da sua atenção são as origens sociais e consequências do
processamento de dados pessoais – isto é a vigilância – incluindo o digital, o vídeo,

6
biométrica, e dados genéticos. David Lyon dirige o projecto internacional
Surveillancecuja base se encontra na Universidade de Queen’s. É autor de numerosos
livros, encontrando-se a escrever actualmente uma obra sobre a Sociologia do
Ciberespaço.

Brian D. Loader docente de Informatíca e Comunidade e Director do CIRA (Community


Informatics Research and Applications Unit) na Univerisdade de Teeside no Reino
Unido. Os seus interesses académicos estão focados em torno da emergência das
novas tecnologias de informação e comunicação, como a Internet, e os factores
sociais, políticos e económicos que moldam o seu desenvolvimento e e difusão e as
suas implicações para a mudança social economiaca, governamental e cultural. É o
editor da revista Information, Communication and Society. Os seus livros incluem The
Governance of Cyberspace: Politics, Technology and Global Restructuring, (London:
Routledge 1997), The Cyberspace Divide: Equality, Agency and Policy in the
Information Society (London: Routledge 1998); Digital Democracy: Discourse and
Decision-Making in the Information Age (com Barry Hague) (London: Routledge 1999);
Cybercrime: Law Enforcement, Security & Surveillance in the Information Age (with
Doug Thomas) (London: Routledge 2000); É também membro do COST A14 em ICTs,
social movements & citizens.

Mark Deuze é professor e investigador associado na Amsterdam School of


Communication Research (ASCoR). Durante os últimos anos tem desenvolvido
intensa actividade de investigação em diversas universidades como sejam a Utrecht
School for Journalism (1998-2000); o departamento de Film & Television da University
of Amsterdam (2000); a Fontys graduate School for Journalism em Tilburg, Holanda
(2000 e 2001); Windesheim School for Journalism em Zwolle, Holanda (2000 e 2002);
Erasmus University Rotterdam’s post-doctoral Journalism program (2001); ISCTE
University em Lisbon Portugal (2001).

Giuseppe Richeri é professor de Estratégia dos Media na Faculdade de Ciências da


Comunicação da Universidade Suíça-Italiana de Lugano. É autor de alguns livros e
numerosos ensaios publicados em Itália e noutros países, sendo a sua mais recente obra
'La fabbrica delle idee' (Baskerville, Bologna 2000). Desenvolve actividades de investigação
e consultoria para diversas instituições públicas e empresas privadas à escala
internacional. Na sua actividade académica tem ensinado em diversas universidades
de França e Espanha (onde foi titular da catedra da UNESCO para a comunicação). Foi

7
membro da comissão do Ministero delle Comunicazioni italiano para a concessão televisiva
nacional e local (1999/2001) e é membro da Commissione ministeriale para a TV Digital
Terrestre.

Fausto Colombo é Professor e investigador da Universidade Católica de Milão. De


entre a sua actividade de investigação destacam-se: o Istituto Gemelli-Musatti para os
problemas da comunicação (Milano); RAI, Servizio Verifica Qualitativa Programmi
Trasmessi; Fundação G. Agnelli; Fundação Collodi; Istituto Regionale di Ricerca (Irer)
da Lombardia; Ministero dell'Università e della Ricerca Scientifica; União Europeia
(representante italiano na acção COST A20).
Em 1995 idealizou e criou o Osservatorio sulla Comunicazione, centro de investigação
sobre os media do qual é director. É também membro do comité editorial da revista
"Comunicazioni Sociali. Rivista di Media, Spettacolo e Studi Culturali" e da "Problemi
dell'Informazione" e participa regularmente em colaborações com a Biennale di
Venezia e com a Triennale di Milano.

Manuel Castells é Professor de sociologia e Professor de planeamento urbano e


regional na Universidade da Califórnia, Berkeley, onde colabora desde 1979. De 1994
a 98 foi director do UC Berkeley's Center for Western European Studies. Entre 1967
and 1979 ensinou sociologia na Universidade de Paris, primeiro no campus de
Nanterre, e depois, a partir de 1970, na Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales. Foi igualmente professor e director do Instituto para a Sociologia das Novas
Tecnologias, na Universidad Autonoma de Madrid, e professor visitante em 15
universidades na Europe, nos Estados Unidos, Canadá, Asia, e América Latina. De
entre as suas obras destacam-se a trilogia “A Era da Informação” e a sua última obra
“A Galáxia Internet” (ambas publicadas pela Fundação Gulbenkian em Portugal).

Roger Silverstone é desde 1998 professor de Media and Communications na Londos


School of Economics e director do Media@lse. Antes de ocupar o cargo na LSE, foi
professor de Media Studies e director do programa de investigação em Cultura e
Comunicação na University of Sussex. A sua area de investigação abrange desde o
estudo da narrativa até aos utilizadores dos novos media e a relação entre media,
tecnologia e mudança social. De entre as suas obras destaca-se “Why Study the
Media?” (Sage 2000).

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Cees J. Hamelink é professor de comunicação internacional na Universidade de
Amesterdão e também professor de media, religião e cultura na Universidade Livre de
Amesterdão. É professor visitante na Universidade Católica de Leuven e na City
University de Londres. É também editor chefe da Gazette (o jornal internacional em
estudos de comunicação), presidente honorário da International Association for Media
and Communication Research e membro da direcção da International Communication
Association. Publicou mais de 200 artigos e 16 livros sobre comunicação, cultura e
direitos humanos.

9
INTRODUÇÃO

O presente livro é o fruto de cinco anos de pesquisa realizada no ISCTE e de debates


com vários investigadores europeus e norte-americanos realizados no quadro do
mestrado de Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação do Departamento de
sociologia do ISCTE.
Trata-se de um trabalho iniciado em 1999 e constantemente actualizado por via das
diversas investigações realizadas sobre a Internet e as novas tecnologias de
informação na sociedade portuguesa e no mundo.
Com o objectivo de enquadrar o leitor desta obra valerá a pena sintetizar algumas das
conclusões dos estudos realizados no ISCTE numa perspectiva mais vasta – a das
sociedades de informação- e também justificar a organização escolhida para
apresentar as contribuições dos diversos autores.
O projecto que lançou esta equipa na reflexão sobre o utilizar das tecnologias de
informação denominava-se Ciberfaces: A Sociedade de Informação em Análise -
Internet, Interfaces do Social inserido no âmbito dos projectos de investigação
científica e tecnológica, financiados pelo Programa PRAXIS XXI da Fundação para a
Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência e da Tecnologia (FCT/MCT). O projecto
desenvolvido teve por objectivo realizar um estudo sobre a Internet no domínio
pt.
O resultado da análise desses dados e dos debates que procurámos promover ao
longo dos últimos anos encontra-se aqui apresentada. No entanto, este livro não é o
lugar para a publicação extensa de quadros e dados, pelo que optámos por convidar o
leitor a visitar o endereço http://ciberfaces.iscte.pt e por si próprio analisar os dados aí
registados tendo por enquadramento à sua reflexão os textos presentes nas próximas
páginas.
Temos igualmente consciência que este livro é, nas suas partes constitutivas, algo
diferenciado.
Dada a vastidão das matérias em análise, houve necessidade de dividi-lo em quatro
partes de algum modo autónomas. Preferenciámos o respeito pelo estilo peculiar de
cada um dos autores e pela gramática discursiva própria a cada registo dos diferentes
ângulos de abordagem disciplinar de um livro que tendo uma forte perspectiva
sociológica, não pode deixar de ser, pela natureza do objecto em análise,
interdisciplinar.
Este livro visa assim contribuir para a constituição de uma base de conhecimento,
científico e socialmente útil, que proporcione, em geral, a compreensão dos factores,
processos e dinâmicas de mudança social e o apoio à decisão informada por parte dos

10
agentes sociais com responsabilidades nos diversos domínios da vida colectiva na
sociedade portuguesa.

Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação

No contexto de um rápido desenvolvimento e crescimento das Tecnologias de


Informação e Comunicação e de uma globalização dos mercados, a consolidação da
Sociedade da Informação aparece como factor estratégico para a constituição de
novos modelos económicos e sociais.
Assim, actualmente, a Informação assume uma importância central enquanto vector
estruturante de um conjunto plural de domínios socioculturais, económicos e políticos.
Portugal, que na última década tem vindo a assistir à constituição e organização de
agentes,
instituições e infra-estruturas ao nível da Sociedade da Informação, necessita de
constituir uma base de informação que permita avançar no conhecimento do sector.
A Internet como infra-estrutura mundial de informação e comunicação, assume um
papel cada vez mais preponderante na redefinição das representações existentes
acerca da Sociedade da Informação. Configura-se, portanto, como objecto de estudo
prioritário no âmbito da investigação científica.
O conhecimento sociológico desde há muito que evidenciou o lugar central da
informação/comunicação, enquanto vectores estruturantes de um conjunto plural de
domínios sócio-culturais, económicos e políticos. É inegável a centralidade de que se
revestem as temáticas relacionadas com a informação e a comunicação nas
sociedades contemporâneas.
As infra-estruturas e o negócio da informação assumem cada vez mais importância no
contexto da economia capitalista globalizada, sendo o volume e o fluxo de informação
superior aos precedentes e desempenhando um papel estratégico a vários níveis da
vida social. Multiplicam-se, nos mais diversos domínios científicos, as reflexões
teóricas e os questionamentos sobre a emergência, e prováveis consequências, das
redes globais de informação de que a Internet é a primeira expressão generalizada.
Actualmente, os países da União Europeia apontam o sector da informação e
telecomunicações como um sector estratégico que urge estudar, compreender e
caracterizar, tal como se encontra expresso no Livro Branco para o “Emprego,
Desenvolvimento e Competitividade”, no estudo elaborado pela Comissão Europeia
que teve expressão no “Relatório Bangmann para a Sociedade da Informação” e ainda
na concretização do Livro Verde “Para a Sociedade da Informação em Portugal” e nos

11
dois projectos “e-europe” que têm acompanhado as políticas nacionais e europeias
dos últimos anos.
Num sector caracterizado por transformações aceleradas, onde os aspectos de
natureza global se cruzam com as especificidades de cada país, urge desenvolver
uma reflexão e orientações próprias. Neste contexto, também Portugal – que na última
década tem assistido à constituição e organização de agentes, instituições e infra-
estruturas ao nível da Sociedade da Informação – necessita de definir e implementar
políticas nestes sector estratégico da economia mundial.
Espera-se, com este livro, sistematizar uma análise integrada de diferentes facetas do
espaço mediático e comunicacional presente na Internet, produzindo um contributo e
uma reflexão sobre os impactos e consequências da Internet nos processos de
inovação e mudança social que desencadeia. O estudo do fenómeno Internet deve
como tal permitir trazer à discussão as questões sociais, económicas, políticas e
culturais que caracterizam a nossa actualidade. A emergência deste novo meio de
comunicação e informação deve ser pensada como mais uma faceta da nova
realidade, permitindo iluminar o questionamento em torno das grandes linhas
estruturais que se mantêm da modernidade e as mudanças que as reconfiguram. A
sua problematização, enquanto objecto de estudo insere-se no âmbito mais vasto da
discussão em torno da constituição e da consolidação da Sociedade de Informação.

Internet, Interfaces do Social


Quando há alguns anos iniciámos este projecto movia-nos uma particular
determinação: contribuir para o estudo da «Sociedade da Informação» a partir do
nosso lugar e do nosso espaço nessa sociedade. Ou seja: numa perspectiva
sociológica e de observação específica à realidade nacional.
A grande maioria dos estudos e investigações realizados sobre a «Sociedade da
Informação» inscrevem-se em especial nas vertentes tecnológica e económica. Por
outro lado, os discursos produzidos sobre a Internet, como grande axioma e supremo
paradigma dessa dita sociedade, referem normalmente parâmetros internacionais da
dimensão global do fenómeno.
Daí o nosso propósito de partida era o de tentar colher elementos informativos que
ajudassem a perceber que posição estava a ocupar Portugal na «Sociedade da
Informação» e colocar essa informação ao dispor de quem, afinal, tem poder e
competência para decidir o nosso futuro.
A denominação «Sociedade da Informação» está muito generalizada, mas está longe
de ter um entendimento comum. No sentido que lhe deu a Missão para a Sociedade

12
da Informação, no seu Livro Verde1, refere-se «a um modo de desenvolvimento social
e económico, em que a aquisição, armazenamento, processamento, valorização,
transmissão, distribuição e disseminação de informação conducente à criação de
conhecimento e à satisfação das necessidades dos cidadãos e das empresas,
desempenham um papel central na actividade económica, na criação de riqueza, na
definição da qualidade de vida dos cidadãos e das suas práticas culturais».
A «Sociedade da Informação» cuja expressão é atribuída a sociólogos norte-
americanos, entre os quais se destaca Daniel Bell, na sua análise ao pós-
industrialismo2, vem na concepção de que,
com as novas tecnologias da informação e comunicação, a informação passa a ser a
fonte
principal da produção de valor e consagra a primazia das actividades informacionais
em relação às actividades do sector secundário e terciário. A «indústria pesada» é
assim substituída pela informação e o valor-trabalho pelo valor-saber. Informação e
conhecimento sobrepõem-se à força-do-trabalho e ao próprio capital. Informação e
comunicação tornam-se componentes fixas de todas as formas de produção3.
A «Sociedade da Informação» baseia o seu funcionamento e o seu desenvolvimento
em três
vectores principais: as tecnologias de informação, o complexo conglomerado do
audiovisual e as telecomunicações. Todavia, em toda a configuração, realista ou
imaginária, da «Sociedade da Informação» e o mundo globalizado e em globalização
que ela preconcebe e preconiza, efectivamente, é a Internet, a sua estrutura
emblemática4. A Internet é o paradigma duma sociedade em rede e o instrumento
potenciador da sua concretização.
1
Por isso decidimos avançar para um projecto que nos ajudasse a percepcionar essa
plataforma estrutural da «Sociedade da Informação», no particular segmento da
sociedade portuguesa, em especial, no que diz respeito aos actores sociais da
comunidade nacional, nas utilizações que vão fazendo desse espaço e nos conteúdos
com que o substancializam.

1
1 Missão para a Sociedade de Informação, (1997), Livro Verde para a Sociedade de Informação em Portugal, Lisboa, MSI, pp.7.
2 BELL, Daniel, (1976), The Coming of Post-Industrial Society, New York, Basic.
3 PORAT, Marc, (1977) The Information Economy, Washington, United States Department of Commerce, citado in MIÉGE,
Bernard, (2000), O
Pensamento Comunicacional, Petrópolis, Vozes, pp. 113.
4 MIÉGE, Bernard, (2000), O Pensamento Comunicacional, Petrópolis, Vozes, pp. 112.
CIBERFACES - A Sociedade de Informação em Análise: Internet, Interfaces do Social
Apresentação

13
O grande primeiro obstáculo às nossas pretensões é de teor metodológico e
epistemológico. O nosso objecto de investigação contém uma contradição de raiz na
sua concepção: Como
delimitar um domínio (um território embora virtual) que se inscreve num espaço cuja
característica essencial é ser universal? Porém, nesta antinomia residia a originalidade
possível do projecto. Tentar abstrair do todo para ajudar a delimitar o espaço
português, de como se vai formando o nosso território nesse espaço global
«desterritorializado».
A configuração em rede por suporte electrónico é apresentada como uma reinvenção
da
sociedade. Numa sociedade em rede electrónica não é a relação a um território, a um
país, que define a condição e qualidade de cidadania. Mas para aceder e usufruir
dessa sociedade em rede são indispensáveis infra-estruturas físicas, técnicas,
tecnológicas, disponibilidade financeira por parte dos diferentes países. Por outro lado,
por parte dos indivíduos para além dessas précondições, porventura garantidas por
programas nacionais, são exigíveis algumas competências, predisposição psicológica,
cultural, social para o acesso a essa «cidade virtual» e para a utilização,
manuseamento, rendibilidade dessas ferramentas, aproveitamento e produtividade da
«matéria -prima» que é a informação como via para o desenvolvimento.
As diferentes abordagens teóricas, a reflectir por vezes outros tantos posicionamentos
politicoideológicos, face à « Sociedade da Informação» são tendentes a acentuar,
cumulativa ou separadamente, estes cinco vectores de análise : o tecnológico, o
económico, o ocupacional, o espacial e o cultural.5
Ao acentuarem a importância do vector tecnológico a maior parte dos autores que o
fazem, privilegiam de alguma maneira a tecnologia, a invenção tecnológica, como
responsável de todas as transformações nas mais diversas actividades humanas, ao
nível local, nacional e internacional. Imprimem assim à mudança social, no âmbito das
nações ou do mundo, um valor determinístico ao vector tecnológico.6
A esta visão da tecnologia como factor determinístico, outros estudos neste domínio
contrapõem o carácter de condicionamento, e não determinístico, que a tecnologia
coloca ao desenvolvimento económico, cultural e social. A análise dos vectores
económico e ocupacional salienta sobretudo as alterações que a «informação», como
«nova mercadoria» veio introduzir em todo o sistema produtivo, alterando as formas
das organizações, a dinâmica do emprego, os ritmos da produtividade, a criação de
novos bens e serviços, estabelecendo profundas modificações na criação, acumulação
e distribuição de riqueza.

14
Efectivamente, um vector fundamental de análise à lógica de implementação e
realização de uma «sociedade de informação», de um «mundo globalizado», é esta
nova organização nacional da dimensão espacio-temporal do mundo. A libertação do
espaço e do tempo, operada pelas novas infra-estruturas da informação e
comunicação, ao tornarem «o mundo um lugar único» na expressão de R. Robertson,
é um pré-requisito para a globalização.7
Esta vertente é igualmente importante enquanto eixo fundamental nas alterações das
relações sociais e que merecem na obra de autores como Giddens análise específica.
Enquanto para Giddens8 a globalização é consequência directa da modernização,
para Robertson é a globalização que viabiliza a modernidade da sociedade.2
O vector cultural amplia-se entre uma análise que considera os factores causais e as
consequências neste eixo de uma «sociedade em rede» ou «aldeia global», com a
abordagem específica da confluência dos velhos e novos media na criação de uma
sociedade global. A globalização é um processo multifactorial e multicausal que tem
de ser analisado nos seus mais variados aspectos, e em particular na sua dimensão
económica, política e cultural. E se, por um lado, como defende Wallerstein9, a
economia mundial é cada vez mais a extensão do sistema mundial capitalista,
dominada pelas grandes empresas transnacionais que se impõem ao próprio poder
político, a industrialização da cultura, intrinsecamente associada aos velhos e novos
media, é factor axial no processo da globalização e, por isso, merece atenção
especial.
O alongamento espacio-temporal é um pré-requisito para a globalização. Ou , por
outras
palavras, a compressão do espaço e do tempo é seguramente um dos efeitos mais
conseguidos pelas tecnologias da informação. E se para este efeito contribuíram já de
modo bastante incisivo os media tradicionais, a imprensa, a rádio, a televisão, é
indubitável que esse novo media que é a Internet contribui decisivamente para fazer
«do mundo um só local». A globalização da cultura e da informação é uma
componente fundamental que está por detrás de todas as outras dimensões
institucionais da globalização10 .
E se para a formação do processo de globalização, convertido hoje em modelo da
modernidade, é interessante verificar na análise dos mais diferentes autores (Mc

5 WEBSTER, Frank (1995), Theories of the Information Society, London and New York, Routledge.
6 ROSENAU , J., (1990), The Study of Global Interdependence, New York, Nichols, citado in WATERS, Malcolm, (1999),
Globalização,
Oeiras, Celta, pp.28.
7 ROBERTSON, R., (1992), Globalization, London, Sage, pp.8.
8 GIDDENS, Anthony, (1990), As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta, pp. 64.
2

15
Luhan, Giddens, Harvey, Roseneau, Robertson, e outros), o contributo que para isso
tiveram, o aparecimento do relógio mecânico, a invenção do dinheiro e da
electricidade, esse prolongamento do sistema nervoso central, e os rápidos meios de
transporte11, é imprescindível estudar e investigar o influxo que a Internet veio trazer
para a implosão de uma sociedade global, embora em tempos diferidos de várias
globalizações. A Internet é, provavelmente, «o mais eficaz meio para realizar a
compressão espaço- tempo »12.
Tal como outros autores também defendemos que a globalização sempre foi uma
meta
preconizada através dos tempos e das civilizações, com momentos mais fortes e mais
fracos.
Contudo, só na contemporaneidade, recebeu uma enorme aceleração.
Evidentemente que não é agora o lugar de considerarmos toda a complexidade deste
processo, nem tão pouco questionarmos a dimensão ideológica que o próprio conceito
de globalização comporta. Seja qual for a perspectiva de análise parece-nos que fica
patente a oportunidade de investigar a Internet, como media e ferramenta decisiva
para a compressão do espaço e do tempo, como infra-estrutura base que delimita a
distância e condiciona a forma como as relações
sociais decorrem. Voltamos talvez a Lévi- Strauss para quem estudar as civilizações é
sempre estudar o seu sistema de trocas. Por isso, com propriedade, o já referido
Malcolm Watters avança com este teorema: «as trocas materiais localizam, as trocas
políticas internacionalizam e as trocas simbólicas globalizam».
Com efeito, perante a Internet não estamos apenas diante de uma ilimitada tecnologia
de acesso e fornecimento de informação. Estamos diante de uma tecnologia social
onde milhares ou milhões de diversos actores e sujeitos sociais interagem, criando,
portanto, dimensões novas de relação social e projectando até porventura novas
formas de organização social. A análise desta dupla dimensão da Internet, como
tecnologia de informação e como tecnologia social, enquanto de algum modo
ordenadora de novos modos e formas de vivencialidade e convivialidade3, é complexa.
Nem poderemos pretender abarcá-la neste programa de investigação. Ainda nem
completámos a análise dos efeitos sociais ocasionados pelos media da primeira

3
9 WALLERSTEIN, I., "Culture as the Ideological Battleground of the modern World-System" citado FEATHERSTONE, Mike,
(org.) Global
Culture, (1990), London, Sage, pp. 31-56.
10 GIDDENS, Anthony, (1990), op. cit., pp.77.
11 McLUHAN, Marshall (1964), Understanding Media - The Extensions of Man, London, Routledge, pp. 358.
12 WATERS, Malcolm, (1999), op. cit., pp. 143.
13 POSTER, Mark (1995), The Second Media Age, Cambridge, Polity Press, pp. 31.
14 ROBERTSON, R., (1992), op. cit., pp. 22- 41.

16
geração, por nós aqui identificados como media tradicionais, e já estamos
confrontados com as mudanças operadas pelos media da segunda geração13.
Como tecnologia social, talvez mais expressamente dito, como tecnologia de
transformação
social, a Internet é ainda uma realidade pouco conhecida. Nesta nossa investigação
nem vamos avançar por aí. Limitamo-nos a ficar à porta ou talvez até no patamar da
porta desse mundo ciberespacial de que a Internet é um uma parte, mas não o todo
desse «admirável mundo novo».
Queremos contribuir para perceber num perfil sociológico quem são geralmente os
habitantes desse novo espaço, quem são os utilizadores desse novo media e que tipo
de utilização dele fazem.
Estamos perante um campo de conhecimento a que a sociologia não pode ficar alheia.
Por outro lado, como acentua Robertson, sendo a globalização um fenómeno à escala
mundial, não dispensa, antes «envolve a relativização de pontos de referência
nacionais e individuais perante os de natureza geral ou supranacional». Isto exige uma
análise com a interligação entre estes quatro elementos: indivíduo, sociedade
nacional, sistema internacional e humanidade14.
Achamos por isso pertinente discutir aqui as condições de acesso dos cidadãos que
do território e da sociedade portuguesa entra nesse novo mundo que é a Internet e o
que procura fazer ele nesse novo espaço.4

Da comunicação global à ètica da informação

Este livro inicia-se com um capítulo dedicado aos desafios globais que a comunicação
coloca hoje às nossas sociedades. Peppino Ortoleva no seu texto procura analisar o
percurso da comunicação no século XX como a comunicação de massa se tornou num
elemento central das nossas sociedades e vidas. O desenvolvimento técnico e
organizativo dos instrumentos destinados à comunicação, isto é, à produção e troca de
mensagens, é uma característica que atravessa todo o século XX, sendo, de alguma
maneira, um dos aspectos que mais peculiar tornam este século no quadro global da
história da humanidade. Ortoleva, procura assim lembrar que não podemos olhar as
novas tecnologias de informação enquanto elementos separados do seu contexto de
criação. Ou seja, a Internet e as novas gerações de telemóveis são fruto de um
sistema dos media formado no século XX ao mesmo tempo que a sua difusão e
apropriar pelos utilizadores está a criar um novo sistema dos media. Da compreensão

17
entre essas relações passado/presente depende, na opionião de Ortoleva, muito do
que serão as futuras sociedades da informação.
Frank Webster no seu contributo “Desafios globais e respostas nacionais na Era da
Informação”, questiona-se sobre o que está a acontecer no mundo hoje,
particularmente no que diz respeito às sociedades mais avançadas e abundantes da
Europa, da América do Norte e do Extremo Oriente? Quais são as principais linhas de
desenvolvimento e que opções e constrangimentos representam estas tendências?
Discutindo o quanto a informação é efectivamente central no que está a acontecer e
como apesar de ser necessário olhar as perspectivas globais, a dimensão nacional ser
aquela, que no seu entender, é a fundamental para perspectivar os modelos sociais
que hoje começam a germinar.
O primeiro capítulo termina com um texto dos organizadores deste livro intitulado “A

Internet na construção de uma cidadania participada” procurando deste modo realçar

que as novas tecnologias não podem apenas ser encaradas apenas enquanto

propiciadoras de ganhos ou mudanças no quadro económico. No seu entender é

fundamental olhar a sua apropriação social e cívica, enquanto factor necessário para a

consolidação dos próprios modelos democráticos e da responsabilidade social e

geracional.

O segundo capítulo tenta apresentar algumas das diferentes faces da Internet e do


modo como o surgimento desta tecnologia, sua difusão e apropriação social pode
mudar as nossas vidas. Este capítulo inicia-se com a análise de David Lyon sobre “ a
world wide web da vigilância e a Internet e os fluxos de poder”.Segundo Lyon a
vigilância, enquanto compilação electrónica automática de dados pessoais,
desenvolveu-se rapidamente na Internet e é provável que este processo se
intensifique com a comercialização das comunicações mediadas por computador.
Depois de enquadrar este fenómeno no contexto dos sistemas de vigilância já
existentes, Lyon analisa alguns aspectos da vigilância no ciberespaço,
nomeadamente, a monitorização da utilização, o policiamento e segurança e o
marketing, este último o mais generalizado e o menos perceptível para os sujeitos.
«Cookies» e «spiders» estão entre as mais recentes inovações tecnológicas
mencionadas, a considerar na relação aos seus objectivos sociais.
Brian Loader por seu turno, introduz na análise dos usos da Internet a dimensão de
“apoio Comunitário virtual” e política social e a emergência da ajuda social mediada
por computador, discutindo as principais implicações da emergência e do aumento da

18
utilização da Internet na análise da política social em Inglaterra. Loader procura assim
esboçar um programa de pesquisa no domínio da política social, relacionado com esse
aspecto particular do uso da Internet - a entreajuda e o apoio social online – que
designa por apoio comunitário virtual.
Mark Deuze finaliza este capítulo com a análise da apropriação da Internet no campo
jornalístico. A Internet e particularmente o seu interface gráfico, a World Wide Web, é
adoptada em todo o Mundo, com níveis de utilização cada vez mais elevados.
Especificamente sobre o jornalismo praticado on-line – tanto na produção de notícias
assistida por computador como num tipo específico de jornalismo, o jornalismo on-line
- podemos agora identificar e teorizar os impactos que o sistema global de
computadores em rede está a ter na prática jornalística. Este texto destaca quatro
tipos específicos de jornalismo on-line, discutindo as características chave –
hipertextualidade, interactividade, multimedialidade – que determinam o “valor
acrescentado” destes tipos de jornalismo, e fornecem três estratégias específicas a
que os jornalistas podem recorrer para desenvolver o potencial do jornalismo on-line:
registo anotado de informação, jornalismo open source e hiper-adaptividade.
O terceiro capítulo versa sobre complementaridade tecnológica e apropriação social.
Embora a Internet surja como elemento central na apropriação social das novas
tecnologias há igualmente velhas tecnologias que através da digitalização têm vindo
desempenhar novos papéis. Neste capítulo discute-se a apropriação social das
tecnologias e o seu possível papel transformador.
O capítulo inicia-se com um texto de Giuseppe Richeri sobre a indústria discográfica e
o desafio da rede procede a uma análise da indústria discográfica evidencia os
factores que podem estar na origem do encontro entre um sector maduro da indústria
de conteúdos e os vários serviços em rede, em particular, os associados à Internet.
Fausto Colombo, por seu turno, procura através do exemplo italiano discutir modelos
interpretativos para a utilização do telemóvel em Itália nos anos 90.Colombo aborda o
tema da difusão do telemóvel em Itália como fenómeno não apenas tecnológico ou
económico mas, de forma mais abrangente, social e cultural.A discussão articula-se
em três secções: na primeira, através de uma incursão histórica, é descrito o
desenvolvimento do telemóvel em Itália; na segunda, de forma muito sintética, é
apresentada a sua difusão actual e as tendências do seu crescimento; na terceira, são
descritos alguns modelos interpretativos do fenómeno, relaciona-os com alguns
posicionamentos teóricos de relevo relativos ao desenvolvimento e à difusão das
tecnologias.

19
O capítulo III encerra com um texto de Manuel Castells sobre o papel da Internet na
criação do que ele designa como “Sociedade em Rede”. Castells Analisa a sociedade
em rede como uma sociedade cuja estrutura social está construída em torno de redes
de informação a partir da tecnologia da informação microelectrónica. Mas olhando a
Internet é para Castells não apenas um meio de comunicação ela é também o
equivalente ao que foi a fábrica ou a grande empresa na Era industrial. A Internet é o
centro de um novo paradigma sociotécnico que, na realidade, constitui a base material
das nossas vidas e das nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação.
O último capítulo procura discutir a ética da informação tomando como exemplo um
acontecimento – o 11 de Setembro – e a sua cobertura pelos media e análise dos
pressupostos fundadores do conceito de sociedade de informação. Em “Porquê
estudar os media?: 11 de Setembro e a ética da distancia.” Roger Silverstone
interroga-se e discute qual o real papel dos media – especialmente os media
electrónicos – nas nossas sociedades e a nossa dependência deles, quer seja por
prazer e por informação, para conforto e segurança, ou num sentido de continuidades
da experiência, e de vez em quando também para intensificar a experiência.
O livro encerra com a contribuição de Cees J. Hamelink onde o autor questiona se
podemos descrever adequadamente as sociedades com apenas uma variável
abrangente e caso isso seja possível, poderá ser posto em causa se a informação é
uma categoria mais precisa que o dinheiro, o crime ou a agressão. Hamelink considera
que há indubitavelmente “desenvolvimentos informativos” nas sociedades modernas e
através da interacção com outros desenvolvimentos sociais estes terão um impacto na
forma como o futuro dessas sociedades se moldará de formas diferentes dependendo
das diferentes circunstancias históricas. Mas Hamelink recorda que areferência a
“sociedade” inspira boas e velhas questões sociológicas de poder, lucro e
participação: quem beneficia, quem decide, quem participa e quem é responsável?
Hamelink convida-nos assim a discutir quais os desafios morais das sociedades que
hoje vivemos e estamos a construir.

José Manuel Paquete de Oliveira, Gustavo Cardoso e José Jorge Barreiros

20
O século dos media

A evolução da comunicação de massa no século XX


___________________________________________
Peppino Ortoleva

1. Um século de media

O desenvolvimento técnico e organizativo dos instrumentos destinados à


comunicação, isto é, à produção e troca de mensagens, é uma característica que
atravessa todo o século XX, sendo, de alguma maneira, um dos aspectos que mais
peculiar tornam este século no quadro global da história da humanidade.

1.1. Uma nova ideia

De facto, ainda no final do século XIX, com excepção de poucos autores


relativamente isolados como o sociólogo norte-americano Charles H. Cooley (Czitrom,
1982, Mattelart, 1994), a própria idéia de comunicação enquanto entidade autónoma e
independente do conceito mais amplo de transporte, bem como a ideia de media
enquanto algo distinto de outros instrumentos úteis à troca ou à deslocação, não fazia
sequer parte do debate de idéias. De facto, o processo impressionante que levou, no
espaço de poucos anos (os últimos dez anos do século passado), ao nascimento dos
novos meios de comunicação que viriam a ter impacte sobre a cultura e sobre a vida
de gerações inteiras - como o cinema e a rádio, a banda desenhada e o gramofone, a
ligação telefónica e a linotype - não é visto por ninguém, na época, como um
fenómeno de algum modo unitário ou passível de ser reunido num único conceito.
Desde então, o desenvolvimento destes e de outros instrumentos de comunicação foi,
se não linear (como veremos mais à frente), pelo menos de certo modo ininterrupto,
sendo que a própria idéia de comunicação não só se impôs na sua especificidade e
autonomia, como se afirmou como uma idéia central da vida social, até se tornar, no
final do século XX, no próprio horizonte do desenvolvimento.
Um recenseamento das novidades que se manifestaram no campo da
comunicação no decorrer do século seria desnecessário e talvez vão. Bastará recordar
que, no decurso de todo o século XX, os modos de gravar, transmitir e receber o som
e a voz (que tinha sido impossível captar e enviar à distância até ao final de 1876-78,
anos da invenção do telefone e do fonógrafo, respectivamente) multiplicaram-se por
via química, magnética ou electrónica, dando vida ao gramofone e à rádio, à cassete e

21
ao CD, ao telemóvel e ao sampling digital; as maneiras de gravar, transmitir e receber
imagens em movimento (também estas impossíveis de captar até 1893-95, anos da
invenção do cinescópio por Edison e do cinematógrafo de Lumiére), multiplicaram-se
também por via química, electromecânica, electrónica, magnética ou óptica,
começando por dar vida ao cinema mudo e a preto e branco, o qual se tornou depois
sonoro e a cores, à televisão mecânica e à televisão electrónica por via hertziana, à
gravação magnética em vídeo, primeiro profissional e depois de massa, à TV por cabo
e, por fim, à fixação das imagens e à sua transferência através de suportes ópticos
(Laservision, depois o CD - Rom e, hoje em dia, o DVD); os canais de transporte da
informação também se diversificaram e multiplicaram, desde o cabo telefónico da
primeira rede de Bell às ondas hertzianas, do satélite à fibra óptica. E muitas outras
evoluções semelhantes poderiam ainda ser recordadas: das tecnologias de escrita e
de circulação de textos às de produção e distribuição de imagens fixas.
É certo que hoje a humanidade não somente dispõe de uma variedade de
comunicações sem precedentes históricos, como também de uma possibilidade de
escolha inédita entre meios aparentemente equivalentes (Pool, 1995) fruto de um
desenvolvimento ao qual as sociedades mais industrializadas, sobretudo desde a
explosão comunicacional no final do século XX, parecem ter-se habituado.

1.2. Uma dinâmica excepcional

Acaba-se, deste modo, por esquecer como uma tal dinâmica de evolução é, na
sua duração e intensidade, excepcional. Constitui uma excepção relativamente a
outros períodos da história da humanidade, durante os quais a tecnologia de
conservação e de transmissão de conhecimentos não conheceu um desenvolvimento
similar, sendo, pelo contrário, um dos recursos mais estáveis, objecto de uma
prudente e conservadora gestão (bastará pensar na história milenar da escrita no
império chinês, Cardona, 1986). Excepção, por outro lado, no que respeita à dinâmica
evolutiva que se pode encontrar, paralelamente, noutros sectores da vida social e do
desenvolvimento tecnológico.
Tentemos confrontar, por exemplo, a evolução das tecnologias da
comunicação no decurso do século XX, com a evolução das técnicas destinadas a
uma actividade humana que lhe é próxima, o transporte, técnicas essas que, como
recordámos, sempre tenderam a ser consideradas indistintamente das primeiras
(Finardi, Tombola, 1994). Entre o segundo quartel do século XIX e a Segunda Guerra
Mundial, o desenvolvimento dos meios de transporte foi tão rápido quanto o dos meios
de comunicação: ao boom dos caminhos de ferro, nos oitocentistas anos 40,

22
correspondeu o do telégrafo e a reorganização dos sistemas postais; no final do
século XIX, a multiplicação dos novos instrumentos de comunicação que já
recordamos, teve a sua correspondência em duas novas e revolucionárias invenções,
o automóvel e o aeroplano; nos já anos 30 deste século, enquanto no campo das
comunicações surgia uma série de novos media – como o cinema sonoro e a televisão
-, no dos transportes notava-se também uma efervescência de inovações com o
aparecimento da aviação civil e a electrificação dos comboios, ou a emergência do
motor aéreo de reacção e do helicóptero. Uma dinâmica que em tudo corresponde à
imaginação dos nossos avós quando, no final do século XIX, imaginavam um novo
século marcado pelas comunicações à distância e por transportes supervelozes. No
entanto, depois da Segunda Guerra Mundial, o paralelismo entre as duas dinâmicas
evolutivas deu lugar a uma clara diferença. Enquanto, como sabemos, a evolução dos
media continuou intensa e conheceu, depois de 1975, um novo salto qualitativo, a dos
transportes parece ter sofrido um verdadeiro entrave.
Fora do âmbito estritamente militar, o quadro dos meios de transporte
efectivamente utilizados não se modificou substancialmente depois de 1950, a não ser
com a introdução progressiva dos motores de reacção na aeronáutica e, nos últimos
anos, da alta velocidade nos comboios. A aplicação civil das invenções per si
revolucionárias nascidas no âmbito militar (tais como a aviação supersónica, o
hovercraft, o helicóptero ou o submarino nuclear) permaneceu estagnada, apesar das
tentativas frequentemente dispendiosas e falhadas, o que uma vez mais demonstra
que o motor da inovação tecnológica não é a tecnologia em si. Nem a procura, ainda
que fortíssima, de meios de transporte rápidos e eficazes, nem as expectativas sociais
difusas que, durante largas décadas, imaginaram uma modernidade aeronáutica mais
televisiva e espacial do que informática, foram suficientes para imprimir ao
desenvolvimento no campo dos transportes um ritmo comparável ao que sucedeu no
âmbito dos media.
Ao historiador e estudioso da sociedade, a observação de uma semelhante
dinâmica evolutiva deveria colocar mais do que uma interrogação.

1.3.Duas interrogações

Neste breve ensaio, abordaremos mais substancialmente duas interrogações:

a) Que tipos de procura social e de processos levaram a que os


processos e as técnicas de comunicação fossem privilegiados, ao convocar-
se para estes, largos recursos em detrimento de outros sectores económicos

23
e tecnológicos, por forma a sustentar a intensidade de desenvolvimento de
que demos conta no início?
b) Como se configurou este desenvolvimento no tempo? Podemos
descrevê-lo como um único processo linear de crescimento ou devemos
identificar uma dinâmica mais complexa?

2. Motivos de crescimento

Antes de mais, tentemos destacar os motivos pelos quais o desenvolvimento


dos media atravessou de modo tão acelerado todo o século XX.

2.1. A comunicação e o sistema

Uma das teses mais sugestivas sobre as origens e o desenvolvimento da


chamada sociedade de informação foi enunciada por um investigador norte-
americano, James R. Beniger (Beniger, 1996). Sintetizando o seu trabalho, profundo e
complexo, podemos dizer que, segundo Beniger, a partir da segunda metade do
século XIX a necessidade de instrumentos de comunicação potentes e fiáveis
aumentou em função directa da complexidade crescente das actividades produtivas e
das interdependências sociais. À medida que a sociedade moderna se configura em
sistema e confia em organizações de tipo sistémico, impõe-se a necessidade de
instrumentos que liguem entre si, em tempo real ou o mais rápido possível, os
diferentes pontos do próprio sistema. Por outro lado, à medida que crescem as
possibilidades de inter-relação, os sistemas alargam-se e instalam-se em todos os
aspectos da vida social.
Assim, o desenvolvimento dos sistemas de redes de transporte, em primeiro
lugar os comboios, teve como pressuposto, e não só nos Estados Unidos, o
desenvolvimento do telégrafo e dos sistemas horários unificados nacionais e depois
globais, o que também os estimulou para a preservação da eficiência e da segurança
da própria rede. Em seguida, o desenvolvimento da publicidade foi tornado necessário
e possível através do desenvolvimento de um outro sistema, o da grande distribuição.
Paralelamente, o desenvolvimento dos grandes aparelhos produtivos e burocráticos (e
militares) determinou a confiança em aparelhos técnicos de crescente difusão e
fiabilidade, desde a afirmação da dactilografia até aos cartões perfurados e, por fim, à
informatização. Em resumo, as técnicas de comunicação, segundo Beniger (que
retoma as antigas teses cibernéticas, a começar por Norbert Wiener), são

24
instrumentos defensivos e de adaptação da sociedade que, em conexão com esta, se
vão tornando cada vez mais semelhantes a organismos vivos.
Não é necessário seguir em todos os aspectos as teses de Beniger para nos
darmos conta que estas contêm, pelo menos, dois importantes elementos de verdade.
Por um lado, sublinham a natureza prolongada do processo de desenvolvimento de
que falámos, identificando as suas raízes oitocentistas. Por outro, evidenciam a
relação existente entre o desenvolvimento da comunicação e o crescimento das redes.
Se a primeira revolução industrial havia colocado as máquinas no centro da
actividade produtiva, em substituição dos utensílios próprios à tradição artesanal, a
partir da segunda revolução industrial, isto é, desde os últimos anos do século XX,
tanto o aparelho produtivo como a vida social dos países industrializados e,
posteriormente, o planeta no seu conjunto, caracterizaram-se precisamente pela
presença de redes ou, como alguns estudiosos preferem dizer, de “grandes sistemas
técnicos” (Hughes – Mayntz, 1988, Grãs, 1998), desde a electricidade ao telefone, até
à rede de transporte aéreo, também imaterial.
O desenvolvimento destes sistemas contém entre os seus pressupostos
essenciais, a aplicação de tecnologias da comunicação eficientes e fiáveis: se, como
já tinha notado Beniger, o comboio teria podido existir sem o telégrafo, já uma rede
ferroviária segura não podia; o crescimento dos transportes aéreos, por sua vez (como
muito bem demonstrou Alain Gras), dependeu bastante mais da evolução dos
sistemas de comunicação através da rádio, do que da própria evolução dos motores
aéreos. Por outras palavras, o desenvolvimento dos meios de comunicação, que no
século XIX poderia ser considerado relativamente marginal no que diz respeito à
dinâmica das tecnologias hard de produção, durante o século XX instalou-se no centro
do desenvolvimento técnico, para se tornar, em finais do século, no seu protagonista
absoluto.
De tal modo que hoje, os grandes sistemas técnicos em rápida ascensão não
são redes simplesmente suportadas e servidas por aparelhos de comunicação (como
a rede eléctrica ou de transporte aéreo) são, pelo contrário, redes que encontram na
comunicação a sua finalidade primária, desde o telefone à Internet.

2.2. A comunicação de mercado

O crescimento e a diversificação dos media no decurso do século XX


respondem igualmente a outras dinâmicas profundas que atravessaram este século.
Em primeiro lugar, a imposição do mercado sobre outras instituições como forma
organizativa dominante de toda a vida moderna. Entre todas as instituições

25
económicas (Williamson, 1987), o mercado é o que mais depende da disponibilidade e
da circulação contínua das informações.
Assim facilmente se encontra um laço directo e bidireccional entre os
desenvolvimentos da economia capitalista, no decurso do século XX, e as fases da
história dos media (um tema ao qual regressaremos posteriormente). Se à segunda
revolução industrial e ao nascimento da Big Industry correspondeu, em simultâneo, no
fim do século XIX, o salto em frente das tecnologias da comunicação que se
vislumbrou no início de oitocentos, nos anos imediatamente a seguir à crise de 1929,
deu-se um novo desenvolvimento nos modelos dominantes de comunicação, o qual se
fez acompanhar de uma nova geração de media, paralelo ao impulso para um
mercado de consumo alargado e massificado. São os anos do broadcasting
radiofónico e da experimentação da televisão, do relato de futebol, do cinema sonoro e
a cores, que depois (nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial) seriam
testemunhas impulsionadoras do neocapitalismo até à crise dos primeiros anos 70.
Posteriormente, como uma coincidência não casual, os anos da crise petrolífera viram
a emergência inicialmente tímida e depois mais decisiva, de um sistema de
comunicação diferente, fundado sobre a informática e sobre a nova centralidade das
redes de telecomunicações, as quais, mais do que simples portadoras de voz, se
tornaram num veículo versátil e universal; esta nova fase das tecnologias de
comunicação, na qual o mundo capitalista estava ainda imerso no final do século,
acompanhou e sustentou uma ulterior transformação dos mercados capitalistas,
centrada na globalização e na desregulamentação.
No caso desta brevíssima síntese ser verdadeira, poder-se-á dizer que a
dinâmica cíclica do capitalismo e do desenvolvimento das comunicações, encadeadas
desde a primeira revolução industrial, tornaram-se mais tarde interdependentes, no
decurso do século XX. Neste sentido, toda a história económica do século pode ser
lida sob o signo da economia da informação, sendo os acontecimentos desta sua
actual fase representativos tanto da sua coroação quanto da sua evidência.

2.3. A comunicação e a guerra

Seria bastante redutor atribuir o desenvolvimento da comunicação durante o


século XX apenas à dinâmica da evolução técnica e aos ciclos económicos. Existe
ainda um elo, e de relevo notável, entre a história dos conflitos que assinalaram uma
boa parte dos acontecimentos do século e a história dos media (De Landa, 1991).
Teve início com a Grande Guerra, na alvorada do que foi definido como “século
breve” (Hobsbawm, 1995). O conflito, a primeira guerra europeia com características

26
globais, devido à nova relevância reconhecida intrinsecamente pelas duas facções, fez
dos grandes aparelhos de propaganda um instrumento essencial de mobilização. Tal
comportou não apenas um investimento maciço que terá produzido efeitos
prolongados tanto no cinema como na imprensa e nos géneros “menores”, como os
cartazes, mas também uma experimentação tecnológica intensa: bastará recordar
que, se antes da primeira grande guerra a telefonia ou radiofonia se encontrava pouco
além da fase laboratorial, os últimos anos do conflito e nos anos imediatamente
posteriores (depois do intenso desenvolvimento da radiofonia como instrumento de
comunicação entre as tropas e os peritos de navegação) terão dado vida a um novo
meio de comunicação de massa, a rádio tal como a conhecemos.
Da mesma forma, o final dos anos trinta e a Segunda Guerra Mundial
assinalaram um novo desenvolvimento das tecnologias aplicadas à propaganda em
todos os principais países beligerantes e, em conjunto, prepararam o boom de um
sector, o sector da electrónica, que antes da guerra quase não existia e que
seguidamente estaria na base da maior sucess story do desenvolvimento dos media, a
afirmação da TV.
Em resumo, na primeira metade do século, pode defender-se que a
comunicação tenha sido a continuação (ou preparação) da guerra em conjunto com
outros meios, o que explica os grandes investimentos dos aparelhos militares no
sector. Na segunda metade do século, o quadro mudou. No inicio, nos anos 50 e 60,
os modernos media apresentaram-se, pelo menos nos países dominados pela
estabilidade do terror, como armas alternativas, surgindo como verdadeiros substitutos
de um conflito militar tornado impossível, o que comportou a necessidade do
desenvolvimento de técnicas de propaganda e desinformação por parte de ambos os
“blocos”; não esquecer que foi exactamente nestes anos que o temor perante uma
possível desarticulação dos aparelhos de comunicação por parte do inimigo, empurrou
o governo norte-americano para o financiamento do que parecia ser uma rede
puramente defensiva, a Internet.
Depois dos anos setenta, e em consequência das lições aprendidas pelos
Estados Unidos na Guerra do Vietname, os instrumentos de comunicação deixaram de
ser armas alternativas para se tornarem um verdadeiro teatro de guerra, o próprio
terreno do conflito. A Guerra do Golfo, no início dos anos 90, veio demonstrá-lo. Tal
comportou investimentos posteriores, em particular nas tecnologias de espionagem e
nas comunicações por satélite: investimentos que, presentemente, no final do século,
estão a dar frutos também fora do campo estritamente militar.
O que se destaca nestes acontecimentos é que, no campo dos media (ao
contrário de outros sectores, como o dos transportes, do qual já falámos), a circulação

27
entre utilizações civis e utilizações militares permaneceu, no Ocidente,
substancialmente fluida e contínua durante todo o século. Pode dizer-se que se tratou
do sector no qual mais coerente e sistematicamente as forças armadas alimentaram a
vida económica e social no seu conjunto; esta foi uma das mais relevantes diferenças
entre os países do ocidente e os a leste da “cortina de ferro”, onde a apropriação civil
das conquistas tecnológicas conseguidas pelos militares no campo das comunicações
foi muito mais circunscrita e tardia.

2.4. Da energia à informação

Até aqui foram descritos, por um lado, alguns processos explicativos do


desenvolvimento em grande medida ininterrupto das tecnologias da comunicação no
decorrer do século e, por outro, o seu carácter apesar de tudo não linear. Neste
momento, é justo recordar pelo menos uma forte descontinuidade que assinala o
século a partir dos anos 70: o facto de a informação parecer ter substituído a energia
enquanto fluido que transporta a vida económica do Ocidente (e depois do planeta,
quase integralmente sujeito às regras de mercado), bem como a disponibilidade de
técnicas eficientes e económicas de circulação da comunicação parecer ter substituído
a energia do mercado enquanto motor do capitalismo. É esta substituição ou,
poderemos talvez dizer (recorrendo a um termo retirado da história da ciência), esta
“mudança de paradigma”, que deu ao conceito de economia da informação um novo
alcance.
De facto, quando se fala de economia de informação no final do século XX,
entende-se não apenas uma economia na qual a livre circulação de notícias é
precondição do mercado (uma definição do género poderia aplicar-se, como se viu, a
todo o capitalismo do século XX e talvez do período anterior), mas uma economia na
qual o sector que produz e faz circular as comunicações assume também uma função
de motor em relação à indústria hard que tradicionalmente dominava o mercado. Pode
dizer-se que existe uma verdadeira circularidade entre a afirmação da economia da
informação e a aceleração do desenvolvimento dos media. De facto, a economia da
informação, assente na credibilidade e relativa economia do bem informação, não teria
sido possível sem um claro avanço das técnicas de comunicação; por outro lado, uma
vez que o seu desenvolvimento coincide, como se viu, com a crescente
autonomização e prosperidade da comunicação enquanto sector económico, esta
comporta um crescimento dos investimentos neste tipo de instrumentos e, portanto, a
proliferação de novidades. Podemos assim compreender como foi produzido o que
aconteceu no final dos anos 90: um desenvolvimento das tecnologias de comunicação

28
e dos sectores económicos que lhes são afins, durante muitos anos bastante mais
impelido pela oferta do que pela procura.
Depois de um século de media, assistimos posteriormente à aceleração do
desenvolvimento e da multiplicação dos próprios média; aceleração que, no entanto,
evidencia algo que no decurso do século havia permanecido relativamente pouco
visível, ou seja, o carácter, em muitos aspectos paradoxal, da economia da
informação. Esta é dominada por um bem, a comunicação, a qual, devido à sua
natureza, tenderá a ser encarado como um recurso público, mais do que como um
verdadeiro bem, escasso por natureza; assim, para poder existir, necessita de
instrumentos de controlo político e jurídico (em primeiro lugar os direitos de
propriedade intelectual) o que, noutros aspectos, parece colidir com a exigência de
plena liberdade de circulação da informação.
Deste modo, podemos facilmente dar-nos conta que, em ambos os aspectos, o
crescimento impetuoso da economia da informação e a sua contradição interna estão
entre os mais importantes e difíceis legados do século XX para o novo século.

3. A comunicação de massa

Até ao momento, falou-se dos media e das tecnologias da comunicação em


termos gerais. No entanto, na realidade, a dinâmica sobre a qual nos interrogamos
não tocou da mesma maneira todos os tipos de comunicação existentes, tornando-se
necessário introduzir algumas distinções conceptuais e históricas básicas.

3.1. Três modelos de comunicação

No âmbito global das actividades de comunicação da humanidade são


geralmente identificados três modelos principais. Trata-se de uma conceptualização
relativamente intuitiva que, no entanto, se presta a interpretações fortemente
conotadas com um sentido ideológico.
O primeiro modelo de comunicação, provavelmente o mais antigo, é a
comunicação dita “interpessoal”, que comporta uma troca bidireccional de mensagens
entre duas pessoas ou entre várias pessoas dentro de um grupo. Um segundo
modelo, também este antiquíssimo, é o da comunicação “de um para muitos”, na qual
um único individuo dirige uma única mensagem a um grupo delimitado de pessoas: é a
típica situação do discurso público (que pode decorrer num espaço fechado, no qual
as dimensões do público são limitadas pelo espaço, ou num espaço ao ar livre, onde
são limitadas pela potência da voz) ou, também, do ensino. A comunicação “de um

29
para muitos” não é bidireccional, como acontece com a comunicação interpessoal, ou
melhor, não é simétrica, uma vez que impõe diferenças precisas de papéis (como
acontece no ensino) ou exige, pelo menos, a instituição de turnos de palavra rigorosos
(um tema central da história da democracia). Um terceiro modelo, mais recente, é o da
chamada comunicação de massa, no qual, graças à utilização de tecnologias
específicas, uma única mensagem atinge uma “massa” de pessoas, ou seja, um
público não delimitado a priori e que se supõe ser de grandes dimensões.
Até aqui detivemo-nos num registo estritamente descritivo e, até onde é
possível, neutro. Acrescente-se, por outro lado, que a cada um dos termos
mencionados também podem estar associadas conotações de valor, por quanto a
bidireccionalidade dos meios interpessoais pode ser interpretada como um sinal de
“abertura” presumidamente maior, de “interactividade” ou mesmo de “liberalismo”
(Horkheimer, Adorno, 1966), enquanto a unidirecionalidade dos meios de massa pode
ser definida como “passiva”, “nivelante” no plano cultural, ou até, quando se trata do
plano político, “totalitária”. É um tema ao qual regressaremos, mas somente depois de
ter clarificado melhor as implicações técnico-organizativas dos vários modelos de
comunicação.

3.2. Modelos de comunicação e dinâmicas tecnológicas

A comunicação de massa, como se disse, não é literalmente possível sem a


utilização de instrumentos técnicos próprios.
A voz humana tem limitações tais que (não obstante a tradição retórica ter
estimulado os oradores a potenciarem os seus aparelhos vocais) o público alcançado
por apenas uma pessoa através de meios naturais permaneceu sempre limitado a, no
máximo, poucas centenas de indivíduos; a escrita manual, mesmo quando bem
organizada como acontecia nos sistemas “editoriais” da idade clássica (Cavallo,
Chartier, 1995) e depois nos stationarii do período baixo da idade medieval (Illich,
1994), também dificilmente pode produzir cópias suficientes para alimentar um público
“de massa”, no sentido acima definido. O primeiro mass media, em todos os sentidos,
acaba por ser a primeira máquina de produção em série (McLuhan, 1967), a imprensa
de Gutenberg (Eisenstein, 1989).
No decurso do século XX, ou melhor, a partir da última década do século
anterior, a lógica que Gutenberg havia aplicado aos textos e que tinha dado vida ao
livro impresso e ao jornal, foi, por um lado, aperfeiçoada e, por outro, aplicada também
a diferentes formas de comunicação, desde a ilustração (incluindo a banda
desenhada) à fotografia, do cinema (se não fosse possível imprimir as películas, o

30
cinema poderia ser um espectáculo colectivo, mas não um meio de comunicação de
massa em sentido pleno) ao disco: foi exactamente a “capacidade de registo” dos
discos (Flichy, 1982) que assegurou a afirmação do gramofone de Emil Berliner contra
o mais antigo fonógrafo de Thomas A Edison. E, ainda hoje, é a extraordinária
capacidade das economias de escala inerente à imprensa que continua a sustentar a
difusão de massa de media relativamente novos: das videocassetes domésticas ao
Cd-Rom (onde o r.o.m., read only memory, está de facto “pré-gravado”). Por outro
lado, sempre no decurso do século XX, como veremos melhor daqui a pouco, afirmou-
se também um modelo alternativo de comunicação de massa, ainda mais dependente
do desenvolvimento técnico: a difusão circular, em inglês broadcasting, a qual faz
chegar em simultâneo a um número indefinido de utilizadores uma mesma mensagem,
quer em presença (a ampliação eléctrica da voz permite a um orador atingir públicos
de muitos milhares de pessoas, mesmo em espaços abertos) , quer em ausência,
como acontece com a rádio e com a televisão.
Ainda no campo da comunicação interpessoal, o desenvolvimento técnico
introduziu no decorrer do século XX importantes novidades: antes de mais, a
transformação, entre 1878 e o final do século passado, do telefone enquanto
intermediário entre dois pontos, numa verdadeira “rede conectada”, isto é, capaz de, a
partir de um único aparelho chegar a uma pluralidade de possíveis destinatários; isto
sucedeu depois do desenvolvimento de linhas mais céleres e versáteis do que as
telegráficas, tais como o telex (que permaneceu, por outro lado, sempre confinado à
chamada “utilização de negócios”), seguido do desenvolvimento em massa do fax e,
por fim, da transformação do computador pessoal em terminal de comunicação, com a
rede Internet. Qualquer uma destas inovações assinalou um passo em direcção a uma
comunicação interpessoal capaz de integrar voz e texto, imagens e dados, ainda que
um sonho que parecia muito próximo da sua concretização já no final de do século
XIX, o vídeo-telefone de grande difusão, esteja ainda longe de ser uma realidade
(Ortoleva, 1999).
Aos mass media juntaram-se, assim, os denominados media pessoais; muito
menos penetrante foi o desenvolvimento tecnológico na terceira área da comunicação,
a mais nevrálgica, todavia, em muitos aspectos da comunicação “de um para muitos”.
Neste campo, de facto, deram-se inovações relativamente marginais e, sobretudo,
sem capacidade de introduzir modificações profundas em termos de linguagem e de
organização; nem a utilização do microfone, nem do quadro luminoso ou do slide
show, modificaram de maneira relevante a comunicação educativa; a utilização da
amplificação eléctrica no campo musical, pelo contrário, teve seguramente um efeito
relevante, o de transformar os espectáculos originalmente concebidos como

31
destinados a públicos limitados, em formas de entretenimento “de massa” no seu
sentido pleno, análogos em planos diversos (não excluindo o local de
desenvolvimento) aos espectáculos realizados nos estádios.
A diferente dinâmica tecnológica da comunicação “de um para muitos”
relativamente à da comunicação de massa e interpessoal, está na base de vários
fenómenos relevantes e, muitas vezes, pouco compreendidos: do persistente trabalho
intensivo de alguns sectores de ocupação, a começar pela escola, à dificuldade para a
comunicação educativa e, em parte, para a própria comunicação política em adaptar-
se à mudança nos estilos e nas linguagens. Na segunda metade do século, tanto a
comunicação didáctica quanto a comunicação política terminaram, assim, com o
oscilar entre a defesa dos modelos tradicionais pré-tecnológicos, muitas vezes de
difícil acolhimento para os seus públicos de eleição, e a adopção pura e simples dos
modos e dos módulos da comunicação dita de massa; salvo depois, quando com o
desenvolvimento do computador e das telecomunicações se deixou tentar por formas
de interpessoalidade simuladas (“interactividade”).

3.3. Tipos de comunicação de massa: imprensa e difusão circular

Para melhor compreender a dinâmica da comunicação de massa durante o


século XX, será necessário aprofundar uma distinção em que, até ao momento,
apenas tocámos: a distinção entre os media baseados na imprensa e os media
baseados no broadcasting.
Até ao início do século XX, este segundo tipo de media não existia; a única
possibilidade de comunicação de massa, isto é, de chegar a muitas pessoas diferentes
com a mesma mensagem, baseava-se na reprodução através da cópia, o que
implicava dois corolários inevitáveis: um hiato temporal entre o momento da emissão e
o da recepção e um aparelho produtivo do tipo industrial. O broadcasting, por sua vez,
já permite a difusão alargada sem passar pela reprodução, na medida em que a
mensagem não é adquirida através de uma cópia, mas captada a partir dos muitos
terminais que, no momento, estão ligados e em condições de a receber. Os corolários
deste modelo são igualmente relevantes: no plano temporal, é possível pela primeira
vez o directo para as massas, isto é, a possibilidade de criar, para um vasto território,
a experiência simultânea de captar uma mesma mensagem; no plano espacial, temos,
pela primeira vez, media capazes de chegar ao espaço doméstico, sem filtros e
mediações posteriores (Meyrowitz, 1992). A terceira novidade é cultural: o
broadcasting não oferece um texto nem uma simples sucessão de textos, como
acontece não só com o livro mas também com o cinema e os jornais; oferece uma

32
programação, que faz acompanhar sistematicamente com mensagens calibradas o
ritmo da existência. A mensagem radiofónica e televisiva, ao contrário do livro e do
filme, não tem princípio nem fim, está ali e ali continua independentemente do facto de
querermos “sintonizar”. Trata-se de um fluxo (Williams, 1982), uma forma de
organização do discurso que parece uma via intermédia entre a tradição ocidental do
texto e a tradição mais antiga e transcultural da conversação.
Desde o aparecimento da imprensa que não tinha surgido um modelo de
organização da informação tão inovador como a difusão simultânea por via do
broadcast; nem desde então surgiram outros, salvo (hipótese ainda a ser verificada) se
a gestão informatizada das mensagens, o hipertexto, der vida a um tertium entre o
conceito clássico de texto e o conceito de fluxo e de broadcasting característicos do
século XX.
Geralmente, tendemos a pensar que as origens do broadcasting são
indissociáveis da invenção particular de Marconi. Na realidade, a difusão circular
nasceu antes do telégrafo sem fios, com o telefone. A principal experiência de
telegrafia circular tentada no mundo deu-se em Budapeste, em 1893, com o “Telefon
Hirmondo”, o qual chegou a ter mais de 6.000 assinantes do seu serviço diário de
notícias (sobretudo) e de variedades. Em 1910, um serviço semelhante, o Araldo
Telefónico (tradução literal do nome húngaro) foi lançado em Roma e em 1914 já tinha
ultrapassado os 1.300 assinantes. Simultaneidade, programação de fluxo com horários
pré-definidos, capacidade de chegar aos ouvintes nas suas casas: as características
que identificamos como sendo inerentes à difusão circular já estavam todas presentes.
Em concreto, o broadcasting moderno nasce quando a invenção de Marconi, é caso
para o dizer, se cruzou com a ideia, que já pairava no ar, de difusão circular.
Durante um longo período, o princípio da difusão circular permaneceu
relacionado, de forma estreita e biunívoca, com as tecnologias da comunicação via
hertziana ou sem fios; no entanto, a partir dos anos 70, esta correspondência
biunívoca foi decaindo, desenvolvendo-se, por um lado, a difusão circular via cabo
(filodifusão, mais tarde Tv por cabo) e, por outro, o éter assumiu uma nova função,
decisiva na comunicação interpessoal, com o telefone móvel ou “celular”.
No século XX torna-se importante ter presente a coexistência de dois modelos
diferentes de comunicação de massa, pois as suas implicações sociais e organizativas
permanecem, pelo menos em parte, diferentes: a imprensa (sob todas as suas formas)
distribui textos, isto é, mensagens organizadas e estáveis, o broadcasting organiza um
fluxo que decorre paralelamente ao tempo de vida do seu público; a imprensa vive do
mercado de produtos físicos (livros, discos, cassetes) entre os quais a mensagem é
inserida; o broadcasting vive, sobretudo, de publicidade ou de assinantes. Este

33
segundo modelo, ausente no início do século, chegou a dominar o universo dos media
com o triunfo da Tv (dos anos 50 aos anos 80), enquanto no final do século, a
afirmação das novas tecnologias em rede parece prever uma convergência entre os
dois modelos e entre estes e formas de comunicação interpessoal.

3.4. As implicações sociais da comunicação de massa

Já recordámos que nos debates culturais e políticos sobre os diversos tipos de


comunicações que atravessaram o século XX, o conceito de “media de massa”
assumiu, muitas vezes, não só um significado descritivo-analítico, que procurámos
precisar nestas páginas, mas também uma conotação valorativa. Existe uma ampla
corrente de pensamento (que coincide, pelo menos em parte, com os autores
definidos por Eco, 1964, com a feliz expressão de “apocalípticos”) que faz
corresponder a “massa” e, em alguma medida, o produto destes media aos processos
de “massificação” ou de homogeneização cultural e de agregação social descritos por
autores como Ortega e Gasset (Ortega, 1962).
Nesta óptica, a comunicação de massa seria o órgão e o agente de um
processo social que tornaria permanente a pertença do indivíduo a um estado de
euforia, segundo a descrição dos “psicólogos das multidões” do final do século XIX,
como Le Bon e Sighele, mesmo que fosse uma multidão atomizada ou “solitária”
(Riesman, 1956); o carácter unidireccional desta forma de comunicação seria a
expressão de um autoritarismo intrínseco também às sociedades que conservaram
uma forma política democrática, e o aparecimento da televisão constituiria a
concretização de uma tendência que já se tinha imposto, a partir dos anos 20, com o
triunfo da rádio, do cinema e da banda desenhada.
Ainda que, desde o final do século XIX, tenha sido objecto de críticas
convincentes (e bastará pensar na análise de Gabriel Tarde, 1901, sobre os diferentes
comportamentos das multidões e dos públicos), esta leitura das comunicações de
massa influenciou profundamente a reflexão sobre este tema durante todo o século,
ensombrando as interpretações também críticas e, se possível, ainda mais radicais,
embora com diferentes abordagens, como a discussão conduzida por Walter
Lippmann desde 1921 (Lippmann, 1963) sobre o conceito de opinião pública na época
dos mass media. Por outro lado, parece ter encontrado um novo vigor no final do
século, nas muitas obras dos apologistas da chamada “revolução digital”: um dos
lugares comuns mais difundidos no início do novo milénio é, de facto, o que contrapõe
a “passividade” do público dos media tradicionais, em particular a televisão, à

34
presumida actividade dos utilizadores dos novos media, Cd Rom, Internet ou até jogo
de vídeo.
A estas interpretações opuseram-se, em particular nos anos quarenta e
cinquenta, e depois novamente nos anos setenta e oitenta, leituras, que visam um
redimensionamento do alcance efectivo das comunicações de massa e dos seus
chamados “efeitos” (Wolf, 1992), sublinhando, em particular, como a massa dos
utilizadores dos media é atravessada por uma fina rede de relações interpessoais que
medeiam, condicionam e filtram a recepção das mensagens. Ainda diferente é a
posição do canadiano Marshall McLuhan, que já nos anos sessenta individualizava
uma clara descontinuidade entre os meios de comunicação de massa definidos por ele
como “quentes” - imprensa e rádio, caracterizados por uma forte univocidade das
mensagens e por uma recepção concentrada num mesmo sentido ou, no máximo,
sobre o binómio vista/ouvido - e os meios “frios” - a começar pela televisão, que
embora aparente características passificantes, na realidade exige uma considerável
atenção do espectador no sentido de se apropriar da informação fragmentada e
incompleta que lhes é fornecida. Segundo McLuhan, não se pode falar de um único
modelo de sociedade correspondente a todos os mass media, mas de dois modelos
bem distintos: o primeiro, o da imprensa, mais tarde o cinema e, em parte, a rádio,
baseado numa clara divisão de papéis e numa ordem fortemente hierárquica; o
segundo, o que se apresenta com a televisão e que se reforça com ulteriores formas
de comunicação electrónica (informatização e automação), baseado num sistema de
relações horizontais e fortemente interactivas.
Em todas as três interpretações estabelecem-se correspondências precisas
entre os modelos de comunicação e os modelos de sociedade: uma convicção que
parece ter-se tornado numa espécie de senso comum da intelectualidade do século
XX, para além das diferenças ideológicas, e que também se reencontra, mutatis
mutandis, em muitas teorias do chamado pós-modernismo, que vários autores têm
tentado fazer corresponder às inovações introduzidas no sistema dos media depois
dos anos setenta (Vattimo, 1989, Landow, 1999).
O que não é claro em nenhuma dessas interpretações é a natureza do laço que
se estabelece entre media e sociedade, o qual se apresenta quer como uma relação
de causa-efeito (os meios de comunicação de massa “criam” a sociedade de massa),
quer como uma relação de significação (os meios de comunicação de massa
“exprimem”, na sua estrutura como nos seus conteúdos, a natureza profunda da
sociedade, sendo, num certo sentido, o emblema do Zeitgeist), ou ainda, como uma
relação de complementaridade (a rede de relações sociais reelabora os conteúdos dos

35
media e estes, por sua vez, reproduzem o sistema social) sem que, em geral, se sinta
a necessidade de argumentar a fundo ou de explicar como se teria formado tal laço.
Assim, a complexa e multidireccional dinâmica que liga, no desenvolvimento da
comunicação, as tecnologias e as instituições, os hábitos sociais difusos e os esforços
de criatividade individuais, é uniformizada no âmbito de uma relação pouco justificada
de “correspondência”. Na linha de pensamento novecentista sobre os media,
desvenda-se, talvez como uma matriz de debilidade, um déficit de história. Somente a
reconstrução do modo como as diferentes formas de comunicação se têm afirmado no
decurso do tempo (em primeiro lugar tecnicamente, depois em termos empresariais e,
por fim, como hábitos sociais), no qual se têm vindo a entrecruzar entre si e a
alimentar os acontecimentos, permitirá realmente avaliar a penetração social dos
media e o seu potencial de transformação.
Isto leva-nos à segunda interrogação inicial: como é que se configurou no
tempo o desenvolvimento da comunicação de massa? Podemos descrevê-lo como um
processo linear de crescimento ou deveremos distinguir uma dinâmica mais
complexa?

4. A dinâmica dos media

A historiografia da comunicação, que durante muito tempo permaneceu em


falta ou restrita a media individuais (em particular ao cinema, interpretado
essencilamente, ou mesmo de forma exclusiva, como uma forma de arte, sendo o
jornalismo e a radiotelevisão desde há muito objecto de reconstruções na sua maioria
político-institucionais), conheceu, nestes últimos anos, um desenvolvimento em vários
países (Flichy, 1996, Ortoleva, 1995), o que veio colocar no centro os problemas, por
um lado, da dialéctica inovação tecnológica/adopção social e desenvolvimentos
culturais e, por outro, a periodização das comunicações no decorrer do século.
Nas páginas que se seguem oferecemos um quadro esquemático dos
primeiros resultados da investigação nesse campo.

4.1. Um desenvolvimento descontínuo

Contrariamente a uma visão muito difundida que apresenta o crescimento da


comunicação de massa em termos lineares - segundo a qual o século XX teria visto a
afirmação progressiva dos media, cada vez mais potentes e capazes de superar as
distâncias, dirigidos a públicos sempre mais vastos e geridos por empresas cada vez
mais concentradas -, o desenvolvimento efectivo da comunicação caracteriza-se por

36
fases diferentes: diversas “gerações” de media surgiram em cena com intervalos
relativamente regulares, primeiro nos últimos dez anos do século XIX, depois em torno
da crise de 1929 e, por fim, ainda, no período posterior a 1975.
A dinâmica dos media durante o século XX deve ser interpretada em termos
cíclicos, como uma sucessão de várias fases de inovação que atravessaram o quadro
global dos media, entendidos como um sistema interdependente.
O carácter cíclico do desenvolvimento dos media apresenta-se como um ponto
de encontro entre processos de natureza económica (as etapas de inovação mais
intensa parecem coincidir com os pontos de viragem dos chamados ciclos económicos
de Kondratiev) e processos de ordem sócio-cultural. A história dos media
novecentistas parece ser assinalada por momentos “explosivos” de inovação
generalizada, intercalados com períodos mais longos de instalação, os quais
correspondem ao tempo em que os novos modelos de comunicação se enraizam
efectivamente no corpo social e a inovação tecnológica dá vida, para retomar a
terminologia de Raymond Williams (Williams, 1982) a “formas culturais” plenamente
estruturadas.
Assim, o modelo de comunicação de massa baseado no broadcasting, que
tomou forma nos anos 20 e 30 com o nascimento dos sistemas radiofónicos, só se
afirmou plenamente (até prevalecer sobre as formas mais antigas da comunicação de
massa) nos anos cinquenta e sessenta, os anos da afirmação definitiva da televisão.
Em seguida, o computador pessoal, nascido no início dos anos 70 e protagonista de
um primeiro boom na década seguinte, impôs-se como meio de comunicação para
todos os efeitos e como protagonista central do novo sistema dos media apenas nos
últimos anos deste século, com a afirmação da Internet, resultado de um processo não
só e não tanto tecnológico quanto económico e institucional.
Por outro lado, o processo de desenvolvimento dos media caracteriza-se por
uma dinâmica evolutiva no sentido mais amplo do termo, isto é, altamente selectiva.
Todas as fases de maior inovação foram caracterizadas pelo aparecimento de uma
quantidade notável de tecnologias concorrentes, das quais apenas uma parte
sobreviveu: como cinetoscópio de Edison, o videodisco laservision, as dispendiosas
técnicas de fotografia a cores de Lumière, as muitas tentativas de cinematografia
tridimensional e, mais recentemente, os vários modelos de gravador digital doméstico
(o DAT, ainda utilizado mas apenas no campo profissional, a Cassete Digital
Compacta, o DCC, o Minidisc).
Uma das características da comunicação de massa relativamente a outras
tecnologias mais ligadas à produção está no facto de o mercado e, portanto, dos
comportamentos colectivos, pesarem efectivamente na selecção das tecnologias

37
destinadas a afirmar-se: foi o mercado que decretou o sucesso do transistor e o
insucesso da máquina fotográfica de disco, o triunfo da TV e o flop do cinerama, o
sucesso do CD e o insucesso do mini-disc. A forte dependência da resposta do
mercado fez da indústria (que produz) das tecnologias mediáticas um dos sectores de
maior risco do capitalismo moderno, como demonstrou a evolução das suas
empresas, mesmo as de grande dimensão. A tendência recente das empresas do
sector para se fundirem em aglomerados de maiores dimensões nasce não apenas da
convergência progressiva entre media antes separados, como se teoriza muitas vezes,
mas também de uma vontade de diversificação dos campos de actividades e de
redução dos riscos.

4.2. As etapas do desenvolvimento

Com base nas considerações anteriores, torna-se possível subdividir o “século


dos media” em três fases distintas, conhecendo cada uma delas momentos diferentes
no seu seio.

a) A primeira fase da comunicação de massa no século XX, ainda


integralmente concentrada nas tecnologias da imprensa, tem início na última
década do século XIX, com o aparecimento quase simultâneo de novos
instrumentos de transmissão da voz (o telefone de Bell, em 1876, torna-se
uma rede em sentido pleno com a comutação automática de Strowger, 1893),
de conservação do som (o gramofone de Berliner, em 1893, impôs-se graças
à capacidade de registo dos discos sobre o fonógrafo de Edison), de
gravação de imagens (a Kodak, lançada por George Eastman em 1888, faz
da fotografia, pela primeira vez, um divertimento de massas, enquanto o
cinematógrafo de Lumière, em 1895, faz das imagens fotográficas em
movimento a base de um novo tipo de espectáculo), de narração popular:
também em 1895, uma outra forma de contar histórias através de imagens, a
banda desenhada, surge na imprensa diária norte-americana, para
rapidamente vir a afirmar-se como um género de entretenimento. Estes
meios, que têm como característica comum o desenvolvimento de formas de
comunicação diferentes da escrita serão, posteriormente, no período da
Primeira Guerra Mundial, os protagonistas de um intenso processo de
reorganização, conduzido em vários países pelos aparelhos do poder público.
b) No decurso dos anos 20, com o desenvolvimento da radiodifusão
(as primeiras transmissões regulares têm lugar nos EUA ainda durante a

38
Guerra, no Reino Unido, e depois em outros países europeus já no período do
pós-guerra), com a transformação do cinema (por um lado, com o cinema
sonoro e, por outro, com a cor), com o nascimento da imprensa em
rotogravura, afirma-se uma fase mais amadurecida da comunicação de
massa, centrada na rápida circulação de sons e imagens para além de textos;
uma fase que conhecerá, nos anos 30 e no segundo conflito mundial, um
aproveitamento político-propagandístico, e que encontrará a sua afirmação
mais autêntica e “apolítica” no segundo pós-guerra, com a afirmação da
televisão. É a fase em que toda a indústria dos media encontra na publicidade
e, portanto, na relação com um novo universo de consumos, o seu principal
“motor”. É uma fase de “globalização” efectiva dos consumos culturais
internacionais, que precede e prepara o processo de globalização económico-
sistémico do período seguinte.
c) A terceira fase da comunicação de massa no século XX, ainda em
curso, teve início nos anos da crise petrolífera, com a afirmação generalizada
da informática, por um lado, e com a difusão de formas de fruição
“personalizada” das imagens, por outro. Temos assim o conflito entre vários
modelos de gravação e consumo doméstico do filme, sanado nos primeiros
anos da década de 80, com a vitória dos vídeo-gravadores VHS; ao mesmo
tempo, difunde-se a utilização de aparelhos de reprodução doméstica (para
além dos vídeo-gravadores, os sistemas de gravação e reprodução de
cassetes, e depois os “masterizadores” domésticos). Posteriormente, o
encontro entre a informática e as telecomunicações conduz um processo de
convergência entre formas de comunicação anteriormente distintas, processo
que encontrará no desenvolvimento imprevisível e impetuoso da Internet a
sua expressão máxima. Um dos traços mais característicos desta fase é a
tendência para a desregulamentação, ou seja, a clara redução da intervenção
reguladora dos aparelhos públicos no campo das comunicações, enquanto
em muitos países se assiste a uma proliferação, seguindo o modelo anglo-
saxónico, de “autoridades” independentes com poderes de controlo.

39
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41
Desafios globais e respostas nacionais
na era da informação
_______________________________________________

Frank Webster

Introdução

Com frequência hoje em dia os comentadores afirmam – como um dado adquirido –


que vivemos numa «Sociedade da Informação». Com maior ênfase, Manuel Castells
(1996-1998) deu o título «Era da Informação» à sua maciça e influente trilogia. Se bem
que seja fácil avaliar como, pelo menos em termos muito gerais, estes conceitos dão
conta de uma certa realidade contemporânea, também devemos admitir a extrema
dificuldade em definir com alguma precisão o que significa «Sociedade da
Informação». Será um fenómeno económico, onde o que mais conta é o efectivo valor
monetário da informação? Ou trata-se de uma questão de mudança ocupacional, em
que um crescente número de pessoas trabalha em actividades informacionais como o
ensino ou a pesquisa? Distinguir-se-à, com mais clareza, pela supremacia das
tecnologias de informação e comunicação, tratando-se assim de uma questão
tecnológica? Tem mais que ver com as relações espaciais, de tal modo que os
«fluxos» de informação entre «redes» de pessoas e lugares constituem a variável
crítica? Será uma questão cultural, em que o que importa é a explosão de símbolos e
signos na televisão, na moda, no design, etc.? Ou será que a «sociedade de
informação» se caracteriza por uma deslocação da «prática» para a «teoria» sendo,
por conseguinte, uma sociedade onde modelos abstractos moldam o destino social?
Cada uma destas concepções tem sido defendida por intelectuais sérios e
ponderados – e, em resposta, cada uma delas tem sido contestada por pensadores
igualmente sérios.
Naturalmente, os pragmáticos insistirão que a «sociedade da informação» é um
compósito de todos estes elementos. Talvez por isso se espere que apresentem
análises, em vez de ficarem presos a debates sobre definições. Infelizmente o
pragmatismo não tem ajudado muito, pelo que a questão deve continuar a ser
explorada: tratando-se de um compósito, exactamente de que é composta a
«sociedade da informação»? É fundamentalmente económica, cultural ou
ocupacional? Ou é a tecnologia que se afigura como o factor mais significativo na sua
constituição? Perante estas questões, deparamo-nos com um paradoxo: embora
possamos afirmar que vivemos numa «sociedade da informação», ficamos
consideravelmente confusos quando se trata de definir com exactidão o conceito.

42
Anteriormente escrevi bastante sobre a imprecisão do referido conceito
(Webster, 1995). Não fiz isto para marcar pontos num jogo académico, mas para
desafiar a presunção fácil de que esta «sociedade da informação» é algo distinto e por
si mesmo novo na história da humanidade. Se não se consegue distinguir de modo
preciso alguma coisa, torna-se difícil afirmar que se trata de algo novo. Colocar
questões cépticas acerca do modo como certos analistas caracterizam a «sociedade
da informação» é também uma forma de conter o excessivo entusiasmo de alguns no
anúncio da chegada de um tipo de sociedade novo e radicalmente diferente.
Na verdade, a minha opinião é que as continuidades na sociedade actual são
pelo menos tão significativas como as novidades. Há bastante mais informação a
circular actualmente e isto desempenha um papel sem precedentes nos assuntos
quotidianos, mas forças bem conhecidas continuam a ditar a lei mesmo no domínio
imensamente expandido da informação. A presença destas forças estabelecidas deve
suscitar dúvidas acerca da credibilidade do argumento segundo o qual a «era da
informação» é algo marcadamente novo. Existe mais informação a circular, contudo
permanece sob o controlo de forças há muito estabelecidas. Assim, há bons motivos
para duvidar das pretensões de que estamos a entrar numa nova era. Mais informação
por si só não produz uma «sociedade da informação». Nesta perspectiva, o raciocínio
céptico pode levar-nos a resistir à adopção do argumento de que vivemos actualmente
numa «era da informação», e, sobretudo, pode levar-nos a duvidar do seu corolário,
de que a adaptação a esta nova situação seja uma necessidade.
Neste capítulo, irei pôr de lado as questões conceptuais, de forma a poder
concentrar-me em aspectos mais importantes. Digo, «pôr de lado», porque os argutos
leitores poderão perceber que, mesmo na discussão mais substancial que se segue,
as questões conceptuais estão, de facto, constantemente presentes. A minha maior
preocupação é perguntar: o que está a acontecer no mundo hoje, particularmente
no que diz respeito às sociedades mais avançadas e ricas da Europa, da América do
Norte e do Extremo Oriente? Quais são as principais linhas de desenvolvimento e que
opções e constrangimentos representam as tendências actuais? A abordagem destas
questões, permitir-nos-á perceber que a informação é efectivamente central no que
está a acontecer, embora na minha perspectiva falar de uma «sociedade da
informação» pouco ou nada esclarece o que de facto está a acontecer.

Globalização

43
O fenómeno da globalização e os desenvolvimentos que se lhe anunciam encabeçam
qualquer lista de mudanças relevantes. A globalização refere-se aos processos
crescentes e acelerantes de interpenetração e interdependência de relações à escala
mundial, relações em que o tempo e o espaço são «comprimidos». As relações –
industriais, financeiras, intelectuais – são conduzidas e encenadas globalmente e cada
um de nós é influenciado por elas, quer se trate do que comemos em nossa casa, do
modo como trabalhamos ou dos media que vemos e ouvimos. Claro que se trata de
um processo tendencial e complexo e grande parte da vida permanece intensamente
local, mas não há muito a argumentar contra a realidade da globalização. As suas
raízes encontram-se num passado tão distante que remonta, pelo menos, ao século
XVI e ao início da exploração colonial, quando as divisões espaciais do mundo
começaram a ser ultrapassadas. As barreiras temporais foram as últimas a ser
abolidas, mas hoje é efectivamente possível desempenhar actividades em «tempo
real», por todo o mundo, e de forma mais ou menos imediata.
A globalização não deve ser vista como uma força exclusivamente
homogeneizadora. Um dos argumentos é o de que as grandes empresas, sobretudo
americanas, impuseram ao mundo os seus modos de acção e entendimento,
conduzindo a uma «americanização» da vida por todo o globo. Trata-se do conhecido
tema da «Colonização Coca-cola». Na perspectiva oposta, outros analistas observam
que a globalização é muito mais complicada do que um fluxo unívoco. Esses autores
sugerem que a globalização acarreta hibridização cultural, uma miscelânea de culturas
e movimentos massiços de povos, o que se torna evidente na variedade culinária
disponível em qualquer grande cidade em todo o mundo, na combinação de moda
étnica com estilos indígenas de diversas origens, na notável popularidade, por
exemplo, da música reggae através do globo.

Ignorar este pluralismo que acompanhou a globalização seria próprio de uma


visão redutora. Mas não deixaria de ser naif sugerir que a globalização não reflecte os
diferenciais de poder que, em grande parte, conduzem a uma considerável
homogeneização. Se pensarmos, por exemplo, nas redes financeiras que agora
atravessam o globo, devemos admitir que se ajustam, e expressam, o domínio das
organizações ocidentais. Mais uma vez, a globalização do fabrico não conduziu a um
hibridismo significativo – a parte de leão pertence a empresas de grande escala
sedeadas na Europa, América do Norte e Japão. E embora seja verdade que a música
expressa influências de muitos sítios, ninguém pode negar que são as práticas
britânicas e americanas que representam a maior parte da música popular.

44
O que quero salientar é que a globalização, sendo um fenómeno
extraordinariamente complexo (Scott, 1997), em grande medida molda o mundo de
forma a pô-lo em conformidade com as vias ocidentais. Ao dizer isto não pretendo
sugerir que o alinhamento do mundo pelo Ocidente tenha trazido estabilidade. Pelo
contrário, outra característica importante da globalização é o intensificar da
competição, uma vez que áreas outrora separadas são impelidas a relacionarem-se
entre si, e isto impulsiona o aprofundamento da incerteza (Soros, 1998; Greider, 1997)
e uma aceleração da própria mudança, assim como permite muitas expressões de
formas culturais híbridas (Lash e Urry, 1987). O que pretendo enfatizar é que a
globalização expressa, acima de tudo, o triunfo do que podemos chamar «civilização
comercial». Com isto quero sublinhar que o mundo, apesar da sua grande variedade,
foi edificado sob um conjunto de princípios comuns que historicamente têm estado
intimamente associados ao Ocidente (Robinson, 1996). Esses princípios incluem:

• a capacidade de pagamento como sendo o principal critério


determinante do aprovisionamento de bens e serviços;
• o aprovisionamento realizado a partir de uma oferta mais privada do que
pública;
• os critérios do mercado, ou seja, o facto de haver lucro ou prejuízo,
como o principal factor de decisão do que deverá estar disponível;
• a concorrência – em oposição à regulação – entendida como o
mecanismo mais apropriado para organizar as relações económicas;
• a mercantilização das actividades como norma, isto é, os
relacionamentos entendidos como estando submetidos às avaliações de preço;
• a propriedade privada preferida face à propriedade estatal;
• o trabalho assalariado como o principal mecanismo de organização das
actividades laborais.

Estes princípios constituem idealizações do que acontece na prática, mas o


que parece ser indiscutível é que nas últimas décadas se espalharam pelo mundo a
um ritmo acelerado (de Benoist, 1996).
Há razões complexas para isto, e ainda hoje restam bolsas de resistência à sua
expansão, mas parece-me que nos últimos anos temos testemunhado uma intrusão
massiva da «civilização comercial». Podemos realçar que se trata de um processo
intensivo e extensivo. Intensivo na medida em que as práticas do mercado penetraram
enormemente em áreas da vida íntima até agora relativamente imunes, até mesmo no

45
Ocidente. Podemos pensar, por exemplo, na educação dos filhos (a abundância de
brinquedos para diversão e a televisão para crianças), no aprovisionamento de
alimentação diária (hoje em dia quase toda a gente depende do supermercado,
enquanto não há muito tempo as famílias se auto-forneciam, pelo menos em grande
parte, através de terrenos que permitiam o cultivo de vegetais e a criação de animais)
e no declínio de trabalhos domésticos como a costura e os lavores em malha (cf.
Seabrook, 1982).
Inclusivamente podemos dar como exemplo a expansão da globalização, um
processo que colonizou muitas áreas que anteriormente eram auto-suficientes. O
âmbito que melhor evidencia isto, ainda que subestimado, é a eliminação do
campesinato de quase todos os cantos do mundo. Este, de longe a maioria da
população mundial ao longo do tempo, está agora à beira da destruição (Worsley,
1984). E a razão é clara: o campesinato é incompatível com a civilização de mercado.
Os camponeses são largamente auto-suficientes, são cépticos relativamente à
inovação tecnológica, resistem ao trabalho assalariado e afastam-se da organização
de mercado. Assim sendo, os seus modos de vida têm vindo a ser debilitados pelo que
Kevin Robins e eu próprio (1999) designamos «enclosure»5 da Terra pelas práticas
comerciais, entendendo como tal a incorporação nas rotinas de âmbito comercial de
actividades que anteriormente lhe eram exteriores.
Para os leitores que ao ler isto sintam nostalgia pelos tempos que antecederam
o triunfo do capitalismo, deixem-me sublinhar alguns aspectos. Em primeiro lugar, a
penetração dos mecanismos de mercado não significa de modo algum que os
consumidores estejam a passar dificuldades. Pelo contrário, para os que têm recursos,
confiar nas lojas para a obtenção do próprio alimento é preferível à desoladora rotina
de cozer o pão em casa e de ter de fazer durar roupa desajustada e fora de moda.
Além disso, em comparação com as vidas da maior parte dos camponeses, no
capitalismo até uma existência empobrecida permite um invejável nível de vida (ver,
por exemplo, Figes, 1996). Em segundo lugar, o campesinato foi destruído por vários
métodos. Certamente repressão e expropriação, mas provavelmente o que teve maior
impacto foi o despoletar da sociedade de mercado, oferecendo mudança e
oportunidades que o modo de vida camponês jamais conseguiria alcançar. Por último,
ninguém deveria mencionar o sucesso do capitalismo sem reconhecer o desaire do
seu principal rival, o comunismo. Desacreditado politicamente, o comunismo também
falhou em aspectos económicos, tornando-se incapaz de acompanhar o dinamismo do
Ocidente. Estas ressalvas devem ser feitas em relação a qualquer mágoa face ao

5
Alusão ao processo histórico de vedação dos campos privados em Inglaterra (N. do T.).

46
triunfo da civilização de mercado. No entanto, o que devemos aceitar é que o
capitalismo venceu e o seu sucesso tem significado o encerramento («enclosure») do
mundo nas suas cercas, nos seus modos de organização.
Gostaria também de enfatizar que este sucesso – do que foi apropriadamente
designado «consenso neo-liberal», para sublinhar a forma como constitui o princípio
fundamental de todos os actuais governos pelo mundo fora – não representa qualquer
regresso a uma anterior era capitalista. Pelo menos, a globalização assegurou que
não voltaremos aos tempos do laissez-faire. Grande parte da civilização de mercado é
familiar, e seria reconhecida pelos partidários das livres trocas do século XIX, mas
inegavelmente há agora novas circunstâncias. Entre estas destaca-se a presença de
grupos empresariais de alcance global envolvidos em intensas competições com os
seus rivais, de que apenas se excluem as franjas de actividade dos empresários de
pequena dimensão.
O capitalismo de hoje está dominado por enormes grupos económicos – tais
como a General Motors, Shell, Matsushita e Siemens – com investigação de fôlego e
orçamentos para o desenvolvimento (frequentemente ultrapassando um bilião de
dólares por ano), com impacte internacional e campanhas de marketing mundiais
(Dicken, 1992). Para além disso, o capitalismo global está ligado em tempo real
através dos mercados financeiros mundiais – mercados que comercializam mais de
um trilião de dólares por dia – cujo dimensão e velocidade não tem precedentes e
cujas consequências se tornaram evidentes nas convulsões massivas de economias
nacionais como a da Rússia, da Malásia, do México e de Espanha nos anos 90. O
capitalismo actual caracteriza-se por exercer em muitos aspectos da sua actividade
um alcance global, tal como testemunham as tendências e as práticas do marketing
mundial de produtos, as divisões internacionais do trabalho e a criação de marcas
globais (Harvey, 1989).
Contudo, enquanto tento realçar as novas características da era presente,
parece-me essencial termos em conta que estas constituem a consolidação e a
extensão de princípios há muito estabelecidos. A economia global dos nossos dias
representa a expansão e o crescimento das formas de comportamento capitalista –
atente-se na crescente utilização dos mecanismos do mercado, o fornecimento mais
privado do que público, o lucro como a raison-d’être das organizações, o trabalho
assalariado e o princípio da capacidade de pagamento como determinante para o
fornecimento de bens e serviços. Em poucas palavras, a «sociedade global em rede»
em que nos encontramos actualmente exprime a continuação – a transmutação, se
preferirmos – dos princípios capitalistas há muito instituídos.

47
Declínio das soberanias nacionais

Entre as diversas consequências das tendências enunciadas, penso que uma se


sobrepõe às restantes. Trata-se do relativo declínio da soberania económica das
nações. De uma forma geral, os governos têm relativamente menos capacidade de
controlo sobre as economias nacionais do que tinham anteriormente. Não quero com
isto dizer que os governos sejam impotentes para exercer influência sobre o
comportamento económico dentro das suas próprias fronteiras (cf. Held et al, 1999).
Os governos mantêm ainda um poder considerável sobre as actividades económicas
que decorrem nos seus territórios. No entanto, nesta era de fluxos financeiros
electrónicos nas vinte e quatro horas do dia, quando os mercados mundiais de acções
estão constantemente a comercializar em moeda estrangeira ao som de biliões de
dólares, um estado nação deve sentir uma pressão crescente para manter a
«confiança» destes mercados. Quando um país perde a confiança dos mercados
financeiros mundiais, a sua força económica entra em colapso, como demonstraram
os desinvestimentos do Extremo Oriente em 1998 e anteriormente muitas outras
nações. Para além disso, na economia capitalista global, em que as empresas globais
são os principais actores, é difícil delimitar claramente qualquer economia nacional. O
que é que, por exemplo, constitui a economia britânica? Será que empresas como a
Nissan ou a Rover – importantes empregadores no país – representam a economia
britânica porque têm aí fábricas, embora os seus proprietários fundadores não sejam
britânicos e os seus accionistas estejam por todo o mundo (e nestas bolsas
comercializar é uma actividade incessante)? Podemos questionar algo semelhante
relativamente à Nokia: parece ser na sua essência finlandesa, e é certamente
importante para o emprego de muitos finlandeses, mas hoje os proprietários estão
predominantemente no exterior do seu país de origem. Para além disso, muitas
empresas por todo o mundo não só têm estruturas de propriedade diversas, como
também são dificilmente identificáveis a uma nação em particular, porque muita da sua
actividade é realizada no exterior da sua nação de origem. Efectivamente, empresas
como a Sony, a Hitachi e a Mitsubishi anunciam que não pertencem a nenhum país, e
– enquanto negócio global – oferecem lealdade a qualquer lugar ou lugares onde
estejam a conduzir os seus negócios.
Dito de forma simples, há actualmente importantes questões a colocar acerca
da capacidade dos governos nacionais para controlarem as suas próprias economias
devido às pressões para entrarem em conformidade com as práticas do mercado
global, o que cria problemas na identificação dos proprietários das empresas e na
pertença daquelas a um país em particular. Um dos resultados desta situação tem sido

48
a aceitação geral por parte dos governos de que pouco podem fazer para planear a
sua economia. Naturalmente que os governos conservadores acreditaram que o seu
país prosperaria desde que deixassem a economia em paz, pelo que isto não se lhes
afigurou como um desafio específico. Foram os governos socialistas que mais tiveram
de mudar a sua actuação. A anterior tendência para as políticas colectivistas –
nacionalização de sectores chave da indústria, por exemplo – foi sufocada nos anos
90 e eles tiveram que aceitar o «consenso neo-liberal» para evitar rápidas crises
fiscais.

Educação, educação, educação

Mas se os governos não podem tocar na economia, o que é suposto fazerem


os políticos? Uma política chave é dar prioridade à educação e isso compreende-se já
que a maior parte das pessoas frequentam os sistemas de ensino das nações em que
nascem. Os governos têm mais potencialidades nesse domínio, do que na economia.
Ora, na economia de mercado global em roda livre em que nos encontramos, estima-
se (Reich, 1992) que cerca de 20% de todos os empregos disponíveis sejam para os
que ocupam os níveis superiores do sistema educativo. O mais acérrimo defensor
desta perspectiva, Robert Reich, designa-os «analistas simbólicos» – i.e., aqueles cujo
trabalho envolve a negociação, comunicação, gestão e actividades afins – na
economia mundial. Manuel Castells (1998), ao adoptar o mesmo raciocínio, identifíca
isto como sendo «trabalho informacional», que estima corresponder a 30% dos
empregos nos países da OCDE, aqueles que lubrificam as rodas desta «economia em
rede» através da organização, concepção, comércio e inovação.

Permitam-me enfatizar que o «trabalho informacional» engloba um grupo


largamente diferenciado, incluindo desde realizadores de filmes, extremamente
criativos, a profissionais de contabilidade, mas com duas características em comum. A
primeira é a capacidade de adaptação contínua à mudança. O trabalho informacional
está sempre alerta às novidades e a novas aprendizagens, actualizando
constantemente as suas capacidades – traços essenciais para prosperar na altamente
competitiva economia global actual. Um refrão constante é a necessidade de
«flexibilidade» e essa qualidade os analistas simbólicos têm-na em abundância. A
segunda característica partilhada pelo trabalho informacional é uma contribuição
crucial para a adaptabilidade – a educação a nível superior, não tanto numa
competência específica, mas na capacidade de se «auto-programar» (ou, em
linguagem popular nos círculos políticos britânicos, a capacidade de ter «aprendido a

49
aprender», quer dizer, estar preparado para «aprender durante toda a vida»). A
frequência de instituições de ensino superior cultiva as «competências transferíveis»,
capacidades requeridas por uma economia de mercado global profundamente
dinâmica tão necessárias aos analistas simbólicos. Na verdade, qualquer
aprendizagem de nível superior dura, hoje em dia, mais de uma década – salvo no que
diz respeito à capacidade de se reeducar a si próprio para enfrentar os desafios da
mudança constante.
O que é que isto significa para os governos nacionais? A resposta é que um
governo que consiga dominar uma grande parte destes 20 a 30% de empregos de
topo mundial pode considerar-se bem sucedido porque numerosos cidadãos seus
desempenharão ocupações bem pagas e compensadoras. E o que os governos
podem fazer para enfrentar o desafio da «era da informação» é incentivar uma
educação ao mais alto nível, de modo que grande parte da sua população jovem
possa emergir com as qualidades exigidas pela economia global. Foi precisamente
esta a concepção desenvolvida por Robert Reich antes e durante a sua actuação
como Secretário de Estado do trabalho na Administração Clinton (1992-1996). E
porque o mesmo refrão encontra eco no Primeiro Ministro Tony Blair e na sua ambição
de tornar Londres «a capital europeia do conhecimento» dando prioridade a
«educação, educação, educação», o governo britânico trabalhista (New Labour) foi
descrito como sendo «Reichiano» na sua concepção. Esta política significa que cada
um deve resignar-se ao jogo das forças do mercado ao nível global e nacional
colocando o enfoque político na produção do «capital humano» mais necessário neste
sistema mundial.
A propósito, as nações que não possuam a infraestrutura educacional
necessária estarão condenadas a fornecer os trabalhadores sobre os quais agem os
analistas simbólicos. Além disso, é provável que haja uma importante estratificação
interna inclusive nos países ricos, uma vez que quem não tirar partido da melhor
educação disponível, em nações tais como os EUA e a Inglaterra, corre o risco de
sofrer bastante nesta era de capitalismo informacional. As velhas opções – trabalho
semi-especializado, ou não, em fábricas e minas de carvão – estão cada vez menos
disponíveis, e não só porque o trabalho informacional resultou na automatização e/ou
produção no estrangeiro de muitas actividades.
Enquanto os indivíduos menos habilitados dos países mais desenvolvidos
podem ser pobres quando comparados com os seus concidadãos, relativamente à
força de trabalho da China ou das Filipinas constituem mão-de-obra cara e, nestes
tempos de trabalho informacional adepto de coisas organizadas, as tarefas não
qualificadas são relegadas para um plano inferior.

50
Deste modo, uma outra possibilidade é a maior polarização de classes nos
países relativamente avançados: se os governos procurarem simultaneamente
encorajar o trabalho informacional, que atrai o sistema económico global, e
implementar medidas de compensação das desigualdades através da redistribuição de
recursos aos mais desfavorecidos, arriscam-se a perder a confiança dos mercados
mundiais, que desaprovam as políticas introdutoras de «distorções», e, também a
perder a estima dos bem sucedidos analistas simbólicos, ressentidos com os impostos
elevados (e que podem facilmente migrar, levando as suas elevadas competências
técnicas). Na verdade, os políticos vão precisar de negociar um delicado equilíbrio
entre saciar o capital global e enfrentar a relutância dos mais abastados em pagar
impostos, assegurando também que o tecido social da nação continue suficientemente
forte para atrair os investidores e os analistas simbólicos que precisam de ser
persuadidos a ficar. Afinal, se se desenvolver uma «classe inferior» a tal ponto que a
qualidade de vida dos mais abastados seja ameaçada (áreas urbanas inseguras,
elevados níveis de criminalidade de rua, etc.), por mais sofisticados que sejam os
sistemas de defesa electrónica (os analistas dão grande importância à expansão dos
sistemas CCTV no interior das cidades, aos «condomínios fechados» em que se
isolam os mais ricos [Blakely e Snyder, 1997]), uma parte significativa das pessoas
mais favorecidas partirá (os leitores europeus mais cépticos podem reflectir sobre a
sua reacção ao facto de que nos EUA, cerca de dez mil pessoas morrerem
anualmente devido a armas de fogo; enquanto nas nações europeias as estatísticas
equivalentes raramente chegam às duas dúzias). Para os mais capacitados analistas
simbólicos, especialmente se o crime violento continua a crescer, Genebra ou
Copenhaga poderão parecer mais atraentes que Los Angeles ou Baltimore. Foi
precisamente este receio que levou Robert Reich a defender o que podemos chamar
políticas post-Reagan para os EUA nos anos 90. Se se quiser preservar o tecido
social, os pobres não podem ficar à mercê dos caprichos do mercado, pelo que se
recomendam políticas sociais, desde que suficientemente moderadas para não
desagradar aos mais ricos ou ao capital global.

Cultura

É muito fácil dedicarmos toda a nossa atenção às forças económicas em jogo e às


políticas adoptadas pelos governos que tentam ganhar vantagens relativas nesta nova
situação. No entanto, as dimensões culturais desta época não devem ser ignoradas já
que também elas são de enorme importância. Quando me refiro à cultura pretendo

51
focar especialmente o domínio simbólico da vida, essa arena que alimenta a nossa
identidade e consciência. Gostaria de identificar quatro questões que hoje em dia
representam enormes desafios às nações e ao mundo inteiro.

Os media globalizados

A globalização desafia profundamente as práticas estabelecidas dos media de


radiodifusão nacional. Podemos referir as inovações tecnológicas que, trazendo-nos
quer os serviços de televisão por satélite quer a Internet, ultrapassaram as fronteiras
nacionais. Será necessário acrescentar, no entanto, que os sistemas de televisão
nacional, tendo surgido largamente associados a organizações financiadas pelos
Estados, pelo menos no exterior dos EUA, sentiram o impacto destrutivo de uma
mudança de clima na opinião. Os sistemas patrocinados pelo Estado estão a ser
ultrapassados pelo privilégio concedido ao privado sobre o público, e
consequentemente onde ainda existem têm de enfrentar uma contínua diminuição do
seu rendimento, tal como a pressão da concorrência da oferta comercial. A
digitalização da televisão, assim como os adicionais canais terrestres e os serviços por
cabo, por exemplo, irão acarretar uma crescente dificuldade às televisões estatais
para justificarem a continuação do seu financiamento.
Acresce que o ethos que justificava tais serviços, pelo menos nos países
social-democratas, era a doutrina do serviço público de radiodifusão, concebida como
um serviço nacional a realizar por funcionários públicos vocacionados para a
promoção de «informação, educação e entretenimento» (segundo a famosa
formulação do director geral e fundador da BBC, Lord Reith). Actualmente, em muitos
sectores, esta doutrina é considerada elitista e contrária aos serviços comerciais em
que prevalece o entretenimento. Os ultrapassados serviços públicos produziam
programas sobre os quais as audiências tinham pouca ou nenhuma escolha,
consumindo o que lhes era dado em troca de uma taxa obrigatória sobre a posse do
televisor. Presentemente, esta solução é considerada incompreensível por muitos
daqueles que pagam pelos serviços. Acresce a tendência para os programadores
pertencerem a sectores com elevada educação, provenientes de meios sociais
privilegiados, o que os predispunha para uma programação «respeitável» e
«educativa». Hoje em dia isto é visto como uma forma de negar o direito do
consumidor a ter a programação que deseja. Para além disso, o serviço público de
televisão entendeu que poderia envolver toda a nação numa «conversa consigo
mesma»: a BBC (British Broadcasting Corporation) pode ser vista como tendo
contribuído para uma «esfera pública», transmitindo para todo o país, onde, através da

52
diversidade da programação, a nação poderia ver-se a si própria na sua variedade
assim como na sua individualidade (Scannell e Cardiff, 1991). Esta «esfera pública»
dedicou uma grande parcela do tempo de antena à cobertura noticiosa dos assuntos
correntes (pelo menos o dobro do fornecido pelos canais comerciais no Reino Unido),
uma vez que naquela perspectiva um verdadeiro serviço público deve privilegiar a
informação sobre os assuntos políticos (públicos). Além disso, a BBC também se
esforçou para promover uma oferta de ficção, de documentários e, inclusive, de
música de elevada qualidade.
Hoje, podemos facilmente compreender que o serviço público de televisão,
assim como uma esfera pública única, têm os seus dias contados (Tracey, 1998). Para
começar, há muitas críticas legítimas que realçam as falhas do sistema anterior: esta
esfera pública tanto excluía como incluía, tanto projectava uma visão redutora da
nação como uma visão plural. Por outro lado, a fragmentação da difusão significa que
a noção de audiência nacional está a entrar em colapso – em lugar dela há muitas
audiências segmentadas, ocupadas com interesses específicos, recebendo
frequentemente a sua programação do estrangeiro.
A questão é então se devemos abandonar a televisão ao mercado mundial.
Esta poderá vir a ser a realidade futura, independentemente do que os governos
possam desejar, e enquanto a curto prazo veremos certamente a ascensão de
organizações transnacionais, tais como os canais por satélite de Rupert Murdoch, a
Star TV e a MTV, a expansão dos serviços do tipo internet poderá vir a oferecer uma
boa dose de diversidade na programação, mesmo quando esta se organizar em
termos comerciais.
Um segundo aspecto diz respeito à esfera pública e consequentemente ao
tema da identidade. Nos velhos tempos do serviço público de televisão, entendia-se
que a nação poderia ser vista de um modo mais ou menos colectivo, e, pelo menos
em certa medida, os cidadãos de um dado país poderiam ver o reflexo de si próprios
nesse tipo de programação. Agora, podemos falar mais precisamente do
desenvolvimento de múltiplas esferas públicas, dos muitos meios pelos quais as
pessoas podem informar-se ou divertir-se, quer através da televisão quer através de
redes informáticas. Alguns autores argumentam que isto pode ser uma força positiva
para alargar o pluralismo, com mais oportunidades de os cidadãos participarem e
receberem um tipo de programação mais diversificado.

Outro tipo de inquietações prende-se com a possibilidade de fragmentação das


identidades e as questões daí decorrentes. Prevendo a existência de múltiplos sites de
informação e que as pessoas venham a receber uma programação altamente

53
diversificada na privacidade das suas próprias casas como poderemos, assim, falar de
uma consciência nacional? Como poderão os cidadãos dirigir-se aos seus
concidadãos? Certamente que poderemos responder que no passado tal prática foi
profundamente criadora de divergências, homogeneizando pessoas muito diferentes e
provando ser incapaz de contribuir para a diversidade da população de uma nação. No
entanto, a ambição de falar à nação como um todo desapareceu com a fragmentação
da difusão e, mesmo que possa haver ganhos em termos individuais ou de pequena
escala (o fã de futebol residente em Londres pode facilmente ver a sua equipa em
Barcelona, os turcos que vivem em Berlim mantêm-se em contacto com a sua
comunidade étnica em Istambul), pode estar em causa a capacidade para conceber
uma nação como fenómeno de uma consciência colectiva.

Mas talvez as coisas não venham a ser tão negativas. John Keane (1998)
sugere que podem vir a desenvolver-se múltiplos níveis de «esferas públicas»:
extensão ao nível supra-nacional (por exemplo, serviços transeuropeus de televisão e
até mesmo programação global); permanência de sistemas nacionais de televisão
(ainda que comerciais, mas também em termos de serviços que continuarão
dependentes de subsídios públicos); proliferação de serviços localizados (se
considerados em termos globais) e especializados que podem ligar comunidades de
especialistas. Nesta visão optimista, as complexidades da identidade no mundo actual
podem vir a ser resolvidas, com cidadãos capazes de irem além do seu próprio país
nalguns aspectos (talvez pensando-se a si próprios como europeus), e voltando-se
para a sua própria nação noutros aspectos, mas sempre capazes de responder às
exigências informacionais específicas dos “proliferantes” serviços especializados – por
exemplo, «eu sou um europeu mas também sou húngaro e, simultaneamente, sou de
etnia judaica e tenho um interesse especial pela sorte do clube de futebol Inter de
Milão». Talvez seja este «multivocalismo» o que mais está em consonância com a
cultura pós-moderna que caracteriza o capitalismo globalizado em que vivemos.
Certamente que os governos nacionais serão chamados a negociar o difícil terreno
deste novo mapa mediático.

Imagem local

Historicamente os locais sempre foram importantes, mas a razão da sua importância


parece estar a mudar. No passado, eram importantes em parte devido à sua
localização física – por exemplo, Gibraltar controlando a entrada do Mediterrâneo, o

54
Cairo a boca do Nilo e Istambul os estreitos do Bósforo. Recentemente, a razão física
da importância do local está em declínio, sendo substituída pela primazia da
«imagem». Isto provém, é claro, do facto de que o espaço tem estado, em larga
medida, a perder significado. Quando, por exemplo, se organizam negócios através de
ligações telecomunicacionais, as razões anteriores para a localização têm menor
prioridade.
Isto não significa que os locais já não são importantes. De modo algum. Esta
economia global em rede precisa de pontos centrais comutadores, que quando
abertos podem ser considerados os «nós» dos circuitos mundiais de informação.
Muitos académicos têm, a este respeito, chamado a atenção para o aparecimento de
«cidades globais» – principalmente Londres, Nova Iorque, Los Angeles e Tóquio –
como locais onde estão reunidos jogadores-chave a nível mundial, tais como sedes de
empresas, departamentos governamentais decisivos, serviços financeiros, media e
centros de negócio (Sassen, 2000). Com estes vêm os essenciais grupos
ocupacionais, compostos maioritariamente por analistas simbólicos, cujo trabalho
obriga a que estejam localizados perto do local «onde está a acção». O mais
interessante é que estes locais conseguem, e aspiram, a certas imagens – como a de
serem repletos de acção, electrizantes, centros de inovação cultural e de
oportunidades. Um ponto crucial é que estes lugares não conseguem
automaticamente uma certa imagem, que exige um envolvimento activo para se
desenvolver – e a imagem errada pode ter efeitos negativos na prosperidade de um
local. Por estas razões, o que estamos a testemunhar é um grande investimento nas
imagens dos locais – porque isso pode ter consequências muito reais nos empregos e
no posicionamento na economia global.
Este aspecto pode ser profundamente negativo. Consideremos, por exemplo,
Joanesburgo, na África do Sul, uma cidade localizada numa nação potencialmente
estratégica para o desenvolvimento africano, abençoada com fartos recursos naturais
e numa região com instituições educativas de boa qualidade. Acontece, porém, que
projecta a imagem de estar infestada pelo crime e de ser perigosa, o que dificilmente
atrai os analistas simbólicos e os investidores do capital global. Também podemos
considerar o exemplo de Birmingham, a segunda maior cidade britânica, desenvolvida
pela industrialização (mais precisamente pela engenharia) e localizada no centro de
canais, caminhos de ferro e estradas nos séculos XVIII e XIX. A desindustrialização
conduziu a um colapso massivo no tradicional emprego em ocupações manuais e,
simultaneamente, a uma imagem local bastante monótona e aborrecida, uma cidade
mal preparada para mudar e afundada por uma indústria ultrapassada. Contudo,
aproximadamente nas últimas duas décadas foram feitos grandes investimentos na

55
reinvenção de Birmingham – o centro da cidade foi radicalmente revisto (realçando-se
a sua grandeza urbana, assim como agradáveis equipamentos culturais – teatros,
orquestras, salas de conferências e espectáculos); o seu multiculturalismo foi
fortemente divulgado para enfatizar a capacidade de Birmingham em adaptar-se,
acelerar a mudança e oferecer grande diversidade de experiências; os seus canais
foram salvos da decadência e do abandono industrial para se tornarem vias para o
coração de uma cidade com cerca de 1,5 milhões de cidadãos; os seus aeroportos
foram desenvolvidos para se tornarem internacionais; as organizações mediáticas
foram encorajadas; as universidades expandidas e assim por diante. O resultado final
foi uma forte expansão do emprego no sector dos serviços, a acrescida atracção de
Birmingham junto do trabalho empreendedor e informacional e um acentuado papel
como ponto central das redes britânicas, europeias e mundiais através do qual os
negócios são conduzidos. Podemos também considerar a situação de Budapeste, uma
grande e central cidade europeia de inultrapassável beleza arquitectónica e com uma
valiosa história musical e artística. Trata-se porém, de uma cidade relativamente
pouco conhecida a nível mundial, dado que se tem distanciado dos media mundiais e,
na era comunista, foi incapaz de se projectar de forma atractiva. É provável que isto
mude, no entanto serão precisas enormes quantidades de energia para «reinventar»
Budapeste – para estabelecer as infraestruturas comunicacionais necessárias ao
sucesso, de estradas e transportes aéreos a sistemas mediáticos, para obter um
sector comercial aberto, inovador e estável.
O argumento genérico de que a imagem local é de extrema importância pode
ser melhor avaliado se não considerarmos apenas os centros metropolitanos. O
turismo, uma das maiores indústrias mundiais, atribui grande valor às imagens. As
inclinações pela Grécia ou por Espanha estão em grande medida dependentes de
imagens cuidadosamente escolhidas e continuamente mantidas por cerca de 30% do
total de empregos. Poucos acreditam nos mitos de «autenticidade» que são
projectados (locais «não deteriorados», pessoas «genuínas», etc.), mas estes lugares
ainda atraem turistas em parte por projectarem certo tipo de imagens – das suas
culturas populares, da sua culinária, da sua hospitalidade, da sua segurança, etc.
(Urry, 1990). Estas imagens não surgem por acaso; têm de ser trabalhadas se se
quiser que permaneçam e que consigam adaptar-se a exigências sempre em
transformação. Os governos – nacionais, regionais, supranacionais e locais – serão
certamente chamados a representar um papel central nesta recriação.

Acentuado cosmopolitismo

56
A rápida globalização que tem tido lugar nos últimos anos tem sido acompanhada por
um aumento generalizado de cosmopolitismo. Isto é evidente, por exemplo, na
crescente tomada de consciência das diferentes culturas e histórias que chegam
através dos media mundiais (o que não quer dizer que esta cobertura seja de algum
modo representativa). Mas o cosmopolitismo também resulta de muitos outros
factores: da percepção das origens cada vez mais internacionais dos produtos; do
conhecimento de que as actividades profissionais de alguns se repercutem em muitos
outros países; do aumento significativo das viagens pelo estrangeiro (quer em trabalho
quer em turismo); da interacção com migrantes de muitas culturas diferentes; do
rápido desenvolvimento do Inglês como efectiva lingua franca em todo o mundo
(facilitando a comunicação entre membros de grupos linguísticos minoritários); do
consumo diário de alimentos comprados no supermercado local que vêm de todos os
cantos do planeta...
Este acentuado cosmopolitismo deve ser uma das mais importantes
características da vida no dealbar do segundo milénio. No entanto, a experiência do
cosmopolitismo não está distribuída de forma igualitária. Os relativamente
privilegiados analistas simbólicos estão entre os mais cosmopolitas de todos os
grupos. Afinal, estão habitualmente em contacto com pessoas de todo o mundo
(através da internet, de viagens de negócios ou porque trabalham em centros
metropolitanos – logo, variados – pela sua capacidade de apreciar os frutos da vida
multicultural [os restaurantes, o cinema e teatro, etc.]) e, desse modo, sentem-se
confortáveis com a variedade e as diferenças entre os povos.
A isto podemos contrapor as experiências dos que, desproporcionadamente
concentrados nos sectores menos avançados da sociedade, se sentem mais
ameaçados pela globalização. Trata-se dos grupos cujas perspectivas de emprego
são incertas e cujas opções são limitadas, cujas formas de vida estão em risco pelo
alargamento do mercado global, e que julgam que a globalização não é uma
oportunidade mas um anátema que promete desenraizar tudo o que anteriormente era
tido como seguro. Não será surpreendente que os grupos que se sentem ameaçados
sejam facilmente arrastados para alguma forma de fundamentalismo (fanatismo
islâmico, fanatismo cristão, neo-fascismo, radicalismo ecológico), porque o
fundamentalismo oferece certezas num mundo incerto. O fundamentalismo
proporciona fé em credos estabelecidos, oferecendo um «regresso» a uma ordem
segura e certa que tem atraído sobretudo os que estão confusos com a dinâmica do
mercado global (Barber, 1996).
Há pelo menos dois aspectos interessantes nesta situação. O primeiro é o facto
de os que se sentem atraídos pelo fundamentalismo se encontrarem em todos os

57
países do mundo, mas sobretudo nos mais periféricos. O segundo é que os
fundamentalismos articulam credos que são exactamente o oposto do cosmopolitismo
da sociedade mais vasta (embora os fundamentalistas não sejam adversos a usar as
últimas tecnologias para disseminar as suas ideias). Evocando, por exemplo, um
passado mítico (história nacional, raça ou religião), o fundamentalismo opõe-se ao
internacionalismo dos membros da sociedade com mais sucesso. Para além disso,
grande parte do fundamentalismo é extremamente perigoso, expressando-se em
ataques racistas ou através do terrorismo e conflitos civis, que em regra visam grupos
étnicos minoritários ou um inimigo imaginário (o «grande Satã» do Ocidente). Nos
últimos anos, a sua expressão mais perturbadora na Europa têm sido as ondas de
«limpeza étnica» na antiga Jugoslávia, dirigidas a populações minoritárias em nome
de uma nação e de uma identidade nacional miticamente puras. Durante os anos 90,
isto traduziu-se em pelo menos vinte e cinco mil mortes nos Balcãs (Rieff, 1995).
O que podemos inferir desta potencial polarização entre os mais cosmopolitas
e aqueles que estão insatisfeitos com a globalização é que os conflitos entre nações
entrarão em declínio. Anthony Giddens (1994) chega a escrever sobre «Estados sem
inimigos» na situação do pós-guerra fria. Trata-se de um fenómeno notável, dado que,
nos últimos séculos, as guerras têm ocorrido entre nações por causa de território. Esta
forma de guerra parece estar a decair, sendo substituída por conflitos entre grupos
dentro das nações (quando, por exemplo, um grupo proclama defender o «verdadeiro»
credo nacional, exigindo a expulsão dos estrangeiros, contaminados e
contaminadores, «intrusos» – que podem ter vivido no país durante séculos) e através
das fronteiras nacionais (quando se forja um laço entre fundamentalismos contra um
inimigo comum). Tal como se testemunhou no Kosovo, e antes disso na Bósnia e na
Croácia, trata-se de enormes desafios para as nações assim como para toda a
comunidade internacional.

Migração

A globalização pressupõe o movimento tanto de indivíduos como de informação. E


como é agradável viajar para aqueles de nós que foram abençoados com cartões de
crédito, voos pré-pagos e a promessa de um emprego bem remunerado. Ainda mais
agradável é sermos turistas, visitar outras partes do mundo nas férias, onde somos
servidos, estragados com mimos... Este tipo de migração é-nos familiar: o visitante
académico, o homem de negócios internacional, as férias anuais nas Caraíbas ou em
Marbella...

58
Mas, naturalmente, isto é só uma parte da migração. A outra, a parte que
cresceu para níveis sem precedentes desde 1945, e especialmente desde os anos 90,
envolve os pobres que viajam para encontrar um melhor nível de vida. Tal migração
não é, de modo algum, nova – pensemos nos irlandeses que navegaram para os
Estados Unidos, obrigados pela fome a sair do seu país em meados do século XIX, ou
consideremos o êxodo do sul de Itália, onde os campos não conseguiam oferecer o
suficiente... No entanto, nas últimas décadas, a migração cresceu desmesuradamente
e, em grande parte, por razões económicas. Os pobres do mundo, onde quer que
estejam e sempre que podem, migram para onde houver melhores oportunidades. Isto
significa migrações de Sul para Norte, naturalmente a maioria não migra, uma vez que
a migração é uma opção de último recurso e a maioria que de facto se movimenta só o
faz para os centros urbanos dos seus próprios países, mas ainda assim o impulso é
evidente por todo o lado, e tem como principal objectivo tentar melhorar as condições
de vida.
Esta migração tem muitas consequências importantes, mas Zygmunt Bauman
(1998) chama a atenção para uma das mais marcantes. Num mundo de elevados
níveis de migração, os privilegiados são «turistas» que, como tal, são encorajados a
viajar livremente e com prazer, enquanto os que estão na mais baixa camada social
são os «vagabundos», vistos como vadios e descontentes que deviam era «ficar onde
pertencem». Como diz Bauman, os migrantes do Sul são aqueles que mais perturbam
os (relativamente) privilegiados do Norte – a sua cor da pele é diferente, vestem-se de
modo diferente, as suas culturas não se adequam à nossa, as suas línguas são
incompreensíveis... Assim sendo, continua Bauman, eles constituem o pesadelo do
alter ego dos viajantes livres que beneficiam do capitalismo globalizado. E constituem
igualmente uma fonte de conflito e tensão que deve ser analisada.
Não acredito que consigamos acabar com este conflito ao dizer que as
pessoas deveriam simplesmente ser tolerantes umas com as outras. Obviamente eu
defendo isso, mas há que reconhecer que não é suficiente. A migração é somente
uma dimensão, importante, de uma sociedade global de mercado que está sujeita a
mudanças constantes. Efectivamente, a migração nos níveis a que assistimos hoje é
concomitante da fluidez do capitalismo avançado. Contudo, esta convulsão social
necessariamente enfraquece os laços que se desenvolvem entre populações
estabilizadas, e não só por trazer a público outros modos de vida, outros cenários,
outros – estranhos – modos de comportamento. O encontro com outros é certamente
um importante estímulo para a inovação e podemos dar as boas vindas a muitos
aspectos de outras experiências culturais, mas permanece uma questão central: como
é que as pessoas podem manter um sentido de comunidade, de união convivendo

59
sistematicamente com a diferença? Quais são os limites de tolerância? Como
podemos definir uma fronteira que permita suficiente diferença para estimular a
mudança e, simultaneamente, manter a coesão? Este é, sem dúvida, um aspecto
extraordinariamente problemático e deve ser analisado por muitos agentes, a vários
níveis, desde o local ao global, agora e cada vez mais no futuro. Se alguma vez houve
um desafio global a exigir respostas nacionais (e outras) este, seguramente, é um
deles: como poderemos viver juntos com as nossas diferenças?

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61
A Internet na construção de uma
cidadania participada6
____________________________
José Manuel Paquete de Oliveira
José Jorge Barreiros
Gustavo Leitão Cardoso

A história da Humanidade e o desenvolvimento dos povos estão muito ligados


à história e ao desenvolvimento dos instrumentos e modos de comunicar. Sem
reclamar factores determinísticos, é contudo incontroverso o papel decisivo que os
media tiveram na explosão e consolidação das sociedades democráticas na
modernidade.
As novas tecnologias de informação e comunicação vieram aumentar de modo
quase ilimitado a capacidade humana para comunicar, para informar e ser informado,
para conhecer e saber. As novas tecnologias da informação e comunicação
impulsionaram a existência de uma sociedade sem espaço e sem lugar definidos, pois
na expressão de Malcom Waters hoje, «o mundo é um lugar único» (Waters, 1999:
35).

Com distribuição diversa de benefícios e desvantagens pelas condições


diferenciadas em bens materiais e imateriais, por factores de ordem económica,
cultural, social, todos os cidadãos do mundo estão sentenciados a gozar ou a sofrer
com as consequências da mundialização. Na excelente expressão de Bernard Miège,
«a sociedade está conquistada pela comunicação» (Miège, 1997).

Resta saber, e a propósito dos novos media, a dialéctica que eles introduzem
na sociedade entre comunicação e informação, em que medida, e particularmente em
relação a uma cidadania participada, a comunicação está contra a informação ou a
informação vai devorar a comunicação. (Bougnoux, 1995; Oliveira, 1994).
Os efeitos da globalização implementada pela sociedade da informação e
comunicação são implicativos à escala mundial. Como cidadãos, ou lucramos com os
seus benefícios ou sofremos pelas suas consequências negativas. Segundo o
Relatório do Desenvolvimento Humano (PNUD, 1999: 57), publicado pelo Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento, «um mapa global para as novas
tecnologias está a ser desenhado mais depressa do que a maioria das pessoas é

6
O presente artigo é uma versão revista de um documento apresentado à UNESCO, no âmbito da conferência realizada em
SANTIAGO de COMPOSTELA, em Novembro de 2000.

62
capaz de compreender as suas implicações, e muito menos reagir, de forma a
precaver os impactes» daí resultantes. «O hiato mundial entre os que têm riqueza e os
que não têm, entre os que têm conhecimento e os que não têm, está a aumentar». A
advertência de Zygmunt Bauman de que as consequências humanas da globalização
são as menos estudadas tem um enorme pertinência (Bauman, 1999: 7).
O advento das novas tecnologias da informação e comunicação revolveu a
organização da sociedade industrial e alterou a própria configuração dos espaços
público e privado, transformando as práticas individualizadas ou colectivas. Os seus
efeitos sobre a economia, as estruturas sociais, a política, a cidadania são manifestos.
A real dimensão da sua acção sobre as pessoas permanece ainda muito oculta.

1. A Internet, símbolo e emblema da sociedade da informação e da


comunicação

O mundo de hoje está inundado de informação, mas só o reconhecimento


dessa informação, enquanto manipulação, assimilação, produz comunicação. As
novas tecnologias têm aumentado a «tonelagem» de informação disponível para os
cidadãos. Mas, por efeitos dos processos de desenvolvimento social, à escala
universal, não parece que o grau de conhecimento, domínio e aproveitamento dessa
«nova riqueza» favoreça equitativamente uma cidadania participada. Antes pelo
contrário, e como adverte Edgar Morin, o problema da distribuição do conhecimento é
hoje um dos principais problemas dos Estados democráticos: as democracias
contemporâneas e fortemente mediáticas não irão longe se não se protegerem com
uma condição indispensável à democracia política e participada, «a democracia
cognoscitiva». (Morin e Tofler, 1994: 6-8).
Com o rápido desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação
e a crescente globalização dos mercados, a consolidação da «Sociedade da
Informação» aparece como factor estratégico para a construção de novos modelos de
organização social. A informação assume assim uma importância central, enquanto
vector estruturante de um conjunto plural de domínios socioculturais, económicos e
políticos. Neste contexto a Internet, como infra-estrutura mundial de informação e
comunicação e símbolo e emblema da dita Sociedade da Informação, interpreta cada
vez mais um papel preponderante na implementação dessa organização societal e da
denominada «democracia electrónica» ou da «ciberdemocracia». (Poster, 1995).
A grande maioria dos estudos e investigações realizados sobre a «Sociedade
da Informação» inscrevem-se em especial nas vertentes tecnológica e económica. Por

63
outro lado, os discursos produzidos sobre a Internet, como grande axioma da dita
«Sociedade da Informação e Comunicação» ou da «Democracia Electrónica» referem
normalmente parâmetros internacionais da dimensão global do fenómeno.
A denominação «Sociedade da Informação» está muito generalizada, mas está
longe de ter um entendimento comum.
A «Sociedade da Informação», cuja expressão é atribuida a sociólogos norte-
americanos, entre os quais se destaca Daniel Bell na sua análise ao pós-industrialismo
(Bell, 1976), vem na concepção de que, com as novas tecnologias da informação e
comunicação, a informação passa a ser a fonte principal da produção de valor e
consagra a primazia das actividades informacionais em relação às actividades do
sector secundário e terciário. A «indústria pesada» é assim substituída pela
informação e o valor-trabalho pelo valor-saber. Informação e conhecimento
sobrepõem-se à força-do-trabalho e ao próprio capital. Informação e comunicação
tornam-se componentes fixas de todas as formas de produção. (Porrat, 1977).
A «Sociedade da Informação» baseia o seu funcionamento e o seu
desenvolvimento em três vectores principais: as tecnologias de informação, o
complexo conglomerado do audiovisual e as telecomunicações. Todavia, em toda a
configuração, realista ou imaginária, da «Sociedade da Informação» e do mundo
globalizado e em globalização que ela preconcebe e preconiza, efectivamente, é a
Internet a sua estrutura emblemática. (Miège, 2000: 112). A Internet é o paradigma
duma sociedade em rede e o instrumento potenciador da sua concretização.
A configuração em rede por suporte electrónico é apresentada como a
reinvenção da sociedade. Numa sociedade em rede electrónica não é a relação a um
território, a um país, que define a condição e qualidade de cidadania. Mas para aceder
e usufruir dessa sociedade em rede são indispensáveis infra-estruturas físicas,
técnicas, tecnológicas, disponibilidade financeira por parte dos diferentes países. Por
outro lado, aos indivíduos, para além dessas pré-condições, porventura garantidas por
programas nacionais, são exigíveis (requeridas) algumas competências, predisposição
psicológica, cultural, social para o acesso a essa «cidade virtual» e para a utilização,
manuseamento, rendibilidade dessas ferramentas, e para o aproveitamento da
«matéria-prima» que é a informação como via para o desenvolvimento.
As diferentes abordagens teóricas, a reflectir por vezes outros tantos
posicionamentos politico-ideológicos face à «Sociedade da Informação» são tendentes
a acentuar, cumulativa ou separadamente, estes cinco vectores de análise: o
tecnológico, o económico, o ocupacional, o espacial e o cultural (Webster, 1995).
Por nossa parte, acrescentaríamos a esta análise um outro vector, o vector
mitológico.

64
2. A Internet, tecnologia de informação vs tecnologia social

Ao acentuarem a importância do vector tecnológico, a maior parte dos autores


que o fazem, privilegiam de alguma maneira a tecnologia, a invenção tecnológica,
como responsável de todas as tranformações nas mais diversas actividades humanas,
ao nível local, nacional e internacional. Imprimem assim à mudança social, no âmbito
das nações ou do mundo, um valor determinístico ao vector tecnológico. (Rosenau,
1990: 12-13 e outros).
A esta visão da tecnologia como factor determinístico, outros estudos neste
domínio contrapõem o carácter de condicionamento, e não de determinação, que a
tecnologia coloca ao desenvolvimento económico, cultural e social.
A análise dos vectores económico e ocupacional salienta sobretudo as
alterações que a «informação», como «nova mercadoria» veio introduzir em todo o
sistema produtivo, alterando as formas das organizações, a dinâmica do emprego, os
ritmos da produtividade, a criação de novos bens e serviços, estabelecendo profundas
modificações na criação, acumulação e distribuição de riqueza.
Efectivamente, um vector fundamental de análise à lógica de implementação e
realização de uma «sociedade de informação», de um «mundo globalizado», é esta
nova organização conceptual da dimensão espacio-temporal do mundo. A libertação
do espaço e do tempo, operada pelas novas infra-estruturas da informação e
comunicação, ao tornarem «o mundo um lugar único», constituem um pré-requisito
para a globalização (Robertson, 1992: 8).

Esta vertente é igualmente importante enquanto eixo fundamental nas


alterações das relações sociais, merecendo na obra de autores como Giddens análise
específica. Enquanto para Giddens a globalização é consequência directa da
modernização, para Robertson é a globalização que viabiliza a modernidade da
sociedade (Giddens, 1990: 64).

O vector cultural abrange os factores causais e as consequências deste eixo


numa «sociedade em rede» ou «aldeia global», através da abordagem específica da
confluência dos velhos e novos media na criação de uma sociedade global. A
globalização é um processo multifactorial e multicausal que tem de ser analisado nos
seus mais variados aspectos, e em particular nas suas dimensões económica, política
e cultural. E se, por um lado, como defende Wallerstein, a economia mundial é cada
vez mais a extensão do sistema mundial capitalista, dominada pelas grandes

65
empresas transnacionais que se impõem ao próprio poder político (Wallerstein, 1990:
31 e ss), a industrialização da cultura, intrinsecamente associada aos velhos e novos
media, é factor axial no processo da globalização e, por isso, merece atenção
especial.
O alongamento espacio-temporal é um pré-requisito para a globalização. Ou,
por outras palavras, a compressão do espaço e do tempo é seguramente um dos
efeitos mais conseguidos pelas tecnologias da informação. E se para este efeito
contribuíram já de modo bastante incisivo os media tradicionais, a imprensa, a rádio, a
televisão, é inevitável que esse novo media que é a Internet contribua decisivamente
para fazer «do mundo um só local». A globalização da cultura e da informação é uma
componente fundamental que está por detrás de todas as outras dimensões
institucionais da globalização (Giddens,1990: 77).
E se para a formação do processo de globalização, convertido hoje em modelo
da modernidade, é interessante verificar, na análise dos mais diferentes autores
(McLuhan, Giddens, Harvey, Roseneau, Robertson, e outros), o contributo que para
isso tiveram o aparecimento do relógio mecânico, a invenção do dinheiro e da
electricidade, esse prolongamento do sistema nervoso central, e os rápidos meios de
transporte (McLuhan, 1964: 358), é imprescindível estudar e investigar o influxo que a
Internet veio trazer para a explosão de uma sociedade global, embora em tempos
diferidos de várias globalizações. A Internet é, provavelmente, «o mais eficaz meio
para realizar a compressão espaço-tempo» (Waters, 1999: 143).
Tal como outros autores, também defendemos que a globalização sempre foi
uma meta preconizada através dos tempos e das civilizações, com momentos mais
fortes e mais fracos, só que na contemporaneidade recebeu uma enorme aceleração.
Evidentemente que não é agora o lugar de considerarmos toda a complexidade deste
processo, nem tão pouco questionarmos a dimensão ideológica que o próprio conceito
de globalização comporta. Seja qual for a perspectiva de análise, parece-nos que fica
patente a oportunidade de investigar a Internet, como media e ferramenta decisiva
para a compressão do espaço e do tempo, como infra-estrutura base que delimita a
distância e condiciona a forma como as relações sociais decorrem. Estudar as
civilizações é sempre estudar o seu sistema de trocas. É pertinente, por isso, adoptar
o teorema de Waters: «as trocas materiais localizam, as trocas políticas
internacionalizam e as trocas simbólicas globalizam». Sem esquecer, porém, que
economia, política e cultura têm ordens de implantação e desenvolvimentos diferentes
consoante os países ou indivíduos em causa.
Com efeito, perante a Internet não estamos apenas diante de uma ilimitada
tecnologia de acesso e fornecimento de informação. Estamos diante de uma

66
tecnologia social, onde milhares ou milhões de diversos actores e sujeitos sociais
interagem, criando, portanto, dimensões novas de relação social e projectando até
porventura novas formas de organização social.
A análise desta dupla dimensão da Internet como tecnologia de informação e
como tecnologia social, enquanto de algum modo ordenadora de novos modos e
formas de vivencialidade e convivialidade, é complexa. Ainda nem completámos a
análise dos efeitos sociais ocasionados pelos media da primeira geração, por nós aqui
identificados como media tradicionais, e já estamos confrontados com as mudanças
operadas pelos media da segunda geração (Poster, 1995: 31).
Como tecnologia social, talvez mais expressamente dito, como tecnologia de
transformação social, a Internet é ainda uma realidade pouco conhecida. Limitamo-nos
a ficar à porta ou talvez até no patamar da porta do mundo ciberespacial de que a
Internet faz parte, embora não represente o todo desse «admirável mundo novo».
Precisamos, por isso, de indagar quem são geralmente os habitantes desse novo
espaço, quem são os utilizadores desse novo media e que tipo de utilização dele
fazem. (Oliveira e outros, 2000: 10-15).
Como acentua Robertson, sendo a globalização um fenómeno à escala
mundial, não dispensa, antes «envolve a relativização de pontos de referência
nacionais e individuais perante os de natureza geral ou supranacional» (Robertson,
1992: 22- 41). A tecnologia não é por si só condição de estabelecer uma democracia
mais participada. É por isso que aludimos ao vector mitológico. Partindo da Internet
como estrutura elixir para o estabelecimento de uma democracia deliberativa
participada, enfatiza-se por demais a capacidade da tecnologia disponibilizada,
esquecendo, ou fazendo esquecer, a condição diferenciada dos diferentes sujeitos na
utilização dessa tecnologia. A Internet ao permitir a realização de uma sociedade em
rede não a realiza por si. A «rede» é um paradigma e um meio capaz de «reinventar»
a «democracia electrónica. A própria imagem da rede, metáfora de grande carga
simbólica, não deixa de ser ambígua. A rede liga, mas também pode prender e
estrangular. As novas tecnologias, e em especial a Internet, abrem novas perspectivas
à cidadania, mas não são o garante único e exclusivo de uma democracia participada.
«Rede», essa palavra mágica que parece ser a chave da «democracia electrónica»,
exige infra-estruturas físicas, técnicas e tecnológicas, financiamentos próprios. Mas
acima de tudo, por parte dos indivíduos, uma enorme predisposição psicológica, social
e cultural para a utilização, manuseamento, rendibilidade das novas ferramentas que
fazem da «informação» «conhecimento» e do conhecimento participação consciente.
Para que não se repita a história da acumulação dos bens materiais, é preciso
reorganizar a capacidade de produção e distribuição dos bens imateriais (informação-

67
conhecimento-saber), característica fundamental da Sociedade da Informação, da
Comutação, do Conhecimento. (Schiller, 1996: 62).

3. Internet, democracia electrónica e cidadania participada

Este fácil enunciado de quanto a «Sociedade da Informação» vem beneficiar a


democracia merece aprofundada reflexão. Com a disponibilização que a «Sociedade
da Informação» faz ao emprego das novas tecnologias tem-se construído um discurso
francamente optimista dos efeitos positivos da aplicação da informática nos sistemas
políticos democráticos. (London, 1995: 2). Sabemos que nos diversos autores a
utilização dos diferentes conceitos – teledemocracia, ciberdemocracia, democracia
electrónica – não é indiferente e alude mesmo a sentidos diversos. Para uma
operacionalidade da reflexão que queremos fazer a propósito da cidadania participada
numa «Sociedade da Informação e Comunicação» utilizaremos mais correntemente a
expressão «democracia electrónica» na acepção que lhe dá Stefano Rodotá,
implicando não só novas conceptualizações mas também diferentes campos de
experimentação que a introdução do uso das novas tecnologias vem trazer às práticas
democráticas da participação dos cidadãos. (Rodotá, 1999).
Democracia e cidadania não dizem respeito apenas a um dado quadro de
direitos e aos mecanismos formais de participação no sistema político. Implicam todo
um conjunto de aspectos relacionados com a intervenção na vida pública, nos planos
de actuação individual e da acção colectiva, e os modos como as dinâmicas
institucionais e informais da sociedade civil são incorporadas nos processos de
representação política e governo democrático.
O debate sobre a «democracia electrónica» tem como pano de fundo um
contexto social marcado por sintomas de crise dos regimes democráticos, debatida
desde os anos 70 por iniciativa de autores como, entre outros, Jürgen Habermas ou
Claus Offe. Inicialmente centrado sobre a televisão, e depois reorientado face à
emergência da Internet, este debate tem decorrido num contexto social marcado pela
reflexão sobre vias alternativas para promover a legitimidade dos regimes
democráticos e o reforço da participação dos cidadãos na vida pública.
Toda a argumentação tem vindo a organizar-se em torno da dicotomia
«democracia representativa»/«democracia directa», sendo esta considerada como
«uma oportunidade finalmente proporcionada pelas novas tecnologias» (Rodotá, 1999:
12).

68
É grande o entusiasmo por parte de alguns autores pelas virtualidades que as
novas tecnologias podem acrescentar à participação dos cidadãos na democracia,
tornando-a mais representativa e deliberativa. Vários destes autores sublinham «…a
necessidade de redesenhar a democracia, tornando-a mais representativa e mais
deliberativa, de forma a servir as ideias democráticas. (…) Estes autores diferem nos
detalhes dos seus diagnósticos da crise das democracias modernas, mas partilham a
premissa geral de que a existente infra-estrutura social de suporte e encorajamento do
debate público e da acção política tem vindo a ser severamente erodida e minada
(Tsagarousianou, Tambini e Brian, 1998: 5).
Aliás, Ted Becker perfilha igualmente deste entusiasmo quando afirma que “a
utilização das modernas comunicações electrónicas e tecnologias da informação dá
aos povos das democracias o poder de contribuirem para estabelecer agendas,
determinar prioridades e participar nas decisões políticas e na respectiva
implementação” (Becker, 1999).
Efectivamente, a difusão desta infra-estrutura base - preconizada como
excelente - para o desenvolvimento da democracia - a Internet - tem sido vertiginosa.
Na história dos media, é mesmo aquele medium que até hoje teve um crescimento
mais rápido. Em cinco anos atingiu uma população média de 50 milhões de utentes,
quando para atingir estes valores, a rádio levara 38 anos, a televisão 13 anos e o
computador pessoal 16. Entre 1988 e 1998, o número de computadores ligados à rede
passou de 100 mil utilizadores para 36 milhões e em 1999 esse número cifrou-se em
195 milhões. Uma previsão do Economist (1998b) afirmava que em 2001 mais de 700
milhões de pessoas estariam em rede – algo que se concretizou. Só que a distribuição
desta população de utentes da Internet no Mundo é muito desigual e, segundo dados
do Relatório do Desenvolvimento Humano (PNUD, 1999), enquanto os Estados
Unidos, apenas com 5% da população mundial, tinha mais de 50% dos utilizadores da
Internet no mundo, o Sul da Ásia, com mais de 20% da população mundial, possuía
menos de 1% dos utilizadores dessa ferramenta. O conjunto dos países da OCDE,
com 19% da população mundial, contava com 91% de utilizadores.
Como salienta o referido relatório, até agora aqueles que têm acesso àquela
rede constituem «a alta sociedade da rede» e o «acesso habitual à Internet segue as
fracturas das sociedades nacionais, separando instruídos de analfabetos, homens de
mulheres, ricos de pobres, jovens de idosos, urbano de rural» (PNUD, 1999: 62).

4. Mas, afinal, o que é a Internet?

69
A Internet é produto de uma complexa interacção entre um (projecto) militar-
industrial norte-americano e o clima do Maio de 68, dos protestos universitários contra
a guerra do Vietname e da contracultura hippie. O resultado foi uma tecnologia capaz
de resistir a quebras na hierarquia de comando, assegurando a comunicação entre as
estruturas militares remanescentes a eventuais ataques militares, promovendo assim
trabalho cooperativo sobre uma estrutura em rede. Mas se a encomenda foi realizada
por uma estrutura que, na sua cultura base, assenta no controle hierárquico, a sua
criação e posterior utilização couberam a uma comunidade científica que vivia uma
dada época, caracterizada por Pepino Ortoleva como sendo de «utopia comunicativa».
A apropriação social e a estruturação da cultura associada à Internet foi assim definida
nos seus primeiros anos de vida com base em três processos complementares: a
democratização do acesso, com a criação de uma arquitectura que permitisse
facilmente ter «voz», ou seja, entrar no sistema e tornar-se membro da comunidade; a
comunicação a partir de baixo, através da introdução do email e mais tarde dos
newsgroups e mailing-lists, que tinha subjacente um ideal de recusa da estruturação
hierárquica dos media tradicionais ao mesmo tempo que se destruíam as barreiras de
separação entre alta e baixa cultura e se implementavam lógicas de autoria múltipla ou
partilhada, como no caso dos threads de discussão; a diversificação do público, em
contraposição à ideia de um público de massa, homogéneo e atomizado, uma vez que
a estrutura oferecida pelos grupos de conversação e páginas web oferecia uma
multiplicidade de escolhas diversificadas, permitindo simultaneamente a constituição
de células colectivas de partilha de interesses.
Deste modo, a Internet reúne duas culturas diferentes, ainda hoje
manifestas naquilo que podemos descrever como a luta para a definição das
lógicas de apropriação e, consequentemente, de participação associadas a este
novo medium. Fausto Colombo denomina essas forças «centrípetas» ou
«centrífugas», quer propiciem maior controlo ou maior liberdade (Colombo,
1999).
Tal como outras tecnologias de informação e comunicação, a Internet é
efectivamente um espaço permeável ao surgimento de forças centrípetas e
centrífugas, pelo que não deve ser entendido estritamente, nem na perspectiva dos
ditos ciberlibertários, que a consideram a última fronteira para uma transformação da
sociedade baseada no primado da liberdade individual, nem na perspectiva oposta,
enquanto novo panopticon ou eschelon que terminará com qualquer fronteira de
privacidade. Umberto Eco, na conferência «One World One Privacy» recomendava
que, antes de olharmos para as possibilidade e práticas que a tecnologia nos oferece,
devemos porventura perguntar a que privacidade poderemos aspirar numa sociedade

70
que, culturalmente, valoriza mais o exibicionismo que o recolhimento. Este
pensamento, para além de traduzir uma das preocupações mais frequentemente
referidas pelos utilizadores da Internet, impele-nos a compreender que o que ocorre na
Internet não pode ser dissociado de uma realidade mais vasta. Evidentemente, a
realidade cultural das nossas sociedades não se limita à Internet, nem se sujeita às
suas características numa relação unívoca. A Internet influencia mas também é
influenciada pelo que ocorre fora dela. Manuel Castells captura de forma incisiva esta
noção de interdependência ao designar a Internet como uma «forma de organização
social» (Castells, 1996). A Internet representa para a organização da sociedade, nas
suas diversas dimensões, algo de similar à introdução da fábrica no processo
produtivo, com as implicações que conhecemos nos mais diversos planos: da família à
produção cultural e comunicação. A Internet oferece novas formas de organização do
trabalho, de estruturação do emprego, de afirmação da cidadania, de geo-política. Mas
da possibilidade à realidade transformada vai uma distância idêntica à que medeia
entre a utopia e a sua concretização. Existe uma mudança em curso, mas essa
mudança dependerá muito da forma como for apropriada pela população. Questões
como a criação de competências educacionais para a utilização das tecnologias de
informação, o custo de equipamentos e comunicações a par do nível de vida de cada
região e país, determinarão o sucesso ou insucesso da difusão daquela tecnologia.
Mas a sua força transformadora reside igualmente na capacidade de criar
utilizadores com uma perspectiva crítica, capazes de lidar com a quantidade de
informação e a capacidade de dizimá-la, bem como em destrinçar a qualidade dessa
informação.
Assim, ao falar de cidadania na Internet não deveremos deixar de
questionar como poderemos potenciar as práticas institucionais da democracia
representativa através do uso das tecnologias de informação e comunicação, ou
que papel poderá desempenhar a Internet na consulta aos cidadãos.

5. A geografia imperfeita da Internet

A Internet deve também ser entendida enquanto campo de comunicação onde


urge ultrapassar a dimensão das desigualdades face à informação. Desigualdades que
se manifestam na distribuição da população com acesso às tecnologias de informação,
ou seja, na condição necessária para a participação numa sociedade assente na
informação enquanto bem universalmente valorizado cultural, social e
economicamente, mas também noutros níveis menos perceptíveis numa primeira

71
análise, nomeadamente no que diz respeito às assimetrias nas condições de
acessibilidade produção e recepção. São assim de considerar, em particular, cinco
itens de desigualdades:

- desigualdade no acesso às tecnologias de informação e comunicação;

- desigualdade na produção de conteúdos e valor;

- desigualdade na capacidade de validar a informação;

- desigualdade no acesso online à informação produzida;

- desigualdade na criação de memória individual e social.

A importância do acesso às tecnologias de informação e comunicação será


fundamental para a constituição de sociedades mais democráticas na medida em que
só esse acesso poderá permitir a diversidade de vozes ouvidas e a consequente
construção do processo de integração democrática e de formação de opinião pública.
Só assim se poderá aspirar a consolidar um direito à informação e comunicação, que
não se esgota no acesso à informação e na possibilidade de comunicar com terceiros,
mas que igualmente se centra no alcance que a voz de cada um poderá ter. Numa
sociedade em que a comunicação e a informação jogam um papel central, quem
desempenhar o duplo papel de consumidor e de produtor de informação, estará mais
bem colocado para usufruir das potencialidades da «Era da Informação». Se a Internet
é uma forma de organização social, será tanto mais útil quanto os cidadãos tiverem
consciência da sua diversidade e das ferramentas para lidar com ela.

Conforme é notado no Relatório Falling Trought the Net II (1998), existe na


sociedade americana uma «divisão digital entre os que têm e os que não têm. Os
dados mostram claramente que o crescimento do uso e posse de computadores tem-
se distribuído de forma desigual. (…) A disparidade na posse de computadores entre
os grupos com rendimentos mais altos e mais baixos tem crescido desde 1994. (…) De
forma semelhante, houve um crescimento da diferença entre os lares de famílias
brancas e hispânicas de 14,8% em 1994 para 21,4% em 1997. Entre os que menos se
ligam à Internet estão os que na sociedade americana não têm posses: os pobres
rurais, as minorias rurais e urbanas e os lares encabeçados por mulheres.»

Por sua vez, Moss e Mitra, no estudo «Net Equity», afirmam que o actual
modelo de acesso à Internet, baseando-se em subscrições, nunca será capaz de
proporcionar acesso a todos. Assim, para os mais desfavorecidos, as bibliotecas

72
escolares ou os centros comunitários constituirão os principais canais de acesso à
rede (cit. in. Margolis e Resnick, 2000: 213).
A capacidade de produzir e divulgar as diversas produções culturais em
«formato digital» na Internet é uma vertente que deve ser tomada em consideração,
quer no campo do desenvolvimento educativo, quer no da afirmação das identidades
individuais, colectivas e nacionais.

Trata-se de um poder acrescido dado aos utilizadores. Não um poder individual,


mas sim colectivo, pois só é válido porque partilhado por um número alargado de
pessoas. Poder neste caso não representa capacidade de propor alternativas. Os
cidadãos consumidores, ao partilharem uma visão de valor associada a determinados
produtos e serviços, estão a promover um contrapoder face aos interesses de
produtores e distribuidores, que por sua vez terão de fazer uso dessa leitura para o
sucesso da introdução de produtos comerciais em formato digital na Internet. Os bens
culturais digitais, como a música, o cinema, a informação jornalística, a literatura, não
serão certamente gratuitos no futuro. Mas o facto de uma partilha de valores promover
lógicas opostas às praticadas pelos produtores e distribuidores implicará novos
consensos e arquitecturas comerciais. Nesta perspectiva, poderemos afirmar que a
Internet promove um novo papel para o consumidor ao criar uma cultura de partilha de
valores que lhe confere maior voz. Todavia, é importante não esquecer que o
consumidor que actua na esfera do comércio electrónico não o faz apenas nesse
espaço. O comércio electrónico para o utilizador é um complemento e não um
substituto de outras formas de comércio e como tal a sua participação nesse espaço
não encerra novos papéis. A sua autonomia de escolha pode ser aumentada, a sua
opinião valorizada, mas continuará a defrontar as mesmas lógicas tradicionalmente
presentes na esfera comercial.

Questões como a objectividade da informação, a posse dos meios de difusão


(sejam eles portais ou páginas) e a influência dessa posse na recepção da informação
ganham uma nova dimensão quando olhadas já não na dimensão dos 500 canais
globais, da rádio que vai ao fundo do Mundo/Rua ou dos semanários e diários de
referência, mas sim à dimensão dos 800 milhões de páginas e das centenas de Portais
nacionais e globais que contribuem para a construção das nossas representações da
Internet enquanto espaço de Filtros, Montras e Notícias.
A questão da qualidade e quantidade de informação e da forma como lidar com
ela são o ponto de partida para perceber que nem tudo se joga no acesso às novas
tecnologias de informação e comunicação e que, para além da destreza na utilização

73
da informática, o pensamento crítico e a dedução são ferramentas fundamentais para
as diversas dimensões da interacção social na sociedade em rede.
No princípio de um novo século, uma das interrogações que o aparecimento da
Internet pode estar a promover diz respeito à quantidade de informação disponível.
Lawrence e Giles estimaram que em 1999 a Internet albergaria cerca de 800 milhões
de páginas distribuídas por 3 milhões de servidores, acessíveis a partir dos cerca de
4,3 biliões de endereços existentes. Estimaram igualmente que cerca de 88% da
informação disponível fosse de carácter «comercial», seguindo-se 6% de informação
educativa/científica e cerca de 2% de informação pornográfica (Lawrence e Giles,
1999).
A passagem de um universo de meios finito, o dos mass media tradicionais,
para um de possibilidades alargadas na criação de novos meios, coloca questões não
só quanto ao posicionamento dos mass media face à Internet, mas também sobre o
modo como podemos orientar-nos num espaço que se assemelha mais à «Biblioteca
de Babel» de Jorge Luís Borges (1998), do que a qualquer uma das bibliotecas
municipais ou universitárias a que tenhamos acesso.
Se uma perspectiva utilitária e de entreajuda presidiu ao aparecimento dos
primeiros serviços de busca na Internet pré-massificada, a perspectiva comercial tomou
em breve (rapidamente) conta da maioria destes serviços, como exemplificam vários
casos de directórios criados no meio universitário e mais tarde tornados elementos
centrais na chamada nova economia com aquisições ou valorizações bolsistas de
grande dimensão financeira.
A visão que presidiu ao interesse comercial pelos serviços de busca terá sido a
mesma que esteve na origem desses mecanismos: o valor atribuído à orientação na
Internet. A percepção dessa necessidade levou ao surgimento dos Portais, por via de
uma estratégia comercial de consolidação de presença no mercado da «Nova
Economia» e da necessidade de fidelizar os consumidores a um produto genérico, o
acesso à Internet (passível de apenas ser diferenciado em custo e qualidade de
acesso).
Os Portais não surgem apenas como motores ou directórios de informação, têm
um valor comercial pelo facto de levarem até si um extenso número de utilizadores,
pelo que o comércio, a par de novos serviços e notícias, se vem juntar às suas
funcionalidades iniciais.
Mas não bastará percepcionar o papel central dos Portais na gestão da
informação. Importa igualmente ter presente que os mesmos actuam como
gatekeepers, não tanto na perspectiva tradicional de utilização do termo, referenciada à
imprensa tradicional, mas como filtros, quer positivos quer negativos. A sua pesquisa é

74
feita com base em opções de valorização ou desvalorização de ocorrências. Por um
lado, como salientam Lawrence e Giles, os seis maiores motores de pesquisa
conjugados apenas referenciam cerca de 60% do total da informação disponível na
parte pública da web, ou seja, todas aquelas páginas que não estão protegidas por
códigos de acesso ou por qualquer outro tipo de mecanismos de selecção.
À percepção de que 40% da informação pública produzida não é passível de
ser indexada por escolha ou limitação tecnológica dos motores vem juntar-se o facto de
existir uma forte correlação entre as páginas que possuem referências entre si e a
probabilidade de as mesmas serem indexadas. Isto é, quanto maior número de links
existir a apontar para uma determinada página, maiores as probabilidades de a mesma
surgir referenciada num motor de busca.
Por último, importa referir que muitos dos motores de pesquisa reajustam os
seus resultados hierarquicamente em função das opções mais frequentes nas
utilizações anteriores.
Os Portais são o retrato do modelo de interface, ou Internet gatekeeping, que o
utilizador em geral possui face à Internet. Da sua análise e da compreensão da sua
estrutura comunicativa e informativa dependerá grande parte da nossa percepção do
processo do sistema dos media ou sistema multimédia, e da própria sociedade na sua
dimensão comunicativa.
As questões em torno daquilo que designámos como Internet gatekeeping
afiguram-se assim centrais para problematizar a comunicação na Internet, pois quanto
maior for a quantidade de informação mais aumentará a necessidade de auxiliares de
pesquisa.

Outro aspecto é o de saber que instrumentos utilizar na filtragem da informação


e como avaliar a qualidade da mesma. A Internet é um espaço que coloca novas
dúvidas quanto à aplicabilidade das estratégias de «dizimação da informação» perante
um Mundo de informação diferenciada, onde o conhecimento directo de cada indivíduo
e a análise lógica face à multiplicidade de assuntos não é humanamente possível.
Consequentemente, a capacidade dos utilizadores para gerir as estratégias de
validação da informação é substancialmente reduzida quando comparada com o uso
de outros meios de acesso à informação como a televisão.
A proposta que aqui gostaríamos de deixar é a de que as teorias da recepção
desenvolvidas no quadro dos estudos sobre a televisão poderão constituir valiosos
pontos de partida para o estudo de uma comunicação que, apesar de interactiva e com
uma dupla dimensão de produção/consumo de informação, retoma no essencial muitos
dos traços desenvolvidos nos trabalhos publicados sobre estas teorias.

75
A dimensão da pesquisa é fundamental para a percepção dos processos de
Internet gatekeeping. Mas, como já vimos, as potencialidades do software não
traduzem a totalidade da dimensão da filtragem, sendo igualmente fundamental
perspectivar o posicionamento dos actores sociais face à recepção da informação, por
forma a seleccioná-la ou a rejeitá-la.
Ora a Internet, pelas suas próprias características, apresenta a informação de
uma forma mais segmentada e menos generalista. Todavia, a qualidade da informação
não é assegurada por nenhuma entidade em particular, transferindo assim para o
utilizador algumas das responsabilidades de validação da informação que estavam
presentes no sistema dos mass media na dependência do Estado ou na de empresas
com responsabilidade pública.
Uma futura sociedade de informação não será obrigatoriamente um modelo de
produção de conhecimento e de igualdade de capacidade para lidar com a informação.
Poderá bem ser a sociedade daqueles que se encontram excluídos do acesso à
informação, a par da sociedade daqueles que são submergidos pela incapacidade de
lidar com a quantidade, a selecção, a memória, provocando complicados fenómenos
de info-alfabetização e info-exclusão, em especial entre grupos e países mais
desfavorecidos económica e socialmente. Por último, será uma sociedade fruída
plenamente por aqueles que tiverem a capacidade de deter os mecanismos de
selecção, tratamento da informação e produção de conhecimento. «Num momento de
progressos tão marcantes nas novas tecnologias é indefensável que a pobreza
humana ainda persista. O mais espantoso porém é que o caminho actual pode levar a
uma maior marginalização e vulnerabilidade dos pobres» (PNUD, 1999: 73).

O mapa da configuração mundial das desigualdades entre os povos e os


diferentes indivíduos, neste aspecto, afigura-se comprometedor para um
desenvolvimento mais universalizado e global.

É preciso «tornar as comunicações mundiais verdadeiramente mundiais»


(PNUD, 1999: 63). Para isso há que desenvolver esforços na realização de objectivos
reais no caminho para uma «Sociedade da Informação».

6. Os estados e a regulação da participação na Internet

Uma análise comparativa das políticas e programas de governo em muitos dos


países considerados centrais ou semi-periféricos permite-nos constatar que entre os

76
objectivos mais partilhados se destaca a ideia da criação de uma sociedade assente
no papel fundamental das tecnologias de informação e comunicação. Portugal,
enquanto membro da União Europeia, apresenta-se como um interessante estudo de
caso, não sendo um dos países mais desenvolvidos do continente europeu possui
uma infraestrutura tecnológica e recursos humanos que lhe permitem criar as bases
para um desenvolvimento de políticas informacionais com o objectivo programático de
criar uma Sociedade baseada na Informação.
Wolfang Truetzchler identifica seis grandes áreas de intervenção do Estado
em torno das redes, nas suas utilizações e possibilidades: obscenidade, outros
conteúdos ofensivos, aspectos económicos, privacidade, encriptação e acesso
(Truetzchler, 1998).
Deixando de lado, uma análise mais pormenorizada às restantes áreas,
interessa-nos, no contexto da problemática do incremento a uma maior participação
dos cidadãos na democracia, relevar a questão do acesso. Quer estejamos a falar
numa perspectiva de criar consumidores ou do acesso dos cidadãos ao espaço dos
fluxos, importa saber quantas pessoas acedem e quem são elas, por forma a delinear
as políticas tendentes ao alargamento desse acesso. As duas grandes linhas de
influência parecem oscilar entre a necessidade de criação de um serviço público para
o acesso à Internet, na mesma linha do serviço público de telefone, e a criação das
condições para um acesso universal (Schiller, 1999).
No entanto, Kurland e Egan sugerem que o acesso não se limita à questão
tecnológica, mas igualmente à cultura existente nas redes que constituem o espaço
dos fluxos, simbolizado pela Internet. Aqueles apontam assim três tipos de barreiras
ao acesso: educacionais, económicas e culturais. As barreiras educacionais resultam
do facto de a interacção social na Internet requerer o domínio e a familiaridade com
um certo tipo de hardware e de software, o qual não pode ainda ser obtido em todas
as instituições educativas. As barreiras económicas são essencialmente fruto dos
custos relativos à aquisição de software e hardware, bem como dos custos associados
à utilização do telefone e ao acesso ao Internet Service Provider. Por último, importa
explicitar que por barreiras culturais entende-se as que derivam do facto de dominar
um discurso masculino em muitos dos fora online, uma cultura predominantemente
americana e o uso do inglês enquanto língua base para a comunicação na Internet.
No caso português a informação recolhida quer por empresas de estudos de
mercado, quer por entidades académicas, permite-nos tentar delinear já um perfil
quantitativo do acesso. Assim, recorrendo ao estudo do ISCTE-MSSTUDY II, e
citando-o apenas como exemplo paradigmático, podemos dizer que cerca de 45% dos
portugueses tem acesso a um computador, o que, no entanto, não quer dizer que

77
façam ou saibam fazer uso do mesmo7. Os valores são mais reduzidos quando se
inquire sobre o acesso à rede, (só 23,5% dos inquiridos afirma possuir acesso), ou
sobre a real utilização da Internet (apenas 19,1% referem ser utilizadores activos).
Em democracia, a cidadania depende da liberdade de informação e do acesso
aos meios de comunicação. Acontece, no entanto, que com a Internet o acesso e a
participação assumem novos contornos e significados, resultantes da própria natureza
e características do meio, do contexto social, do conjunto de condições necessárias à
sua utilização e do alargado leque de potencialidades, englobando-se numa mesma
plataforma vários domínios de actividade profissional, institucional e empresarial, da
vida quotidiana e da participação cívica. (Raboy, 1999: 298). Em relação ao acesso e
uso de meios de comunicação no quadro de um debate sobre democracia e cidadania,
uma das questões básicas é a de saber quem acede, e em que condições, e quem
está afastado ou incluído. “O potencial das tecnologias de informação e comunicação
para facilitar «democracias fortes» deve ser questionado se se recusa
sistematicamente o acesso às pessoas com base no seu estatuto económico, sexo,
localização geográfica, nível de escolaridade, etc.” (Hague e Loader, 1999: 9).
Dado o número de utilizadores a nível mundial e tendo em conta o conjunto de
questões levantadas sobre as novas competências necessárias para uma utilização
plena da Internet enquanto espaço de participação, como se desenvolvem alguns
processos de afirmação da cidadania no quadro nacional e internacional?

7. Novos media e novos espaços de mediação

Partindo do pressuposto de que nos encontramos perante um novo media que


assume ora funções de convergência multimedial ora se converte num novo suporte
para os velhos media, como a rádio, jornais ou televisão, importa desde já questionar
se a participação neste espaço configura novas formas de mediação.
A resposta é complexa e poderá sempre levar-nos em diferentes direcções, no
entanto, julgamos encontrar na proposta de Majid Theranian, sobre os processos de
mediação política conferidos aos media nas sociedades contemporâneas, um bom
ponto de partida. Theranian apresenta-nos um esquema de leitura das forças em
acção no campo político internacional e o papel que os media aí desempenham como

7
Estudos nacionais e internacionais tendem a privilegiar o acesso em detrimento da utilização o que se
ficará a dever essencialmente à fase incipiente da presença e utilização da Internet a nível mundial - a
WWW existe desde 1995 e o número total de utilizadores rondará 304 milhões (http://www.nua.ie).

78
espaço de interacção entre os poderes políticos instituídos e as diversas alternativas
de pensamento, protagonizadas por organizações ou por indivíduos.

Aquilo que pretendemos colocar em discussão, a partir de alguns exemplos


concretos da realidade portuguesa e internacional, é saber se é possível olhar para a
Internet enquanto espaço de participação de características homogéneas ou se, pelo
contrário, existem modelos de participação que encerram em si diferentes
perspectivas e, consequentemente, diferentes apropriações do meio. No nosso
entender, a Internet pode desempenhar uma dupla função na participação dos
cidadãos: a de estrutura organizadora de movimentos de efectiva participação e a de
espaço de autêntica mediação política.

79
Processo de Formulação de Políticas e participação através dos media

Processo de Topo-Base: desencadeado pelos interesses e políticas governativas e empresariais

Recursos Definição Formulação da Legislação Legitimação Implementação e


Problema Política da Política regulação
Naturais, Comissões, Governos e Legisladores Políticos, Corporações
tecnológicos e grupos de grandes nacionais e publicitários, económicas,
humanos reflexão, corporações organizações imprensa. governos,
associações económicas internacionais organizações
empresariais internacionais,
entidades
reguladoras

Processo de Mediação: desencadeado pelas construções da realidade e discursos dos media em resposta
a governos e oposição

Recursos Definição Formulação Legislação Legitimação Implementação


Problema da Política da Política e regulação
Redes de Imprensa de Donos dos Leis nacionais sobre Redes de Associações dos
comunicação referência media e os media, acordos comunicação media
nacionais e editores internacionais sobre nacionais e
globais direitos de autor, Globais
alocação de espectro
e standards técnicos

Processo Base - Topo: desencadeado pelos poderes pequenos e médios, partidos oposição e associações

Recursos Definição Formulação da Legislação Legitimação da Implementação e


Problema Política Política regulação
Naturais, Associações, Associações, Parlamento, Acesso aos Associações de
tecnológicos e movimentos de movimentos de iniciativas media voluntários,
humanos direitos sociais, direitos sociais, legislativas tradicionais sindicatos,
sindicatos, sindicatos, dos cidadãos (imprensa instituições
movimentos movimentos escrita, rádio e religiosas e civis,
religiosos, religiosos, televisão), associações de
partidos da partidos da Novos Media consumidores
oposição, grupos oposição, grupos (Internet),

Alguns exemplos: Timor, Seatle e as Redes Cívicas

Exemplos deste tipo de organização informal podem ser encontrados no caso


do protesto contra a repressão indonésia aos resultados do referendo de
autodeterminação de Timor-Leste, uma situação em que os indivíduos com acesso a
email e a fax’s criaram redes de solidariedade que causaram a interrupção nos
servidores de email e fax das delegações do Conselho de Segurança da ONU e das
diversas chancelarias dos membros permanentes do Conselho. Neste caso a partilha
de um valor comum a nível nacional, o apoio à autodeterminação de Timor e a ideia de
que a acção ao nível local não permitiria uma participação eficaz na resolução da
situação, conduziu alguns milhares de portugueses, durante Setembro de 1999, a
utilizar a Internet como faxgateway ou o email com o objectivo de obter a atenção da
comunidade internacional. Utilizou-se, assim, a Internet de forma não organizada a

80
partir de uma mobilização pré-existente a nível nacional com o objectivo de se fazer
ouvir a nível internacional. Apesar de a mobilização não ter sido propiciada através do
meio Internet, encontrou aí forma de potenciar a participação.
Já o caso dos protestos de Seattle se afigura de algum modo diferente. Como
salienta Stefano Rodotà, os protestos ocorridos aí durante o "Milleniun Round" da
OMC foram organizados através da Internet mas só ganharam visibilidade e poder de
mediação através das imagens difundidas pelas televisões para todo o mundo. A
Internet assumiu assim o papel tradicionalmente assumido pelas estruturas em rede,
ou seja, possibilitou que pessoas com interesses similares, ainda que dispersas,
pudessem coordenar as suas acções. Para além desse papel organizativo conferido à
Internet, o interesse em analisar aquela forma de protesto reside no facto de se poder
entrever complementariedade para a eficácia da mediação dos meios. Os
participantes nas acções de protesto compreenderam bem que apenas o recurso à
Internet, um media ainda minoritário em termos de aderentes, não conferiria a
legitimidade nem a força necessárias a colocar num impasse as negociações da
OMC. Daí a necessidade de tomar as ruas em acções de protesto, organizadas
através da Internet, mas difundidas pela televisão, o medium de massas por
excelência na viragem do milénio.

É de tomar igualmente em conta as acções desencadeadas pelo Movimento das


Redes Cívicas, as «Civic netorks», na estratégia do uso das tecnologias para aumentar
as práticas democráticas. Embora desenvolvendo na maior parte das vezes um
investimento utópico na tecnologia isolada do seu contexto social, com objectivos pouco
realistas, é de registar o seu empenho na exigência de mudança nos modos de regular
as tecnologias da informação e comunicação, nas políticas no domínio da comunicação
e telecomunicações orientadas pelo princípio de interesse público, na luta por novas
oportunidades para a acção política colectiva e de procedimentos que proporcionem
uma mais directa representação dos interesses e preferências dos cidadãos (Garnham,
1990: 16 e ss).
Uma coisa ficou clara: a democracia electrónica não pode, por si só,
democratizar as comunidades que serve.
Parece-nos, assim, fundamental ter presente que na utilização da Internet a
partilha de um igual valor simbólico entre emissores e receptores e o reconhecimento
das culturas associadas aos diferentes media se afigura como fundamental para uma
participação efectiva.

Neste sentido, devemos olhar para a Internet enquanto instrumento propiciador


da participação nas suas múltiplas facetas. Não só ao nível dos diversos tipos de

81
software, mas também a possibilidade de permitir concertar posições e como tal agir
enquanto media propiciador da organização e preparação de iniciativas, e também
enquanto meio de comunicação que permite interagir entre as dimensões nacional e
internacional em processos bidereccionais base-topo e topo-base. A Internet é, assim
como os velhos media, promotora de processos de mediação política resultantes da
participação.
Através da sua estrutura em rede, a Internet promove a organização informal,
característica de muitos dos novos movimentos sociais contemporâneos, ao mesmo
tempo que reforça e renova estruturas do Estado que, não abandonando a sua
perspectiva organizativa hierárquica, inicia igualmente processos de interacção em
rede.

8. Democracia electrónica e participação cívica

Como salientámos anteriormente, os conceitos de «teledemocracia» ou de


«ciberdemocracia» têm por vezes, na linguagem comum, referência indistinta no que
diz respeito à expressão «democracia electrónica». Evidentemente que autores como
Christopher Arterton, Ted Becker, Bart-Jan Flos, Roza Tsagarousianou, Damian
Tambini, Mark Poster, precisam muito bem conceptualizações diferentes e
caracterizam de forma distinta esses termos. No entanto, a discussão no âmbito da
ciência política centra-se mais nos conceitos de democracia representativa e
democracia directa, democracia representativa e democracia deliberativa. Mas a
discussão que temos vindo a introduzir neste paper não se circunscreve apenas a
questões pragmáticas sobre a forma como se processam as votações ou referendos
electrónicos ou, na expressão de Richard Hollander, não se resume a uma simples
operação de «button push democracy». A nossa preocupação recai sobre o uso das
novas tecnologias e o papel que estas podem desempenhar no desenvolvimento de
várias formas e processos que podem fazer aumentar a participação dos cidadãos na
democracia. Por isso, e como dissemos anteriormente, o termo «democracia
electrónica» engloba o conjunto de meios que podem concorrer para aumentar as
práticas democráticas e ampliar a esfera pública. Neste sentido, e a título
exemplificativo, refira-se o caso português do Livro Verde para a Sociedade da
Informação em Portugal, elaborado pela Missão para a Sociedade da Informação, na
tutela do Ministério da Ciência e Tecnologia, que prescreve uma exaustiva lista de 72
medidas de formas de participação pública por parte dos cidadãos.

82
Saliente-se a este propósito a posição assumida por Tsagarousianou, Tambini
e Brian, ao reconhecerem que os novos media podem ajudar a superar os problemas
que os velhos media trouxeram à política: «os novos media, e particularmente a
comunicação mediada por computador, espera-se, poderão contribuir para reverter
prejuízos inflingidos à política pelos velhos media (…). Considera-se que novas
esferas públicas irão surgir e que as tecnologias permitirão aos actores sociais
encontrar ou forjar interesses políticos comuns. As populações poderão aceder
activamente a informação numa biblioteca virtual infinita e livre em vez de receber
“programações meio-digeridas”, e os media interactivos institucionalizarão o direito à
resposta» (Tsagarousianou, 1998: 5).
Igualmente, Barry Hague e Brian Loader, reconhecem que os novos media
possuem características que em muito podem contribuir para o desenvolvimento das
práticas democráticas, tais como:

- interactividade – pode haver comunicação com reciprocidade entre muitos


utilizadores;
- rede global – a comunicação deixa de estar agrilhoada pelas fronteiras
dos Estados-nação;
- liberdade de expressão – é possível expressar opiniões sem as limitações
da censura estatal;
- liberdade de associação – é possível aderir a comunidades virtuais com
interesses comuns;
- construção e disseminação de informação – é possível produzir e partilhar
informação que não esteja sujeita a revisão ou sanção oficial;
- desafio às perspectivas profissionais e oficiais – a informação estatal e
profissional pode ser desafiada;
- colapso da identidade dos Estados-nação – utilizadores podem adoptar
identidades locais e globais (Hague e Loader, 1999: 6).

Uma das vertentes em que a Internet tem sido considerada como um contributo
inovador na actividade política tem que ver com a aproximação entre os actores e as
instituições do sistema político e os cidadãos.
São vários os planos a colocar em análise: a informação e comunicação de
cidadania a partir dos orgãos de soberania e dos departamentos governamentais; o
auscultar de públicos e a organização do feedback, como condição de eficácia e
legitimação política, e como via de maior protagonismo dos serviços da administração; a
informação e a comunicação das personalidades e dos partidos políticos com os

83
eleitores; a criação de espaços de debate que potenciem a participação e a intervenção
deliberativa dos cidadãos nos assuntos públicos, configurando novas dimensões da
esfera pública.
Todavia, muitos se interrogam: em que medida os usos das tecnologias de
informação, da Internet em particular, na actividade política, estão a contribuir para
redefinir e reestruturar o funcionamento dos sistemas democráticos, permitindo
respostas adequadas às várias dimensões da «crise da democracia» nos países com
sistemas de democracia representativa de modelo ocidental?
Em resposta pensamos que é de tomar em conta o balanço e a reflexão
realizados por Hoff, Horrocks e Tops, a partir de estudos realizados em três dos «mais
avançados» países europeus – Dinamarca, Holanda e Reino Unido – sobre as
utilizações e as implicações, em termos da política e da cidadania, dos modos de uso
das tecnologias de informação em algumas dimensões da actividade política.
De particular interesse é o facto de assentar em estudos empíricos da realidade
europeia, dado que até aqui este debate tem sido dominado por trabalhos de autores
referenciados às características do sistema político americano, algo diferente como se
sabe do quadro político deste outro lado do Atlântico. Baseando-se em três planos de
análise, cidadãos – administração, cidadãos – partidos, e cidadãos entre si, esta
pesquisa, embora sem deixar de relevar alguns dos riscos colocados à cidadania, como
por exemplo, o de violação de privacidade e o predomínio da lógica de difusão de uma
informação «top/down» ou de um reforço das burocracias, segundo Van de Donk as
«infocracias», sublinha as inovações e os benefícios trazidos à participação dos
cidadãos na democracia. (Hoff, Horrocks e Tops (eds.), 2000: 173 e ss.).

A análise dos aspectos positivos e negativos das tecnologias da informação e


comunicação na vida social e política permitem admitir que essas tecnologias, e
particularmente o media de referência nesta análise, estão a influenciar a democracia
mas não no sentido que os utópicos tinham previsto. Estará, porventura ainda adiada
a inauguração de uma nova era mais participativa da política de massas (Margolis e
Resnick, 2000: 207). Efectivamente, a Internet tornou-se um medium de massa, pois,
o aumento do número dos seus utilizadores é exponencial. Todavia, importa
reconhecer que, por enquanto, o crescimento explosivo da Internet não gerou um
comparável crescimento na participação política.

84
9. Internet, uma via mas não um ágora da democracia com uma cidadania
participada

A Internet é um novo meio de participação política na medida em que


proporciona novas formas de expressão da opinião pública e pode proporcionar um
feedback instantâneo sobre acontecimentos do quotidiano. Contudo não é previsível
que conduza ao triunfo da soberania popular ou da democracia directa.

Como dizem Margolis e Resnick, a democracia directa, o velho sonho de


Rousseau em que todos os cidadãos, ao mesmo tempo, participariam directamente no
grande processo de tomada de decisões democráticas, parece agora uma
possibilidade, na medida em que a tecnologia moderna pode ultrapassar os limites do
espaço físico (Margolis e Resnick, 2000). Mas é uma utopia pensar que o moderno
estado-nação pode ser transformado no equivalente funcional da antiga e pequena
cidade-estado.
Acontece, no entanto, que com a Internet o acesso e a participação assumem
novos contornos e significados resultantes da própria natureza e características do
meio; do contexto social em que é configurado; do conjunto de condições necessárias
à sua utilização; do alargado leque de usos potenciais englobando numa mesma
plataforma vários domínios de actividade profissional, institucional e empresarial; da
vida quotidiana e da participação cívica.
Noutro plano, começam a detectar-se tendências nas gradações dos níveis de
acesso e exclusão que não remetem apenas para a disponibilidade de condições
económicas e de meios tecnológicos que possibilitam o acesso «físico», mas para o
conjunto de «condições prévias», disposições identitárias e representações sociais e
culturais que condicionam e influenciam tanto a percepção da importância do acesso
como a sua conversão em uso e usufruto proveitoso do ponto de vista dos interesses
e expectativas dos sujeitos envolvidos.
Isto mesmo poderemos dizer, e a título exemplificativo, que em relação a um
estudo da situação em Portugal, a pesquisa que realizámos, sob a tutela do Ministério
da Ciência e Tecnologia e do Programa PRAXIS XXI confirma esta perspectiva.
(Oliveira e outros, 2000).
Assim se ilustra o carácter multifacetado desta questão. Acesso e uso implicam
pré-condições e atenção à diferenciação de posicionamentos e interesses dos vários
sectores sociais. Sendo um aspecto fundamental para a participação democrática, a
disponibilização de equipamentos é apenas uma parcela, uma parte do conjunto de
instrumentos com que as pessoas deveriam estar equipadas para participar

85
completamente na vida política mediada digitalmente. Esta é também uma das
conclusões do Hispanic Computer and Internet Study (1998). Um acesso sem literacia
do uso dos novos media compromete decisivamente o potencial participativo que
possam encerrar. (Wilhelm, 2000: 89)
Da problemática do acesso sobressai a consideração da necessidade de
compaginar acesso, inclusão e adequação. E igualmente a necessidade de
compatibilizar acessibilidade a equipamentos informáticos e redes de
telecomunicações em termos de preço e qualidade de serviço aceitáveis, o
desenvolvimento de competências de uso nos diferentes grupos sociais, a adequação
das infraestruturas e da oferta de conteúdos aos interesses e expectativas dos
cidadãos utilizadores.
Será o mundo de possibilidades oferecido pela Internet, a realização da
“democracia contínua” a que alude Stefano Rodotà?
Solicitar a alguém a concretização das potencialidades de participação
oferecidas pela Internet, a nível local ou a nível global, é por natureza um exercício de
incerteza. Isto porque, aproveitando uma consideração de Umberto Eco no prefácio à
Balada do Mar Salgado de Hugo Pratt, também a construção de conhecimento sobre
as dimensões económica, social e cultural da Internet é «a história de gente que
descobre sempre a terra de que não andava à procura». É de incerteza que temos
obrigatoriamente de falar quando procuramos caracterizar a Internet e a world wide
web. Também aqui os discursos das empresas presentes no mercado e dos analistas
e comentadores tem por vezes esse mesmo sabor de incerteza, de relato com base
real mas imbuído de uma certa fantasia romântica com uma agravante, a de ao
contrário da Balada, não possuirmos nem mapas actualizados nem um conhecimento
histórico profundo que nos permita colocar a descoberto a totalidade das incertezas.
Muitas vezes confundimos, nos discursos, os desejos e expectativas com uma
qualquer realidade, que quando navegamos na Internet ou fora dela teimamos em
ainda não encontrar. Esta é a matriz sempre presente na adopção de uma nova
tecnologia de comunicação. Todas elas nos impelem a entrever o seu potencial
transformador mas esse mesmo potencial não pode ser olhado sem recurso a todo o
resto da sociedade, que trava, reduz, molda ou acelera em direcções não previstas
essa força transformadora.
Num momento de descoberta todas as ilusões são possíveis, bem como os
naufrágios e a descoberta ou acumulação de riquezas, materiais ou outras.
Mas as descobertas, embora sejam iniciadas por um punhado de Homens e
Mulheres, só se tornam plenas quando apropriadas por um largo número de
indivíduos. Até esse momento, resta-nos viver e antecipar as promessas e realidades

86
do e-comércio ou da e-cidadania, do governo online, da democracia contínua, do
teletrabalho, dos infoexcluídos, dos buracos-negros informacionais, dos continentes
online e offline, dos mercados financeiros globais, da revolução zapatista, da
organização dos protestos de Seattle, do Mp3, da pornografia, dos lucros da Nova
Economia e da livre expressão individual nas páginas pessoais.
O contributo das novas tecnologias de informação para o aumento de uma
efectiva participação política dos cidadãos na democracia não pode resumir-se ao
simples acto de passar a votar por processos electrónicos. Como salientava Norberto
Bobbio tem de significar um conjunto de outros actos de participação pública. (Bobbio,
1986: 888)
É interessante referir aqui, a título exemplificativo, as conclusões propostas
pelo estudo de S. Verba e N. H. Nie realizado nos EUA. Os autores enumeram como
formas de participação: 1) participação eleitoral em eleições presidenciais; 2)
participação eleitoral em eleições locais; 3) actividade em pelo menos uma
organização que lide com problemas comunitários; 4) envolvimento na resolução de
problemas da comunidade; 5) envolvimento em campanhas eleitorais; 6) participação
em reuniões cívicas ou políticas; 7) colaboração na resolução de problemas com
autoridades do poder local; 8) envolvimento na formação de grupos ou movimentos
que tenham por causa resolver problemas locais; 9) contribuição financeira para
actividades políticas e cívicas; 10) militância em qualquer instituição política. (Verba e
Nie, 1972: 31)

Para que a «democracia electrónica» faça crescer e fortalecer uma cidadania


participada é decisivo o estabelecimento de condições como a distribuição mais
equitativa de informação, conhecimento, saber. As tecnologias, e particularmente a
Internet, são via de acesso mas não o Ágora de uma democracia mais fecunda e
aprofundada para os cidadãos. As tecnologias são ferramentas, infra-estruturas,
media, não dispensam cidadãos que saibam fazer uma utilização capaz e eficiente
para a construção da «cidade digital» em «democracia electrónica».

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92
Capítulo II

A world wide web da vigilância:


a Internet e os fluxos de poder «Off-World»
_____________________________________________________

David Lyon

Introdução

Dá-se muita importância ao carácter potenciador da Internet. Diz-se que esta


fantástica ferramenta nos liberta para fazer coisas até agora nunca sonhadas. A ideia
de uma «World Wide Web» sugere uma rede global de nós electrónicos interligados
que tornam possível um novo nível de comunicação que, passando do velho modo de
radiodifusão para uma esfera de trocas, promete melhorar até a estrutura democrática
do sistema telefónico. As características descentralizadas dos telefones e as posições
alternáveis de emissor e receptor são ampliadas e enriquecidas na Internet,
potenciando novas relações comunicativas no seio de um emergente ciberespaço (ver
a título de exemplo, Poster, 1995).
As Webs (teias) podem ter outros objectivos, é claro. A aranha tece a sua teia
de modo a enredar e a apanhar a mosca confiante. Quanto mais a mosca luta, mais
presa fica. Sem contestar qualquer das possibilidades democratizantes inerentes à
Internet, vale a pena explorar a capacidade da «Web» para capturar e controlar, atingir
e apanhar, gerir e manipular. Embora tenham ocorrido muitas mudanças desde o
nascimento do precursor da Internet, um sistema de comunicações militares da Guerra
Fria, o poder não foi simplesmente descartado como se se tratasse de um traço
infantil. Em vez disso, está agora ligado a uma ampla vigilância tecnológica cada vez
mais integrada.
Os dados «pessoais» recolhidos na Web são de diversos tipos. A Internet torna
possíveis novos planos de integração da vigilância, relacionados com situações de
trabalho, administração governamental, policiamento e, acima de tudo, marketing.
Podemos ver uma câmara de vigilância no centro comercial ou mesmo suspeitar que
mais alguém está a ouvir a nossa chamada de telemóvel. Mas a vigilância baseada na
Internet é bastante mais subtil. O leitor faz parte de um grupo de utilizadores? Os

93
motores de pesquisa para «encontrar-pessoas», tais como o Alta Vista ou o
Dejanews, recolhem dados pessoais sobre elas. Visita páginas Web? Muitas dessas
páginas criam automaticamente registos de visitantes, recolhendo dados directamente
do computador do utilizador, como o tipo de computador, o endereço de correio
electrónico e a página que o leitor visitou anteriormente. A teia é quase imperceptível
e, embora cada movimento da «mosca» a deixe mais enredada, a «mosca» continua
ditosamente desconhecedora do que lhe está a suceder.
De modo a compreender a World Wide Web da vigilância, é necessário, em
primeiro lugar, conhecer as suas origens. Os precursores da vigilância contemporânea
são muitos, mas a Internet ajuda a mudar tal actividade para um registo diferente, para
um outro plano. Onde outrora o foco estava na monitorização do lugar temos agora
dados de vigilância fluindo numa espécie de esfera «off-world». Os bens imobiliários
do «off-world» são anunciados aos habitantes da terra no filme Bladerunner. Esta
minha acepção do termo repercute a referência de Manuel Castells (1989) a
«correntes» económicas, desligadas de lugares físicos, viabilizadas pelas tecnologias
de informação e comunicação (TCI). Tais correntes são essenciais para o «controlo
remoto» exercido pelas empresas sobre aspectos de produção geograficamente
dispersos e crescentemente de consumo. As várias formas desta actividade de
vigilância do «ciberespaço» geradas na Internet são exploradas na segunda parte,
sendo referidos os seus traços comuns.
Em terceiro lugar, como devem ser entendidas estas práticas de vigilância?
Como uma extensão do controlo capitalista ou mais uma prova do encerramento da
nossa identidade numa «gaiola de ferro» electronicamente construída pela
organização burocrática? Ou serão melhor compreendidas como uma forma de poder
panóptico, onde um observador invisível vigia um regime de verdade e conhecimento?
Deveria a teoria social tentar ultrapassar estas tensões moderno/pós moderno? A
terminar comentar-se-ão perspectivas para uma investigação social crítica, tendo em
conta a necessidade e a dificuldade de tal abordagem.

Vigilância: uma indústria moderna em crescimento

Observar as actividades dos outros, como um meio de monitorizá-los e supervisioná-


los, não é uma prática recente. Os registos mais antigos – por exemplo do Egipto ou
da Babilónia – indicam que a vigilância foi levada a cabo para controlar populações,
com objectivos de tributação ou militares, ou para assegurar que o trabalho era feito

94
satisfatoriamente. Nos tempos modernos, contudo, a vigilância tornou-se muito mais
um procedimento habitual e geral, envolvendo a totalidade de populações nacionais e
contemplando um vasto leque de actividades e situações da vida. Os nascimentos,
casamentos e mortes têm sido registados automaticamente, os indivíduos têm vindo a
ser classificados segundo a idade e o status para votar em eleições democráticas e os
trabalhadores foram reunidos debaixo do mesmo tecto para facilitar a supervisão.
No século XX estes processos intensificaram-se. A administração
governamental tem levado a cabo estudos sobre a população e departamentos como
os da saúde, da segurança social, da imigração, da tributação, das alfândegas, da
habitação, dos veículos e atribuição de cartas de condução, têm mantido registos cada
vez mais detalhados. Mecanismos racionais para a organização burocrática,
excelentemente analisados por Max Weber, têm empregado uma panóplia de métodos
para criar e manter ficheiros e, assegurando uma hierarquia de funcionários vigilantes
das normas, têm assim mantido o controlo. A lógica do desenvolvimento capitalista
também motivou a supervisão e a monitorização para maximizar a produtividade e o
lucro. A gestão científica tem representado esta tendência para uma maior intensidade
da vigilância, ao centrar-se em análises detalhadas de tempo-e-movimento. Em
meados do século XX tornou-se claro que a vigilância era constitutiva da organização
moderna.
Contudo, o termo «vigilância» estava ainda reservado principalmente para os
serviços de informação e segurança e não para os aspectos rotineiros da vida
quotidiana. A «vigilância» só se tornou realmente conhecida, enquanto área de
pesquisa de pleno direito, em meados dos anos 80, por diversas e interessantes
razões. Uma delas foi o facto de que organizações de todos os tipos começaram a
utilizar o computador, a partir de 1960. A massiva compilação de informações
pessoais começou durante a era da Guerra Fria, quando os Estados socialistas ainda
exerciam um apertado controlo político sobre os cidadãos, provocando receios em
relação ao surgimento de Estados policiais Orwellianos e máquinas burocráticas
Kafkianas sem face. As investigações sobre as implicações sociais das tecnologias
electrónicas sugeriram para alguns o advento de «sociedades de vigilância» (Marx,
1985; Flaherty, 1989).
Ao mesmo tempo que ocorria a expansão e o aumento da computorização, o
entusiasmo crescia relativamente aos estudos de Michel Foucault acerca das formas
modernas de disciplina. Estes estudos surgiram numa série de livros, mas de um
modo mais relevante para os nossos objectivos no seu livro Discipline and Punish
(1979). Com este livro, o plano arquitectónico para a prisão «panóptica» tornou-se
uma referência para as modernas técnicas disciplinares que sujeitam os seres

95
humanos a regimes regulares e previsíveis. O que Foucault não tentou, no entanto, foi
extender a sua análise às formas electrónicas de vigilância. Os autores que o fizeram
tendem a focar os seus estudos no panóptico como chave para o poder das bases de
dados em rede, talvez à custa de outras abordagens, como a do «biopoder». Voltarei a
este aspecto mais à frente.
Surgiram pelo menos dois grandes debates no que se refere à vigilância. O
primeiro centra-se na questão de se determinar até que ponto as tecnologias
electrónicas contribuem para um tipo de vigilância qualitativamente diferente da
caracterizada pelos ficheiros em papel e por uma organização burocrática clássica.
Analistas como James Rule (1973) e Gary T. Marx (1988) argumentam
afirmativamente e apresentam explicações sociológicas sobre como isto acontece. A
segunda questão consiste em saber até que ponto o trabalho de Foucault pode ser
aplicado à vigilância electrónica (ver Lyon, 1993). Analistas como Frank Webster e
Kevin Robins (1986), Shoshama Zuboff (1988) e Diana Gordon (1987) foram dos
primeiros defensores da relevância do panopticismo, enquanto outros se mostraram
menos seguros disso.
Os dois debates convergem agora na área de mais rápida expansão, a
vigilância do consumidor. O uso das recentes tecnologias levanta a questão de se
saber até que ponto as bases de dados para marketing suplantam os antigos estilos
da publicidade de massa, da distribuição de cupões e da «lealdade» dos associados
de clubes. A chamada «clientela de massa» cria incentivos à recolha de dados
pessoais para uso no processo de produção e marketing. Os fabricantes ou retalhistas
pretendem estabelecer tipos de serviço no relacionamento com os clientes,
recolhendo, armazenando ou manipulando informação acerca deles de modo a
controlar os seus comportamentos (Samarijiva, 1994:91).
O marketing através de bases de dados funciona por agrupamento dos
consumidores segundo tipo social e localização e por, cada vez mais, tentar
personalizar a publicidade e a informação prestada ao consumidor. Isto está
directamente ligado com a análise de Foucault. O panóptico trabalha tanto por
classificação como por observação. Mais concretamente, Webster e Robins explicam
esta tentativa como uma forma de influenciar os consumidores através de uma
«gestão social» – uma extensão das práticas Tayloristas de gestão científica. Isto é
elaborado e refinado no trabalho de Oscar Gandy no que denomina como «grupo
panóptico», em que as bases de dados para marketing são vistas como uma
«tecnologia discriminadora» para classificar e orientar os consumidores (Gandy, 1993,
1996). Em qualquer dos casos, os dados pessoais são compilados de fontes públicas
ou de informação facultada, intencionalmente ou não, pelo consumidor.

96
A vigilância do consumidor usa muitas das mesmas técnicas de outras formas
de fazer vigilância de dados, tais como construção de perfis, associação de registos, e
assim por diante, mas na América do Norte funciona em grande medida fora do
alcance dos limites regulamentares colocados a estas práticas pelos governos
(Quebeque é a excepção). Em conjugação com a aparente eficácia da mais estrita
sociologia behaviorista, que envolve a canalização da escolha e a orientação do
desejo, isto significa que as bases de dados para marketing cresceram em poucos
anos. Até há pouco, o único entrave a este processo foi a relativa falta de meios de
comunicação para transmitir dados, não só internamente, mas também entre países e
continentes. Mas agora existe a Internet.

A vigilância do ciberespaço

A expressão «World Wide Web da vigilância» deve ser tomada mais como metáfora
do que como designação literal. «Vigilância com base na Internet» designa melhor
este campo, apesar de, tecnicamente falando, não envolver os sistemas de e-mail,
mesmo que muitos se refiram casualmente ao e-mail como sendo «estar na net» ou
aos seus endereços de e-mail como sendo «endereços na Internet». Talvez «vigilância
no ciberespaço» fosse mais adequada, referindo-se a quaisquer formas de vigilância
que ocorram nas comunicações mediadas por computador. Do ponto de vista dos
sujeitos, tudo isto faz parte de uma rede urdida a partir do teclado e que pode ser vista
– se se souber onde procurar – no monitor.
Podem distinguir-se três grandes categorias de vigilância no ciberespaço,
relacionadas com o emprego, a segurança e policiamento e o marketing. Estas
categorias tornam-se confusas na prática, pelo menos por duas razões. Uma é a de
que a própria existência das redes electrónicas torna mais fácil, em princípio, que os
dados sejam partilhados entre diferentes agências, embora na maior parte dos países
os regimes reguladores limitem isso. A outra é a de que a mesma rede usada por
grandes e poderosos organismos, tais como governos e empresas, pode também ser
usada por indivíduos ou grupos com muito menos poder. Pelo menos isto significa que
a vigilância no ciberespaço não é necessariamente centralizada. Como William Bogard
(1996:134) observa, é não só um sistema global, «mas também uma rede orbital e
celular que liga os níveis macro e micro da recolha de informação».
Em situações relacionadas com o emprego, a monitorização e as formas de
supervisão da vigilância são comuns, pelo que não surpreende que o crescente uso da
Internet pelos empregados e, acima de tudo, o uso do correio electrónico, tenha criado

97
novos desafios. Em Dezembro de 1996, um cientista federal canadiano do Ministério
da Defesa foi preso por alegadamente ter feito um download de mais de 20.000
imagens e videos de pornografia infantil, usando o computador do seu escritório
(Macleod, 1997). Também em 1996, a Compaq Computer em Houston, no Texas,
despediu doze empregados por durante o horário de trabalho terem visitado sites de
sexo. No que diz respeito ao e-mail, surgiram preocupações entre os empregadores
acerca da utilização do horário de trabalho e de recursos da empresa para
correspondência privada, dentro e fora da organização.
As respostas a tais práticas geralmente tomam a forma de medidas técnicas
para minimizar o risco de reincidência. É instalado um software para gravar e relatar
todas a actividades relacionadas com o uso da Internet e do correio electrónico. Todas
as divisões de serviço de informação tecnológica das empresas têm a capacidade de
localizar o uso da rede electrónica e vigiar o conteúdo das mensagens de correio
electrónico. Em grande parte da América do Norte a utilização ou não deste sistema, é
considerado um assunto de política interna da empresa ou da organizacão. Há alguns
anos, uma sondagem a gestores dos EUA revelou que 22% tinham feito buscas nos
ficheiros de computador dos empregados, no voicemail, no endereço electrónico e
noutras comunicações electrónicas (Pillar, 1993:7). Os resultados são por vezes
dramáticos. Um polícia de Los Angeles, Laurence Powell, teve problemas depois de
enviar uma mensagem por correio electrónico a um amigo, descrevendo o seu
envolvimento com Rodney King: «Eu não batia tanto em ninguém há muito tempo»
(Weisband e Reinig, 1995:41).
Estes exemplos, retirados de situações de trabalho, também se aplicam à área
do policiamento e segurança. Parte do policiamento é privado, tal como quando o
fornecedor de serviços canadiano i-STAR retira a certos grupos de risco o acesso
público à hierarquia alt.sex. Mas outra parte é pública, quando a vigilância baseada na
Internet é conduzida por serviços policiais constituídos legalmente. Em 1995, por
exemplo, o FBI americano conduziu a «Operação Inocente», uma acção sob disfarce
na America On-Line (AOL) envolvendo a intercepção de correio electrónico de
pessoas que responderam a mensagens que deixavam supor serem de pedófilos.
Foram feitas buscas-surpresa a 125 casas e escritórios em 57 cidades e daí
resultaram muitas prisões (New York Times, 16 de Setembro de 1995, citado em
Zuidwijk e Steeves, 1995).
O mais conhecido esforço para possibilitar a expansão da vigilância de
segurança na Internet é o chamado Clipper Chip. Em 1994 o governo dos EUA propôs
introduzir um modelo uniforme de encriptação que iria efectivamente impedir a
proliferação de códigos concebidos para proteger a privacidade das comunicações

98
electrónicas. Enquanto os utilizadores individuais poderiam ficar certos de que as suas
mensagens continuariam privadas, a única excepção era a de que, no interesse da
«segurança nacional», os agentes do governo poderiam interceptá-las, quando fosse
apropriado e necessário. É desnecessário dizer que a controvérsia sobre esta
proposta foi muito intensa – online e offline – e está, ainda, longe de ser totalmente
resolvida (ver Levy, 1994).
Enquanto os exemplos precedentes da vigilância no ciberespaço, no emprego
e no policiamento são interessantes e, para muitos, alarmantes, revelam-se escassos
quando comparados com o massivo arsenal de vigilância comercial usada pelos
comerciantes. Muitos suspeitam que a própria Netscape localiza os movimentos
virtuais dos seus utilizadores, admitindo que estes têm conhecimento cada vez que um
dos seus browsers está a ser utilizado. Curiosamente, quando em Maio de 1996 um
novo ‘Communicator Suite’ estava a ser lançado pela Netscape, uma empresa de
software dinamarquesa descobriu que os operadores de um Website poderiam ler tudo
o que estivesse no disco rígido do computador aí ligado, e isto apenas foi referido
como tratando-se de um «bug» (CNN, 1996). Muitas outras empresas estão
certamente encarregues de obter os perfis detalhados dos utilizadores da Internet.
Algumas delas usam o já gasto método do registo – como quando se preenche um
formulário de garantia para uma aplicação, dando assim dados pessoais detalhados à
empresa – para obter os perfis dos visitantes de Websites. Nestes casos, é necessário
algum consentimento informado dos surfistas da rede.
Em muitos outros casos, contudo, tal consentimento não é procurado ou
pretendido. Os Websites frequentemente enviam mensagens automáticas de volta aos
seus emissores, facultando dados acerca das necessidades, hábitos e compras dos
utilizadores, baseados nas suas visitas ao site em questão. Parte da informação
relativa a transacções é gravada passivamente, de modo a que o webmaster possa
determinar que ficheiros, fotografias ou imagens são de interesse para o utilizador,
quanto tempo foi gasto com cada um e onde é que o utilizador estava antes e depois
de visitar o site. Perfis da Internet mais conhecidos como o I/PRO, indicam quanto e
por quem um site é usado. Os clientes do I/PRO incluem Yahoo!, Compuserve,
Netscape e outros como as CMP Publications e Playboy (Stagliano, 1996).
Os chamados «Cookies» (Client-Side Persistent Information) concedem amplas
capacidades de detecção a empresas, desejosas de explorar comercialmente os
valiosos dados pessoais segmentados de indivíduos comuns. Os Cookies permitem
que os Websites armazenem informação acerca dos sites visitados no disco rígido do
utilizador, em seguida lêem a drive cada vez que um site é visitado para descobrir se o
utilizador esteve lá antes. As últimas técnicas de marketing aplaudem estas práticas

99
por oferecerem ao consumidor benefícios, tais como anúncios personalizados, feitos à
sua medida. Mas o título de um desses manuais – Strategic Marketing for a Digital Age
(Bishop, 1996) – também deixa poucas dúvidas acerca de quem mais beneficiará
desta manobra «militar».
Recentemente, deu-se grande importância ao potencial de utilização de
«agentes inteligentes» para quebrar a habitual monotonia no processo de procura de
informação através dos motores de pesquisa da Internet. Com alguma ironia, os
«agentes» que agora usam os mais sofisticados processos de localização, incluindo
«técnicas cartográficas», foram denominados «aranhas» (spiders). A empresa
NetCarta, que produz tecnologias cartográficas, realça o aumento da produtividade
destas aranhas. Embora ainda não seja muito notório o seu uso na localização e
construção de perfis de consumidores, o potencial é óbvio (ver Elmer, 1997: 185).
Outra técnica, conhecida como data mining, é usada com crescente frequência na
Internet. A empresa Chicago Tribune, por exemplo, utilizou data mining para analisar o
comportamento dos consumidores à medida que estes mudam de site para site.
Embora seja verdade que muitos dados recolhidos via Internet estão disponíveis a
qualquer utilizador detentor de cartão de crédito, o facto é que só grandes empresas
podem sustentar técnicas de elevada escala como a data mining.
O chamado «pânico da privacidade» surgiu, nos finais de 1996, em torno das
actividades da Lexis-Nexis e do seu sistema P-TRACK, destinadas a ajudar a polícia e
os advogados a localizar litigantes, testemunhas, accionistas, devedores, herdeiros e
beneficiários. Em resposta a um protesto relativo à disponibilidade dos números da
segurança social, assim como dos nomes, moradas e números de telefone, a
Comissão Federal de Comércio (FTC) dos Estados Unidos exigiu uma protecção da
privacidade mais abrangente, e a Lexis-Nexis eliminou o acesso aos números da
segurança social. Sucede que outras empresas oferecem serviços mais completos do
que a P-TRACK, igualmente a custos fixos per datum. A Information Resources em
Fullerten CA, por exemplo, oferece itens tais como registos criminais e de tribunal,
números de segurança social, registos de condução e referências sobre empregos
anteriores.
Embora não se possa obter tais informações directamente da Web, todas estas
empresas – Information Resources, CDB Infotech, Information America, etc. – têm
Websites com fins comerciais (<isworld@listserv.hea.ie>). No entanto, algumas
empresas oferecem manuais para venda que dão detalhes sobre a utilização dos
mecanismos de pesquisa na Internet para encontrar dados pessoais, recolhidos de
várias fontes, incluindo as de origem privada (por exemplo, a ‘Snoop Collection’ da
‘Background Investigation Division’ em Chico, Califórnia). Não nos levarão a mal se

100
perguntarmos por que é que essas empresas costumam acompanhar as suas
declarações com exigências de cumprimento da «liberdade de informação».
Ainda há muita incerteza em volta do uso, através da Internet, de bases de
dados pessoais e de fontes de informação pessoal. Ninguém parece objectar contra a
existência de directorias nacionais de páginas brancas que podem ser utilizadas como
forma de localizar pessoas e negócios (tal como Canada411:<http:canada411.com>).
Todavia, quando a cidade de Victoria colocou os seus registos de impostos na
Internet, o Comissário da Privacidade da Columbia Britânica, David Flaherty, anunciou
um inquérito. O receio era de que as pessoas pudessem ser localizadas, quando
poderiam ter razões legítimas para esconder os detalhes do seu paradeiro. O site
provou ser extremamente popular mas o Presidente da Câmara fechou-o depois de o
inquérito ter sido anunciado (McInnes, 1996).

Teorizando a vigilância na web

O que John Beniger (1986) chama «revolução do controlo» estende-se por todas as
organizações modernas. Especialmente na polícia, nos militares e nas empresas, é
evidente um movimento burocrático, incitando a uma mais estreita previsibilidade
como meio para obter um maior controlo. De acordo com Beniger, tal controlo é visto
como aumento da probabilidade de um resultado desejado. Esta é a lógica subjacente
a muitos tipos de vigilância. Todas as instituições contemporâneas nas chamadas
sociedades desenvolvidas são caracterizadas por um imperativo interno para obter,
armazenar, produzir e distribuir dados para uso na gestão de risco de e para as
respectivas populações.
Os exemplos supra-mencionados mostram como isto funciona na prática. Os
empregadores tentam reduzir o risco – de trabalhadores que usam o horário ou o
equipamento de trabalho para os seus próprios objectivos, por exemplo – em
situações de emprego. A polícia, em conjunto com outras instituições, trabalha no
sentido de prevenir o risco da prática de crimes ou, mais genericamente, de
comportamentos ameaçadores. E os homens de negócios fazem tudo o que estiver ao
seu alcance para evitar os riscos de perder oportunidades, nichos de mercado e, em
última instância, lucro. Todos estabelecem procedimentos de recolha de dados para
tentar assinalar riscos (ou oportunidades) e prever resultados. Por conseguinte a
vigilância espalha-se, tornando-se constantemente mais rotineira, mais intensiva
(perfis) e extensiva (populações), guiada por forças económicas, burocráticas e agora
tecnológicas. Relativamente a estas últimas referimo-nos particularmente às

101
tecnologias de informação e comunicação e às lógicas internas de tais sistemas que
servem para apresentar como «reais» os riscos em questão.
A literatura acerca da vigilância torna-se imprecisa a este nível. Duas das
principais preocupações têm a ver com os resultados das situações de vigilância. Uma
refere-se à participação social, a outra à individualidade. A primeira vê os resultados
da vigilância em termos de divisão social e de desigualdade, e deste modo, acesso
social e exclusão. A segunda centra-se em questões de «invasão de privacidade», de
identidade e às vezes de dignidade humana. Infelizmente, alguns teóricos parecem tão
preocupados com esta última que ignoram ou minimizam o significado da primeira. No
entanto, as duas dimensões sobrepostas, na realidade, são duas faces da mesma
moeda. A identificação e a identidade, por exemplo, podem ser um meio de inclusão e
exclusão. Assim, a individualidade realiza-se na participação.
A vigilância está claramente relacionada com a manutenção da desigualdade e
divisão social. Os tipos panópticos (Gandy) distinguem diferentes classes de
consumidores, o que tem o efeito de reforçar os padrões de estilos de vida e as
expectativas de cada grupo e de manter uma barreira invisível, mas efectiva, entre
consumidores e não consumidores. Esta última origina populações marginais – devido
à sua idade, etnicidade, rendimento, vizinhança, etc – que são em parte constituídas
pelo funcionamento dos sistemas de vigilância que se concentram nos mais ricos e
respeitáveis escalões da sociedade. Tais grupos marginais têm a sua própria
vigilância, que tende a ser muito mais punitiva, fundada na saúde, no bem-estar e nos
sistemas penais (Lyon, 1994; cf., Ericsson, 1993).
A vigilância também intensifica questões de identidade, quando – na
perspectiva dos sujeitos – a capacidade para controlar a comunicação acerca de si
próprio é violentamente retirada ao indivíduo. Este é um elemento crucial no debate
acerca da privacidade, um direito que implicaria tomar esse controlo (ou a sua
restituição) através de vários meios. O recurso legal através da legislação sobre a
privacidade e a protecção de dados é um meio, a crescente panóplia técnica de
mecanismos de encriptação e «tecnologias de salvaguarda de privacidade» (PET) é
outro. As análises da vigilância que partem de uma premissa de privacidade estão a
centrar-se em questões completamente filosóficas de individualidade, e, em particular,
no tipo de expectativas que cada um pode ter sobre a autodeterminação comunicativa.
Tais análises tendem a assumir que os sujeitos autónomos e individualizados estão
ameaçados pela intensificação da vigilância.
Estes problemas são claramente de importância política e ética, e é por essa
razão que eles devem ser discutidos em relação ao aparecimento das práticas de
vigilância no ciberespaço. Mesmo que aparentemente apartadas da vida quotidiana e

102
do controlo público estas práticas assentam em relações muito poderosas, de
consequências materiais demasiado reais. Como diz Stephen Graham, muitos destes
sistemas estão directamente «ligados à protecção e fortalecimento de condomínios de
consumidores abastados e zonas empresariais... e à exclusão, ao reforço do controlo
dos grupos e áreas marginalizados pelo mercado de trabalho e pela reestruturação da
assistência social» (1996: 28). A distribuição de oportunidades e de bem-estar
comunitário e pessoal está cada vez mais dependente de sistemas de vigilância
avançada mais e mais eficientes.
Para além destas questões de participação e individualidade, existem, contudo,
outras preocupações acerca da natureza da vigilância contemporânea no ciberespaço.
Os assuntos já discutidos supõem que os modernos discursos sobre os direitos
humanos ou a justiça social ainda são válidos no mundo da Internet. No entanto, a
Internet está relacionada com certas mudanças culturais que questionam
precisamente estas categorias. Mark Poster, por exemplo, defende que o modo como
as bases de dados pessoais funcionam actualmente as configura como um
«superpanótico» (1995). As práticas de vigilância não são tanto uma ameaça à
«privacidade» de um sujeito individual, estando antes, na realidade, envolvidas na
própria constituição dos sujeitos. Esta dimensão constitui uma nova perspectiva sobre
a vigilância, que é sublinhada noutras análises do «superpanóptico» (por exemplo,
Mehta e Darier, 1997).
Esta «nova dimensão» pode ser vista em práticas mais convencionais. No caso
da prática da medicina, refere Robert Castel, houve uma passagem da ênfase dada ao
exame directo do paciente para um exame de registos «compilados em várias
situações por diversos profissionais e especialistas ligados unicamente pela circulação
de dossiers de indivíduos» (Castel, 1991:282). Este processo atravessou, segundo o
autor, um limite e ganhou o carácter de uma mutação, uma nova forma de vigilância
que incorpora a prevenção de risco. Os sujeitos individuais são agora menos
importantes do que as correlações estatísticas; a gestão autonomizada torna-se a
ordem do dia. Se se puder aconselhar e orientar os indivíduos em vez de assumir
responsabilidade por eles, então a estratégia de gestão funcionou. Isto até poderia ser
visto, defende Castel, como uma situação «pós-disciplinar», em que a procura de
eficiência se tivesse tornado primordial. «Planificar trajectórias sociais a partir de uma
avaliação “científica” das capacidades individuais» é o novo – talvez mítico – objectivo
(1991: 296).
O interesse pela gestão do risco pode conduzir a teoria para além do
panóptico, para a noção de «biopoder» de Foucault, que é discutida não em Discipline
and Punish mas na sua History of Sexuality (1978). O que Richard Ericson e Kevin

103
Heggarty afirmam sobre o biopoder como instância normativa pode igualmente ser
aplicado, numa escala mais vasta, à vigilância no ciberespaço: «O biopoder é o poder
da biografia humana, da construção de perfis biográficos de populações humanas para
a gestão do risco e o fornecimento de segurança... com vista a fabricar pessoas para o
corpo social... de acordo com a lógica da norma» (1997: 91-2). O espaço impede o
desenvolvimento deste aspecto, mas a lógica social (para além do panóptico
disciplinador dos corpos) e a tecnologia de vigilância permanecem satisfatoriamente
ligadas.
A ideia de que pudesse haver um «objectivo mítico» de vigilância é explorada
por William Bogard (1996). Argumenta este auotr que uma «simulação» da vigilância
está a contribuir para um «hipercontrolo» nas sociedades imbuídas de redes
tecnológicas de comunicação e informação. A «mutação» descrita por Castel parece
ter uma relevância mais ampla. Bogard acrescenta o trabalho de Jean Baudrillard ao
de Foucault para tentar obter eficácia teórica nos aspectos simulados ou virtuais da
vigilância. Onde o panóptico original liderava com o tempo real e o espaço físico –
essencialmente, uma arquitectura – o «hiperpanóptico» dos nossos dias existe através
de uma esfera de ambientes electrónicos, onde o tempo é assíncrono, a velocidade
dos fluxos é crucial e onde a distância e a proximidade estão ofuscadas pelo
«ciberespaço». A bibliografia existente fala frequentemente de imagens-dados ou
sombras-dados, e de limites ofuscados entre imagens e realidade, mas o trabalho de
Bogard sugere que este aspecto é central, não um epifenómeno, na situação actual.
Bogard salienta que a simulação da vigilância não significa que esta seja
ilusória, irreal. Na realidade, «quanto melhor for uma simulação, menos conhecimento
há da parte do artífice que a identifica como uma simulação» (1996:31). Isto relaciona-
se com a ideia de um «objectivo mítico» de vigilância, ou seja, a ideia de que o
problema de controlo perceptual sobre uma distância é solucionado por novos meios
electrónicos. O conhecimento antecipado de quem é susceptível de tomar parte em
fraudes à segurança social, comprar Benetton ou votar Liberal é entendido como um
meio de manter a ordem, normalizar populações, maximizar a eficiência.
A vigilância ilimitada é o objectivo não declarado «e é atractivo para políticos,
polícia, homens de negócios e empresas de alta tecnologia de modo idêntico» mas é,
como diz Bogard, «real só na simulação» (1996: 49). A par de formas mais antigas de
monitorização e supervisão (como o uso de software para controlar empregados ou o
uso da Internet por crianças) estão estes novos métodos, que cada vez mais envolvem
os sujeitos da vigilância, agora parte de um cenário de vigilância total. E a Internet
serve somente para tornar o objectivo mítico (aparentemente) mais realizável.

104
Estas reflexões contribuem para a análise na medida em que ajudam a teoria a
mover-se para além dos confins do espaço físico e do tempo real – uma tarefa já
realizada na esfera virtual do ciberespaço. Mas seria um erro abandonar a escada de
Wittgenstein à medida que subimos através das nuvens até este novo nível de
simulação vigiada. O perigo de discursos que habitam um mundo de simulações é
esquecer a realidade do «mundo real» (ver por exemplo, Robins, 1995). Isto obriga a
que quaisquer reflexões construtivas que sejam recolhidas de Foucault e Baudrillard,
sejam articuladas com o acesso, a inclusão/exclusão e a participação, por um lado, e a
identidade, a dignidade e a individualidade por outro. Como Graham relembra a
respeito da cidade, «teias (webs) de sistemas de vigilância simulados são tecidas para
suportar e construir a fábrica da vida urbana “real”, à medida que as paisagens “reais”
das próprias cidades se transformam numa esfera de simulação vigiada» (1996, 28;
ver também Robins, 1995). Ainda há muito trabalho a fazer para compreender como
estes sistemas funcionam.

Trazer a vigilância do ciberespaço à terra

A World Wide Web da vigilância existe como um meio de controlo,


aprofundando através de redes electrónicas formas de vigilância já existentes. A forma
exacta como esse controlo é procurado e obtido – panopticismo? biopoder? – continua
discutível, embora nesta exposição seja claro que as desigualdades existentes de
poder e acesso são reforçadas, e, para os que estão preocupados com a sua
transparência digital, os receios de ser vigiado por um olhar oculto são inevitáveis.
A discussão anterior sugere que a vigilância moderna, baseada na chamada
revolução do controlo, se desenvolveu rapidamente em novas direcções desde o início
do poder do computador. Enquanto tal, a informatização surgiu como um modo para
realçar e aumentar sistemas de vigilância já existentes, as suas possibilidades
técnicas proporcionaram oportunidades para novas práticas susceptíveis de enfrentar
o risco através da prevenção, gestão e manipulação. A convergência da computação
com as telecomunicações, vista por exemplo na Internet, possibilitou o crescimento da
vigilância virtual, de fluxos de dados «off-world», separados das suas antigas amarras
no tempo e espaço, mas com efeitos suficientemente reais naqueles cenários.
As teorias da vigilância lutaram com estas mudanças, e o trabalho clássico de
Marx e Weber foi aumentado pelo de Foucault e agora Baudrillard. No entanto, a teoria
ainda está numa condição algo rudimentar. Mas se o argumento precedente for
correcto, a vigilância, incluindo a simulação vigiada, tem efeitos sociais, materiais e

105
espirituais demasiado reais. Compreendê-los, e desenvolver alguns discursos críticos
para lidar com eles, revela-se de extrema importância.
À medida que o uso da Internet se estende rapidamente entre as comunidades
endinheiradas das chamadas sociedades avançadas, a esfera de acção dos métodos
de vigilância mais recentes também vai crescer. Presentemente, o debate mais
«crítico» expressa-se em torno da «privacidade», em que o direito de ser deixado em
paz (protegido pela lei) ou a «liberdade de expressão» (garantido pela encriptação de
segurança) são proclamados muito estridentemente. A resistência é frequentemente
compreendida sob a forma da cobrança do uso de dados pessoais, o que
simplesmente cai nas soluções do mercado. Alguns encorajam, pelo menos, uma
concordância voluntária com convenções de protecção de dados, mas parece que as
empresas podem fazer isto e continuar com as suas práticas de vigilância.
Algumas teorias da privacidade, vendo as concepções liberais clássicas como
um beco sem saída, tentaram introduzir uma dimensão social. O trabalho de Priscilla
Regan (1995) é exemplar a este respeito. David Flaherty, indo também além de
soluções individualizadas, apela à comunidade da Internet para promover uma cultura
na qual a perseguição digital seja considerada ilegal, anti-ética e imoral quando não
houver consentimento informado (Flaherty, 1997:6) Isto coloca o ónus da
responsabilidade mais no vigilante do que no sujeito.
Até que os aspectos da vigilância contemporânea do reforço da desigualdade e
da ameaça à individualidade sejam analisados conjuntamente, e até que estas
dimensões sejam compreendidas em relação à virtualização da vigilância, os aspectos
reais da vigilância contemporânea continuarão a iludir-nos. Quaisquer que sejam os
benefícios da Internet – e, vendo bem, há muitos – a sua realização não pode ser
teorizada de forma responsável se isolada da existência da World Wide Web da
vigilância. Isto não é algo acrescentado ou diferente do «resto» da Internet, mas um
aspecto intrínseco à sua constituição.
Este artigo é uma versão revista de um documento apresentado à Associação
Canadiana para as Ciências da Informação, que se reuniu em St. John’s, na Terra
Nova, em Junho de 1997.

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108
Apoio Comunitário virtual?
A política social e a emergência do
apoio social mediado por computador
___________________________________
Brian D. Loader

Introdução

Este texto aborda as implicações do aparecimento, crescimento e distribuição


social da utilização da Internet a partir de casa, em Inglaterra, na análise da política
social. Apesar de os analistas de política social reconhecerem que, por vezes, as
tecnologias de informação e comunicação (TICs) estão envolvidas na mudança da
administração dos Estados-Providência democráticos e liberais (Burrows e Loader,
1994), pouco tem sido dito acerca das possíveis implicações da Internet na política
social (Loader, 1998a), mesmo quando começaram a conceber claramente qual seria
o futuro do sistema de providência e de saúde (Hughes, 1998).
Embora as implicações da Internet na política social possam ter um grande
alcance (Loader, 1998a), este texto procura, apenas, situar uma agenda de pesquisa
para a política social num aspecto particular do uso da Internet - a entreajuda e o
apoio social online – que designamos de comunidades virtuais de apoio, ou seja, um
híbrido terminológico resultante da noção de comunidade virtual, oriunda do
ciberespaço, e do conceito de comunidade de apoio, oriundo da política social. O
ensaio visa identificar um conjunto de questões resultantes do aparecimento da
entreajuda e do apoio social na rede, por e para “o cidadão comum”, em Inglaterra. Em
primeiro lugar, e para alcançar este objectivo, o texto fornecerá dados de
contextualização relativos ao uso da Internet a partir de casa em Inglaterra. Em
segundo lugar, evidenciará o corpo de literatura recente que procurou demonstrar por
que razão, nas sociedades de modernidade tardia, o apoio social e a manutenção de
uma vida “comunitária” coesa se encontram fortemente associados à saúde e à
providência. Em terceiro lugar, sublinhará a natureza e a extensão da utilização da
Internet em Inglaterra no âmbito da informação e do apoio social. Em quarto lugar,
examinará um conjunto de exemplos ilustrativos de “grupos de apoio” – sobre a
deficiência, a educação e a execução de hipotecas. Finalmente, e com base nestes
dados e exemplos, o ensaio identificará um conjunto de questões emergentes
merecedoras de uma análise mais aprofundada.

109
A utilização da Internet a partir de casa em Inglaterra

Tal como foi recentemente realçado por Cornford (1999), é difícil obter dados
estatísticos consistentes sobre a utilização da Internet em Inglaterra. No período de
realização deste estudo, a estimativa disponível mais aproximada baseava-se na
pesquisa efectuada pelo NOP Research Group (ver http://www.nopres.co.uk). Esta
pesquisa mostra que, em meados de 1999, 12.69 milhões de adultos acederam à
Internet pelo menos uma vez. Este número representou um aumento de 46%,
comparado com os 6.18 milhões registados em meados de 1997. Para além disso,
estima-se que, em média, a Internet atraia por dia quase 11 100 novos utilizadores
adultos em Inglaterra. O estudo também evidencia o facto de esse aumento
significativo não se ter observado apenas na utilização da Internet, mas também nos
locais de acesso. As taxas de utilização a partir de casa cresceram acima dos 109%
em 1999, comparativamente a 1998, enquanto as taxas de utilização a partir do local
de trabalho aumentaram apenas 21%.
Podemos compreender melhor a distribuição relativa do acesso à Internet a
partir de casa através de uma análise adicional, sobre a tabela 7 do Painel do Inquérito
aos Agregados Domésticos Britânicos (British Household Panel Survey), levada a
cabo em finais de 1997. Estes dados mostram que, nesse período, somente 4% dos
adultos utilizavam a Internet a partir de casa em Inglaterra. Este número total terá
aumentado de modo significativo a partir deste período (de acordo com os últimos
números da NOP, cerca de três vezes mais no final de 1999). Contudo, vale a pena
considerar ainda os dados apresentados no Quadro 1, uma vez que não só revelam
padrões de variação no uso da Internet num conjunto de categorias socio-
demográficas fundamentais, mas também porque, como iremos mostrar mais adiante,
permitem efectuar uma estimativa aproximada das taxas de utilização da Internet a
partir de casa por indivíduos com um determinado tipo de necessidades de saúde.

110
Quadro 1 - Percentagem de Adultos Britânicos que usaram a Internet a partir de casa em 1997

Variáveis % utilização da Valores absolutos


Internet a partir de
casa no último ano

Sexo Feminino 2.4 4817

Masculino 5.7 4263

Idade < de 20 6.3 567

20 a 29 4.6 1424

30 a 39 6.6 1677

40 a 49 5.4 1485

50 a 59 3.5 1376

60 e + 0.8 2553

Região Londres 8.1 1001

ROSE 5.3 1828

South West 4.2 807

East Anglia 2.2 361

East Midlands 3.3 735

West Midlands 2.7 783

North West 3.0 1022

Yorks & Humber 2.9 852

North East 1.7 533

País de Gales 1.0 482

Escócia 3.9 674

Raça Branca 3.8 8661

Minoria étnica 8.3 351

Fonte de remuneração

Emprego temporário 8.5 2647

A exercer profissão 2.5 3305

Nunca exerceu profissão 1.0 2730

6.3 348

111
(Equivalised) Rendimento do

agregado familiar
1.1 1491

mínimo 20%
1.2 1701

superior 20%
3.0 1972

médio 20%
4.4 2030

superior 20%
9.2 1886

máximo 20%

Situação na profissão

Empregado 5.3 5048

Desempregado 3.4 298

Reformado 0.7 2126

A cargo da Família 1.8 737

Estudante 9.3 495

Outros 1.6 370

Título de posse da casa (Housing

Tenure)
4.6 6592

Habitação própria
0.9 1730

Habitação social
5.7 701

Habitação arrendada

Composição do agregado familiar

Solteiro 2.1 1506

Casal sem filhos 3.9 2750

Casal com filhos 4.9 3756

Monoparental 3.3 786

Composto por vários adultos 4.2 284

Total 4.0 9088

Fonte: BHPS Wave 7, Cross-Sectionally Weighted Individual Respondents, Own


Analysis.

112
A maior parte dos resultados não são surpreendentes: há uma maior
probabilidade entre os homens de se tornarem utilizadores do que entre as mulheres;
as pessoas mais velhas têm uma probabilidade muito menor de se tornarem
utilizadores; as pessoas que vivem em Londres e no Sul de Inglaterra têm maior
probabilidade de estarem ligadas do que as que vivem noutros locais; as pessoas de
classes mais elevadas têm maior probabilidade de serem utilizadoras do que aquelas
que estão menos bem posicionadas na estrutura de classes; os indivíduos que vivem
em famílias com rendimentos mais elevados têm maior probabilidade do que aqueles
que vivem em famílias com menores rendimentos; as pessoas empregadas e os
estudantes têm uma maior probabilidade de serem utilizadores do que as pessoas
com outro status económico; as pessoas que vivem em habitação arrendada têm
menor probabilidade de se ligarem do que aquelas que vivem em habitação própria e
os casais que vivem em agregados com filhos têm uma maior probabilidade de se
ligarem do que as pessoas inseridas noutro tipo de agregado familiar. Contudo, alguns
resultados são mais intrigantes. Em particular, em 1997, os dados evidenciavam, pelo
menos, que os membros de grupos étnicos minoritários tinham uma maior
probabilidade de aceder à Internet a partir de casa do que aqueles que se
identificavam como “brancos” (um resultado que se mantém, mesmo depois das outras
variáveis, consideradas no Quadro 1, serem controladas pelo recurso à análise de
regressão).

A entreajuda e o apoio social na modernidade tardia

É inegável a importância da entreajuda e do apoio social nos debates actuais


sobre a política social. Moursund (1997:54) enuncia, de uma forma clara, se bem que
um pouco romantizada, o modo como alguns factores se conjugam para tal
importância:

“Uma razão para [o] enorme interesse relativamente ao apoio


social pode estar relacionada com as rápidas mudanças ocorridas no
cenário social. As instituições sociais que, no passado, ajudaram a
estabilizar a nossa sociedade... parecem estar a perder influência. As
pessoas já não crescem, casam, residem e envelhecem no mesmo local
geográfico e com a crescente mobilidade surge uma perda do sentido
de comunidade... As coisas parecem mover-se cada vez mais depressa

113
e nós procuramos desesperadamente algo a que nos possamos
agarrar, algo a que nos possamos ligar.”

O apoio social é assim encarado como um reforço decisivo contra o que


Giddens caracterizou, de modo significativo, como um ‘mundo em fuga’ onde ‘não só o
ritmo das mudanças sociais é muito mais rápido do que em qualquer sistema anterior’,
como também o seu ‘alcance e... profundidade’ (Giddens,1991:16). Estudos
sistemáticos sobre a literatura científica, na área da medicina, psicologia e sociologia,
confirmam sempre a existência de uma forte e inequívoca relação entre apoio social,
saúde e bem-estar físico e mental (Sarason et al., 1990). Trabalhos recentes em
epidemiologia e sociologia da saúde e da doença, confrontaram estes resultados, já
comprovados, num contexto socio-estrutural mais abrangente, procurando ter em linha
de conta o impacto da rápida mudança no sentimento de insegurança (Bartley et al.,
1998).

Esta bibliografia demonstra que a principal ligação entre a pobreza e a saúde


precária tem a ver não só com as condições materiais da vida das pessoas, mas
também com o funcionamento de vários mecanismos psico-sociais (Wilkinson, 1996).
A identificação desta ligação levou à formação de um programa de pesquisa que se
concentra no “stress psicológico, privação relativa e danos psico-sociais em contextos
de desigualdade” (Elstad, 1998:40). Este programa produziu inumeras provas de que
as mudanças em certos aspectos da vida psico-social – tais como o sentido de
controlo, o status social apreendido, a força de relações sociais, o apoio social, a auto-
estima, os sentimentos de insegurança ontológica, etc. – conduzem a mudanças nos
estados de saúde (Elstad, 1998; Wilkinson, 1996, Wilkinson et al., 1998). Em suma, as
pessoas que revelam um elevado nível de participação social e/ou têm uma boa
relação social e comunitária tendem a ter melhor saúde física e mental, sendo
idênticas noutros aspectos.

Não deixa de ser irónico que, apesar de muitas vezes conceptualizada como
uma das principais forças na origem de sentimentos de stress e isolamento, a rápida
mudança tecnológica constitua simultânea e paradoxalmente o meio onde irão emergir
novas formas de ligação social e de apoio. Contudo, até agora não existe uma
resposta clara à questão: Será que “as comunidades virtuais” e as “relações virtuais”
têm os mesmos efeitos no desenvolvimento da saúde do que as “comunidades reais”
e as “relações reais”? (Kraut et al., 1998; Rheingold, 1993; Welman e Gulia, 1999).
Todavia, é incontestável que as formas de organização das relações sociais no
ciberespaço e o seu impacto na vida das pessoas constituirá uma tendência decisiva

114
que os analistas de política social devem explorar e procurar compreender. Como
defende Dale Spender (1995:251)

“O que as políticas sociais necessitam agora é de uma ciber-


dimensão. Estas não podem abordar unicamente as desigualdades. A
relação entre a ciber-sociedade e o mundo real também deve ser
analisada. Personalidades reais e personalidades virtuais constituem
uma das principais características da nova sociedade, juntamente com
as comunidades e as formas de organização reais e virtuais”.

Contextualização: a entreajuda e o apoio social online

A partilha de interesses comuns, experiências, pensamentos e solidariedade


mediada por computador em conjugação com a capacidade para aceder a informação
sobre saúde e previdência, bem como para desafiar monopólios profissionais do
conhecimento pericial nas áreas de saúde e da previdência, estão bem estabelecidos
nos E.U.A. (Ferguson, 1996). Tal como constatou Norman Denzin (1998:113):

“Não conseguimos imaginar a América sem os seus grupos de


entreajuda. E, não conseguimos imaginar uma América que não esteja
apaixonada pela tecnologia. O ciberespaço e o movimento de
restabelecimento foram feitos um para o outro”.

Contudo, o crescimento da entreajuda e do apoio social online


constituem um fenómeno global. À medida que cresce o acesso à Internet, o
modo como os sistemas de comunidades virtuais de apoio se articulam com
as estruturas e sistemas localmente alicerçados proporcionará exemplos
interessantes do que alguns analistas simbólicos designaram de
“glocalização” (Featherstone et al, 1995), ou seja, a ideia de que é cada vez
mais difícil libertar o “global” do “local”. Significa isto que à medida que
aumentou o acesso à Internet em Inglaterra, testemunhámos não só a
crescente participação do povo britânico em sistemas de entreajuda e de
apoio online existentes nos E.U.A., mas também a formação de novos

115
espaços virtuais expressamente criados para lidar com a especificidade do
contexto britânico.

Se a maioria dos actores sociais, que habitualmente se empenham na


entreajuda e no apoio social online, constituem ou não por si só uma
comunidade virtual, é uma das questões fundamentais em debate (Jones,
1998; Baym, 1998; Kollock e Smith, 1999; Wellman e Gulia, 1999).
Independentemente do enquadramento teórico sustentado, não há dúvida
que um número crescente de pessoas por todo o mundo está a utilizar o
correio electrónico, a Web, as mailing lists, os newsgroups, os MUD’s, o IRC e
outras formas de comunicação mediada por computador (CMC) para
disponibilizar e receber informação, aconselhamento e apoio sobre um vasto
conjunto de questões sociais e de saúde. É de realçar também a existência
de um grande número de indivíduos que apenas observam estas diversas
interacções sem eles próprios, estarem necessariamente a contribuir de forma
activa (Smith,1999).

Actualmente, o grande volume de tráfego da Internet relacionado com


a entreajuda e com o apoio social online ocorre ao nível dos newsgroups da
Usenet. Saliente-se também a importância das listas de discussão acessíveis
publicamente. Contudo, tendo em conta a recente tendência para as
diferentes formas de CMC aderirem às páginas da Web de modo a formar
sistemas de informação mais integrados e de apoio online (oferecendo talvez
serviços de informação baseados na Web, em simultâneo com aplicações
integradas para a adesão a mailing lists, newsgroups e/ou entrada num chat
em tempo real), a geografia da entreajuda virtual e do apoio social em rede
apresenta constantemente um fluxo considerável. O quadro 2 apresenta-nos
algumas noções da enorme diversidade de tópicos abrangidos pela listagem
de uma pequena selecção de newsgroups da Usenet disponibilizando
entreajuda e apoio social online.

116
Quadro 2 - Lista ilustrativa de Newsgroups da Usenet que oferecem
vários tipos de entreajuda e apoio social

alt.support.cancer.prostrate (ajuda homens com alt.parenting.solutions


cancro da próstata)
alt.parenting.twins-triplets (os problemas de educar
alt.support.cancer.testicular gémeos & outros)

alt.support.cerebral-palsy (apoio em caso de alt.support.abuse-partners (apoio a pessoas que


paralisia cerebral) sofreram abusos)

alt.support.childfree (grupo de apoio para quem não alt.support.agoraphobia (viver com a agorafobia e os
quer ter filhos) seus desafios)

alt.support.chronic.pain (grupo de apoio para quem alt.support.alzheimers (doenças relacionadas com


sofre de dor crónica) Alzheimer e outras demências)

alt.support.chrons-colitis (apoio para doentes com alt.support.anxiety-panic (apoio para pessoas com
colites ulcerosas) ataques de pânico)

alt.support.depression (doenças de depressão e alt.support.arthritis (ajudar as pessoas com


disposição) articulações rígidas)

alt.support.diabetes (apoio para lidar com diabetes alt.support.asthma ( lidar com respiração trabalhada)
e temas relacionados)
alt.supportasthma.buteyko
alt.support.disabled.cargivers (grupo de apoio para
alt.support.autism (apoio e discussão acerca do
quem ajuda os incapacitados)
espectro do autismo)
alt.support.domestic-violence
alt.supportbreastfeeding (discussão e apoio para a
alt.support.dying-well (conversa moderada e aberta amamentação)
sobre a morte)
alt.support.cancer (ajuda emocional para pessoas com
alt.support.dyslexia cancro)

alt.support.dystonia (grupo de apoio do ciberespaço alt.support.cancer.breast


para a distonia)
misc.kids (crianças, o seu comportamento e
alt.support.endometriosis (grupo de apoio para a actividades)
endometriose)
misc.kids.breastfeeding (informação, apoio e decisões
alt.support.epilepsy (apoio à epilepsia) na amamentação)

alt.support.food-allergies (grupo de discussão para misc.kids.health ( a saúde das crianças)


pessoas com alergias a comida)
misc.kids.moderated (questões de educação, ideias e
alt.support.glaucoma (apoio para e por pessoas com glaucoma) experiências)

misc.kids.pregnancy (planeamento pré-natal, gravidez,


crianças)

117
O quadro 3 regista alguns dos mais recentes newsgroups que
integram a uk.people.*hierarchy da Usenet (Smith, 1999) e que disponibilizam
entreajuda e apoio social online mais direccionados para os sistemas de
saúde e de previdência britânicos, e possivelmente também em maior
conformidade com as preferências sociais e culturais da Grã-Bretanha. Nos
primeiros seis meses de 1999, o motor de busca da Usenet, o Deja News,
estimou que, entre estes newsgroups, existiam treze grupos britânicos
direccionados para a entreajuda e o apoio social que atraíram mais de 80.000
mensagens diferentes: uma média de cerca de 450 novas mensagens por dia
durante aquele período. Durante este período, a quantidade diária de
mensagens foi aumentando. No final do período, a quantidade de novas
mensagens diárias permaneceu praticamente nas 600.

118
Quadro 3 - Alguns exemplos de Newsgroups britânicos de entreajuda e
apoio social online específicos na Usenet

uk.people.deaf (discussão acerca de assuntos relacionados com as pessoas surdas)

uk.people.disability (discussão de tópicos relacionados com a incapacidade no Reino Unido)

uk.people.ex-forces (ex-membros das Forças de Sua Majestade)

uk.people.fathers (assuntos sociais que afectam pais e crianças)

uk.people.health (assuntos relacionados com a saúde relevantes para o Reino Unido)

uk.people.parents (discussão acerca da educação parental da criança)

uk.people.rural (pessoas que vivem no campo e o seu modo de vida)

uk.people.support.cfs-me (fadiga crónica/encefalomielite miálgica)

uk.people.support.depression (conselhos, apoio e conversa para pessoas deprimidas)

uk.people.support.epilepsy (epilepsia & tratamento no Reino Unido)

uk.people.support.mental-health (discussão de assuntos da saúde mental no Reino Unido)

uk.people.support.mult-sclerosis (esclerose múltipla & tratamento no Reino Unido)

uk.pelople.support.sma (newsgroup geral da atrofia muscular espinal)

119
Alguns destes grupos terão interesse imediato para vastos sectores da
população que se encontram ligados à rede – por exemplo, os referentes a
questões gerais de saúde, de educação e de paternidade – embora alguns
desses grupos procurem preencher as carências de pessoas com
necessidades específicas de saúde e de apoio social. É possível estimar, com
base nos dados da BHPS acima discutidos, a proporção da população
britânica adulta que, segundo o seu próprio diagnóstico, sofre de determinado
tipo de problemas de saúde e, entre estes, qual a proporção que acede à
Internet a partir de casa. Como referimos no início deste ensaio, o número de
pessoas que acede à Internet a partir de casa aumentou em cerca de 290%
entre 1997 e 1999. De modo a obter uma estimativa da situação em 1998,
aumentámos a nossa estimativa das proporções dos utilizadores nas várias
categorias que examinámos tendo em consideração este factor (no entanto,
estamos cientes do facto de que isto talvez retire a ‘heróica’ conclusão de que
o crescimento da população com necessidades sociais e de saúde tem sido
uniforme). Os resultados desta análise estão sintetizados no Quadro 4.

120
Quadro 4 - Proporção de adultos na Grã-Bretanha com vários problemas de saúde que usam a Internet a partir de casa (auto-
diagnóstico)
Problemas Alergias de Braços; Pernas Peito; Respiração Coração Ansiedade; Depressão Audição

pele
Com

% de adultos britânicos 12% 29% 13% 16% 7% 10%

c/problemas de saúde

particulares

% que usa a Internet a partir 5% 2% 3% 2% 3% 2%

de casa em 1997

% estimada em 1998 (taxa 20% 8% 12% 8% 12% 8%

de 1997 x 290%)

Número de adultos no Reino 1,05 1,021 686 563 370 352

Unido (000s) 6

Problemas Dore Visão Diabetes Estômag Álcool/Drog Epilepsia

s o/Indiges as
Com (cont.)
tão
De

Cabe

ça

% de adultos britânicos c/ 9% 6% 5% 7% 1% 1%

problemas de saúde

particulares

121
% que usa a Internet a partir 2% 3% 2% 2% 2% 1%

de casa em 1997

% estimada em 1998 (taxa 8% 12% 8% 8% 8% 4%

de 1997 x 290%)

Número de adultos no Reino 317 317 246 246 35 18

Unido (000s)

Fonte: Inquérito aos Agregados Familiares (British Household Panel Survey Wave 7), 1997/98, Own Analysis

Base de dados: 9088 casos

122
É claro que estes números constituem estimativas muito básicas, mas
pelo menos dão alguma ideia do número actual de utilizadores em Inglaterra
com necessidades sociais e de saúde específicas. E é óbvio que nem todos
estes utilizadores da Internet farão uso da entreajuda e do apoio social online,
mas será razoável assumir que uma proporção significativa examinará pelo
menos alguns destes recursos virtuais disponíveis, que dizem respeito às
suas condições ou interesses particulares. Além disso, um exame das
mensagens enviadas à maior parte dos newsgroups que disponibilizam
entreajuda e apoio social, também indica que os amigos, a família, outros
fornecedores de cuidados e alguns profissionais têm um peso significativo na
totalidade das mensagens.

A análise sugere que cerca de 18.000 utilizadores habituais da Internet


em Inglaterra sofrem de epilepsia; pelo menos 35.000 têm problemas de
álcool e dependência de droga (provavelmente uma subestimação grosseira
devido ao problema crónico das “não-respostas” nos inquéritos); 246.000 têm
problemas de estômago e do sistema digestivo; 246.000 têm diabetes;
317.000 sofrem de problemas da vista; outros 317.000 registam sofrer de
enxaquecas; 352.000 têm problemas auditivos; 370.000 sofrem de ansiedade
e/ou depressão (de novo, provavelmente, uma subestimação grosseira);
563.000 queixam-se de problemas de coração; 686.000 utilizadores
domésticos de Internet queixam-se de dores no peito e/ou dificuldades
respiratórias; mais de um milhão queixa-se de importantes problemas de
braços, pernas ou mãos; e mais de um milhão têm problemas de pele e/ou
sofrem de uma alergia.

A Conceptualização do apoio comunitário virtual

Como devemos então conceptualizar este fenómeno? O apoio


comunitário virtual representa uma afinidade electiva entre imperativos
tecnológicos, sociais e culturais, constituindo uma complexa amálgama entre
o anónimo, o público, o apoio e o individual. É um fenómeno já amplamente
utilizado e que irá crescer muito nos próximos anos. Dado o seu potencial,
sugerimos que, no mínimo, possa representar um desafio, embora pequeno,

123
aceite para modelos dominantes de política social do pós-guerra. Enquanto
forma social embrionária no ciberespaço, o apoio comunitário virtual
pode ser representado como um dos elementos da passagem de uma
concepção de previdência, assente na manutenção de um Estado
administrado de um forma racional e em conjunto com necessidades
profissionalmente determinadas de um modo paternalista, por um lado e
sistemas burocráticos organizacionais de distribuição, por outro, a uma
concepção caracterizada pela fragmentação, diversidade e um nível
elevado de individualização. Independentemente do que o futuro nos possa
reservar, no âmbito da política social contemporânea, a entreajuda e o apoio
social online representam hoje um novo espaço virtual onde se associam os
vários actores envolvidos na manutenção da previdência social: indivíduos
(envolvidos no tratamento da pessoa); família e amigos; outros fornecedores
de cuidados; membros de organizações voluntárias; trabalhadores
profissionais de saúde e de providência social; representantes do capital
privado; representantes de organismos estatais reguladores; investigadores
sociais e médicos; outras categorias de actores. No verdadeiro sentido,
envolver-se no mundo da entreajuda e do apoio social online significa entrar
num espaço virtual que tem a qualidade de uma rede social entrecruzada: um
espaço não só “pró e contra o Estado”, mas simultaneamente um local rico
em vários outros tipos de ambivalência social.

Ambivalência Online

É importante reconhecer a ambivalência inerente ao fenómeno na


medida em que, na literatura corrente e em parte da literatura académica
sobre a emergência da comunicação mediada por computador, se tornou
habitual enveredar por avaliações altamente polarizadas nas suas qualidades
e efeitos. Por um lado, afirma-se que as relações virtuais tomarão o lugar das
relações reais, conduzindo a um declínio na qualidade de vida (Lockard,
1997; Robins, 1995; Stoll, 1995; Turkle 1996) e contribuindo para o declínio
geral das relações sociais, o que já foi observado previamente (Putnam,
1995). Por outro lado, sugere-se que a Internet possibilita uma maior escolha
em potenciais relações, libertando o indivíduo e permitindo aos membros da
rede recorrer a um maior leque de recursos sociais, emocionais e empíricos

124
(Rheingold, 1994; Katz e Aspden 1997; Weise, 1996). Para muitos, o debate
tem-se baseado em provas anedóticas, o que tem sido correctamente
criticado (Baym, 1998; Wellman e Guila, 1999), e até a exposição limitada à
Internet torna claro o exemplo de que, se procurarmos bastante, quase tudo
existe algures, sendo por certo suficientemente fácil encontrar exemplos de
entreajuda e de apoio social. É também obviamente fácil encontrar exemplos
de agressão e de extrema falta de civismo. Em vez de reconhecer a
ambivalência inerente ao fenómeno, as reacções analíticas tendem a
espelhar os seus extremos. Wellman e Gulia (1999: 167) exprimem-no bem
quando afirmam que “…Os Maniqueistas, de ambos os lados deste debate,
declaram que a Internet tanto poderá criar novas e extraordinárias formas de
comunidade, como destruir totalmente qualquer uma dessas formas. Estas
posições dualistas e opostas sustentam-se mutuamente, recorrendo a
afirmações inequívocas da perspectiva contrária na fundamentação dos seus
próprios argumentos. As afirmações de entusiasmo ou crítica deixam pouco
espaço a situações moderadas ou mistas que podem ser a realidade.”

Pesquisa Empírica sobre Comunidades Virtuais “Reais”

Qualquer solução para este impasse dualista surgirá, seguramente,


em primeiro lugar, através do reconhecimento de algumas das
especificidades da Internet como fenómeno social, e, em segundo lugar,
através da participação em algumas pesquisas empíricas rigorosas. Para já, o
número de estudos empíricos é limitado, embora existam alguns bons
exemplos. Estes incluem: a etnografia virtual aprofundada, elaborada por
Denzin’s (1998), sobre um conjunto de debates ocorridos num newsgroup da
Usenet centrado em torno da co-dependência; a explicação de Moursund
(1997) do uso de um MUD criado por adultos que sobreviveram a abusos; a
análise de Boberg (1995) - em conjunto com outros autores - do
desenvolvimento e do uso do apoio mediado por computador social a
portadores de Sida; o estudo de Weinberg (1996) – em conjunto com outros
autores - sobre apoio online para doentes com cancro; e a análise
aprofundada de Radin (1998) do apoio mediado por computador às mulheres
com cancro da mama. No seu livro original “Communities in Cyberspace”
(Comunidades no Ciberespaço), Smith e Kollock (1999) reúnem algumas das

125
melhores pesquisas empíricas nesta área. O seu empenho em “descrever e
analisar modelos de interacção e organização online tal como existem” (Smith
e Kollock, 1999: 4) é algo com o qual concordamos plenamente. Também
concordamos com a sua preocupação em estabelecer um programa de
pesquisa, cujo objectivo é “investigar o modo como os grupos sociais no
ciberespaço se projectam no mundo real, e vice-versa” (1999: 19). Para
transmitir uma noção real da forma como os sistemas de assistência das
comunidades virtuais funcionam, é melhor experimentá-los online. Contudo,
no sentido de esboçar uma vaga ideia destes sistemas de apoio, a próxima
secção do ensaio fornece três exemplos ilustrativos.

Exemplos de entreajuda e de apoio social online

O objectivo deste ensaio é delinear algumas das temáticas e das


questões fulcrais, que estão na base de um programa de pesquisa no âmbito
da política social. Os extractos que iremos apresentar, designadamente de
dois Newsgroups e de uma página web, proporcionam uma visão da natureza
das interacções na Internet e do tipo de assuntos discutidos. Por outro lado,
quando os inserimos no âmbito de debates mais alargados, no domínio da
política social, surge um conjunto de questões importantes, que abordaremos
na próxima secção.

Um Newsgroup Britânico Utilizado por indivíduos com deficiência

Em 1997 um Newsgroup foi criado sob a uk.*hierarchy na Usenet com


ênfase sobre assuntos respeitantes à deficiência na Grã-Bretanha. O grupo
surgiu, em parte, por causa da predominância de grupos americanos (e temas
americanos) na Usenet. Até meados de Agosto de 1999, recebeu cerca de
13.000 mensagens. O grupo, tal como muito outros newsgroups, é constituído
por uma combinação de participantes regulares e de utilizadores novos e
irregulares. O leque de tópicos discutidos é muito vasto. Algumas vezes o
grupo discute as atitudes da sociedade e dos políticos face aos deficientes,
outras vezes centra-se em assuntos que dizem respeito a benefícios
(pagamentos da segurança social), havendo ainda espaço para debate de um

126
problema ou tema específico. Em alguns casos, as pessoas estão apenas
interessadas em pedir ou obter informações, enquanto noutros se preocupam
em debater e argumentar. Muitas vezes, as duas vertentes conjugam-se.
Finalmente, há casos em que o Newsgroup é utilizado num sentido mais
lúdico pelos participantes – consequência importante, na qual a
interactividade é essencial para manter e sustentar uma comunidade virtual
dinâmica. Seguem-se dois breves excertos do grupo. O primeiro é uma troca
muito simples, na qual alguém pede e recebe aconselhamento e informação
de outros membros do grupo. O material citado é apresentado aqui tal como
foi enviado, mas sem os nomes dos autores. O material que foi editado,
assim como algumas breves notas e explicações estão entre [parêntesis
rectos].

Mensagem 1

Olá a todos. Estava a pensar se alguém poderia dizer-me onde posso


comprar um aparelho que penso ser conhecido como “Garra”. É utilizado
para alcançar as coisas quando não nos podemos baixar. Parece uma
pequena vara feita de alumínio, que tem numa ponta uma pega e na outra
ponta uma espécie de tenaz, que é trabalhada por alguns fios.[…]

Mensagem 2

Penso que se chama Mão Ajudante. Espero que isto ajude na tua
pesquisa.

Mensagem 3

Olá. […] Penso que as empresas que lidam com material de apoio
para pessoas com deficiências podem fornecer esse aparelho. Não sei em
que zona te encontras, mas no nordeste (Nordeste da Inglaterra) temos uma
empresa, a [nome da empresa], que fornece estes aparelhos.

Mensagem 4

127
Eu arranjei o meu na Unidade de Ortopedia do [nome do hospital]
enquanto lá estive, porque aqueles que eles tinham eram muito melhores do
que os que funcionam com fios. Telefona e pergunta onde é que eles os
arranjaram!

Mensagem 5 (da pessoa que fez a mensagem 1)

Um breve agradecimento mais uma vez a todos aqueles que


responderam à minha mensagem, agora tenho informação suficiente e vou
comprar um para substituir aquele que parti.

Esta troca é simples mas ilustrativa dos potenciais benefícios dos


newsgroups no fornecimento de apoio e informação, proveniente de uma das
fontes mais apropriadas e eficazes, ou seja, aqueles que partilham a mesma
experiência, interesses e necessidades. As trocas são informais e o seu tom é
amigável e prestável.

O próximo extracto reflecte a diversidade que se encontra nestes tipos


de fóruns e alguns dos assuntos que podem surgir quando são utilizados.
Neste caso, um utilizador de um newsgroup foi insultado e sofreu abusos por
parte de um indivíduo anónimo. Os comentários dos outros utilizadores são,
regra geral, quer de apoio, quer informativos. Contudo, surgiu uma espécie de
discussão entre dois dos participantes, que mais tarde se prolongou durante
algum tempo.

Mensagem 1

Ontem recebi um e-mail anónimo de alguém deste ng [newsgroup]


afirmando ter visto as minhas mensagens e dizendo o quão abomináveis
eram. Chegou mesmo a ofender-me verbalmente. A questão essencial no que
diz respeito aos correspondentes anónimos é tão covarde, pois as pessoas
podem enviar correio mal-intencionado sem serem apanhadas ou terem de
enfrentar uma resposta. Assim, uma vez que não posso responder às

128
mensagens em privado, estou a fazê-lo através do ng ao qual ele afirma
pertencer. Aqui está a minha resposta. A tua opinião é a tua prerrogativa.
Tens todo o meu desprezo, não por aquilo que escreveste, mas por seres
suficientemente covarde ao ponto de te esconderes no anonimato.

Mensagem 2

Se estás a receber e-mails abusivos apresenta-os no ng para que


possamos ver a que é que estás a responder. [nome da pessoa] teve o
mesmo problema há algumas semanas.

Mensagem 3

Tu queres dizer que [nome da pessoa] *disse* que teve o mesmo


problema. Isso não significa que não tenha tido o mesmo problema, mas será
que ele eventualmente guardou uma cópia daquilo que afirma ter recebido?

Mensagem 4 [nome da pessoa]

Eu não troco correspondência sem o consentimento dos outros


utilizadores. E uma vez que o remetente era anónimo e mandou a mensagem
de uma página web com pseudónimo, não fui capaz de fazer tal pedido. Em
geral, o que acontece no e-mail, deve permanecer no e-mail. Contudo, neste
caso é óbvio que, pelos comentários efectuados, o remetente faz parte de um
newsgroup específico. Quanto a mim, procuro dar a conhecer a minha opinião
sem quebrar as regras da boa netiqueta. Uma vez que aquilo que escreveste
anteriormente demonstra uma ingenuidade acerca das regras de uso da
Internet, não direi mais nada acerca disto. Podia pedir ao meu ISP para fazer
uma pesquisa em “Anónimos” pois, seguindo a sintaxe utilizada e certas
idiossincrasias no soletrar, existe um certo grau de possibilidade de encontrar
a pessoa – claro, que isso significaria uma queixa, ou entrando ainda mais no
ISP de origem dessa pessoa, a provável perda de acesso […]. O que seria
uma pena, uma vez que as pessoas que se sentem tão impotentes
necessitam obviamente de algum tipo de aconselhamento ou de exercitar as
suas capacidades de asserção. O pseudónimo foi colocado no meu filtro e
nada mais foi recebido.

129
Mensagem 5

Concordo contigo […] mas penso que a melhor forma de lidar com tais
e-mails é ignorá-los. Se uma pessoa pretende aborrecer ou irritar alguém, não
queres que essa pessoa sinta que conseguiu aquilo que desejava. Por isso,
se a ignorares, ela irá aborrecer-se e desistir.

Mensagem 6

Olá, tive um problema semelhante há cerca de um ano. Alguém estava


a enviar-me mensagens abusivas e ameaçadoras, dizendo que “ia caçar-me”
por ser uma “cabra cega”. Comecei a filtrar o e-mail dele, e ele arranjou outro,
e outro, e outro. Agora tenho cerca de 30 endereços filtrados no meu mail, e
uma vez que se apercebeu que não me alcançaria facilmente começou a
desistir, tendo infelizmente avançado para outra pessoa. Também investiguei
os seus “e-mails anónimos”, e consegui o seu nome, morada e telefone
verdadeiros. Quando ameacei contactar as autoridades por causa de assédio
online, os mails pararam quase por completo, e até aqueles que recebo agora
são inofensivos, comparativamente aos anteriores. A maior parte destas
pessoas são apenas bichos da net e fogem quando o seu pequeno mundo é
abalado.

Esta troca realça alguns dos aspectos mais negativos deste tipo de
interacções. Não há dúvidas de que existe um lado mais escuro dos tais
“grupos de apoio” que é enfatizado por aqueles que chamam a atenção para
as consequências sociais negativas da Internet. Vemos aqui o risco bem real
de ser assediado. Assim, mesmo quando interagem no ciberespaço, as
pessoas não estão imunes ao assédio e à discriminação. Neste caso, outros
membros do grupo prestaram apoio e mostraram-se solidários, embora um
dos participantes tenha optado por compor a situação ao evidenciar a
incompetência tecnológica de outra pessoa. Isto chama a atenção para um
segundo aspecto negativo das trocas online: o facto de estas poderem
autorizar ou desautorizar – especialmente aqueles que têm algumas
competências tecnológicas. Estas duas dimensões negativas foram também
encontradas no nosso segundo exemplo.

130
Um Newsgroup Britânico Utilizado por Pais

O segundo newsgroup apresenta índices de troca de mensagens


mais baixos, mas é mesmo assim bastante utilizado. Este grupo aborda
diversos temas relacionados com a educação no Reino Unido. Tal como no
grupo dos deficientes, é discutido um variado leque de temas. A disciplina, o
desenvolvimento moral e educacional, a saúde e o bem-estar físico fazem
parte dos assuntos mais debatidos. Existe, igualmente, uma troca de
informações, assim como discussões de tópicos e debates. O exemplo de
troca de correspondência que analisamos aqui tem como tema a vacina
múltipla do sarampo, papeira e rubéola (SPR). Este é um assunto que afecta
a maior parte dos pais no Reino Unido e que tem sido alvo de muita
controvérsia. Apresentamos apenas alguns extractos deste debate ainda em
discussão.

Mensagem 1

A nossa filha de 4 anos… está pronta para os reforços pré-escolares


do sarampo, da papeira e da rubéola, mas ouvimos dizer que estes não são
estritamente necessários e podem causar problemas. Perguntamo-nos o que
fazer, se devemos ou não administrá-la à nossa filha. O nosso médico parece
estar disposto a fazer uma análise ao sangue para ver se ela ainda é imune,
mas em todo o caso o teste não dirá se a imunidade está, ou não, a diminuir.
De momento pensamos não lhe dar esses reforços (e falando francamente,
se na escola todos estiverem imunes, dificilmente ela será contagiada). Mais
alguém tem outros pontos de vista ou informações?

Mensagem 2

Se quase todos os outros ficaram imunes, ela poderá não entrar em


contacto com um caso infeccioso até à sua vida adulta. Se ela apanhar
rubéola enquanto estiver grávida pode ser perigoso. “Eles” dizem que se a
maior parte das pessoas for vacinada contra o sarampo, papeira e rubéola,
vocês também devem fazê-lo; as consequências de não se vacinarem podem
ser menos perigosas se for comum a doença nas crianças locais.

131
A próxima mensagem, tal como muitas das mensagens nos
newsgroups, baseia-se na experiência pessoal destas famílias.

Mensagem 3

Aqui vai a minha contribuição!!! O meu filho tomou a vacina SPR


quando esta se tornou acessível pela primeira vez – ele tem agora onze anos
e há cinco que é diabético. Existem poucas ou nenhumas provas científicas
publicadas de que esta vacina e os diabetes juvenis estejam ligados, mas eu
acredito que essa pode ser a causa. É igualmente verdade que a incidência
de diabetes juvenis aumentou desde que estas vacinas são admnistradas
rotineiramente. A minha filha tem agora três anos e não levou a vacina por
esta razão. Vários profissionais de saúde perguntaram por que é que a Nell
não tomou a vacina, e ao enumerar as minhas razões NINGUÉM as
questionou ou refutou. Não tenho nada contra as vacinas – [nome da filha] &
[nome do filho] levaram todas as outras – nem contra as vacinas só de
sarampo, papeira ou rubéola. [nome da filha] vai levar a vacina da rubéola
quando for mais velha, porque sou uma firme defensora desta vacina,
especialmente para as raparigas. Mas oponho-me fortemente aos “cocktails”
de vacinas. Não penso que se saiba o suficiente acerca dos efeitos que as
doses-múltiplas podem ter nos indivíduos. Esta é apenas a minha opinião e
experiência. A sua decisão deve ser exactamente… sua!

O debate continua com os pais articulando as suas opiniões e pontos


de vista sobre o assunto. Também relacionam as suas próprias experiências
pessoais, que incluem factos como: complicações médicas relacionadas com
a vacina e interacções com profissionais de saúde e educadoras. Como
retrata a mensagem que se segue:

Mensagem 6

Peço desculpa por levantar de novo este assunto, mas ausentei-me e


perdi o início da discussão. O meu conhecimento é parco, mas eu pensava
que o risco associado com o sarampo, a papeira e a rubéola era menor se os
componentes fossem dados separadamente em vez de serem dados ao

132
mesmo tempo, numa só vacina. Alguém tem informação acerca deste
assunto? A minha [nome da filha] tem dois anos e meio e ainda não tomou a
vacina, mas não pode entrar no jardim escola sem as vacinas estarem em
dia. Foi-lhe removido um rim e de qualquer modo reage sempre mal às
vacinas. Por isso, quero minimizar o risco. Falei ontem com o médico dela
para tentar convencê-lo a dar-lhe as vacinas separadamente, mas ele disse-
me que eu estava a dizer disparates mesmo quando mencionei a nossa
intenção de irmos a um médico particular para tratar desta questão. Mesmo
que a pesquisa seja inconclusiva sentir-nos-íamos muito melhor connosco se
ela tomasse as injecções separadamente. Alguém pode dar conselhos acerca
disto, já que o médico dela se recusa a receitá-las?

Mensagem 7

Eu já ouvi falar disto a título humorístico, mas ainda não vi nenhuma


pesquisa feita. Mas duas coisas vêm à minha mente instantaneamente. 1º) o
seu médico é um ser desprezível e arrogante e 2º) se fosse a si, eu não
aceitaria as regras do jardim escola. Parece-me que pode favorecer o jardim
escola por este aceitar a sua filha sem ser vacinada, uma vez que ela tem um
historial médico problemático. A minha segunda filha não está imune, por
causa de uma reacção adversa à primeira dose, e nunca ninguém fez caso
disso: ama, jardim escola ou médico. Ou eu tive sorte, ou você teve azar.

Essencialmente, os pais estão a tentar juntar tanta informação quanto


possível para que possam pesar os riscos e chegar a uma decisão informada,
quanto a ter os seus filhos vacinados ou não. O número de respostas que
surgiram foram esmagadoramente apoiantes, informativas e prestáveis.
Contudo, tal como no caso do grupo de incapacitados, houve um caso em
que um participante foi ofendido por um correspondente anónimo.

Mensagem 13 [correspondente anónimo]

Sim, está a ser muito egoísta. Todos os outros miúdos estão imunes,
por isso não tem de se preocupar. Claro! A Internet é o local errado para
procurar informação imparcial sobre a vacinação. Todos os malucos com um
plano querem associar as doenças conhecidas a uma vacina. Existe até

133
alguém que quer convencê-la de que o seu filho terá diabetes se o vacinar!
Excelente! Aqui está um segredo: o governo quer que os vossos filhos sejam
vacinados para que o ADN extraterrestre possa ser injectado! Tem tudo a ver
com protecções contra doenças virais que podem causar danos neurológicos.
Resista, ou os seus filhos odiá-la-ão para sempre…mas não faz mal, porque
estamos nos anos 90 e é cada um por si – lixem-se os outros todos – vá em
frente!

O alvo ofendido respondeu assim:

Mensagem 14

O meu nome é [nome] e não sou uma maluca. Nós procurámos todos
as possíveis causas dos diabetes do nosso filho e a vacina do sarampo,
papeira e rubéola é uma das muitas causas que identificámos. Suspeito que
tenha a sorte de ter crianças perfeitas, e certamente nenhuma que tenha
ficado lesada com uma vacina. Sugiro que, se quer criticar o meu ou qualquer
outro ponto de vista válido, deixe de se esconder por trás do anonimato e
tenha a coragem de dizer aquilo que pensa mostrando-se aos outros.

Mensagem 15 [correspondente anónimo]

Parece que a raiva tem vindo a crescer. Será que isso significa que a
vacina SPR é responsável? Claro que não. “Identificou” uma “causa
provável”, mas decidiu espalhar a sua histeria pela net, assustando outros
pais com a sua história. Muito irresponsável, IMHO …[no que diz respeito ao
meu rótulo de anónimo] que diferença lhe faria? Talvez eu venda vacinas e
prefira não ter um maluco, que se ofendeu com as minhas palavras num
fórum público, a seguir-me e aos meus filhos, com bombas e armas de 9mm
semi-automáticas. Existem muito mais possibilidades de isso acontecer do
que alguma das minhas crianças ficar com diabetes juvenis por causa da
vacina.

Mensagem 16

Sabe, eu até podia responder, mas seria uma perda de tempo.

134
Estas trocas do grupo de pais, tal como o exemplo anterior,
evidenciam o lado mais “negro” das interacções no ciberespaço. Contudo,
apontam para o facto de estes pais quererem reunir o maior volume de
informação possível antes de tomar as suas decisões. Estes pais não são,
claramente, beneficiários passivos da previdência social e não aceitarão,
neste caso, a vacinação dos seus filhos, sem apreciação crítica.
Retornaremos a este ponto mais tarde. Mas vamos primeiro apresentar o
nosso exemplo final, ilustrativo da entreajuda e do apoio social online.

A Homepage relacionada com Execuções de Hipotecas do Reino


Unido

A homepage dedicada às situações de execução de hipoteca, no


Reino Unido, integra uma página web criada em 1997 com o propósito de
fornecer apoio e informação a pessoas que se confrontam com uma situação
de dívida e execução de hipotecas – um grande problema social no Reino
Unido (Ford e Burrows, 1999). Por conseguinte, este é um site mais centrado
e, em parte, mediado, essencialmente gerido por peritos, contém também, no
entanto, perguntas e respostas de pessoas que enviam as mensagens com
comentários de peritos. No que diz respeito a este assunto, representa um
bom exemplo da fusão da tecnologia web e da mailing list. Por isso, os
utilizadores fundamentam e partilham as suas próprias experiências. A
homepage enuncia os seus objectivos do seguinte modo:

“A página dedicada às situações de execuções de hipotecas foca a


situação dos residentes do meio milhar de casas cujas hipotecas foram
executadas nos últimos 10 anos; a forma como, por vezes, os credores
maltratam os clientes; o que sucede após a execução da hipoteca, as
consequências para os clientes. Revelámos uma grande quantidade de
material não publicado sobre a forma como os credores lidam com estes
complexos assuntos.”

135
Existe também uma afirmação por baixo do cabeçalho de “ A Nossa
Posição” que diz o seguinte:

“Você é responsável pelas suas dívidas. Mas quando achar que um


financiador vendeu a sua casa hipotecada abaixo do seu valor, perseguindo-a
por causa desse prejuízo, deve arrogar-se o direito de questionar as suas
afirmações sem se confrontar com intimações, exigências monetárias ou
ameaças legais.”

O leque de assuntos abrangidos na página web encontra-se exposto


na lista que consta na homepage: Mantenha-se Informado; Mapa do Site;
Votação; Entrevistas; Compra de Imobiliário; Atrasos de Débito; Execuções
de hipotecas; Lista Negra?; Ajuda; Factos; Q&A; Ligações.

A página de execuções de hipotecas de casas no Reino Unido


disponibiliza informação factual e legal acerca da compra de imobiliário e
execução de hipotécas. Por exemplo, disponibiliza não só informação muito
detalhada na secção “o que fazer e o que não fazer” após a execução de uma
hipoteca, mas também informação personalizada dirigida a pessoas que
enviam as suas questões e problemas. Apesar das contribuições dos
utilizadores, grande parte da informação é fornecida pela pessoa que
construiu a página web. Esta permite reunir informação a partir das
experiências e contactos das próprias pessoas. Por exemplo, na secção de
Compra de Imobiliário, existe um índice de historiais de relações entre
financiador da hipoteca e cliente, bem como o perfil dos vários financiadores.
Existe uma informação extensiva e detalhada sobre os direitos dos
utilizadores e procedimentos administrativos e legais associados com atrasos
na hipoteca, execuções, dívidas astronómicas após a execução e muito mais.

Uma pesquisa sobre a experiência de execução de hipotecas


demonstrou que os complexos e intermináveis procedimentos legais e
administrativos associados à perda de casa contribuem significativamente
para a natureza stressante da experiência (Nettleton e Burrows, 2000). Para
tal, contribuem igualmente factores como a falta de esclarecimento e de
informação sobre o que realmente se passa no acto de execução da hipoteca
de uma casa. A mesma pesquisa concluiu que a execução de hipotecas é
uma experiência altamente individualizada e estigmatizante – factores que

136
incapacitam as pessoas para procurar ajuda. Um problema frequente é a
perseguição dos credores às pessoas com dívidas associadas a uma casa
hipotecada.

No Verão de 1999 a Sra. B. enviou a seguinte questão para a página


web:

“Comprámos um apartamento em 1991, quando ele tinha 18 e eu 21


anos. A pressão financeira causou a nossa separação e devolvi as chaves. A
nossa hipoteca foi, por fim, executada em Junho de 1994. Desde então
reconciliámo-nos e tivemos filhos, o terceiro chega em Setembro. Em
Dezembro de 1999, comprei o meu escritório para exercer advocacia, porque
era mais barato do que arrendá-lo. Tudo bem. Pensava que não ia ter outra
hipoteca. Há três semanas recebi uma carta a exigir £35000. Fiquei
espantada. Até agora, ignorei qualquer correspondência, mas estou prestes a
escrever e dizer que procuro aconselhamento. Liguei para uma linha de
dívidas que me informou que eu podia, provavelmente, oferecer-lhes £3000 e
que eles aceitariam, mas eu nem sequer tenho essa quantia. Com um bebé a
caminho estou perdida…qualquer conselho será bem-vindo”.

O moderador da página web respondeu assim:

“Lamento a sua situação. Comecemos por algumas questões: Quem é


o credor anterior? Quem escreveu a carta: o financiador ou o advogado? Se
foi um advogado, qual? A anterior hipoteca foi comum? Quem é o actual
credor? A sua actual hipotéca é comum ou individual? Se é individual, em que
nome está? Há algum sinal de que eles tenham vendido a casa original
demasiado barata? Algum sinal de que eles tenham levado muito tempo a
vendê-la?

Quando soubermos as respostas a estas questões podemos avançar.”

Outros visitantes da página web também oferecem ajuda e conselhos


baseados na sua própria experiência ou conhecimento do assunto. O
feedback dos utilizadores da página web é um indicador de que a informação
constitui uma fonte de apoio e lhes dá confiança para lidar com os credores.

137
Por exemplo, outra mulher que teve um prejuízo semelhante explicou a um
dos autores deste ensaio quão valiosa foi esta página web, escrevendo, com
base na informação que nela recolheu, o seguinte ao seu credor:

“Diga à Sociedade de Construção que eu desafio o carácter legal das


suas reclamações, e que leve o assunto a tribunal (denunciando o seu bluff,
após várias ameaças). Que eu estaria a utilizar o [nome do caso legal] que
deveria constituir uma prova válida em tribunal”.

Ela mencionou então que o credor parecia estar a desistir e que, no


momento, estava optimista quanto ao resultado.

Esta página web fornece ao mesmo tempo apoio social e prático às


pessoas, servindo também de mecanismo inibidor da natureza altamente
individualizada da experiência. Neste sentido, esta página contribui para a
formação de uma resistência mais colectiva contra as entidades
financiadoras.

É claro que, presentemente, apenas um reduzido número dos milhares


de famílias que se confrontam com a experiência da execução da hipoteca,
contactam ou conseguem contactar a página web. Contudo, a análise levada
a cabo revela as potencialidades deste tipo de página para o apoio social
mediado por computador e os desafios colectivos ao que, de outra forma,
seria um sistema altamente individualizado. Esta página constitui um modo
informal de previdência social assente no voluntariado, requerendo
participação activa por parte dos utilizadores que recebem ajuda e que
ajudam os outros. Em muitos aspectos, constitui uma extensão da entreajuda,
responsabilidade pessoal face à previdência social e cidadania activa, noções
chave para os debates e desenvolvimentos actuais da previdência social.
Contudo, a forma que assume - apoio mediado por computador – pode ter
repercussões nestes temas. E é sobre estes temas mais abrangentes que
agora nos debruçamos.

138
Algumas questões emergentes no âmbito dos debates sobre
política social

Claro que, apesar da natureza ambivalente do fenómeno, a


comunicação mediada por computador (CMC) tem o potencial para exercer
um impacto suficientemente profundo na vida social, com implicações na
política social. Tal como nos explicou uma utilizadora do newsgroup de
educação anteriormente analisado, através do pequeno questionário colocado
em http://www.york.ac.uk/res/answers.htm:

“Os newsgroups foram um verdadeiro salva-vidas para mim nos


primeiros dias de maternidade. Um dos primeiros grupos que encontrei
foi o misc.kids.breastfeeding, que me manteve sã e me forneceu muitos
conselhos sensatos e apoio num momento em que, realmente,
necessitava. Eu queria mesmo amamentar o meu filho, mas não tive
nenhum apoio familiar para além do meu marido. Fui ,de facto, muito
criticada pela minha própria família por fazê-lo, e recebi muita
informação que sei estar errada. O misc.kids.breastfeeding deu-me as
respostas que eu precisava - tenho leite suficiente?; como posso
produzir mais?; tenho infecções?; é normal amamentar tanto um bebé?
- e apoio quando as coisas foram difíceis. Uma vez fui expulsa de uma
biblioteca pública por amamentar ali. Foi também crucial porque me deu
a oportunidade de prestar apoio a outros quando me tornei experiente.
Isto foi uma grande motivação para mim – é esse o objectivo dos grupos
de apoio…devo acrescentar que tive uma inspectora de saúde
maravilhosa e apoiante que, porém, só podia disponibilizar o seu apoio,
no máximo, uma vez por semana e eu tinha de ir à clínica se o quisesse
obter. Um newsgroup encontra-se a pouca distância e podemos ter-lhe
acesso sempre que o nosso bebé, finalmente, adormece. Estou agora a
planear ter um segundo filho e sinto-me confiante por saber que terei
acesso a um apoio e a uma informação muito melhor. E isso vai ajudar-
me a ter uma gravidez muito mais feliz e um parto melhor da próxima
vez. O que deve ser assustador para as parteiras das comunidades.
Penso poder afirmar que os newsgroups mudaram a minha vida e a da
minha filha, e provavelmente a do meu parceiro também. Mudei toda a

139
minha atitude a respeito da educação por causa das informações que
obtive através do newsgroup e das organizações que fornecem maior
apoio pessoal, onde fiz amigos e estou a treinar para ser apoiante
voluntária de amamentação.”

Como afirmámos no início deste trabalho, as nossas atenções


centram-se nas formas de CMC predominantemente construídas e utilizadas
por cidadãos comuns. Ou seja, formas de previdência e de entreajuda de
qualidade superior, em detrimento de formas de providência profissionais de
qualidade inferior. Esta dimensão da previdência assume um significado
particular na sociedade contemporânea do Reino Unido, não só por causa da
forma como a CMC foi utilizada por alguns grupos, mas também porque as
formas de entreajuda e “voluntariado” estão a tornar-se, de um modo geral,
indispensáveis para as políticas sociais. Concluímos o trabalho tomando em
consideração o que deve ser feito com o uso crescente da entreajuda e do
apoio social online no âmbito dos actuais debates sobre política social. Do
nosso esboço quantitativo e qualitativo dos grupos de entreajuda e de apoio
no Reino Unido, sugerimos uma análise mais aprofundada dos seis pontos
que passamos a enunciar:

1. Em primeiro lugar, apesar do aumento da entreajuda e


dos grupos de apoio não ser uma consequência da CMC, esta
acelerou certamente a expansão deste tipo de grupos. Tem sido bem
documentado o aumento exponencial do número de grupos de
entreajuda ao longo das últimas décadas (Giddens, 1992; Nettleton,
1995). Isto tem feito parte de uma mudança cultural que leva as
pessoas a quererem dar e receber ajuda, informação e apoio. Estes
utilizadores também formam um novo movimento social uma vez que,
tal como Kelleher (1994: 116) explica:

“…eles têm a possibilidade de ver as coisas de uma


maneira diferente […]. Os grupos de entreajuda abordam um
leque de assuntos que devem ser mantidos vivos, em vez de
serem distorcidos por sistemas de peritos e discursos do

140
mercado, tornando possível uma forma de conversa não-
coerciva.”

Sem dúvida que os três casos ilustrativos apresentados eram


exemplos de fóruns onde os assuntos podem ser debatidos
independentemente das instituições formais, como a medicina (no caso da
vacina múltipla de sarampo, papeira e rubéola) ou os financiadores (no caso
das execuções de hipotecas). Estes grupos de apoio também constituem um
meio de partilha e troca de informações e de ideias, oferecendo apoio social a
um certo nível. Contudo, embora estes fóruns englobem, de algum modo,
“grupos” ou “comunidades virtuais”, eles constituem apesar de tudo,
simplesmente o resultado de um conjunto de contribuições de indivíduos,
sendo o campo de acção e a oportunidade de resistência colectiva limitados.
Esta é uma característica de todos os grupos de entreajuda. Num debate
sobre estes grupos, Williams (1989) afirmou que os grupos modernos são os
descendentes de uma difícil relação entre duas ideologias, o individualismo e
o colectivismo, em que predomina o individualismo. Os grupos de entreajuda
defendem a liberdade individual, encorajando a independência dos outros e
promovendo um sentimento de autonomia. Ao mesmo tempo, tentam abarcar
uma noção de solidariedade. Parecerá, então, que o formato e a natureza dos
grupos virtuais é essencialmente de entreajuda em detrimento da ajuda
colectiva, na qual os indivíduos procuram informação e apoio ou oferecem
respostas individualizadas a outros participantes. Contudo, esta temática
requer uma pesquisa mais profunda – precisamos de saber, particularmente,
a forma como os participantes experenciam a Internet: o que ganham com
isso? Que impacto tem nas suas vidas e em si próprios? Só então podemos
começar a perceber o potencial do impacto da Internet no bem-estar psico-
social.

2. Um segundo aspecto refere-se à importância e ao


privilégio da experiência pessoal, que se sobrepõe ao conhecimento
dos peritos. Mais uma vez, este assunto tem sido alvo de muitas
pesquisas nas ciências sociais (Brown, 1992; G. Williams e Popay,
1994; S. Williams e Calnan, 1996), sendo mais evidente na discussão
acerca da vacina múltipla no grupo de discussão de educação

141
parental, anteriormente em referência. O aconselhamento de
especialistas ortodoxos (convencionais) não foi aceite sem
apreciação crítica e os pais juntaram informação e conselhos de uma
série de fontes. De acordo com Giddens, existe uma característica
chave na vida moderna actual:

“A vida moderna é um tema complexo e existem muitos


“filtros” onde o conhecimento tecnológico, de uma forma ou de outra,
é re-apropriado por pessoas leigas e rotineiramente aplicado no
decurso das suas actividades quotidianas. […] Os processos de re-
apropriação relacionam-se com todos os aspectos da vida social –
por exemplo, tratamentos médicos, educação infantil ou prazer
sexual ( Giddens 1991: 146).

Diz-se que esta é uma das características da sociedade


contemporânea – descrita como uma “sociedade de risco” - precisamente
porque as pessoas enfrentam um maior número de escolhas acerca das
quais têm de tomar decisões. Para que possam tomar essas decisões, os
indivíduos baseiam-se e interpretam informação fornecida por “peritos”,
media, amigos, livros, etc… – Eis a muito discutida noção de reflexividade
(Nettleton e Burrows, 1998). Numa sociedade pós-tradicional, a
autoridade tradicional (tal como o especialista em medicina) está a ser
substituída por múltiplas fontes de autoridade. É óbvio que a Internet
expande amplamente a quantidade de fontes de informação em quase
todos os aspectos da vida das pessoas (Burrows e Nettleton, 2000). Mas
não sabemos bem de que modo e em que ocasião as pessoas recorrem à
Internet para obter informação e apoio, nem a importância que atribuem
às fontes de ajuda a que acedem através desse meio. Mais uma vez, esta
questão requer pesquisa qualitativa adicional sobre os próprios
utilizadores (Hardey, 1999).

3. Um terceiro aspecto relaciona-se com o impacto que as


interacções na Net podem ter nas interacções entre “especialistas”
tradicionais e “leigos”, o que, mais uma vez, constitui um assunto que,
durante as últimas décadas, tem sido o foco de muitas pesquisas no

142
âmbito da sociologia da saúde e da doença (Nettleton, 1995). Apesar
de tudo, o crescimento da utilização da Internet para informação e
aconselhamento é capaz de ter implicações bem mais complexas para
os médicos, que vêem os seus conhecimentos desafiados e
desrespeitados. A entreajuda e o apoio social online irão
provavelmente alterar a natureza de muitas relações profissional-
cliente no contexto social e dos cuidados de saúde. É também
provável que afecte as relações fornecedor-comprador noutras
esferas. Por exemplo, nas trocas efectuadas na página da execução
de hipotécas no Reino Unido, vimos como uma pessoa vítima de
hipoteca conseguiu enfrentar os seus financiadores quando munida da
informação acerca do estatuto legal das suas exigências. Utilizadores,
pacientes, utentes ou quem quer que seja, podem em breve tornar-se
peritos acerca das suas próprias situações e circunstâncias. Assim, a
exploração empírica das consequências da utilização da Internet para
interacções profissional-cliente é outra área que podemos considerar
importante.

4. A quarta preocupação prende-se com a qualidade de


informação e a legitimidade dos aconselhamentos, o tipo de material
informativo e o apoio que está a ser fornecido e acedido na Net. Dada
a natureza desregulada não regulada/(anárquica)/desregulada de
muitas interacções, é difícil classificar a qualidade de tais informações.
É provável que muitas pessoas procurem, tal como foi sugerido
anteriormente, informações de um vasto leque de fontes, avaliando
assim os méritos e deméritos daquilo que encontraram. Existe apenas
um número limitado de estudos sobre este assunto, apesar de as
pesquisas efectuadas sugerirem que, embora variável, a qualidade é
na globalidade positiva (Sandvik, 1999), mas provavelmente segundo
o próprio tema e o tipo de sistema em que é comunicado.

5. Um quinto tema emerge da análise das trocas nos


newsgroups, anteriormente apresentadas, sendo a este nível que a
participação na Internet pode ser autorizada ou desautorizada.
Recebendo e fornecendo informação, a peritagem e a partilha das

143
próprias experiências com os outros pode ser uma experiência
produtiva. Contudo, como já vimos, a ofensa pode ser uma
experiência perturbadora para algumas pessoas. Nos casos citados,
os “alvos” das ofensas responderam e receberam algum apoio dos
outros membros do grupo. Mas tal nem sempre acontece. A própria
tecnologia pode tornar a situação mais conturbada, para aqueles que
não estão seguros quanto às possibilidades tecnológicas daquilo que
pode ou não ser feito, especialmente quando outros utilizadores
expressam desagrado contra os erros e a ignorância das outras
pessoas (como aconteceu no grupo dedicado à deficiência).

Como se observou, embora possa fornecer apoio, a Internet


constitui porventura o principal catalisador das inseguranças associadas
ao crescimento da economia informacional. As ansiedades colectivas
acerca da tecnologia e da velocidade da mudança podem, por si só,
constituir uma barreira ao uso alargado das CMC como meio para
disponibilizar entreajuda, apoio e informação. Se algumas pessoas se
mostram preocupadas com o facto de a Net poder desumanizá-las, de
serem ofendidas ou perseguidas via e-mail, de serem efectuados registos
sobre as páginas web que visitam e as pessoas com quem se
correspondem, tendo como objectivo pô-las em perigo, então podem
sentir-se incapazes de participar no apoio e na ajuda online. Certamente,
as pessoas têm consciência de que o ciberespaço é um ambiente onde
qualquer um, independentemente dos seus motivos, pode enviar
mensagens. Enquanto nos casos que apresentámos anteriormente, os
utilizadores responderam às ofensas, outros podem sentir-se compelidos
a não entrar mais no ciberespaço. É crucial investigar melhor até que
ponto estas experiências são incapacitantes ou constituem formas de
exclusão.

6. Em suma, o tema do acesso e da exclusão social tem


sido debatido em relação à Internet (Loader, 1998b). O governo do
Reino Unido procura pôr tantas pessoas quanto possível online para
que as divisões existentes, baseadas na distribuição de bens, não se
repitam no que diz respeito ao acesso à Internet. Contudo, assim que

144
os custos de acesso decrescerem, as pessoas podem começar a
utilizar a Net de forma diferente. Encarada correntemente como uma
tecnologia dinâmica – onde as pessoas têm de ser pro-activas nas
suas participações, pode tornar-se numa tecnologia de inércia, onde o
uso da Net será largamente passivo. Neste sentido, as pessoas
podem começar a tratar a Net tal como a televisão, especialmente se
o principal modo de acesso for via redes de televisão digitais e por
cabo. É sabido que, para cada participação activa nos newsgroups,
existem muito mais “observadores” (lurkers) – pessoas que lêem as
mensagens, mas nunca contribuem. Algumas pesquisas sugerem um
rácio de 1:20 (Smith, 1999). Para alguns destes observadores, a
informação, o aconselhamento e o apoio prestados podem muito bem
ter benefícios. Contudo, existe também a possibilidade de os sistemas
de acesso público de previdência online – com a sua variedade de
narrativas diárias, esperanças e desesperos – estarem a ser tratados
como entretenimento voyeurístico e, como tal, constituirem
simplesmente um resultado do voyeurismo da cultura popular.

O assunto da exclusão social já não é apenas um aspecto da falta de


acesso (apesar da informação quantitativa neste trabalho ter mostrado ser
importante não subestimar os factores sociais), remetendo para uma classe
média mais bem equipada (virtual?), capaz de perceber e trabalhar com a
tecnologia de modo a ficar em vantagem. Tal como nas suas formas
tradicionais, a previdência online pode tender a favorecer uma classe média
que tem o tempo, a reflexividade, a inclinação e os recursos para a explorar
melhor, e ao fazê-lo estar sistematicamente a ganhar vantagem. Assim, os
sistemas de assistência electrónica podem reproduzir outras formas de
previdência e beneficiar aqueles que têm ‘uma boa situação’ em relação aos
outros recursos de que dispõem – um tema recorrente na política social que
necessita de ser urgentemente abordado.

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147
Internet e os seus Jornalismos: Teoria,
Pesquisa e Estratégia da Produção de Notícias Online8
______________________________________________
Mark Deuze

Introdução

A 17 de Maio de 1991, o Instituto Suíço CERN divulgou o protótipo da World


Wide Web. Em Maio de 1992, o Chicago Online, o primeiro serviço noticioso na
América Online, foi lançado pelo Chicago Tribune nos Estados Unidos (Carlson, 2001).
Desde Abril de 2001 que a base de dados US-based Editor & Publisher Interactive
(http://emedia1.mediainfo.com/emedia/) conta com 12.878 registos de media
noticiosos online. Estas apostas por parte dos media noticiosos são definidas da
seguinte forma: Todos os media com uma presença na Web. Poderão encontrar-se
associações, guias de cidades, revistas, jornais, serviços noticiosos e sindicâncias,
sites de rádios e estações televisivas na nova base de dados.” (E&P Medialinks,
2001). Na altura da realização deste ensaio, no início de 2001, é legítimo afirmar que
estamos a presenciar o fim da primeira década do jornalismo online. Nestes dez anos
não só milhares de jornais de referência criaram sites (e muitos deles encerraram
estas operações outra vez), como milhões de utilizadores individuais ou grupos
específicos de interesse utilizaram também a Internet como meio de divulgação das
suas notícias – apesar de esses sites não estarem arquivados em bases de dados
como a da E&P. Em simultâneo, publicações comerciais e académicas focaram
amplamente os principais aspectos do jornalismo online – em particular na segunda
metade da década (Deuze, 1999). Isto resultou no alargamento do campo de
pesquisa, em manuais e teorias sobre um ou mais aspectos da produção de notícias
online (cf. electrónica, digital, em linha) contemplando especialmente as competências
técnicas e as novas tecnologias (consultar artigos genéricos, por exemplo: Deuze,
1998; Cooper, 1998; Kawamoto, 1998; Pavlik, 1999; para uma boa visão global sobre

8
As temáticas relacionadas com os jornalistas e a Internet tratadas no presente texto, constituem parte
de um projecto, que teve lugar entre 1997 e 2001, sobre o jornalismo contemporâneo na Holanda. Este
projecto incide sobre quatro temas principais: o jornalismo na Holanda no âmbito de [1] uma perspectiva
internacional comparativa, [2] a sociedade multicultural, [3] o info-entretenimento e [4] a Internet. Este
ensaio baseia-se parcialmente numa série de palestras efectuadas na Holanda, Bélgica e Portugal (entre
Junho 2000 - Junho de 2001).
Todos os sites mencionados neste ensaio serão listados no fim com as respectivas moradas (cf. Universal
Resource Locators; URLs) na World Wide Web, pela ordem em que são mencionados ao longo do texto.

148
este assunto, consultar a obra de Reddick & King, 2001; outros livros incluem Rich,
1998; Callahan, 1998; Mcguire et al, 2000; De Wolk, 2001). O que parece estar a faltar
é uma análise sintetizadora dos tipos de jornalismo existentes online, do valor
acrescentado que esses tipos de jornalismo possam trazer, e finalmente, quais as
lições e sugestões a retirar destes exemplos no delinear de novas estratégias (bem
sucedidas) para os desafios que se colocam aos serviços noticiosos online. Este texto
pretende contemplar os três pontos. Para tal basear-me-ei numa revisão extensiva da
literatura existente, na minha experiência de seis anos no ensino, na discussão e
apresentação de ensaios sobre temas relacionados com a Internet e o jornalismo
online, em particular, em conclusões de inquéritos efectuados a jornalistas online na
Holanda (ver Deuze, 2000) e Bélgica (Vanacker, 2001) e numa análise de entrevistas
aprofundadas a peritos dos novos media na Holanda em 2000 (ver Deuze & Yeshua,
2001; Deuze, 2001). Como o presente ensaio tem o objectivo de apresentar uma visão
global, e não um trabalho de investigação, as referências a dados específicos basear-
se-ão noutros textos académicos em que tive o privilégio de participar (em particular:
Deuze, 1998, 1999, 2000 e 2001; Bardoel & Deuze, 1999; Deuze & Yeshua, 2001).
Este ensaio divide-se em três partes: na primeira, são discutidos, de modo
abrangente, quatro tipos de jornalismo online num leque que engloba dos conteúdos
puramente editoriais até aos websites destinados à conectividade pública (Oddlyzko,
2001). Na segunda, é abordado o valor acrescentado destes tipos de jornalismo tendo
em conta as características que definem a produção dos media num ambiente online:
hipertextualidade, interactividade e multimédialidade (Newhagen & Rafaeli, 1996;
Deuze, 1999). Na terceira, aborda-se o desfasamento existente entre literatura e
investigação e os recentes desenvolvimentos online, que sugerem pelo menos as três
estratégias, já mencionadas, para criar mais valias e desenvolver novos tipos de
jornalismo online: o registo anotado de informação (Paul, 1995; Bardoel, 1996),
jornalismo open source (Moon, 1999; Preecs, 2000) e hiper-adaptividade (Guay, 1995;
Nelson, 1999).

Jornalismo online

Antes de identificar os diferentes tipos de jornalismo online, é necessário


demonstrar explicitamente a forma como a Internet afecta o jornalismo, podendo esta
questão ser discutida de dois modos diferentes: as incursões que a Internet fez nas
salas de redacção e nos computadores dos jornalistas que trabalham para todos os
tipos de media em termos de produção de notícias assistida por computador (PNAC),
e a forma como criou o seu próprio tipo de trabalho noticioso: o jornalismo online

149
(Deuze, 1999). A utilização da Internet como ferramenta nas redacções dos media
“tradicionais” – todos os media excepto a Internet- pode ser tipificada com base na
utilização e disponibilização aos jornalistas de arquivos pesquisáveis, bases de dados
e fontes noticiosas na Internet. Esta prática de redacção começou agora a dar os seus
primeiros passos, em diversos países, quando comparada por exemplo com os
Estados Unidos (Verwey, 2000). Vários académicos estudaram o efeito (PNAC) nos
jornalistas e no trabalho noticioso, concluindo que para além de benefícios óbvios
(mais informação, fontes, check e balance disponíveis gratuitamente), muitos
repórteres e editores manifestaram desconforto e preocupação com a “omnipresença”
da Internet no seu trabalho (Singer, 1997a e 1997b). Pesquisas efectuadas no Reino
Unido, pela estação televisiva BBC, revelaram também o desconforto criado pelas
novas tecnologias nas salas de redacção. Os jornalistas queixaram-se de falta de
tempo para usar e dominar adequadamente a tecnologia, sentindo-se pressionados
pela natureza “imediata” da Internet (Cottle, 1999).
Outro aspecto relacionado com a produção de notícias assistida por
computador, que afecta todos os jornalistas, é a forma de lidar com o e-mail, grupos
de discussão (newsgroup) e IRC (Internet Relay Chat) num ambiente onde o controlo
da informação é extremamente difícil, uma vez que a comunicação envolvida se
apresenta anónima e com ritmo acelerado (Garrisson, 2000).
Neste ensaio, contudo, as atenções concentram-se no jornalismo online: o
“quarto” tipo de jornalismo que difere, nas suas características, dos tipos tradicionais
de jornalismo (Deuze, 1999). O jornalismo online pode diferenciar-se funcionalmente
dos outros tipos de jornalismo por utilizar a componente tecnológica como factor
determinante da sua definição (operacional). O jornalista online tem de tomar decisões
sobre qual o formato de media mais indicado para relatar uma determinada história
(multimedialidade), tem de dar espaço de resposta ao público, interagir ou até moldar
determinadas histórias (interactividade) e tem de pensar em formas de ligar a história
com outras histórias, arquivos, recursos, etc.…através de hiperligações
(hipertextualidade). Esta é a forma “ideal-tipo” de jornalismo online, professado por um
número crescente de profissionais e académicos a nível mundial (nos EUA consultar
Reddick e King, 2001; na Alemanha consultar Friedrichsen et al., 1999: 139-143; na
Holanda consultar Stielstra, 1999). O consenso internacional entre os profissionais de
media online, tal como é expressado em convenções como a Conferência NetMedia
no Reino Unido ou a Conferência Editor & Publisher Interactive nos EUA, é de que o
jornalismo online é definitivamente “uma espécie à parte” (Meek, 2000). Esta “espécie”
de produtores de informação que produzem conteúdos essencialmente para a Internet
(e especificamente para a World Wide Web), pode ser vista a trabalhar para um ou

150
mais dos quatro tipos distintos de jornalismo online. Estes tipos de jornalismo podem
ser localizados num conjunto de sites puramente editoriais até websites baseados na
conectividade pública. (Ver modelo I, baseado parcialmente em Sparks, 1999:14).

Modelo I:
Tipos de Jornalismo Online
Comunicação participativa fechada

Concentração na conectividade pública


Sites Noticiosos de referência
Concentração no conteúdo editorial

Sites de índice e categorias

Sites de comentários e meta-sites

Sites de partilha e de discussão

Comunicação participativa aberta

O domínio do conteúdo-interactividade intersecta-se com o domínio da


comunicação participativa (eixo vertical), onde o site noticioso consiste de facto num
conjunto de opções, permitindo a interacção, discussão, realização de upgrades ou
downloads, comunicação participativa entre utilizadores e produtores (ver a discussão
sobre as várias formas de interactividade, mais adiante). Deve ser feita uma chamada
de atenção no que diz respeito à noção de “conteúdo”, uma vez que – na perspectiva
do criador de sites Web – tudo é conteúdo online, incluindo faixas publicitárias, salas
de chat, trabalhos de investigação. O “conteúdo editorial” integra, em nosso entender,
textos (incluindo palavra escrita ou falada, imagens estáticas ou em movimento)
produzidos e/ou editados por jornalistas. A interactividade com o público pode ser
entendida, como a denomina Odlyzko (2001: 6), como comunicação “padrão ponto-a-
ponto”, à qual podemos adicionar a noção de “público”: comunicação sem uma
barreira formal de entrada (tal como um processo de edição ou mediação). O eixo
vertical representa o nível de comunicação participativa oferecida por um site
noticioso: um site pode ser considerado “aberto” quando permite aos utilizadores a

151
partilha de comentários, mensagens, ficheiros (i.e. conteúdo) sem intervenção de
filtros ou mediadores. Por outro lado, na comunicação participativa “fechada” os
utilizadores podem participar mas os seus actos comunicativos estão sujeitos a um
controlo editorial rígido. O jornalismo online e os seus diferentes tipos podem ser
encontrados entre estes dois domínios.

Sites noticiosos dos media institucionais

A forma de produção online dos media noticiosos mais difundida é o site


noticioso dos media institucionais, oferecendo geralmente conteúdo editorial (seja
resultado de ligações ou produzido originalmente para a Web) e uma forma moderada
e mínima de comunicação participativa (Schultz, 1999; Jankowski e Van Selm, 2000;
Kenney, Goulik e Mwangi, 2000). Os muito aclamados sites da CNN, BBC e MSNBC
constituem alguns exemplos. A maior parte dos jornais online enquadra-se igualmente
nesta categoria
Podemos considerar que os materiais pedagógicos, manuais e planeamento de
currículos de escolas de jornalismo e departamentos universitários se baseiam em
grande medida neste tipo de jornalismo online, conjugando capacidades tecnológicas
(trabalhar com um certo tipo de software, aprender XML ou HTML, por exemplo) com
capacidades específicas de redacção de notícias para a Web (Nielsen, 1997; Mcguire
et al, 2000).

Sites temáticos

Um segundo tipo de jornalismo online enquadra-se muito menos entre os


media de referência, sendo geralmente atribuído a certos motores de pesquisa (como
a Altavista ou Yahoo), empresas de estudos de marketing (tal como a Moreover) ou
agências (Newsindex) e, algumas vezes, até a iniciativas individuais (Paperboy). Aqui
os jornalistas online oferecem links aprofundados para outros sites noticiosos na World
Wide Web, os quais são algumas vezes categorizados e até anotados por equipas
editoriais. Esses sites geralmente não oferecem muito conteúdo editorial próprio, mas
oferecem por vezes áreas para chat ou troca de notícias, dicas e ligações para o
público em geral – por exemplo mantendo uma espécie de Bulletin Board System
(BBS). Um exemplo bem conhecido é a opção, oferecida pela maior parte dos motores
de pesquisa, de “adicionar o site”, o qual será sujeito a um escrutínio editorial. Como
apontamento, podemos afirmar que os sites que oferecem algum conteúdo editorial e
também fornecem ligações (comentadas) a conteúdos noutro local na Web, tal como o

152
Diário das Artes & Letras Australianas, o site noticioso do bósnio Mario Profaca ou o
infame Drudge Report de Matt Drudge, se enquadram nesta categoria. O que algumas
vezes é rotulado de “novo jornalismo online” é o fenómeno do “Weblog” ou “Blog”, um
diário de um indivíduo muitas vezes de carácter pessoal, não de um jornalista,
relatando histórias acerca de experiências online e oferecendo aos leitores ligações
com comentários a conteúdos encontrados enquanto navegava na Net (Bunn, 2001;
Lassica, 2001). Estes tipos de jornalismo individual (também conhecidos como “sites
de conteúdo gerados pelo utilizador”) podem ser enquadrados algures entre os sites
temáticos e de comentário, uma vez que tendem a oferecer a comunicação
participativa limitada (geralmente é apenas uma pessoa a dar a sua opinião acerca de
outros temas), mas fornecem de igual modo bastante conteúdo – e comentam o
mesmo.

Sites de comentário e meta-sites

Esta terceira categoria de sites noticiosos diz respeito a sites sobre notícias e
temáticas relacionadas com os media em geral. Estes sites são encarados algumas
vezes como “cães de guarda” dos media (Mediachannel, Freedonforum, Poynter’s
Medianews, E&P’s E-Media Tidbits; ver Pavlik, 2001), outras vezes como sites
temáticos alargados (European Journalism Center Medianews, Europemedia, para dar
dois exemplos europeus). O conteúdo editorial é muitas vezes produzido por uma
variedade de jornalistas e, basicamente, discute outros conteúdos encontrados noutro
local na Internet. Tal conteúdo é discutido em termos dos processos subjacentes à
produção das notícias. Este “jornalismo sobre o jornalismo” ou meta-jornalismo,
floresce particularmente online. Neste caso a Internet contribuiu para uma maior
profissionalização do jornalismo em geral, sendo a capacidade e o desejo de reflectir
publicamente sobre si mesmo e a autocrítica igualmente encarados como uma das
características definidoras de uma profissão (Beam, 1990; Boylan, 2000).

Sites de partilha e discussão

Como foi referido anteriormente, a principal distinção efectuada no nosso


modelo faz-se entre o conteúdo e a interactividade. Odlyzko (2001) argumenta que a
primeira e mais óbvia razão para o sucesso das novas tecnologias de informação e
comunicação como a Internet e a World Wide Web reside no facto de as pessoas
quererem interagir umas com as outras – a um nível global sem fronteiras (ver também

153
Rushkoff, 1997). Por outras palavras, representa “apenas” uma infraestrutura de
comunicação (Rushkoff, 2000).
O jornalismo online, tal como o quarto tipo de jornalismo online, utiliza este
potencial da Internet, uma vez que facilita essencialmente plataformas para a troca de
ideias, histórias, etc, algumas vezes centradas num tema específico, tal como o
activismo mundial anti-globalização (Centros de Media Independentes, geralmente
conhecidos como Indymedia) ou notícias sobre computadores (Slashdot, englobando
uma página de leitura: Notícias para Intelectuais, Coisas que interessam, Tweakers).
Muitos sites optaram por explorar comercialmente esta exigência pública de
interactividade, organizando de algum modo plataformas editoriais para a discussão
de conteúdo noutro local da Internet (Plastic, Nerve, Feed).9

Características

Os quatro tipos de jornalismo identificados utilizam todos em certa medida as


características chave (cf. paradigmas editoriais na Web) do ambiente de
computadores em rede em que operam: hipertextualidade, multimedialidade e
interactividade. Cada um destes três paradigmas tem os seus modelos próprios, no
seu estado actual, os quais procurarei exemplificar analisando a situação das notícias
online.

Hipertextualidade

O problema com o hipertexto relaciona-se com o facto de, tal como descreve
um dos fundadores do hipertexto, Ted Nelson, criar “um sistema de distribuição para
unidades próximas separadas – um sistema que permite que apenas as ligações
firmadas apontem para o exterior ” (Nelson, 1999). Aquilo que temos de compreender
é que os textos, interligados através de ligações – hiperligações –, podem reportar-se
internamente (a outros textos dentro do domínio do texto) ou externamente (a textos
localizados noutro local da Internet). Estamos perante dois tipos completamente
diferentes de hipertextualidade, uma vez que um abre um novo conteúdo e o outro

9
Não existe uma história de sucesso comercial: Automatic Media, a empresa que tem sites tal como
Plastic and Feed, fechou as portas a 11 de Junho de 2001 devido a falta de receitas (Lindsay, 2001). Dois
editores da Plastic permaneceram voluntariamente com o intuito de manter o site online.

154
desencadeia uma espiral descendente de conteúdo. Se um site se reporta apenas a
documentos encontrados no mesmo, isso quer dizer que, na verdade, a World Wide
Web não existe, que apenas os documentos locais do site podem e devem ser
interligados. Se examinarmos a forma como os sites noticiosos actuais aplicam estes
conceitos, a conclusão afigura-se pessimista. Na realidade, poucos sites incluem
hiperligações e se o fazem, não integram a sua informação na Web, ligando-se mais
vulgarmente a páginas noutros locais dentro do mesmo motor de pesquisa (Jankowski
e Van Selm, 2000). Mas ligar e integrar camadas de conteúdo externo – através da
gestão e revelação de conteúdo – é problemático, por violar a propriedade intelectual e
os direitos de autor.

Multimédialidade

Em 1995, o criador da Web, Tim Guay, chamou à atenção para as armadilhas


inerentes à aplicação de conteúdos multimédia em Websites: “se o multimédia é usado
sem qualquer preocupação em relação à razão pela qual está a ser utilizado ou tem
uma organização ou conteúdo pobres, pode resultar num inútil fiasco estético que
ocupa espaço desnecessariamente” (1995:5). A constatação de que o tamanho da
banda e os direitos reservados constituem ainda dois factores estruturais impeditivos
da progressão no desenvolvimento de conteúdo multimédia inovador, permite-nos
perceber os problemas que as empresas dos media enfrentam ao integrar na sua sala
de redacção tradicional, a equipa editorial da Web, para além de desenvolver e
integrar o conteúdo (ou até salas de redacção “virtuais”) com outros fornecedores de
conteúdo. Isto pode ser compreendido, se distinguirmos a multimédialidade nos sites
noticiosos como resultado da convergência de modalidades de media (onde o
multimédia pode ser encarado como a soma de diferentes formatos de media) ou
como um paradigma divergente (onde todas as partes do site são desenvolvidas num
ponto de partida (numa plataforma) multimedial, oferecendo ao utilizador final vários
caminhos para e através do conteúdo do site).

Apesar de poucos websites estarem de facto a utilizar multimédia, a maior


parte dos sites noticiosos que o fazem, fazem-no segundo uma perspectiva

155
convergente (CNN e a BBC são bons exemplos). Aqueles que são claramente
divergentes são muitas vezes produtos fora dos media dominantes (tal como a
Rockstargames). Vários críticos do multimédia expressaram dúvidas quanto ao desejo
de convergência dos media, dizendo que seria apenas outro modo de produzir mais
conteúdo com menos repórteres (Jenkins, 2001) ou que os produtores executivos das
notícias aceitariam a nova tecnologia mas não as suas potenciais características
“democratizantes” – tal como usar aparelhos para gravar não só aquilo que as
tradicionais câmaras e microfones gravariam, mas também exemplos de vozes de
diferentes instituições fora dos círculos dominantes (Devyatkin, 2001). Isto reflecte a
natureza quase “dual” do desenvolvimento dos multimédia: por um lado os simples
avanços tecnológicos (cf. hardware), por outro o impacto destas tecnologias na cultura
do jornalismo (online). Talvez estas duas correntes de pensamento devessem
convergir, antes que a divergência se torne numa opção viável para os sites
noticiosos.

Interactividade

As opções interactivas nos Websites podem ser subdivididas em três tipos ou


formas: interactividade navegacional (através das opções “página seguinte” e “voltar
ao topo” ou percorrendo as barras de tarefas), interactividade funcional (através de
mail directo para ligações, Bulletin Board Systems (BBS) e listas de discussão
moderadas), ou interactividade adaptativa (oferecendo Chatrooms e padronização
pessoal através do “smart Webdesign”; ver Guay, 1995). Ao observar opções
interactivas nos sites noticiosos, vários académicos notaram a sua simples ausência,
ou melhor, o facto de a maioria dos sites não desenvolverem a interactividade para
além dos níveis funcional e navegacional (Schultz, 1999; Jankowski & Van Selm,
2000; Kwenney, Gorelik e Mwangi, 2000). Guay (1995) afirma que o nível mais
sofisticado de interactividade é o adaptativo, o que implica a possibilidade de o próprio
site se adaptar (idealmente em tempo real) ao comportamento do navegador visitante.
A recente pesquisa sobre o consumo dos media de Sundar (2001) revela que quanto
mais oportunidades interactivas são oferecidas, mais envolvidos se sentirão os
utilizadores do site. Outing (2001) comenta que isto funcionará mesmo quando os
navegadores não utilizam verdadeiramente todas estas potencialidades interactivas.
Isto sugere um quarto nível global de interactividade: a interactividade apercebida num
site.
O próximo passo na nossa análise é procurar demonstrar até que ponto estas
características podem ser encontradas nos quatro tipos de jornalismo online. Sendo,

156
tal como o modelo 1, um modelo em grande parte teórico, deve ser interpretado no
sentido do modo como os jornalistas, de uma forma geral, desenvolveram cada uma
destas características permitindo, é claro, excepções.

Modelo II:
Características do jornalismo online
Sites noticiosos Sites de índice e Sites de comentário e Sites de partilha e
dos media categorias metasites discussão
institucionais
Hipertextualidade Interna Externa Externa Externa e Interna
Interactividade Navegacional Navegacional Funcional Adaptativa
Multimedialidade Convergente [Nenhuma] [Nenhuma] Convergente/divergente

Regra geral, os sites noticiosos dos media institucionais parecem operar em


hipertextualidade interna – oferecendo poucas ligações externas – essencialmente
com interactividade navegacional – a maior parte dos sites noticiosos não oferecem
sequer o e-mail dos repórteres, muito menos ligações via e-mail – e em raras ocasiões
oferecem multimédia convergente. Os sites de Índice e Categorias, por outro lado,
baseiam-se quase exclusivamente na hipertextualidade externa, uma vez que juntam,
indexam e categorizam conteúdo editorial encontrado noutro local na Internet. A sua
interactividade é também navegacional, o que pode ser explicado (tal como no caso
dos sites noticiosos dos media institucionais) pelo facto de se concentrarem no
conteúdo em detrimento das ligações. Estes sites aplicam poucas vezes o multimédia,
a não ser que tenham a intenção de indexar imagens (por exemplo, os motores de
pesquisa especializados oferecem Jpeg ou Mpeg-searchbots com comentários
editoriais). Os sites de comentário e metasites não oferecem de igual modo conteúdo
multimédia, e tendem a basear-se em ligações externas. Como estes sites são
geralmente feitos por um ou mais críticos dos media ou indivíduos “inspirados”- caso
dos Weblogs - que usam claramente a interactividade funcional (Lasica, 2001). Isto
pode ser encarado como a aceitação de um tipo de responsabilidade discutível: a de
permitir ao navegador que submeta feedback, dicas ou conteúdo directamente às
pessoas responsáveis pelo metasite. Tendo em conta que estes sites também
funcionam como uma espécie de registo (índice anotado) do jornalismo existente pelo
mundo fora, a sua hipertextualidade é predominantemente externa.
Os sites de discussão e partilha são em geral baseados exclusivamente em
textos escritos. A televisão Freespeach é uma excepção específica uma vez que se
baseia em conteúdo não disponibilizado através da infraestrutura dos media

157
institucionais (cf. multimédia divergente). Os sites desta categoria concentram-se na
ligação com o público e as mensagens, ligações e submissão de navegadores formam
a base do conteúdo do site. Isto geralmente resulta na aplicação de diferentes níveis
de interactividade, incluindo opções de interactividade adaptativas (ver, por exemplo,
as opções para as secções de ficheiros, agendas partilhadas e sessões de chat
oferecidas por sites grátis de mailing-lists como Yahoogroups, Topica, Listbot). Este
tipo de sites pode ser tipificado pelo facto de as pessoas utilizarem a “marca” do site
para comunicarem através dela (com os outros), em vez de utilizarem a marca para
comunicarem – como no caso dos outros três tipos de sites (ver Slashdot, Plastic,
Backwash, mas também Indymedia, Protest.Net, por exemplo).

Valor acrescentado

Entrevistas realizadas no âmbito de projectos de investigação a jornalistas em


formação online (ver Deuze & Yeshua, 2001, p.e.) e a leitura de revistas temáticas,
mostram que estes profissionais dos media partilham uma única questão, para a qual
têm duas abordagens distintas. Qual é a mais valia do jornalismo online? Nesta
primeira abordagem que Van Zoonen (2001) denomina “utópica”, aquilo que a Internet
traz é geralmente considerado como um mundo melhor para todos. Neste contexto, a
questão pode ser enquadrada da seguinte forma: onde poderemos encontrar o valor
acrescentado do jornalismo online? A segunda abordagem é pragmática ou
pessimista: baseia-se na suposição de que não existe qualquer valor acrescentado
para o jornalismo online mas, uma vez que toda a gente está online, vale a pena fazê-
lo também. Num contexto diferente, Singer (1997) rotulou de “realista racional neutral”
o jornalista que opta por esta abordagem. Juntando o modelo I e II, podemos agora
prosseguir na abordagem desta questão do valor acrescentado, no sentido de
percebermos a forma como os tipos de jornalismos online identificados e as suas
características podem de facto ser consideradas como um valor acrescentado aos
outros media noticiosos (rádio, televisão, imprensa, cabo).
Em cursos de formação suplementares realçando ou exemplificando como
“Escrever para a Web”, muitos jornalistas ressaltam o facto de regularmente se discutir
na sala de redacção, se o site noticioso “canibaliza” de facto a base empresarial da
organização dos media – discussão inerente apenas aos media noticiosos. Uma
pesquisa anterior sobre leitores de notícias online sugere que esta atitude canibalística
– oferecer “palha” e publicar notícias antes de elas chegarem a ser difundidas ou
impressas – serve de facto dois públicos diferentes: aqueles que correm para o
trabalho de manhã e não têm tempo de pegar no jornal para ler os cabeçalhos e as

158
pessoas em férias no estrangeiro que querem manter-se informadas sobre o que se
está a passar no seu país (Co-eficiente, 1997; Porteman, 1999). Tendo em conta este
ponto de vista, faz sentido que tais sites noticiosos limitem a amplitude da
comunicação participativa e se concentrem naquilo que Nielse (1997) descreve como
conteúdo editorial “breve, conciso e objectivo”. Os editores de sites noticiosos na
Holanda lamentam, por exemplo, a falta ou a qualidade do feedback que recebem – o
que é compreensível se considerarmos que os navegadores que querem interagir (e
ter algo com que interagir) não parecem querer fazê-lo em sites noticiosos dos media
institucionais. A canibalização pode ser resolvida se os editores optarem por fornecer
valor acrescentado a um público específico de um site que oferece hipertextualidade
interna e interactividade navegacional livre. Este não é o mesmo público de um
produto impresso ou difundido. Por outro lado, um estudo recente nos Estados Unidos
mostra que os visitantes frequentes de sites de jornais estarão mais inclinados a
assinar a versão impressa, ou a comparar cópias isoladas, do que a cancelar a
assinatura, uma vez que todo o conteúdo é oferecido online gratuitamente (Nicholson,
2001).
Os sites noticiosos dos media institucionais que procuram conjugar as suas
características com o multimédia (convergente), enfrentam uma discussão mais difícil.
Sites como a CNN e BBC estão a competir com os seus parceiros televisivos. Cottle
(1999) mostra que a introdução da Internet na sala de redacção da BBC causou
sentimentos de stress e desconforto entre os jornalistas envolvidos. De repente temos
de ter em mente o parceiro online, dominar a nova tecnologia, aprender as técnicas e
reflectir sobre o seu significado no que diz respeito aos valores e padrões do
jornalismo – o que não é uma tarefa fácil para qualquer profissional (Deuze, 1999). O
valor acrescentado destes sites noticiosos dos media institucionais mais elaborados –
em termos da sua multimedialidade – deve ser definido de acordo com as suas
características (cf. conteúdo editorial, comunicação fechada). Em meu entender, isto
significa que o valor destes sites e deste tipo de jornalismo pode ser encontrado,
simplesmente, na sua capacidade de arquivo – um canal noticioso de emissão
contínua tem o problema específico de ter em mãos mais conteúdo do que aquele que
pode transmitir no âmbito de um programa diário organizado de emissões noticiosas
contínuas e recorrentes. A natureza volúvel destas notícias pode ser suplementada
pela aparente capacidade infindável do servidor da Web. Isto divide efectivamente os
utilizadores entre aqueles que se contentam em receber apenas os cabeçalhos – e
talvez os talkshows ocasionais – e aqueles que querem captar todos os detalhes da
história ou das histórias, incluindo audio, vídeo e texto escrito.

159
Os sites de Índice e Categoria vivem da canibalização, forte ligação
(aprofundada) ao conteúdo oferecido por outros, noutro local da Internet. Ao fazê-lo,
apresentam o melhor valor que a hipertextualidade tem para oferecer. A
hipertextualidade liga pessoas e conteúdos por toda a Web e tem o potencial de
promover os ideais de acessibilidade e internacionalização da informação online
(Consórcio World Wide Web, 2001). Um valor acrescentado específico desta questão
pode ser o facto de um site de índice utilizar a interactividade funcional (através de
ligações de mailto) para que as pessoas submetam hiperligações a conteúdos que
geralmente não se encontram ou estão indexados algures, permitindo assim o acesso
a informação encontrada nas margens da Internet – fora dos media institucionais. Isto
pode ser apreendido como um valor acrescentado segundo um estudo recente nos
Estados Unidos: apenas catorze companhias registam 60% do tempo passado online
(Jupiter Media Matrix, 2001). Isto também se aplica a sites de comentário e metasites,
que têm o potencial de realizar um exame crítico a questões sobre a produção online
dos media. O valor acrescentado deste grupo liga-se a sites centrados unicamente na
partilha (de informação) e discussão: níveis de interactividade elevados. Este tipo de
sites permite que as pessoas discutam e partilhem informação sobre um leque extenso
de temas ou sobre um determinado assunto. Este valor acrescentado pode ser uma
resposta àquilo que, na opinião de Schudson (1999), corresponde a uma mudança na
definição de cidadania: do cidadão do início do século XX amplamente informado para
o “cidadão monitorial” de hoje. Este “novo” cidadão pode ser tipificado como uma
pessoa que exige, a qualquer momento, informação atempada, detalhada, completa e
de alta qualidade sobre assuntos que ele ou ela (individualmente) identifica como
sendo ameaças ao bem pessoal e/ou público (Schudson, 1999: 11). O quarto tipo de
jornalismo online parece ter o potencial de fornecer um serviço público para este novo
tipo de cidadania, que é suportada pelo facto de florescer particularmente em
comunidades exteriores aos sectores institucionais (tal como os grupos activistas).
Schudson tem razão ao concluir que a cidadania monitorial neste contexto é mais
exigente para os media noticiosos do que a cidadania informada (ibidem).
Em suma, podemos afirmar que cada tipo de jornalismo online tem um valor
acrescentado distinto, quando comparado com aquilo que os media oferecem através
de outras modalidades – imprensa, radiodifusão e redes, assim como inúmeras
potencialidades adicionais “secundárias”. Em termos de conteúdo isto significa que a
capacidade arquivística (comentada), visando a conectividade, fornece plataformas
(moderadas) para a partilha e discussão de conteúdo. A questão original do “valor
acrescentado” pode por isso ser reformulada, indagando-se se os diferentes tipos de
jornalismo online, com as suas características de valor acrescentado, devem ser ideal

160
e tipicamente combinados num modelo mais ou menos “universal” de jornalismo
online. Face à influência da Internet, vários autores - independentemente de
concordarem ou discordarem - parecem partilhar esta ideia apontando mudanças
consideráveis, desafios e até ameaças para o jornalismo (ver, a este propósito, Pavlik,
1998 e 1999; Fallows, 1999; Porteman, 1999; Heinoen, 1999).
No contexto deste ensaio assume-se que o ideal-tipo do jornalismo online não
pode ser simplesmente a soma dos valores acrescentados dos seus tipos distintos.
Para que um site noticioso se torne interactivo, permitindo a participação, ou um site
de discussão comece a oferecer conteúdo editorial de qualidade, a própria sala de
redacção tem de sofrer algumas alterações e enfrentar algumas escolhas difíceis no
que diz respeito a valores, objectivos e modelos – para além de lidar com aspectos
comerciais problemáticos de rotinas de publicação electrónica e com o impacto que
tais escolhas podem ter na organização e gestão da sala de redacção. Gostaria por
isso de concluir esta visão geral de caracteristicas e mais valias dos tipos de
jornalismo online, olhando para um certo número de estratégias, mais ou menos
“novas”, na produção online dos media noticiosos - o que até certo ponto fornece
modos de lidar com o potencial, já referido, do hipertexto, da interactividade e do
multimédia – e analisando criticamente os riscos inerentes ao uso de determinadas
modalidades e opções na exploração da comunicação participativa entre produtores e
consumidores do conteúdo.

Estratégias novas

Neste âmbito, seleccionámos três estratégias: registo anotado de informação,


jornalismo open source e sites noticiosos hiper-adaptáveis (ver também Deuze, 2001).
A razão desta escolha prende-se com o facto de as características e valores
acrescentados dos diferentes tipos de jornalismo online poderem ser abordados
simultaneamente com estas três estratégias, as quais até certo ponto partem da
hipótese de que o jornalismo pode de facto utilizar as potencialidades do online,
acrescentando valor aos media noticiosos existentes. Outro motivo para esta selecção,
é o facto de as três opções abordarem respectivamente três elementos distintos da
publicação online, e proporcionarem formas de conjugar as estratégias num site de
jornalismo online global– uma questão que será abordada no debate deste ensaio.

161
Registo anotado de informação

Em 1995, críticos dos novos media, compreenderam que os jornalistas já não


eram os únicos a fornecer informação – em especial na World Wide Web (Lapham,
1995). E esta é uma afirmação que peca por defeito. Mesmo se considerarmos os
últimos números do total de sites noticiosos (ver introdução), apenas correcto num
décimo, são ainda modestos quando comparados com os milhões de sites que
existem. O Poynter de Nora Paul avançou o termo “jornalismo de anotação”, em
Fevereiro de 1995, para definir esta realidade. Paul visionou um modelo de jornalismo
baseado em hiperligações, numa perspectiva da audiência constituída por utilizadores
activos em detrimento de consumidores passivos de informação, exigindo “uma nova
categoria de profissionais na sala de redacção de produtos interactivos” (Paul, 1995:
3). Vários críticos dos media adoptaram o termo ou modificaram-no ligeiramente para
que pudesse abarcar a ideia de um equilíbrio de poder em mudança entre o jornalismo
e os seus públicos na economia pós-industrial das sociedades ocidentais
“glocalizadas”. Estas mudanças não reduzem apenas a necessidade de mediação por
profissionais dos media, como é sugerido muitas vezes pelos optimistas tecnológicos
(expresso na expressão “fim da mediação”). Paradoxalmente, a par da alteração de
fronteiras entre jornalismo e não-jornalismo é a própria profissão que pode ser
encarada como potencialmente capaz de proporcionar um caminho através do “mar de
vozes” que narram histórias de forma participativa. Os cidadãos tornar-se-ão
pesquisadores de informação mais directos e activos em assuntos com os quais já
estão familiarizados – exigindo o jornalismo instrumental – enquanto continuarão a
carecer de apoio em domínios com que estão menos familiarizados – optando por um
jornalismo orientador (Bardoel, 1996). O registo anotado de informação pode assim
ser visto como um híbrido entre estas duas opções: crítica – esperando interesse
especializado do lado do público - e também orientação - guiando as pessoas para/e
através da informação num determinado tema ou tópico.
Comentar significa acrescentar uma explicação à informação – informação de
comentário extra, segundo o Dicionário de Computação Online. Uma das tendências
visíveis nas pesquisas de jornalismo internacional, principalmente nas democracias
Ocidentais, é o aumento da importância atribuída pelos jornalistas à dimensão
explicativa (Weaver, 1998), adicionando comentário e análise à informação,
consubstanciada no que Barnhurst designou de “Nova Extensão da Teoria do
Jornalismo” (Barnhurst, 1999). Por outras palavras, habitualmente falava-se de “fazer
chegar a informação ao público”, a que agora se acrescenta “análise e explicação de
assuntos complexos” (na Holanda a última forma é a mais popular entre todos os

162
jornalistas, ver Deuze, 2000) Alguns críticos dos media lamentam este
desenvolvimento: quem precisa de mais um comentário e opinião? Pode afirmar-se
que as lições retiradas da Internet e da World Wide Web podem apontar para uma
disciplina de puro jornalismo de anotação, ou seja, um modelo de jornalismo
direccionado para pesquisar informação, que se apresenta nas suas linhas gerais a
um público interessado (uma pessoa, através de conteúdo personalizado, ou uma
determinada comunidade de pessoas com um interesse comum) indicando-lhe onde
aceder em pleno à informação pretendeida. Sites como o Slashdot constituem bons
exemplos de formas anteriores destes géneros, permitindo aos utilizadores criar um
ambiente no qual as pessoas possam aceder e enviar informação – comentar ou
discutir a informação. Nos media tradicionais estão a desenvolver-se géneros
semelhantes. Podemos pensar na secção “Hoje nos Jornais”, nos programas matinais
informativos da televisão ou na crítica periódica da maior parte das revistas de opinião.
Assim, o jornalismo de anotação devia ser definido como uma forma de meta-
jornalismo orientado para servir. Um jornalismo sobre o jornalismo.

Jornalismo open source

Em Outubro de 1999 a revista americana Jane’s Intelligence Review decidiu


não publicar um artigo antes de permitir que a comunidade Slashdot, anteriormente
mencionada, o avaliasse. O artigo foi criticado pelos visitantes do Slashdot, tendo o
editor retirado o artigo original e substituído por outro baseado nos comentários dos
críticos (ver Leonard, 1999). Esta foi uma forma pura de jornalismo open source: o uso
das fontes “abertas” na Internet para comprovar factos. O termo “open source” tem
origem no procedimento que faz com que os códigos de fonte do software estejam
disponíveis para que os peritos e utilizadores regulares possam encontrar e corrigir
falhas e modificar o código original para seu próprio benefício (O’Reilly, 1998). O
jornalismo open source aplica este princípio a histórias noticiosas – tornando-as
disponíveis para escrutínio e correcções antes da publicação definitiva (Moon, 1999).
Tal como sintetiza Moon:

“Defensores do jornalismo de fonte aberta proclamam-no como um


novo jornalismo, aperfeiçoando tudo aquilo que de errado existe no
jornalismo tradicional. Outros opõem-se fortemente ao uso de fontes
abertas, afirmando que irá travar a prática do jornalismo tradicional e
permitir que os peritos interfiram no controlo editorial dos jornalistas e das
pessoas para as quais escrevem.” (1999)

163
A ideia fundamental subjacente ao jornalismo open source pode ser vista como
uma forma avançada de jornalismo cívico, público ou comunitário envolvendo o
público nas notícias (produção), criando uma espécie de site de conteúdo gerado
pelos utilizadores, tal como Preecs descreve, de uma forma idealista:

“O jornalismo open source seria jornalismo amador, jornalismo


produzido por cidadãos, académicos, activistas comunitários e outros
agitadores só porque adoramos a ideia de criar, organizar ou divulgar a
informação que poderia salvar o nosso planeta e as nossas almas” (2000).

A Internet apresenta-se como uma plataforma ideal para melhorar o


jornalismo, uma vez que coloca milhões de pessoas na qualidade de potenciais peritos
de informação numa infraestrutura global de comunicação, incorporando a
especialização de pessoas que até aqui não participavam deste contexto. Temos
também de admitir que esbate as fronteiras daquilo que consideramos ser o jornalismo
– mas podemos afirmar que isto seria uma definição restrita de jornalismo.
Considerando o aumento dos níveis educacionais em todo o mundo (especialmente
nas democracias Ocidentais), bem como a crescente diferenciação funcional e
desenvolvimentos em direcção a nichos de mercado mais especializados, a inclusão
de peritos públicos parece já não ser uma realidade distante, conferindo um futuro ao
jornalismo em geral. As potencialidades (e os riscos) do jornalismo open source
devem por isso ser exploradas, não abandonadas. Um primeiro exemplo de apoio a
este potencial vem de um inquérito realizado aos jornalistas Dinamarqueses online em
1999: 69% desses profissionais dos novos media concordaram com a ideia de que
uma forte relação interactiva com o público funciona como alicerce essencial para
qualquer site noticioso (Deuze, 2000: 362).

Sites noticiosos hiper-adaptáveis

A chave para compreender as inúmeras mudanças, em particular nas


tecnologias dos novos media, é a convergência e a fusão de instrumentos
tecnológicos existentes com redes computadorizadas, possibilitada
predominantemente pela digitalização de todos os formatos de informação. Isto facilita
a comunicação aberta entre todos os aparelhos usados de algum modo para juntar,
seccionar, editar e distribuir informação. Mas o paradigma da convergência pode ser
atribuído a várias mudanças na sociedade contemporânea, constituindo a reflexão

164
acerca do design da Web e o futuro da Internet apenas um aspecto, uma vez que
integra todos os nossos electrodomésticos tal como o vídeo, a televisão e o telefone
móvel. A convergência ocorre a vários níveis e pode ser vista como um processo
contínuo na sociedade – podemos pensar na convergência de público e esferas
privadas, cultura “alta” e “baixa”, cultura e indústrias de entretenimento, pensamento
modernista e pós-modernista, etc.. Jenkins (2001) afirma que é possível distinguir
cinco processos de convergência tecnológica (cf. digitalização), económica (cf.
integração horizontal de indústrias), social ou orgânica (cf. multi-funções), cultural (cf.
contar histórias geradas por utilizadores) e global (cf. “aldeia global” de McLuhan). Em
1995, Tim Guay escreveu sobre a convergência de paradigmas de publicação
existentes na Web – multimédia, hipertextualidade, interactividade – para aquilo que
previmos vir a tornar-se o futuro padrão do paradigma divergente: hiperadaptividade
(Guay, 1995). Um dos aclamados “pais” do hipertexto, Ted Nelson, mais tarde definiu
este conceito como “media analógico” – afirmando mesmo explicitamente que este
novo paradigma se desenvolveu para evitar que algo como a World Wide Web
persistisse (Nelson, 1999). De acordo com estes autores, aquelas que consideramos
ser as três características autónomas da Web irão eventualmente divergir num único
paradigma de edição.
Noutra abordagem, discutimos que o aprofundamento do conteúdo pode ser
encarado como um traço distintivo do jornalismo online (Bardoel e Deuze, 1999). O
próximo passo do jornalismo num ambiente digital convergente e em rede deve ser
criar conteúdo num ambiente que interaja com o meio sem a limitação dos formatos
dos media (ou: janelas). Guay (1995) refere-se a este tipo de design como
hiperadaptividade: a convergência de hipertexto, multimédia e interactividade
particular. Para o jornalismo isto significa afastar-se de dois princípios definidores da
profissão: distribuir informação sob uma única marca, de modo a obter e manter um
público mais ou menos sem rosto, e permanecer dentro das limitações de um único
formato (audio, vídeo, texto). Isto pode não acontecer no jornalismo online, mas
gostaria de defender que constitui a essência da profissão jornalística onde é
necessário intervir em cima do acontecimento.

Debate

Tentei sumariar as novas estratégias potenciais para os diferentes tipos de


jornalismo online no Modelo III que, esquematicamente, conduz ao debate final sobre
o possível caminho a seguir para a produção de media noticiosos online.

165
MODELO III:
Estratégias potenciais para o jornalismo online
Sites noticiosos dos Sites de índice e Sites de comentário e Sites de
media institucionais categorias metasites partilha e
discussão
Registo anotado de Não/talvez Sim Sim Sim
informação
Jornalismo de fonte Não Não Talvez Sim
aberta
Site noticioso Não Não Não Sim
hiperadaptativo

Quando os sites noticiosos optam por acrescentar ou aumentar hiperligações


(externas), interactividade (funcional/adaptativa) e multimédia
(convergente/divergente), também optam por hipóteses que vão para além da adição
de um texto fundamental, uma página adicional com um formulário para feedback ou
uma ligação a um fragmento de vídeo. Tais mudanças estão também ligadas aos
padrões de organização editorial e a desafios colocados a práticas jornalísticas
estabelecidas, normas e valores, ao narrar histórias. Uma vez que o todo do site é
mais do que a soma das suas partes, adicionar uma acarreta implicações para além
do todo. Os valores acrescentados sugeridos e as novas estratégias dos jornalismo
online não podem ser simplesmente incorporados um a um, sem fundamentalmente
mudar a “natureza do animal” – sendo o “animal” aquela particular sala de redacção e
os seus profissionais envolvidos. Por outras palavras, mudar os tipos de jornalismo
online pode muito bem mudar aquilo que pensamos ser o jornalismo. Por isso, o
Modelo III procura sugerir qual a estratégia que melhor serve a cada tipo de jornalismo
online, baseando-se numa reflexão das características destes sites como foi mostrado
no Modelo II.
O registo anotado de informação pode ser encarado como um valor
acrescentado para todos os tipos de recolha, partilha ou oferta de informação online.
Qualquer pessoa pode transmitir informação, mas quem a pode descrever, avaliar ou
comentar para que as pessoas tenham acesso a segmentos de informação
relevantes? É de notar, por isso, que os sites noticiosos dos media institucionais em
particular, não tenham (ainda) desenvolvido este tipo de valor acrescentado. Talvez
esses sites possam começar a incorporar formatos de transmissão de histórias
comentadas. Muitos já estão a fazê-lo, em especial nas secções sobre os media, tal
como o top comentado diariamente das “Dez Melhores” histórias noticiosas no

166
MediaGuardian ou o sistema de avaliação comentado para hiperligações externas do
site dinamarquês Algameen Dagblad. O site norueguês Nettavisen é também um
exemplo de um serviço noticioso que se baseia unicamente na recolha e no
comentário de materiais online. Isto provoca um impacto no ideal jornalístico, que se
baseia no pressuposto de que a história é contada pelo jornalista, contudo ele ou ela
serão, presentemente, ‘apenas’ aqueles que contam a história sobre outros
contadores.
A próxima fase, o jornalismo de fonte aberta, precisa de uma predisposição
específica e de um consenso da sala de redacção para que seja alcançado (quer com
os jornalistas, quer com o público). O único tipo de jornalismo online para o qual isto
não é novo é o site de discussão e partilha, onde as pessoas se juntam para
apresentar, discutir e por vezes até trabalhar histórias encontradas algures na Web.
Utilizar este potencial para produzir conteúdo gerado por utilizadores, direccionado
para o conhecimento próprio da multidão em detrimento das perspectivas do
académico ou do político, também provoca uma demarcação na prática jornalística
entre aqueles que se sentem mais confortáveis com a narração autónoma de histórias
“top-down”, e aqueles que não se sentem ameaçados pela retórica
“produtor=consumidor=produtor” da Internet, mas que, de facto, a aceitam. Não é por
isso surpreendente que este tipo de jornalismo possa ser encontrado aí, onde as
atenções se centram menos no conteúdo e mais na ligação – um tipo de jornalismo
online mais afastado das organizações noticiosas de referência. Podemos perguntar-
nos sobre o que traz de novo o jornalismo open source a um site noticioso que
apresenta conteúdo em grande medida direccionado para um jornalismo actual. A
minha ideia é de que este tipo de narração aberta funciona no caso de publicações
específicas dirigidas para um determinado nicho (tal como mostra o exemplo da Jane’s
Intelligence Review. Ver Moon, 1999), de comunidades formadas em torno de temas
ou tópicos (tal como os novos movimentos sociais online) e, porventura, também no
caso dos jornais regionais com uma presença na Web, cujo objectivo é desempenhar
um papel de maior integração na comunidade geográfica que pretendem servir
(Lapham, 1995; Deuze, 1999).
A terceira opção, tornar um site noticioso hiperadaptativo, alicerça-se em
verdadeiras noções de interactividade, hipertextualidade e – possivelmente –
multimedialidade. Fazer com que um site se adapte, mais ou menos automaticamente,
às necessidades e desejos dos navegadores pode parecer manifestamente
semelhante ao modelo de negócios de entrega de conteúdo adaptável, que remonta
aos meados da década de 90 (recorda-se do PointCast?) ou o conceito do “Daily Me”
(Negroponte, 1995) ou mesmo os comentários de Bill Gates no seu “The Road Ahead”

167
(1999), sobre os computadores e o software revelarem maior eficácia numa grande
parte das tarefas hoje em dia delegadas nos jornalistas. A diferença, neste caso, é o
desejo de querer utilizar o conceito de hiperadaptividade para descrever o processo
que um site noticioso sofre para se adaptar aos padrões, em mudança, do consumo e
produção dos novos media. Isto significa que, por exemplo, um site poderia oferecer o
seu próprio conteúdo em blocos (para que os utilizadores pudessem navegar sozinhos
aí), a página de abertura do site poderia adaptar-se (com informação armazenada em
Cookies) aos padrões de anteriores visitas do utilizador do site, etc.… Por outras
palavras, ao tornar-se hiperadaptativo, o site noticioso tem de adoptar uma filosofia
que conceda plenos poderes aos utilizadores online.
Torna-se evidente que o sucesso de todas as estratégias apresentadas
depende do modo como se soluciona a discussão na sala de redacção, entre as
formas “tradicional” e “nova” de narração de histórias. Este é um aspecto que penso
ser subestimado pelos jornalistas online, e pelos investigadores que, por exemplo,
estudam a “interactividade” dos sites noticiosos. Eles referem a importância da
interactividade, sem admitirem o facto de os níveis de interactividade contínuos
minarem o dogma do jornalismo moderno “nós escrevemos, você lê”, e de terem um
impacto em certos valores e ideais nucleares. O mesmo se pode dizer relativamente
ao facto da hipertextualidade externa aumentar a capacidade adaptativa de um site
noticioso. Um site noticioso de referência sem qualquer tipo de opção interactiva não é
exemplo de “mau” jornalismo online, pode ser um excelente serviço para o seu
público, exigindo, vinte e quatro horas por dia, informação breve, concisa e actual.
O presente ensaio procurou sumariar os tipos de jornalismo online, as suas
características e valor acrescentado para outros tipos de jornalismo, bem como avaliar
o impacto e os desafios face a novos desenvolvimentos na produção online de media
noticiosos.
Esta síntese não pretende ser a única abordagem possível, na medida em que
se encontram por toda a Web excepções aos modelos seguidos neste ensaio.
Gostaria de sugerir que a avaliação do que é bom ou mau no jornalismo online
comece com uma descrição clara e talvez muito simplificada dos conceitos
mencionados. Considero que este ensaio é uma tentativa para proporcionar essa
descrição e clarificação –com o intuito de problematizar novas questões de pesquisa e
redefinir as estratégias dos media noticiosos, constituindo um ponto de partida para
avaliar a mudança antes da sua implementação.
A mudança acontece – e o único modo de optimizar a nossa resposta é definir,
através de um exame crítico, os desafios que representa na nossa forma de actuar.

168
Links

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BBC news.bbc.co.uk
MSNBC www.msnbc.com
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Mediachannel www.mediachannel.org
Freedomforum www.freedomforum.org
Poynter’s Medianews www.poynter.org/medianews/
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Indymedia www.indymedia.org
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Plastic www.plastic.com
Nerve www.nerve.com
Feed www.feedmag.com
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177
Capítulo III

A indústria discográfica e o desafio da rede


________________________________________________
Giuseppe Richeri

INTRODUÇÃO

A análise da indústria discográfica evidencia os factores que podem estar na


origem do encontro entre um sector já consolidado da indústria de conteúdos e os
vários serviços em rede, em particular, os associados à Internet. A situação actual da
indústria discográfica caracteriza-se por alguns elementos específicos que seria
oportuno recordar promovendo, assim, um confronto com as novas oportunidades
desencadeadas pelos serviços em rede e as suas perspectivas de desenvolvimento.
No presente artigo é minha intenção apresentar um quadro de referência global, sem
analisar situações particulares. Cada mercado discográfico nacional apresenta
características distintas em termos da quantidade de vendas e da sua composição por
género (pop, folk, jazz, clássica, etc.), pela origem dos conteúdos (nacionais ou
estrangeiros), pelo peso das diferentes redes de distribuição e pela tendência das
suas variáveis principais.10

1. Dimensões do mercado mundial

Em 1999, de acordo com as estimativas da Federação Internacional da


Indústria Fonográfica (IFPI), as vendas mundiais da indústria discográfica atingiram os
38,5 mil milhões de dólares num total de 4 mil milhões de unidades vendidas (o
equivalente a 3,8 mil milhões de álbuns)11. Em relação ao ano anterior, estes valores
representam uma estagnação substancial do volume de negócios e um ligeiríssimo

10
O mercado real é sensivelmente mais vasto do que o resultante dos dados oficiais desde que, em muitos
países, existe uma elevada taxa de vendas de cópias de discos ilegais cujo volume de negócios não é
mensurável.
11
Valor recolhido em F. Silva e G. Ramello, “Dal vinile a Internet”, Edizioni Fondazione Agnelli, 2000.

178
crescimento das unidades vendidas e confirma que o mercado discográfico é um
mercado consolidado.
Os dois principais mercados são o norte americano (34%) e o europeu (33%),
no entanto, a quota dos mercados emergentes da América Latina, África e Extremo
Oriente tem registado um crescimento significativo.
Do ponto de vista dos suportes, assinale-se que em 1988 os CDs confirmaram
o seu crescimento, com 2,4 mil milhões de álbuns vendidos (66% das vendas totais),
enquanto as cassetes, mesmo continuando a dominar os mercados musicais dos
países menos desenvolvidos, confirmaram a sua contracção progressiva, com 1,2 mil
milhões de unidades vendidas (-11%).
Nos últimos dez anos, o sector cresceu globalmente, tanto em valor como em
quantidade: no período de 1991/99, o volume de negócios passou de 2,7 para 3,8 mil
milhões de dólares (+ 42%) e de 2,8 para 3,8 mil milhões de unidades vendidas (+
34%), se bem que, como foi dito,a tendência de crescimento mostre sinais de
maturidade.
O mercado discográfico caracteriza-se por uma forte concentração, não só no
plano geográfico (a Europa, Japão e América do Norte concentram mais de 80% das
vendas), como também no plano da oferta, no qual a concentração é superior a 70%,
encontrando-se nas mãos de um pequeno grupo de empresas, as majors, enquanto o
restante se reparte entre um grande número de pequenas e médias sociedades
“independentes”.

2. Concentração e diversificação multimédia

O processo de concentração invadiu rapidamente o mercado da música em


todo o mundo, deixando pouco espaço às realidades nacionais dos principais
mercados, facto agravado pelas pequenas dimensões de muitos operadores,
eventualmente super-especializados e líderes do “género”, mas geralmente sub-
capitalizados e, portanto, objecto ideal para a aquisição das majors.
Presentemente as majors da indústria discográfica reduzem-se a quatro: Sony
Music (Japão), Warner Music (Estados Unidos), BMG (Alemanha) e Universal Music
Group (Estados Unidos). Em 1998, eram ainda seis, mas desde então a Universal
(Estados Unidos) comprou a Polygram (Holanda), e a Warner Music comprou a EMI
(Reino Unido). Por sua vez, cada uma destas empresas, faz parte de grupos que
reflectem substancialmente quatro tipologias distintas:

179
1. uma sobretudo editorial, mas com uma presença
consolidada nos canais televisivos via satélite e via cabo, representada
pela BMG (Bertelsmann Music Group) do grupo alemão Bertelsmann,
em forte expansão tanto na televisão (recorde-se a recente fusão dos
seus interesses televisivos com a RTL Luxemburgo), como nos
serviços online;
2. uma multimédia (editoria, cinema, televisão, TV Cabo),
representada pela Warner Music do grupo Time-Warner, “public
company” americana que passou recentemente para o controlo da
American On Line, o maior fornecedor mundial de acessos e serviços
Internet;
3. uma ligada à electrónica do consumo, com a Sony Music
(ex-CBS) controlada pelo grupo homónimo japonês;
4. uma relacionada com um grupo alimentar: a Universal
pertence ao grupo canadiano Seagram (líder mundial no campo das
bebidas) que actualmente está em fase de fusão com o grupo francês
Vivendi que também actua no campo da televisão (Canal Plus) e dos
serviços de interesse público (água, recolha de lixo).
É interessante notar que em todos os casos se trata de grupos com fortes
interesses em sectores que têm, potencialmente, grandes sinergias com a indústria
musical.

3. Perspectivas e problemas colocados pela rede

Para a indústria discográfica os novos media têm-se revelado um meio


promissor (ainda que até ao momento com resultados de mercado marginais) na
promoção, distribuição, venda ou enriquecimento dos conteúdos musicais. No decorrer
dos últimos tempos, os diferentes operadores começaram a utilizar a Internet, e os
serviços que a ela se associam, nomeadamente através de quatro modalidades que
poderão ser sintetizadas da seguinte forma:

a. desenvolver um site web destinado à promoção dos


próprios artistas e
b. receber, através da Internet, encomendas e pagamentos
de discos, a remeter ao cliente por correio;
c. enriquecer os conteúdos de um CD Áudio adaptando-o
às interligações online com um site web que contém informações
suplementares (textos, fotografias, audiovisuais, etc.);

180
d. vender faixas musicais online.

As duas primeiras modalidades acima indicadas não apresentam diferenças


significativas no que diz respeito ao fenómeno mais amplo do comércio electrónico e,
por isso, apenas serão apresentadas as suas características principais. A terceira
representa uma potencialidade interessante de aplicação dos novos media à indústria
discográfica mas, como veremos, trata-se ainda de um fenómeno em fase de
desenvolvimento. As iniciativas desenvolvidas para usar a rede para transferir e
vender faixas musicais ao público já oferecem elementos suficientes para demonstrar
de que modo os novos media poderão modificar as formas tradicionais do mercado
dos produtos musicais.

A Internet como meio de promoção e venda

Do ponto de vista da promoção, todas as majors discográficas utilizam hoje,


com mais ou menos ímpeto e expectativas, a web que muitas vezes é usada por cada
uma das labels (marcas utilizadas pelas diversas linhas do produto). Para além destas
e de muitas casas discográficas independentes, também alguns artistas (entre os mais
conhecidos encontram-se David Bowie, Prince, Jean-Michel Jarre) construíram a sua
própria página web para promover o seu trabalho e manter relações directas com o
seu público. Nas funções promocionais atribuídas aos sites web actualmente activos,
incluem-se informações sobre o catálogo da casa discográfica, com detalhes sobre
novos títulos, digressões e concertos e ainda a possibilidade de se ligar através do
correio electrónico a outros fãs e artistas.
A venda de discos através da Internet teve início nos Estados Unidos, em
1994, e actualmente compreende várias empresas em todos os mercados
discográficos desenvolvidos, incluindo os europeus. Não se trata somente de
empresas comerciais independentes mas também de iniciativas directas das
empresas discográficas, em particular das majors. Estas oferecem, para além da
escolha crescente de títulos, um serviço multilingue e acessível à escala internacional.
A dimensão global deste mercado era, de acordo com as estimativas da Jupiter
Communications, 49,4 milhões de dólares em 1997, podendo aproximar-se dos mil
milhões no final de 2000.
A CDnow é considerada a maior empresa mundial de venda de discos através
da Internet quanto ao número de clientes, e uma das principais quanto ao número de
títulos disponíveis. A sua base comercial é constituída por 200 mil títulos de álbuns
musicais organizados em seis géneros (rock e pop, country e folk, urbana e

181
electrónica, clássica, jazz e blues, world music e new age). A promoção surge sob
diversas formas, sendo a principal a publicidade exclusiva nas páginas de música web
ligadas ao motor de pesquisa Yahoo!, num investimento próximo dos 4 milhões de
dólares. O volume de negócios da empresa cresceu a ritmo muito elevado, passando
de cem mil dólares em 1994 para 6,3 milhões de dólares em 1996 e para 100 milhões
de dólares em 1999. Ao mesmo tempo a CDnow registou, não obstante, perdas
notáveis, sobretudo devido aos grandes investimentos destinados a reforçar a
visibilidade e a notoriedade da marca, com o fim de potenciarem as campanhas de
marketing e a sua estratégia de desenvolvimento.
A venda de discos através da Internet salientou dois problemas principais
relativamente aos preços e à distribuição internacional. A possibilidade de receber
encomendas e respectivos pagamentos através da Internet, entregando o produto pelo
correio, permite ao vendedor reduzir de forma significativa o preço das vendas. Dos
custos de distribuição elimina-se, de facto, tudo o que diz respeito à loja de discos ou
ponto de venda físico. No caso da CDnow, por exemplo, um CD custa, em média,
menos 4 dólares do que na discoteca, mas em alguns casos a diferença pode superar
os 8 dólares. Perante esta concorrência, as lojas de discos não têm muita margem
para reduzir os custos a menos que exerçam pressão sobre as casas discográficas
para terem condições especiais, já que, até ao momento, praticamente todo o
mercado discográfico depende delas. O primeiro problema diz respeito, portanto, ao
questionamento da estrutura actual de custos e de preços dos produtos discográficos.
O segundo problema relaciona-se com o facto de as vendas internacionais
através da Internet não estarem sujeitas a critérios nacionais de fixação de preços dos
discos, que dependem, para além da estrutura de distribuição, de regras comerciais,
fiscais e outras que funcionam a nível local. Por exemplo, um consumidor inglês pode
comprar um CD através da Internet nos Estados Unidos por 12 dólares, mais 6 dólares
para despesas de envio postal. O mesmo álbum, quando adquirido na loja, custa 13,5
libras esterlinas (22,3 dólares).

O produto discográfico enriquecido

As companhias discográficas, antes ainda de terem considerado a Internet


como instrumento central na sua estratégia de integração dos novos media, tinham já
desenvolvido produtos multimédia, acrescentando ao conteúdo musical, no mesmo
CD, outros conteúdos audiovisuais (videoclip, fotografias, texto), criando assim um
novo formato discográfico multimedia: o ECD (Enhanced Compact Disc). Estes

182
elementos deviam tornar mais atraente o produto musical e assim aumentar as suas
vendas.
No caso do produto lançado pela Sony Music, denominado CDExtra, ¾ da
capacidade do CD eram ocupados pelas faixas de música e ¼ pelos conteúdos
audiovisuais. Com um leitor de CD Áudio normal podia ouvir-se somente a parte
musical, enquanto que com um leitor de CD-Rom também se tinha acesso à
componente audiovisual. O novo formato de CD extra, colocado no mercado em 1994,
não teve sucesso por várias razões (fraca promoção, preço elevado, pouca variedade
de títulos, baixa penetração do suporte tecnológico, etc.). Em vez de abandonar a
ideia do ECD (Enhanced CD), algumas majors discográficas, como a Sony e a norte-
americana BMG, redefiniram o produto, integrando-o no software da Internet. A partir
do ECD o utilizador pode agora ligar-se à Internet e aceder à página web onde
encontra dados audiovisuais, gráficos e textuais complementares relativos ao
conteúdo musical, ao autor, etc. A combinação entre a aquisição do ECD e o acesso
aos conteúdos adicionais gratuitos via Internet constituem hoje uma nova estratégia de
venda capaz de reforçar a organização comercial das casas discográficas e fidelizar
os seus clientes.

Venda de faixas musicais on-line

As iniciativas de venda directa das faixas musicais através da rede são


numerosas e estão já presentes em todos os mercados mais importantes.
Actualmente, estas actividades ocupam ainda quotas marginais do mercado
discográfico global e, segundo as previsões, a sua dimensão continuará limitada por
mais alguns anos. As iniciativas de venda directa representam, todavia, o
desenvolvimento mais radical na distribuição e venda da música ao público, na medida
em que abrem um novo ciclo de expansão a longo prazo num sector já consolidado. A
reduzida percentagem de pessoas, ainda que estatisticamente significativa, que utiliza
habitualmente o PC como instrumento para audição de música representa somente a
fase de arranque de um fenómeno que poderá vir a crescer de forma exponencial.
Trata-se, no entanto, de um desenvolvimento que comporta não só a
redefinição das rubricas do custo e da formação dos preços, mas que reacende a
discussão em torno do sistema de relações que uniram, até ao momento, as etapas de
criação, edição, comercialização e consumo de música. É talvez prematuro tentar
definir com precisão o novo modelo, mas já é possível indicar alguns elementos que
nos próximos anos assumirão provavelmente um peso cada vez mais relevante no
sector discográfico. Note-se ainda que se trata de um processo que, no futuro, será

183
comum a todos os sectores da indústria editorial que hoje distribuem os seus produtos
utilizando, sobretudo, suportes físicos.
A venda de faixas musicais online poderá desenvolver-se segundo algumas
modalidades distintas, nomeadamente:
a) encomendar, pagar e ouvir na rede uma faixa de música sem a
possibilidade de gravar (por exemplo, na memória do PC) ou copiá-la para um
suporte virgem;
b) encomendar, pagar e ouvir uma faixa de música através da rede,
com a possibilidade de a gravar ou de a copiar para um PC ou para outro
suporte digital;
c) encomendar download de música da rede para um suporte de
gravação (CD gravável) e pagar de acordo com uma tarifa baseada na duração
do download.

Sem pretender entrar nos aspectos técnicos, lembramos que as operações


acima descritas requerem (exigem que o utilizador disponha de) um PC com uma
certa capacidade, um modem para ligação à rede e software apropriado, assim como
o eventual gravador de CDs. Além disso, por agora, estas operações comportam um
período de desenvolvimento relativamente longo, mas que a curto prazo se poderia
reduzir substancialmente como resultado do desenvolvimento das técnicas de
compressão do sinal e das redes de banda larga a curto prazo. Presentemente o
recurso ao formato MP3 já permite reduzir a dimensão de um ficheiro musical em
relação ao formato Wav.
Actualmente muitas iniciativas de venda de música na rede concentram-se em
produtos de pequenas casas discográficas independentes e títulos de catálogo (e não
em sucessos da actualidade). Trata-se de uma forma de venda utilizada, sobretudo,
para atenuar as barreiras comerciais que penalizam as pequenas editoras
discográficas e para recolocar no circuito produtos de nicho ou títulos que se dirijam a
um mercado geograficamente muito disperso.
As majors discográficas só começaram a experimentar a venda directa aos
clientes dotados de um PC ligado à rede, num segundo momento. Eis dois exemplos:
- a Sony Music Entertainment desenvolveu o serviço de jukebox
digital que permite aos clientes ouvir uma faixa em qualquer momento,
excluindo, no entanto a possibilidade de a descarregar para a memória do
próprio PC;
- EMI, Polygram e Bertelsmann participam na experiência
promovida pela Deutsche Telecom (DT), o maior operador de

184
telecomunicações europeu, sob o nome de Music on Demand que, por agora,
oferece a um milhão de alemães a possibilidade de encomendar uma faixa
musical pelo telefone e de a receber através do serviço T-Online na rede, a alta
velocidade.
Em França, a partir da Primavera de 1997, a Audiosoft desenvolveu um serviço
de música distribuída através da televisão por cabo. Também neste caso, o serviço diz
respeito a uma série de casas discográficas independentes cujos produtos são
arquivados na City Music, uma plataforma digital da Audio Soft destinada à distribuição
doméstica das faixas musicais via cabo.
Em 1998, a AudioSoft desenvolveu o Virtuosa, um novo serviço capaz de
alargar a funcionalidade do City Music dos utentes de televisão via cabo aos utentes
da Internet. O serviço oferece a possibilidade de arquivar até 15 horas de música (num
disco fixo com um espaço não inferior a 1 Gb). Os clientes podem “experimentar” o
produto antes de decidirem adquiri-lo e memorizá-lo no seu PC. Para além disso, é
possível realizar compilações personalizadas ou, simplesmente, utilizar o PC como
reprodutor de alta fidelidade.
No entanto, as majors discográficas estão ainda muito preocupadas com o
risco que a venda em rede dos seus conteúdos musicais representa, pela
possibilidade de facilitar formas de contrafacção e de pirataria comercial, enquanto as
casas discográficas independentes parecem mais atraídas pelas vantagens da venda
em rede. Como acontece na Europa onde estão no centro das iniciativas mais
interessantes que, por enquanto, operam com base nacional no Reino Unido, França e
Alemanha.
A exigência de proteger a distribuição da música online de contrafacções e
reproduções ilegais abriu espaço a empresas, como as americanas Liquid Audio e
Real Networks, que fornecem sistemas específicos para os vendedores em rede,
tecnologias de codificação capazes de localizar os desvios de faixas musicais
protegidas pelo copyright e descarregadas a partir da Internet.
A Liquid Audio é uma produtora de software que se tornou lider na tecnologia
para descarregar música da Internet. O seu sistema de distribuição electrónica para
codificar música, com a possibilidade de proteger e gerir o copyright, foi adoptado por
vários fornecedores de conteúdos e de entretenimento na Internet. Trata-se de um
produto concebido especificamente para a gestão dos conteúdos musicais na rede,
justificado pela dimensão potencial de um mercado online já não negligenciável, se se
considerar que 14% dos compradores habituais de discos nos Estados Unidos estão
ligados à Internet. Os principais produtos de software oferecidos pela Liquid Audio são:

185
- o Liquifer Pro: custa cerca de 1.000 dólares e permite aos
fornecedores de conteúdos, como as casas discográficas, converter a sua
música para o formato digital adequado à distribuição na Internet;
- o Liquid MusicServer: custa cerca de 20.000 dólares e
compreende um servidor digital projectado para distribuir música através das
redes permitindo, entre outras coisas, gerir o arquivo dos produtos a distribuir,
proteger e gerir o copyright, registar as transacções para poder pagar direitos
(a casas discográficas, autores, etc.) e proteger as transacções financeiras em
rede;
- o Liquid MusicPlayer: software necessário para ouvir as faixas
musicais encriptadas que se podem adquirir através da rede; pode ser obtido
gratuitamente e descarregado pelo utilizador para o seu PC a partir da rede.

A estrutura e custos na venda musical tradicional e online

Na passagem da venda do produto musical offline para a venda em rede, a


estrutura dos custos modifica-se consideravelmente. Bastará analisar a estrutura dos
custos actuais dos produtos musicais distribuídos em suporte físico para identificar
alguns elementos relevantes. Tomando como referência um produto standard de
música ligeira nacional, novidade com elevado custo em Compact Disc, com uma
edição de 70.000 exemplares e vendido ao público por 17 euros isentos de IVA (16%)
os custos são aproximadamente repartidos entre as diferentes rubricas do seguinte
modo:

a) desenvolvimento do protótipo: 22%. Trata-se da rubrica de custo


que contempla o pagamento do artista (15% em média), bem como os
chamados “initial costs” (4%), ou seja, gravações e projecto gráfico, ao que se
junta cerca de 3% do custo médio para o copyright, isto é, direitos de autor
(músicos, letristas) e do editor na reprodução mecânica da master (direitos
fonomecânicos);
b) produção (custos industriais): 8%. Trata-se de custos industriais
puros e simples, que incluem em substância, a duplicação da master
discográfica e dos respectivos detalhes gráficos da capa;
c) colocação no mercado (custos de venda e marketing): 45%.

186
A tipologia dos custos de venda standard12 é composta por:

- desconto “trade” (margem do negociante): 32%


- custo de distribuição (comissões sobre as vendas): 2%
- descontos comerciais e financeiros: 4%
- custos de loja, envio e transporte (a cargo da distribuição): 1%

A estes custos, tipicamente “comerciais”, juntam-se os custos de marketing,


isto é, a publicidade e promoção, que incluem os investimentos nos media, os
catálogos, o gabinete de imprensa, os eventuais noticiários e as participações em
feiras e mostras, que pesam em média 6%:

d) custos de unidade: 3,3%. São os directamente imputáveis ao


produto (desenvolvimento, promoção, direcção artística).
e) custos gerais: 3,2%. Incluem administração, telefones,
aquecimentos, alugueres, quota parte da direcção geral, CED, honorários, etc.
f) margem declarada: 18,6%. Trata-se de uma margem média
elevada, que nasce da caracterização “distributiva” da indústria discográfica
italiana.

Com base nesta reconstrução esquemática prevê-se que, no caso da venda


dos conteúdos musicais através da rede, desapareçam um conjunto de custos que
representam 47% do preço final: são suprimidos tanto os “custos de produção”,
próximos dos 8%, a partir do momento em que a faixa de música é gravada no server
e não deve ser reproduzida fisicamente, como também os custos de “colocação no
mercado” (loja, transporte, descontos, pontos de venda, etc.) que representam 39%
dos custos totais. Restam, ao invés, os custos de marketing que continuam relevantes
mesmo no caso das vendas online.
No lugar destes custos que desaparecem, apresentam-se novos custos que
incluem, entre outros, o hardware e o software para gerir a venda online, o transporte
em rede do conteúdo musical para o utilizador, enquanto alguns custos (suporte para
gravar a faixa musical, etc.) são suportados directamente pelo cliente. É difícil calcular
a dimensão dos novos custos presentemente, mas os valores acima indicados são

12
Ao contrário da indústria do livro, a indústria discográfica gere directamente a distribuição aos
revendedores. O livreiro deixa os livros em depósito nos pontos de venda, obtendo as suas receitas apenas
sobre os livros vendidos nos quais o vendedor tem uma percentagem. Os custos da indústria discográfica
compreendem a distribuição física dos produtos e as comissões dadas aos representantes, sendo estes
responsáveis pela promoção dos discos nos locais de venda, nas diversas áreas comerciais.

187
suficientes para evidenciar como, neste caso, a cadeia do valor se reorganiza
radicalmente, colocando em jogo novos actores e eliminando outros.

Alguns problemas deixados em aberto

A perspectiva de um desenvolvimento crescente das vendas de música em


rede (assim como de outros conteúdos imateriais) coloca alguns problemas que, por
agora, ainda não encontraram uma solução para os diferentes actores envolvidos. A
protecção das normas fiscais nacionais e a segurança das transacções em rede são
alguns dos problemas comuns ao desenvolvimento do comércio electrónico em geral,
mas a protecção dos direitos de autor assume seguramente uma relevância particular.
Torna-se necessário definir e adoptar leis capazes de proteger, localmente e à escala
mundial, os proprietários dos direitos (criadores, intérpretes, editores, etc.) no
momento em que os conteúdos musicais passam da distribuição em suporte físico
para a rede. Trata-se de um problema complexo, que apresenta diferentes aspectos,
desde a harmonização e legitimação das normas anti-pirataria à escala mundial até à
identificação e perseguição das transgressões “em rede”, accionando os meios
técnicos para ambas as funções.
Com o advento do comércio electrónico, e tal como acontece na indústria
editorial, o sector da música enfrenta o problema do reequilíbrio das quotas de
mercado entre grandes e pequenas casas discográficas. Todavia, uma série de
factores parece favorecer, neste caso, um maior impulso à reflexão acerca das
oportunidades e dos riscos oferecidos pela rede. O sector musical viveu uma difusão
mais precoce e profunda das tecnologias inovadoras no que diz respeito à indústria
editorial (o Compact Disc, a afirmação do videoclip como instrumento necessário ao
marketing). Para além disso, a indústria discográfica caracteriza-se por maior cuidado
dos operadores na recolha e antecipação dos humores de um público cujos gostos
são muito mais dinâmicos em comparação com os conteúdos editoriais.

188
A utilização do telemóvel em Itália nos
anos 90: Modelos interpretativos
__________________________________________

Fausto Colombo

Introdução

A presente intervenção pretende abordar o tema da difusão do telemóvel em


Itália como fenómeno não apenas tecnológico ou económico mas, de forma mais
abrangente, social e cultural. Esta abordagem implica uma perspectiva multidisciplinar
em consonância com alguns conhecimentos adquiridos no debate sobre os media,
sobretudo a partir da difusão de algumas tecnologias portáteis13. O conteúdo deste
trabalho representa apenas parte de uma série de pesquisas e, como tal, mostra somente
alguns aspectos do cenário geral, remetendo para posteriores publicações os balanços de
pesquisas empíricas sobre os utilizadores do telemóvel14.
A discussão articula-se em três fases: na primeira, através de uma incursão
histórica, é descrito o desenvolvimento do telemóvel em Itália; na segunda, de forma
muito sintética, é apresentada a difusão actual e as tendências do seu crescimento; na
terceira, são descritos alguns modelos interpretativos do fenómeno, relacionados com
alguns posicionamentos teóricos de relevo quanto ao desenvolvimento e à difusão das
tecnologias.

13
Veja-se, por exemplo, P. du Gay et al., Doing Cultural Studies. The Story of the Sony Walkman, Sage,
London, Thousand Oaks, New Dehli, 1997. Sobre o mesmo tema, mas sob uma perspectiva de análise
empírica, veja-se M. Bull, Sounding out the city, Berg, London, 2000.
14
Remeto também para o meu livro Il piccolo libro del telefono. Una vita al cellulare, Bompiani, Milano,
2001.

189
1. O desenvolvimento do telemóvel em Itália: uma incursão histórica

1.1.O interesse do caso italiano


Ao abordar o caso do telemóvel em Itália, importa destacar as razões que o
tornam num caso paradigmático. Situam-se a dois níveis:

1. contexto internacional: a Itália é, de facto, lider europeia na utilização do


telemóvel (em 1990 detinha o terceiro lugar no mercado mundial15; em Julho de
2000, possuía 32 milhões de utilizadores16). Os seus operadores encontram-se,
também, entre os gigantes do mercado mundial: em 1999, a TIM (Telecom Italia
Mobile), ocupava o primeiro lugar entre os operadores europeus (terceiro entre
os operadores de todo o mundo) com 13% do mercado continental; a Omnitel,
com 6,82%, posicionava-se em terceiro lugar17;

2. contexto nacional: a difusão do telemóvel coincide, de facto, com a mudança em


toda uma cultura das telecomunicações e inaugura uma nova fase das relações
entre Estado e mercado. Por outro lado, representa o primeiro caso em Itália de
desenvolvimento tão notável de uma tecnologia (muito mais rápido do que no
caso da televisão), num país em que a difusão das tecnologias de informação,
primeiro, e da Internet, depois, foi muito lenta.

1.2. Contextualização

Para abordar este tema utilizaremos duas perspectivas históricas distintas e


complementares: uma mais atenta à mudança tecnológica e industrial, a outra
centrada nos acontecimentos políticos e económicos18.

No que toca à mudança tecnológica e industrial, poderemos distinguir entre


uma fase a que podemos chamar pré-histórica, caracterizada pelo nascimento da

15
Fonte: Autoridade das Telecomunicações, 14 de Julho de 2000.
16
Fonte: www.gsmbox.it, 8 de Março de 2000.
17
Fonte: Classifica Mobile Communication, dados tratados pela ANSA, 16 de Novembro de 1999.
18
Importa ressaltar que não são muitos os estudos sobre a história do telemóvel em Itália. Destaco aqui o
volume de R. Abeille, Storia delle telecomunicazioni italiane e della SIP (1964-1994), Angeli, Milão,
1999 e D. Borrelli, Il telefono, Ellissi, Nápoles, 2000; do mesmo autor consulte-se também o livro Il filo
dei discorsi. Teoria e storia sociale del telefono, Sossella, Roma, 2000, que contém uma incursão
histórica local sobre o telefone na região napolitana no início de 1900.

190
primeira rede de telemóveis - a RTMI em 1973 - depois, em 1985, pela substituição
do sistema RTMI (Radio Telefono Móbile Integrato) pelo RTMS (Radio Telefono
Mobile Seconda Generazione) e uma fase histórica, cujos factos essenciais são:

- 1990: adopção do sistema ETACS (Extended Total Access


Communication System), que assinala a introdução do telemóvel no quotidiano,
ainda que as assinaturas, naquele ano, fossem pouco mais de 67.000;

- 1994-95: primeira difusão do GSM (Global System for Mobile


Communications) e início do telemóvel digital;

- 1996: lançamento dos cartões pré-pagos recarregáveis;

- 1999: início da difusão do sistema WAP (Wireless Application


Protocol). Num ano venderam-se cerca de 500.000 aparelhos dotados desta
tecnologia19;

- 2000: concurso para a atribuição das licenças UMTS (Universal


Mobile Telecommunications System).

Como mostra a sucessão de datas, uma característica que sobressai do


processo de desenvolvimento industrial é a rapidez das inovações, numa velocidade
progressiva, que deveria continuar no próximo período com a comercialização dos
standards GPRS e UMTS. Esta característica é própria do fenómeno à escala global,
pelo menos na versão europeia20, mas é, no caso italiano, um importante elemento
de contextualização; do mesmo modo, deve ser tomada em conta a passagem
crucial, na segunda metade dos anos 90, de tecnologia analógica ETACS para o
standard digital GSM, porque assinala a plena entrada numa fase de convergência
tecnológica, muito importante em si mesma e em especial no caso italiano, em que a
ausência de uma cultura digital prévia fez do telemóvel o veículo para a telemática e
não o contrário que seria mais lógico.

E eis-nos nas mudanças políticas e económicas. Neste caso, a “fase pré-


histórica” é assinalada, em 1964, com o nascimento da SIP (Società Italiana per
l’Esercizio Telefonico), a empresa pública que, operando em regime de monopólio,

19
Fonte: Estudo Siemens, 14 de Junho de 2000.
20
Sobre o crescimento e desenvolvimento dos novos standards, como o CDMA, sobretudo nos EUA, na
Coréia e no Japão, veja-se, por exemplo, R. Chiaberge, L’algoritmo di Viterbi, Lonaganesi & Co, Milão,
2000.

191
reuniu as várias redes de telefone fixo italianos numa única grande rede. Em 1984
novas convenções entre o Estado e a SIP viriam a relançar o sector.

Depois (e estamos em plena história) ocorre o processo rápido conducente à


privatização e à concorrência do sector. Os principais momentos são:

- 1992: o IRI (Istituto per la Ricostruzione Industriale) adquire a


Azienda di Stato;

- 1994: nascem as duas primeiras grandes empresas-operadoras


nacionais de telemóveis: da SIP nasce a Telecom Itália e a Omnitel activa o
primeiro call center ;

- 1995: a Omnitel começa a operar no mercado; de um ramo da


Telecom Itália nasce a Telecom Italia Mobile (TIM). O sistema de telemóvel
torna-se concorrencial. Termina, de facto, o monopólio público;

- 1997: privatização da Telecom Itália;

- 1998: o mercado das telecomunicações é liberalizado: activa-se a


Alta Autoridade para as telecomunicações – AGCOM (Autorità per le Garanzie
nelle Comunicazioni);

- 1999: ascensão da Omnitel relativamente à posição da Telecom


Itália; concessões a Wind e Blutel: continua a política de promoção da
concorrência no sector.

No plano económico e político, tal como sugere esta cronologia, o dado mais
relevante parece ser o abandono da lógica monopolista, tradicionalmente na base da
regulação nacional dos média e dos serviços universais. De particular interesse é,
também, o facto de, pela primeira vez, a intensificação da concorrência a uma
empresa, central para o desenvolvimento do país, ter sido desenvolvida não pelas
grandes famílias do capitalismo italiano, mas pelos representantes de um novo
capitalismo aberto ao net-business, declaradamente mais modernista. Todavia, esta
ascensão demonstra também a dificuldade de, em Itália, se levar por diante uma
política verdadeiramente concorrencial e anti-trust, perante a tendência endémica
para o monopólio (sector automóvel) ou para o oligopólio (sector televisivo).

192
1.3. Uma hipótese de periodização

Com base na incursão histórica apenas realizada, poderão distinguir-se duas


fases no desenvolvimento do telemóvel em Itália: a primeira (1990-1995)
caracteriza-se pela chegada das novas tecnologias ao mercado e pela sua procura de
um papel no anterior sistema dos media. Esta nova tecnologia, na sua versão
analógica, afirma-se como um sucesso. A segunda fase (1995-2000...) representa, ao
invés, um ciclo de inovação própria do novo meio tanto no que diz respeito à sua
transformação tecnológica como ao progressivo ajustamento do seu papel social. É
justamente, a esta segunda fase que dedicaremos a nossa atenção.

2. A actual difusão do telemóvel e a tendência do seu crescimento

Tomemos de perto as transformações típicas da segunda fase, sobretudo nos seus


últimos anos. Os aspectos essenciais são os seguintes:

- em termos quantitativos, assiste-se a uma brusca alteração na


difusão social do telemóvel: passa-se de uma taxa de penetração de 21%, em
1997, para 35%, em 1998, e, em 1999, de 55%. No período compreendido entre
Julho de 1999 e Julho de 2000 os utilizadores aumentaram 120%21;

- em termos qualitativos, estamos perante uma “feminilização” dos


utilizadores: a percentagem de mulheres entre os utilizadores do telemóvel passa
de 14%, em 1995, para 40% em 200022; trata-se de um dado relevante que
confirma o progressivo redimensionamento do papel do género na facilidade de
acesso (material e cognitivo) às tecnologias;

- ainda em termos qualitativos, entre 1997 e 1999, assiste-se ao


crescimento exponencial do uso juvenil. Os motivos deste crescimento foram
interpretados de várias formas; a explicação mais plausível é a da configuração
especifíca da família italiana, empenhada em reconfigurar a relação pais-filhos.
Na prática, os pais teriam visto na oferta do telemóvel aos filhos um símbolo de
equilíbrio entre autonomia e controlo, enquanto os segundos teriam desfrutado e
recodificado este presente no sentido de uma forte autonomização e de um
reforço das relações entre os pares;

21
Fonte: Goldmann-Sachs, 31 de Agosto de 2000.
22
Cfr. Relatório Federcomin sobre “E-family e utilizzo domestico delle tecnologie”, Agosto 2000.

193
- em termos cognitivos, observa-se a facilidade de difusão de novas
práticas comunicativas, como o SMS (Short Message Service), e a fácil
actualização sobre as novidades tecnológicas (uma numerosa percentagem de
utilizadores de telefones móveis demonstra ter percebido as características do
telefone WAP apenas um ano após a sua introdução). O fenómeno é
significativo, sobretudo se confrontado com o conhecimento de base de outras
tecnologias digitais. Pense-se, por exemplo, que a Itália se encontra no terceiro
lugar, a contar do fim, no que toca à utilização da Internet na Europa, estando à
frente, apenas, de Portugal e da Grécia23. Em Itália, os conhecimentos sobre o
WAP parecem demonstrar a posição dominante do telemóvel na difusão dos
novos media.

3. Modelos interpretativos

Tentaremos agora interpretar o desenvolvimento do telemóvel em Itália com


base em dois modelos relativos à passagem do desenvolvimento tecnológico à inovação
social24: o objectivo dos dois modelos, que estou a elaborar há alguns anos, é duplo. Por
um lado, verificar o que na difusão do telemóvel é típico enquanto inovação
tecnológica; por outro, reconhecer, entre as inovações tecnológicas, alguns
comportamentos estáveis, a fim de formular previsões credíveis sobre os seus
desenvolvimentos.

3.1. O paradigma da borboleta

É objectivo deste primeiro paradigma descrever a transição entre o aparecimento


de uma nova tecnologia e a sua incorporação nos padrões de uso social. Para isso,
basear-nos-emos num mapa do sistema cultural elaborado por W. Griswold25. Este

23
Fonte: www.gsembox.it, 18 de Maio 2000.
24
Para um debate sobre os modelos interpretativos do fenómeno das inovações tecnológicas remeto para
P. Flichy, L’innovation technique, récents développements en sciences sociales. Vers une nouvelle théorie
de l’innovation, La Découverte, Paris, 1995.
25
W. Griswold, Cultures and Society in a Changing World, Sage, Thousand Oaks, 1994.
As alterações terminológicas e conceptuais introduzidas por mim foram as seguintes:
1) Onde Griswold utiliza “mundo social” como “os modelos e necessidades económicas, políticas,
sociais e culturais que caracterizam um determinado momento no tempo”, utilizo “ambiente
sócio-cultural”, para designar apenas o estreito sistema da cultura, no qual funciona a ainda mais
estreita cultura industrializada. Aqui, refiro-me às culturas institucionais (por exemplo as
académicas), às culturas identitárias “locais” (por exemplo étnicas) mas também aos estilos de

194
mapa, denominado o “diamante” em honra do jogo de baseball, é composto por quatro
pontos e seis ligações ou conexões. No esquema 1 apresento uma leitura desse mapa
que me parece mais adequada aos temas da indústria cultural.

A partir deste modelo é possível tentar descrever o processo de introdução de


uma inovação tecnológica num sistema social. Parece seguir sempre o mesmo percurso,
articulado em cinco movimentos:

- primeiro: o impacto da nova tecnologia é acolhido pela procura


associada ao consumo já existente e, por isso mesmo, uma procura
conservadora.

- segundo: a procura incide sobre o trabalho no universo produtivo,


estimulando-o.

- terceiro: a produção desenvolve novas formas expressivas que


modificam o produto.

- quarto: o produto, pela sua novidade, torna-se parte do ambiente


sóciocultural.

- quinto: modificam-se progressivamente os hábitos de consumo26.

vida que implicam comportamentos culturais (pense-se na moda ou na “quota cultural” dos
consumos compreendidos como acções racionais). A indústria cultural desenha incessantemente
este ambiente e contribui para ele.
2) Substituí a noção de “criador” por “universo produtivo” que salienta, por um lado, o modo como
o trabalho colectivo e tecnologizado substitui o trabalho individual e artesanal; por outro, a
forma como na produção de bens culturais associados à indústria, existe uma forte tendência
para misturar trabalhos de natureza criativa com o trabalho organizacional ou de outra natureza
que não é particularmente, ou de todo, criativa.
3) O termo “objecto cultural” foi substituído por “produto cultural” para sublinhar a sua natureza de
mercadoria, sujeita às leis de mercado, mas também às características das necessidades
produtivas. Sabe-se, por exemplo, que a duração de uma ópera é de longe determinada e,
sobretudo, determinada de um modo diferente da de um poema épico (para a comparar com um
outro objecto cultural “de género”).
4) Por fim, fundi a figura do “receptor” com o universo mais amplo do “consumo” para sublinhar
que o comportamento do receptor mistura fortemente uma simples recepção com um acto
económico (a aquisição ou a compra no mercado) e, para além disso, mistura, de forma
irreversível, o uso com a assimilação (o que utilizo permanece na minha posse, tornando-se parte
do meu património cultural) o uso com a destruição(o que consumo desaparece e não pode voltar
a ser utilizado).
26
Eis um exemplo, retirado da história da introdução da fotografia em Itália em 1800:

1. É utilizada pelos pintores como instrumento para o seu próprio trabalho tradicional e procurada
pelo público para substituir, por um preço mais baixo, o retrato da alta burguesia.
2. Seguidamente, os pintores descobrem as novas possibilidades dos planos característicos da
fotografia e, de forma progressiva, em sintonia com a veracidade pictórica, absorvem para a
pintura o olhar fotográfico;

195
Da incorporação dos cinco movimentos no modelo do diamante nasce o
esquema 2, cuja forma de borboleta dá o nome ao modelo.
Procuraremos agora aplicar este modelo à difusão do telemóvel em Itália. Se
retomarmos as considerações desenvolvidas até aqui, não seria surpreendente
reconhecer dois ciclos. Mostramos, de facto, que a incorporação social progressiva se
desenrola em duas grandes etapas, relativas, respectivamente, à primeira e à segunda
metade dos anos 90.
O primeiro movimento no ciclo inicial, corresponde ao aparecimento no
mercado dos primeiros telefones ETACS. A primeira difusão dá-se, essencialmente,
entre as elites políticas e empresariais, como utilidade e símbolo de status. A este
propósito pode ser interessante desenvolver duas considerações. Em primeiro lugar,
ambos os grupos sociais envolvidos têm uma percepção análoga do tempo e da sua
optimização: o telefone móvel permite reduzir os momentos vazios do dia e estar
sempre disponível para o próprio trabalho. Em segundo lugar, é realmente significativo
que as elites como, por exemplo, a dos médicos, não tenham imediatamente aderido à
inovação. Na realidade, os médicos já se tinham habituado a uma tecnologia mais pobre,
o Pager, tendo optimizado a sua utilização. Em resumo, repetiu-se uma situação que já
tinha acontecido noutros contextos, como em França, quando o Minitel constituiu uma
resistência à difusão da Internet. A realidade é que, visto que o primeiro consumo é
mais conservador, a existência de tecnologias mais pobres, mas fortemente incorporadas
e funcionais à prossecução de determinados objectivos, é um obstáculo a qualquer
novidade tecnológica.

O segundo movimento consiste no estímulo da produção, por esta procura


inicial, e o terceiro movimento é uma crescente especialização dos fornecedores de
equipamentos e serviços cada vez menos inspirados na imitação da rede dos telefones
fixos. Neste contexto, inclui-se a rápida passagem da ETACS ao GSM, ou seja, do
analógico ao digital, com o conjunto de novas possibilidades que este último comporta.

3. O olhar fotográfico difunde-se pelas revistas ilustradas, ainda que, muitas vezes, as fotografias
continuem a servir apenas como modelos para os desenhos.
4. A possibilidade de utilização de tecnologias aplicadas à imprensa torna proporcional e incentiva
a substituição das ilustrações por fotografias.
5. A difusão da fotografia, enquanto tal, transforma-a em objecto usual, progressivamente aceite no
imaginário colectivo e no uso comum.
6. Nasce o moderno consumo da fotografia.

196
O quarto movimento consiste na primeira aceitação cultural do telemóvel.
Quando apareceu pela primeira vez, este objecto foi tratado com snobismo: os jornais
estavam repletos de comentários que estigmatizavam quem possuía estes aparelhos e,
em geral, descreviam a rede móvel como um acessório de luxo destinado a permanecer
limitado às elites, chegando a apresentá-la como uma forma de exibicionismo social27.
Em algumas revistas satíricas, foram também publicadas conversas privadas,
interceptadas, mas devidamente corrigidas para não violar a privacidade. Entre as
conversas registadas eram seleccionadas as mais estranhas ou mais banais, com o fim de
demonstrar o lugar comum segundo o qual o telemóvel era utilizado apenas por
aspiração de reproduzir um certo status. Pela metade dos anos 90, todavia, a hostilidade
generalizada começa a dar lugar a uma atitude mais humilde. Por outro lado, a
divulgação dos aparelhos modifica-lhes a imagem de instrumento de elite. É neste
momento que se pode dizer que ocorreu a incorporação cultural. Assim, nascem novos
hábitos telefónicos (quinto movimento) e um novo código: surgem os primeiros artigos
sobre o bom tom das conversas através da rede móvel. Nalguns locais públicos (igrejas,
hospitais, serviços) são definidas regras de “comportamento telefónico”. Nesta fase, o
telemóvel é já um objecto culturalizado e os utilizadores encontram-se, sobretudo, entre
os adultos do sexo masculino: já não estamos perante uma novidade tecnológica, mas
perante a reformulação do sistema dos media graças à presença de um novo actor.
O primeiro ciclo constitui, no seu conjunto, também o primeiro movimento do
segundo ciclo: o novo meio, de facto, desencadeia lentamente, pelo novo lugar que
ocupa no sistema, um novo fluxo de movimentos que, desta vez, surgem encaminhados
mais directamente pela amplitude dos processos de consumo.

O segundo movimento consiste na nova procura que se estende às camadas


juvenis (graças à descida de preços dos aparelhos e das tarifas, favorecida pela nova
concorrência no mercado) e estimula a produção.

A produção (terceiro movimento) sente-se assim estimulada para apresentar


novas ofertas, direccionadas, sobretudo, para o mundo juvenil: novos aparelhos,
naturalmente, mas também novos serviços ligados ao SMS e à ligação à rede
(informação, serviços especiais por ocasião de alguns eventos como o dia de São
Valentim, etc.).

27
Alguns deste comentários são efectuados no meu Piccolo libro del telefono, cit.

197
O quarto movimento é constituído pela incorporação crescente do telemóvel nos
processos comunicativos generalizados. Como testemunho, surge o recente filme sobre
a geração dos trintões italianos: L’ultimo bacio, de Gabriele Muccino28, no qual os
protagonistas utilizam a rede móvel como uma oportunidade já assimilada nos estilos e
formas de comunicação. Outros exemplos significativos são a crescente utilização do
SMS para participar em jogos radiofónicos e televisivos e o sucesso de alguns
concursos “literários” através do SMS.

O quinto movimento é, enfim, constituído pelas novas formas de consumo (por


exemplo, a dos pré-adolescentes) que demonstram a universalidade da rede móvel
italiana como ambiente comunicativo.
Poderá dizer-se, portanto, que o segundo ciclo vê a gradual naturalização do
novo medium, com a sua mudança, de tecnologia masculina e adulta, para tecnologia
universalista.
O desenho global dos dois ciclos, segundo o paradigma da borboleta, está
patente no esquema 3.

3.2 O paradigma da sinergia dos circuitos

Chegamos agora ao segundo paradigma que, na minha opinião, é útil para a


abordagem do tema em discussão sobre determinismo/indeterminismo tecnológico, e
assenta a sua relevância na complexidade da comunicação mediada pela tecnologia
(CMT). Este conceito é utilizado para designar instrumentos muito diversos, desde os
clássicos media broadcasting e new media mais interactivos, próprios das tecnologias
de informação e comunicação (TIC), até às formas de relações pessoais mediadas pela
tecnologia (telefone e Internet em função, por exemplo, de um chat ou do correio
electrónico). Uma observação atenta pode reconhecer em todas as formas da CMT três
circuitos sinergéticos:

- o circuito tecnológico que se refere ao processo nos “lugares de


invenção e da experimentação” (do laboratório do inventor de 1800 até aos
grandes departamentos de Investigação & Desenvolvimento das multinacionais
dos nossos dias), onde o objecto tecnológico é criado e construído como uma
oportunidade para a produção em grande escala, colocação no mercado e adesão

28
Itália, 2001.

198
da indústria que recebe o objecto como sendo produzível e investe nele
inserindo-o, desta forma, no fluxo do circuito comercial (v. esquema 4).

- o circuito económico, que relaciona esfera produtiva com o


consumo através da modulação da oferta no mercado e que, por sua vez,
encontra na resposta do consumo indicadores sobre a necessidade de adequação
da oferta (v. esquema 5);

- o circuito cultural, no qual os conteúdos que os intermediários


elaboram, por exemplo, dando-lhes uma forma particular ou design como um
artefacto cultural, são difundidos e assimilados na utilização, reelaborados e
restituídos aos próprios intermediários culturais (ver esquema 6).

A interdependência entre estes circuitos é indiscutível, mas as interacções entre


eles são muito complexas e dificilmente previsíveis. No caso do telemóvel em Itália,
podemos observar que a função de estímulo, é desenvolvida, nos dois ciclos que
descrevemos, por dois circuitos diferentes. Durante o primeiro ciclo prevalece o circuito
tecnológico; é, sem dúvida, a disponibilização dos novos tipos de aparelhos a
impulsionar o fenómeno, oferecendo ao consumo a possibilidade de diversificar as
próprias respostas. Assim, a inovação social deriva, de alguma maneira, de uma
oportunidade oferecida pelo circuito propriamente tecnológico e do aparecimento de
uma novidade tecnológica em sentido estrito. Trata-se de um fenómeno largamente
ilustrado pelos teóricos do chamado Technological Push29 e, que segundo eles, se repete
em cada caso de inovação. Em contrapartida, o segundo ciclo parece seguir uma
direcção muito diferente: neste caso, são os elementos económicos e culturais a
conduzir a inovação. A necessidade de alargamento do mercado ou o estímulo familiar à
entrada do mundo juvenil neste mercado são factores que estimulam a inovação no
campo tecnológico. Estamos muito mais próximos, portanto, das teses apoiadas pelos
teóricos do chamado Market Pull30.

O esquema 7 ilustra as duas direcções: as setas individuais indicam os fluxos do


primeiro ciclo; as setas duplas indicam os do segundo.

29
Sobre o tema consultar o debate revisto de P. Flichy em op.cit., cap.1
30
Cfr., por exemplo, J.M. Utterback, “Innovation in Industry and the Diffusion of Technology”, in
Science, 15.02.1974.

199
Em suma, parece ser possível afirmar que o caso da difusão do telemóvel em
Itália permite-nos verificar alguns importantes modelos capazes de descrever e
interpretar a passagem do desenvolvimento tecnológico à inovação social.
É claro que os modelos aqui ilustrados devem ser submetidos à prova noutros
terrenos da inovação tecnológica. Todavia, podemos colocar a hipótese de que – quando
em sinergia – possam dar algum contributo, até mesmo prospectivo, ao
desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação.

200
Ambiente Sóciocultural
Esquema 1

Mundo Produtivo Consumo

Produtos culturais

Esquema 2

Ambiente Sóciocultural
Inovação Tecnológica

Consumo
Mundo Produtivo

Produtos Culturais

201
Esquema 3

Inovação Tecnológica

Inovação Social

202
Objecto
Esquema 4
Tecnológico

Oportunidade
Inovação

Adesão

Produto
Esquema 5

Produção Oferta

Consumo

Objecto Cultural
Esquema 6

Difusão
Mediação

Assimilação

203
Esquema 7

Objecto

Tecnológico

Inovação Oportunidade

Adesão

Produto

Produção Oferta

Consumo

Objecto Cultural

Difusão
Mediação

Assimilação
204
A Internet e a Sociedade em Rede
Manuel Castells

Introdução
A Internet é hoje o tecido das nossas vidas. Não é o futuro. É o presente. A Internet é
um meio totalmente abrangente, que interage com o conjunto da sociedade e, por
isso, apesar de tão recente na sua forma societal (como se sabe, a Internet foi-se
esboçando, nos últimos trinta e um anos, a partir de 1969. Mas, tal como a
entendemos agora, constituiu-se em 1994, a partir da existência de um Browser, na
World Wide Web), não é necessário explicá-la, porque já sabemos o que é a Internet.
Recordo simplesmente, para coerência da exposição, que se trata apenas de uma
rede de redes de computadores capazes de comunicar entre si. Tal tecnologia é muito
mais do que uma tecnologia. É um meio de comunicação, de interacção e de
organização social. Há pouco tempo, quando a Internet era ainda uma novidade,
considerava-se que, apesar de interessante, era, no fundo minoritária, para uma elite
de internautas ou de digerati, na designação internacional. Hoje, tudo mudou
radicalmente. Para recordar rapidamente a sua evolução, a primeira questão a colocar
diz respeito aos utilizadores da Internet. Em finais de 1995, eram nove milhões. Neste
momento, rondam os trezentos e cinquenta milhões em todo o mundo. As posições
conservadoras prevêem que, em meados de 2001, chegaremos a setecentos milhões.
E a dois mil milhões, no mínimo, entre 2005-2007. É verdade que tal número
representa apenas um terço da população do planeta, no entanto, isto significa que a
taxa de penetração da Internet nas sociedades mais desenvolvidas ronda os 75% a
80%.

De facto, em todo o planeta os núcleos consolidados de direcção económica, política e


cultural estão também integrados na Internet. Isto não resolve, de modo algum, os
problemas da desigualdade que mais adiante irei referir. No essencial, isto significa
que a Internet constitui já e sê-lo-á cada vez mais o meio de comunicação e de relação
fundamental no qual assenta uma nova forma de sociedade já existente e que
denomino de Sociedade em Rede. Apesar da sua importância, a Internet é tão recente

205
que pouco se sabe a seu respeito. E, nesta situação, quando há um fenómeno de
grande relevância social, cultural, política e económica pouco conhecido, gera-se todo
o tipo de mitologias e de atitudes exageradas. Creio que muitos intelectuais europeus
e espanhóis já entenderam, analisaram, criticaram e refutaram a Internet, assinalando
a priori todas as alienações que poderá criar. Recordo-me que, em 1995-97, participei
na comissão de peritos sobre a Sociedade da Informação, nomeada pela Comissão
Europeia. Essa comissão de quinze peritos, onde me encontrava obviamente em
absoluta minoria, tinha por objectivo procurar uma forma de minorar os efeitos
devastadores que a Internet poderia provocar na sociedade, na política e na cultura.
Uma reacção defensiva predominava. Face a um fenómeno de extraordinária
importância sobre o qual se tem um escasso conhecimento, surgiu uma extraordinária
mitologia. Por isso, procuro centrar a presente apresentação na evidência empírica.
Não obstante recorrer a alguns aspectos teóricos, procurarei sistematizar, com base
em dados empíricos, o que sabemos sobre a Internet em termos comparativos, o que
sabemos sobre o que é, hoje, a Internet. Sistematizarei os vários aspectos em dez
pontos.

1. Lições sobre a história da Internet


No primeiro ponto, incluo alguns elementos sobre a história da Internet. Não vou
contar-lhes a história da Internet, que presumo ser conhecida, ou que poderá
conhecer-se facilmente através da Internet, mas tão-só colher, através da análise da
história da rede dos últimos anos, os ensinamentos com valor analítico. A primeira
lição sobre a Internet decorre da interacção entre – curiosa combinação - a ciência, a
investigação universitária fundamental, os programas de investigação militar nos
Estados Unidos e a contracultura radical libertária. Analisarei os três aspectos
isoladamente. Assinalo simplesmente que o programa da Internet nasce como
programa de investigação militar, sem na realidade, ter tido qualquer aplicação militar.
Eis um dos grandes mitos. Não houve aplicação militar da Internet. Houve
financiamento militar, empregue pelos cientistas nos seus estudos informáticos e na
criação de redes tecnológicas. A estes se associou a cultura dos movimentos
libertários, contestatários que procuravam nela um instrumento de liberdade e de
autonomia face ao Estado e às grandes empresas. O quarto aspecto a considerar foi a
cultura empresarial que, vinte e cinco anos mais tarde, se encarregou de dar o salto
entre a Internet e a sociedade.

Segunda lição sobre a Internet: o mundo empresarial não foi, de modo nenhum, a
origem da Internet. A Internet não foi criada como um projecto de investimento

206
empresarial. Incluo aqui, um episódio revelador: em 1972, a primeira vez que o
Pentágono tentou privatizar aquilo que foi o antepassado da Internet, a ARPANET,
ofereceu o projecto gratuitamente à ATT para que o assumisse e desenvolvesse. A
ATT estudou-o e concluiu que esse projecto nunca poderia ser rentável e que não via
nenhum interesse na sua comercialização. Recorde-se que foi mais ou menos na
altura em que o presidente da Digital, uma grande empresa de informática, declarou
que não via nenhuma razão para que alguém quisesse um computador em sua casa,
ou poucos anos depois de Watson, o presidente da IBM, declarar que, no ano 2000,
existiriam apenas cinco computadores no mundo, e que seriam todos, obviamente,
IBM Mainframe. A origem da Internet não foi a empresa.

Terceira lição: A Internet evolui, desde o início, através de uma arquitectura


informática aberta e de livre acesso. Os protocolos centrais da Internet TCP/IP,
estabelecidos em 1973-78, são gratuitos e de livre acesso.

Quarta lição: os produtores da tecnologia da Internet foram fundamentalmente os seus


utilizadores. Ou seja, houve uma relação directa entre a produção da tecnologia por
parte dos inovadores mas, posteriormente, houve uma modificação constante de
aplicações e novos desenvolvimentos tecnológicos por parte dos utilizadores, num
processo de feedback e de retroacção constante que está na base do dinamismo e
desenvolvimento da Internet. O exemplo mais evidente da principal aplicação da
Internet é dado pelos inventores da ARPANET, o antepassado da Internet, que, na
realidade, não sabiam muito bem o que fazer com ela. A ARPANET foi criada,
inicialmente, para os seus utilizadores estabelecerem a comunicação entre os seus
centros de informação, entre os supercomputadores de que dispunham, mas fizeram-
no com a ideia de que, ao compartilhar tempo, poderiam obter uma capacidade maior
de utilização dos computadores. Porém, perceberam que tinham uma capacidade de
processamento informático maior do que necessitavam. Com isso, procuraram
encontrar outras potencialidades. Uma das aplicações que, quase por acaso,
desenvolveram e que se converteu no principal uso da Internet a partir de 1970, ano
da sua criação, é hoje a mais utilizada na Internet: o correio electrónico. Com o intuito
de procurar outras aplicações, trocaram várias mensagens entre si, apercebendo-se
então que tinham encontrado o que procuravam, isto é, o correio electrónico. Há
inúmeros exemplos deste tipo de relação. Ainda hoje, os utilizadores modificam
constantemente a tecnologia e as aplicações da Internet. Eis uma velha história da
tecnologia. Foi também o caso do telefone. A história social do telefone nos Estados
Unidos (investigada, em particular, por Claude Fischer) mostra que o telefone foi
inventado com outros propósitos, mas a sua apropriação por parte dos utilizadores

207
acabou por originar outras aplicações. No entanto, com a Internet fez-se muito mais,
porque a flexibilidade e a ductilidade desta tecnologia permite o efeito de retroacção
em tempo real.

Quinta lição sobre a história da Internet: Ao contrário da muito difundida opinião de


que a Internet é uma criação norte-americana, a Internet desenvolveu-se, desde o
princípio, a partir de uma rede internacional de cientistas e técnicos que cooperam na
partilha e desenvolvimento de tecnologias, mesmo no período em que a Internet
estava no Departamento de Estado Americano. A tecnologia chave da Internet, o
packet switching, foi criada, simultaneamente e, durante muito tempo, sem qualquer
comunicação entre si, por Paul Baran da Rand Corporation na Califórnia e por Donald
Davis da National Physics Laboratory na Grã-Bretanha. Portanto, a tecnologia chave
desenvolveu-se paralelamente na Europa e nos Estados Unidos. O desenvolvimento
dos protocolos TCP/IP efectuou-se com Vinton Cerf, nos Estados Unidos, em estreita
colaboração com Gérard Lelan do grupo Francês Cyclades. O caso mais interessante
é o da World Wide Web, programa de browser que permite a navegação que hoje
todos praticamos, criada por Tim Berners-Lee, um Britânico, que o inventou
trabalhando voluntariamente, nos seus tempos livres, no CERN de Genebra. Por outro
lado, o desenvolvimento da Internet com base em redes livres comunitárias, que
geraram todo um conjunto de novas aplicações como as conferências, os boletins ou
as listas de correio electrónico, não provêm do Departamento de Defesa, mas de
grupos libertários organizados através e em torno das redes da Internet. Desde o
princípio– desde 1978 e 1980, altura do aparecimento da USENET- estes grupos
foram de âmbito internacional, na medida em que a ARPANET pertencia ao governo
norte-americano. O desenvolvimento do que acabaria por ser a Internet na sua
vertente libertária e de base exigia um carácter muito mais internacional, na medida
em que só pelas fronteiras governamentais se poderia designar a ARPANET, núcleo
central da Internet, como especificamente norte-americana.

Sexta lição: A Internet é, desde a sua constituição, autoregulada por uma rede informal
de indivíduos que se ocupam do seu desenvolvimento sem grande interferência por
parte do Governo. Pouca importância foi dada à Internet, criando-se uma espécie de
clube aristocrático, meritocrático, que, todavia hoje, gerou instituições absolutamente
únicas. O governo da Internet está, hoje, nas mãos de uma sociedade de carácter
privado apoiada pelo Governo norte-americano e por Governos internacionais,
chamada ICANN –por certo, no seu comité executivo há gente de Barcelona e da
Politécnica- e que tem, entre outras coisas, a particularidade de eleger o seu conselho
de administração executivo por votação global, contando para isso com a participação

208
de qualquer pessoa que queira juntar-se à ICANN, através do correio electrónico.
Neste momento está a terminar uma votação em que 165 000 pessoas, oriundas de
todas as partes do mundo, votaram uma lista aberta de candidatos. Esta autoridade é
a que, em princípio, distribui os domínios, estabelece protocolos, etc.

E por fim, a última observação a fazer sobre a história da Internet diz respeito ao
acesso aos seus códigos, ou melhor, o acesso aos códigos de software que faz
funcionar a Internet. O acesso tem sido e continua a ser aberto, o que está na base da
capacidade de inovação tecnológica constante que se desenvolveu na Internet.
Mencionei anteriormente o TCP/IP, porém, recorde-se que também o UNIX é um
código aberto que permitiu o desenvolvimento da USENET News, a rede alternativa da
Internet. A world wide web é aberta. O Apache, que é o programa de software que
hoje gere mais de dois terços dos servidores da world wide web a nível mundial, é
igualmente um programa de código aberto. É também o caso do Linux, apesar deste
ser fundamentalmente para as máquinas UNIX através das quais funciona a Internet.

Estas reflexões sobre a história da Internet permitem perceber em que medida


constitui um novo tipo de tecnologia na sua forma de organização. A célebre ideia de
que a Internet é incontrolável, livre etc., reside na tecnologia. Esta foi concebida, ao
longo da sua história, com essa intenção. É um instrumento de comunicação livre,
criado de forma múltipla por pessoas, sectores e inovadores que queriam que assim o
fosse. Nesse sentido, importa perceber que as tecnologias são o produto do seu
processo histórico de constituição, e não simplesmente da sua concepção tecnológica
original.
2. A geografia da Internet

Passemos agora ao segundo ponto da minha exposição. Aplicando um modelo


clássico utilizado no ensino, iniciei a exposição com a história da Internet. Irei agora
prosseguir com a geografia. Qual a geografia da Internet? A Internet tem dois tipos de
geografia: a dos utilizadores e a dos fornecedores de conteúdo.

A geografia dos utilizadores caracteriza-se hoje por ter um alto nível de concentração
no mundo desenvolvido. Por conseguinte, as taxas de penetração da Internet rondam
os 50% da população nos Estados Unidos, na Finlândia e na Suécia, os 30%-35% na
Grã-Bretanha e os 20-25% na França e na Alemanha. De seguida, vem a Espanha
com 14% e a Catalunha entre 16-17%. Em todo o caso, o grupo de países da OCDE,
os países mais ricos, estaria, neste momento, entre os 25-30%, enquanto que todo o
planeta está abaixo dos 3%. Se analisarmos o caso africano e do sul da Ásia, falamos
de menos de 1% da população. Por um lado, existe uma grande disparidade de

209
penetração da Internet no mundo, por outro lado, as taxas de crescimento por toda a
parte, exceptuando a África subsahariana, são muito elevadas, o que significa que
também no mundo subdesenvolvido os núcleos centrais estarão conectados à Internet
dentro de cinco a sete anos. Ora bem, essa assimetria geográfica tem consequências
a nível da intervenção no conteúdo, estrutura e dinâmica da Internet, gerando uma
disparidade de usos, uma vez que os utilizadores são quem define o tipo de
aplicações e desenvolvimento da tecnologia.

No que respeita à geografia dos fornecedores de conteúdos, há um facto que importa


ressaltar. Supunha-se que, inicialmente, as tecnologias de informação e de
telecomunicações permitiriam a qualquer um localizar-se em qualquer lugar e aceder,
a partir daí, ao mundo inteiro. A evidência empírica demonstra-nos o contrário. Há uma
concentração muito maior da indústria fornecedora de conteúdos da Internet, bem
como de tecnologia da Internet, do que de qualquer outro tipo de indústria. Aquela
concentra-se fundamentalmente nas principais áreas metropolitanas dos principais
países do mundo. Um dos meus alunos, Mathew Zook, que está a terminar a sua tese
de doutoramento, apresenta o primeiro mapa mundial sistemático das empresas de
conteúdos da Internet. De acordo com a sua análise, estas empresas estão totalmente
concentradas nas principais áreas metropolitanas. A razão é muito simples. Na medida
em que a tecnologia permite a localização e distribuição a partir de qualquer parte, o
essencial para produzir conteúdos na Internet é a posse de informação e
conhecimento. Ora os detentores dessa informação e desse conhecimento estão
concentrados sobretudo nos grandes centros culturais e grandes áreas metropolitanas
do mundo. No caso Espanhol, obviamente Barcelona e Madrid, por esta ordem,
representam mais de três quartos das empresas fornecedoras de conteúdo da Internet
existentes no país, e a tendência acentua-se.

Também no aspecto especificamente geográfico, recordo a relação entre o


desenvolvimento da Internet e as formas de telecomunicações interactivas, por um
lado, e o desenvolvimento das formas urbanas, por outro. Também aqui há um
aparente paradoxo: pensava-se que a Internet e as tecnologias de informação podiam
contribuir para o desaparecimento das cidades, ao ponto de todos podermos trabalhar
a partir das nossas montanhas, dos nossos campos, das nossas aldeias. Na realidade,
possuímos actualmente a maior taxa de urbanização da história da humanidade.
Estamos em vias de chegar aos 50% de população urbana no planeta. No ano 2005
estaremos nos dois terços e, até ao final do século, nos três quartos. Ou seja, cerca de
80% da população do planeta estará concentrada em áreas urbanas. Essa
concentração ficará a dever-se, sobretudo, à concentração metropolitana em grandes

210
regiões. Verifica-se que a população se concentra em grandes centros de actividade e
de difusão da informação, e dentro desses grandes centros, regista-se uma difusão
interna num tipo de processo de extensão espacial, porque a Internet permite, por um
lado, conectar metrópole a metrópole e, por outro, dentro da metrópole, conectar
escritórios, empresas, residências e serviços, numa área muito extensa numa
perspectiva espacial. Concretamente, a ideia de que todos passaríamos a trabalhar a
partir da nossa residência é refutada do ponto de vista empírico. A Internet permite
algo distinto: trabalhar a partir de qualquer lugar. Não é o teletrabalho que se está a
desenvolver. Tomando como referência os dados relativos à Califórnia, o lugar mais
avançado nesse sentido, se aplicarmos o conceito operativo de teletrabalho,
observamos que as pessoas que trabalham pelo menos três dias por semana em sua
casa não chegam aos 2%, e dessas, metade não tem, surpreendentemente,
computador em casa. Não trabalham via Internet, trabalham via telefone, são quem faz
as chamadas que nos maçam à hora do jantar. O que a Internet permite é trabalhar a
partir de casa, e o desenvolvimento da Internet móvel e do telefone móvel permite,
neste momento, trabalhar nos transportes, em viagem, no local de trabalho, etc.

O desenvolvimento geográfico que a Internet possibilita é o escritório móvel, o


escritório portátil, a circulação do indivíduo sempre conectado à Internet em distintos
pontos físicos do espaço. Não podemos ainda falar de teletrabalho, uma vez que a
evidência empírica desfaz os mitos toflerianos. Por isso, nunca faço previsões, porque
acabamos sempre por nos enganar. Eu trabalho sobre os dados existentes que
habitualmente provêm por outra via, precisamente porque a sociedade se apropria das
tecnologias, adaptando-as às suas necessidades.

3. O fosso digital

O terceiro ponto da análise que passo a enunciar diz respeito ao fosso digital, ou seja,
à ideia de que a Internet está a criar um mundo dividido entre os que têm e os que não
têm Internet. O que sabemos sobre esta questão? Por um lado, é inegável a existência
de uma grande desigualdade no acesso. Observamos que aquelas pessoas que não
têm acesso à Internet estão numa situação cada vez mais precária face ao mercado
de trabalho. Observamos também que as regiões não conectadas à Internet perdem
competitividade económica internacional e, por conseguinte, constituem focos
crescentes de pobreza incapazes de se juntar ao novo modelo de desenvolvimento.
Mas, por outro lado, assistimos também a um desenvolvimento considerável da
conectividade. Volto a chamar a atenção para as elevadas taxas de crescimento da

211
Internet, por todo o lado, e para o que hoje se designa de fosso digital (digital divide)
nos Estados Unidos. Este fosso digital, que é, fundamentalmente, a falta de
conectividade no nosso tipo de sociedades, distinto do Terceiro Mundo, está a deixar
de ser um problema. Por exemplo, os dados que, nos Estados Unidos, assinalavam
uma menor utilização da Internet por parte dos negros, dos latinos e das mulheres
estão a mudar radicalmente. Um estudo que parece sério e sistemático sobre o
desenvolvimento da Internet em setes países altamente desenvolvidos, entre os quais
a Espanha não figura – Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Austrália, Canadá etc.-
levado a cabo pela Jupiter Communications há três meses, observou, pela primeira
vez, em finais de Maio deste ano que o número de mulheres utilizadoras da rede era
superior ao de homens. Nos Estados Unidos, verifica-se a mesma tendência entre os
negros e os latinos. A taxa de penetração da Internet entre os universitários negros e
latinos e os estudantes não negros e não latinos é a mesma. É claro que há menos
negros e latinos na universidade, mas esta é mais uma questão do foro educacional
do que de discriminação sistemática com base étnica. Portanto, a conectividade como
elemento de divisão social está a diminuir rapidamente. Mas, o que se observa nestas
pessoas que estão conectadas, sobretudo estudantes e crianças, é o aparecimento de
um segundo elemento de divisão social muito mais importante do que a conectividade
técnica: a capacidade educativa e cultural para utilizar a Internet, uma vez que toda a
informação e o conhecimento, ou seja, o conhecimento codificado se encontra na
rede. Contudo, esse conhecimento não é suficiente, tornando-se necessário saber
onde está a informação, como procurá-la, processá-la e transformá-la em
conhecimento específico. Essa capacidade de aprender a aprender, essa capacidade
de saber o que fazer com o que se aprende é socialmente desigual e está ligada à
origem social, familiar, bem como ao nível cultural e educacional. É aí que reside hoje,
tomando por referência a evidência empírica, o fosso digital.

4. A Internet e a Nova Economia

O quarto ponto da minha exposição examina a relação entre a Internet e a nova


economia. O essencial aqui é o facto de a nova economia não ser a das empresas que
produzem ou concebem a Internet, mas das empresas que funcionam com e através
da Internet. Essa é a nova economia, e é o que está a acontecer em todo o mundo. É
certo que o desenvolvimento das utilizações da Internet começa primeiro nas
empresas de alta tecnologia e empresas de concepção de aplicações da Internet e de
programas de software, que o aplicam à sua própria organização, difundindo-se
rapidamente, a partir daí, a todo o tipo de empresas, criando um novo modelo de

212
organização empresarial. Fala-se muito do comércio electrónico. É uma questão
importante, mas foca-se demasiado a ideia da venda no comércio electrónico, o
chamado business to consumers B2C, a venda aos consumidores. O comércio
electrónico representa apenas 20% do total das transacções comerciais electrónicas
na Internet, sendo 80% efectuadas de empresa a empresa, numa sequência de
acordos comerciais entre as empresas, acentuando-se esta tendência neste momento
(B2B). Com efeito, o volume cresce e, ao crescer o volume global, também cresce o
número de transacções relativas aos consumidores. O que cresce muito mais, em
termos absolutos e relativos, é o volume da relação entre empresas. O que é que está
a acontecer? Praticamente todo o trabalho interno da empresa, de relação com os
fornecedores e com os clientes está a ser efectuado através da rede. Trata-se do
modelo que desenvolvi, designado por Modelo Cisco Systems, nome da empresa
produtora de 85% dos equipamentos de telecomunicações do backbone da Internet no
mundo, de routers e switchers (comutadores). Esta empresa efectua 90% das vendas
e das transacções através da sua página web, dos fornecedores da empresa e dos
seus clientes, limitando-se assim a dispor da engenharia, a web, actualizando-a em
tempo real, garantindo a qualidade e organizando a rede de fornecedores. É a maior
empresa industrial do mundo, e a segunda empresa de maior valor de mercado no
mundo, 400.000 milhões de dólares, mais de cinco vezes o valor da General Motors,
quando na realidade só conta com trinta e cinco mil pessoas, e é uma empresa que
produz máquinas, computadores, possuindo apenas uma fábrica. É quase
inteiramente virtual, no entanto, tem escritórios com pessoas que fazem funcionar a
máquina virtual. Não produz nada, mas da sua actividade sai 85% do equipamento
mundial que faz funcionar a Internet.

Há muitos outros exemplos. Caso lhes interesse, posso referir exemplos sobre a maior
empresa de construção de edifícios de S. Francisco, a WebCor, cujo centro é também
um web site onde os utilizadores se relacionam com os desenhadores, os arquitectos,
os construtores e os empregados municipais. Tudo isto está na Web e todos os
passos que uma empresa de construção tem que dar para levar a cabo uma
construção são dados na Web. Com esta tecnologia, a empresa conseguiu reduzir
para metade o tempo de produção de um edifício, com um terço de gestores,
reduzindo os custos em 50%.

Como pode imaginar-se, as outras empresas de construção começaram rapidamente


a entrar na rede. O exemplo mais característico seria a Zara. A Zara é uma empresa
Internet que, neste momento –estou a falar-lhe da Zara onde compra as suas roupas-
conta com 2001 armazéns no mundo, em trinta e cinco países diferentes. Nesses

213
armazéns, cada vendedor possui uma pequena máquina onde regista cada compra
efectuada com base numa série de dados, com os quais o director da cada armazém
elabora um relatório semanal que envia através da rede para a sede central na
Corunha, onde 200 desenhadores processam por computador e determinam as
tendências do mercado, enviando directamente às fábricas que cortam os modelos e
produzem a roupa. Com este sistema, inteiramente baseado na comunicação
electrónica e processado pela Internet, a Zara reduziu a duas semanas, o tempo
necessário para redesenhar um produto, a partir do momento em que decide colocá-lo
no mercado, em qualquer parte do mundo. O modelo Benetton, que projectou fazer o
ciclo em seis meses, foi ultrapassado pela GAP, que o aplicou em dois meses, a partir
de outra rede, e a Zara aplicou-o em duas semanas, pelo que está a ganhar
rapidamente quotas de mercado em todo o mundo e, neste momento, o valor de
capitalização de mercado da empresa matriz da Zara, uma empresa familiar, é de
2.000 milhões de dólares. Poderíamos continuar a dar muitos exemplos, mas creio
que já se percebeu a ideia. Em primeiro lugar, a Internet está a transformar o modelo
de empresa na nossa economia. O que foi o fordismo, a grande empresa industrial
baseada na produção estandardizada e em linha de montagem, é hoje a capacidade
de funcionar em rede, de articular directamente o mercado, consumidores e
fornecedores, e organização interna da empresa online em todas as tarefas.

A segunda mudança produzida pela Internet, ou melhor, a transformação do


funcionamento do capital constitui a base material sobre a qual se produz essa
mudança. Muito esquematicamente, também aqui a primeira transformação é que o
centro da economia global são os mercados financeiros globais, que funcionam
mediante conexões entre computadores. Tecnicamente falando, isto não é a Internet,
porque não se baseia nos seus protocolos, mas é uma rede de redes de
computadores que rapidamente está a convergir com a rede Internet. Esta rede subjaz
à articulação, à interdependência e, também, à volatilidade do mercado global
financeiro. Em segundo lugar, a Internet permitiu o desenvolvimento vertiginoso da
transacção financeira electrónica; o desenvolvimento dos mercados financeiros,
mercados bolsistas como o Nasdaq, que são mercados electrónicos sem um lugar
físico no espaço; o desenvolvimento dos principais e futuros mercados do mundo
como o mercado suíço-alemão Eurex, que é inteiramente electrónico, o Liffe em
Londres e o Matif na França; o desenvolvimento de redes de brokers, redes de
correctores de bolsa como Instinet, que, hoje, canaliza algumas das transacções mais
importantes do mundo; o desenvolvimento de empresas correctoras como a Charles
Schwabb, que é maioritariamente electrónica. Presentemente, a Bolsa de Nova Iorque

214
(NewYork Stock Exchang) planeia a criação de uma bolsa mista, que seja
simultaneamente electrónica, virtual e física. Na Europa, em torno do projecto de
fusão, actualmente previsto, entre as bolsas de Frankfurt e de Londres, que prefigura a
fusão das bolsas Europeias num ou dois centros bolsistas, está a planear-se a ligação
do Nasdaq americano com um equivalente de Frankfurt e um equivalente japonês,
procurando criar um Nasdaq global inteiramente electrónico. Assim, as acções das
nossas empresas, de todas as empresas, tendem e tenderão a negociar-se cada vez
mais em termos de interacções electrónicas, puramente electrónicas, e não físicas, o
que gera um novo tipo de transacção económica, uma velocidade, uma complexidade,
uma dimensão do mercado cada vez maior, uma capacidade de reacção dos
investidores quase instantânea e a dependência de mecanismos de cálculo, de
modelos matemáticos de previsão, activados a uma velocidade electrónica mediante
conexões na Internet. Isto modifica os mercados financeiros, as finanças mundiais e,
por conseguinte, a nossa economia.

Um terceiro elemento que pretendia assinalar é o facto de a economia da Internet


estar a alterar os métodos de valorização económica. O desenvolvimento das
empresas da Internet e das mais inovadoras que se vão lançando por essa via baseia-
se, sobretudo, na existência de capital- risco que permite financiar ideias antes da
concepção do produto. É assim que o sistema funciona: um inovador tem uma ideia
concebida, geralmente não sobre a Internet mas através do que pode fazer-se com a
Internet; vende a ideia a uma empresa de capital de risco que proporciona os fundos
iniciais para o arranque; com esse capital de risco compra-se talento e instala-se na
Internet; com isso começa a produzir-se pouco, sem ganhos, vende-se em oferta
pública e o mercado valoriza-o ou não. Quando não valoriza, a empresa desaparece e
volta a tentar; quando valoriza, com essa valorização do mercado, que não se produz
em torno de benefícios, mas de uma promessa, é quando há recursos para passar
dessa promessa de inovação a uma inovação material, a uma produção material que
volta a sair para o mercado e a gerar valor. Por outras palavras, cria-se valor a partir
da inovação com base na valorização do mercado de iniciativas que se desenvolvem
em termos de empresa. Passámos a uma economia em que a expectativa de criação
de benefícios através da empresa é substituída pela expectativa de criação de novo
valor no mercado financeiro. E isso depende fundamentalmente da capacidade de
relação com esse cálculo das empresas Internet. O exemplo da indústria da Internet
está, neste momento, a ser seguido pelo conjunto dos outros sectores industriais. Isso
gera uma grande volatilidade financeira, mas ao mesmo tempo gera um extraordinário
aumento de riqueza e de produtividade. Há empresas sobreavaliadas e outras menos,

215
mas, na realidade, a tendência é ascendente e os ciclos económicos sucedem-se.
Recorde-se que, por muito que tenham diminuído as acções de empresas
tecnológicas, o Nasdaq está todavia 35% acima do seu valor de há um ano, quando o
Dow Jones, o índice equivalente da economia tradicional, está em -1,2% para o
mesmo período. A capacidade de criação de valor com base num novo modelo de
antecipação de expectativas adveio também da economia da Internet.

5. A sociabilidade na Internet
Permitam-me mudar rapidamente para o quinto ponto da minha apresentação, que é a
problemática com mais carga ideológica da análise da Internet, a problemática da
sociabilidade, da interacção social ou individual ou das comunidades virtuais da
Internet. Como é sabido, esta problemática está dominada pelas fantasias dos
futurólogos e de jornalistas mal informados, embora haja jornalistas muito bem
informados. Falou-se aqui sobre a questão de a Internet conduzir ao isolamento, à
depressão, ao suicídio, a todo o tipo de coisas horríveis ou, pelo contrário, ao facto de
a Internet ser um mundo extraordinário, de liberdade, desenvolvimento, no qual todos
querem estar, no qual todos formam uma comunidade. Que conhecimento empírico
temos sobre isto? Sabemos bastante a este respeito. Sabemos, por exemplo, através
de um estudo que a British Telecom acaba de realizar, um grande estudo de
observação realizado no decurso de um ano numa série de lugares onde se utilizava a
Internet, que a Internet nada muda. As pessoas continuam a fazer na Internet o que
faziam antes, e aqueles que estavam satisfeitos estão muito melhor, aqueles que
estavam mal, assim continuam. Aqueles que tinham amigos, continuam a tê-los na
Internet e, quem os não tinha, tão pouco os terá. É um estudo intelectualmente muito
conservador, mas cito-o por ser muito espectacular, designa-se “Nada acontece aqui”.
Mas, acontece. A Internet é uma ferramenta que desenvolve, mas não muda os
comportamentos, a não ser os comportamentos que se apropriam da Internet e,
portanto, amplificam-se e potenciam-se a partir daquilo que são.

Isto não significa que a Internet não seja importante. Não é a Internet que altera o
comportamento, mas o comportamento que altera a Internet. Estudos de painel, como
os que realiza o principal investigador de sociologia empírica das comunidades da
Internet, Barry Wellman da Universidade de Toronto, mostram a realidade da vida
social na Internet. Os resultados demonstram que as comunidades virtuais são
também comunidades, isto é, geram sociabilidades, relações e redes de relações
humanas, não sendo, porém, idênticas às comunidades físicas. Isto parece ser uma
verdade adquirida, mas é necessário investigá-lo e mostrá-lo. As comunidades físicas

216
têm determinadas relações e as comunidades virtuais têm outro tipo de lógica e outro
tipo de relações. Que tipo de relações? Qual a lógica específica da sociabilidade
online? O mais interessante é a ideia de que são comunidades pessoais, comunidades
baseadas em interesses individuais e nas afinidades e valores das pessoas. Nas
nossas sociedades, onde se desenvolvem projectos individuais que procuram dar
sentido à vida a partir do que eu sou ou quero ser, a Internet permite essa conexão
ultrapassando os limites físicos do quotidiano, tanto no local de residência como no
local de trabalho, gerando, portanto, redes de afinidades. Por exemplo, as
investigações no Canadá e nos Estados Unidos mostraram que, para além da Internet,
os indivíduos tinham, em média, não mais de seis relações íntimas fora da família e,
ao mesmo tempo, centenas de relações pouco próximas, o que, nos últimos dez anos,
se tomou como um dado adquirido. Assim, a Internet propicia o desenvolvimento de
laços superficiais, e não de laços fortes. Como media, é excelente para preservar e
reforçar os laços fortes existentes a partir da relação física. Enfim, o que importa é que
isto está validado empiricamente através da síntese dos estudos realizados. Neste
sentido, está a desenvolver-se uma tendência para a diminuição da sociabilidade de
base comunitária física tradicional. Há uma tendência para a diminuição da
sociabilidade baseada no bairro. Há um decréscimo da vida social no trabalho, no
mundo em geral. O que acontece é que a sociabilidade se está a transformar mediante
o que alguns designam de a privatização da sociabilidade, que é a sociabilidade entre
pessoas que constróem laços electivos não com os que trabalham ou vivem num
mesmo lugar, fisicamente coincidentes, mas pessoas que se procuram: eu quero
encontrar alguém que goste de sair de bicicleta comigo, mas tenho que procurar
primeiro. Por exemplo, como criar um clube de ciclismo? Como criar um clube de
pessoas que se interessem por espeleologia? É esta formação de redes pessoais que
a Internet permite desenvolver mais fortemente.

Quando Wellman procurou medir a influência da Internet sobre as outras


sociabilidades, encontrou algo que contradiz os mitos sobre a Internet. É o que
designou de “quanto mais, mais”, ou seja, quanto mais rede social física se tem, mais
se utiliza a Internet; quanto mais se utiliza a Internet mais se reforça a rede física que
se tem. Isto é, há pessoas e grupos de forte sociabilidade, existindo uma
correspondência entre a sociabilidade real e virtual. E há pessoas de fraca
sociabilidade, em que também é correlativa a fraca sociabilidade real e virtual. O que
acontece é que, nos casos de fraca sociabilidade real, há alguns efeitos
compensatórios através da Internet, utilizando-se a Internet para sair de um
isolamento relativo. Alguns estudos circunscrevem-se a esta correlação, constatando

217
que se trata de pessoas que utilizam muito a Internet, que estão isoladas socialmente,
concluindo que a Internet provoca o isolamento. O processo de causalidade é distinto,
a Internet utiliza-se como meio para aquelas pessoas isoladas, mas tem
fundamentalmente um efeito cumulativo entre sociabilidade real e sociabilidade física -
porque o virtual também é real - e sociabilidade virtual. Um outro tipo de estudos,
como os realizados por Marcia Lipman, em Berkeley, que estudou centenas de
comunidades virtuais, evidenciam outro dado fundamental, que é o facto de as
comunidades virtuais serem tanto mais instáveis, quanto mais ligadas a tarefas, a
fazer coisas ou a perseguir interesses comuns.

A ideia de que a Internet é um lugar onde as pessoas falam de qualquer banalidade,


contam anedotas, etc, é absolutamente superficial. Isto é residual, uma vez que são
poucas as pessoas que têm tempo para o fazer. O que acontece é que as histórias de
falsas identidades, em que as pessoas se disfarçam de qualquer coisa, em que
revelam o que não são, fazem as delícias dos sociólogos pós-modernos. É verdade
que isto existe, mas acontece, sobretudo, com os adolescentes. E o que fazem os
adolescentes em geral? Criam identidades, experimentam identidades, criam uma
contracultura própria de experimentação identitária. Também o fazem na Internet.
Mas, analisando o conjunto da sociedade, para além das estratégias identitárias dos
adolescentes, observa-se de facto uma utilização instrumental da Internet para realizar
tarefas políticas, pessoais ou de interesses concretos, sendo o que realmente gera os
níveis de interacção mais fortes. Portanto, mais do que a emergência de uma nova
sociedade totalmente online, o que observamos é a apropriação da Internet por parte
de redes sociais, formas de organização laboral, tarefas, bem como o estabelecimento
online de muitos laços superficiais, demasiado complicados para se conservarem
offline. Por exemplo, o desenvolvimento de organizações de entreajuda entre pessoas
mais idosas é, neste âmbito, um dos elementos mais interessantes: a Seniornet, nos
Estados Unidos, é uma das redes mais populares de informação, de ajuda, de
solidariedade, de reforço de uma vivência partilhada, etc. O mesmo acontece com as
redes de informação religiosa e de partilha de valores religiosos ou com as redes de
mobilização social.

6. Os movimentos sociais na Internet

No sexto ponto, foco a relação da Internet com os movimentos sociais. O que


sabemos a este respeito tem sido bastante analisado nos meios de comunicação: a
maior parte dos movimentos sociais e políticos do mundo de todas as tendências

218
utilizam a Internet como forma privilegiada de acção e de organização. Isto apenas
nos diz que a Internet é um instrumento. Mas, qual a sua especificidade? O que
confere especificidade à mobilização social, a partir do momento em que esta é
realizada pela Internet? Bom, há três aspectos que são fundamentais na interacção
entre a Internet e os movimentos sociais. O primeiro aspecto tem a ver com o facto de
se assistir na sociedade, fora da Internet, a uma crise das organizações tradicionais
estruturadas e consolidadas como os partidos, as associações de orientação
directamente política, e para além disso à emergência de actores sociais,
fundamentalmente, a partir de coligações específicas sobre objectivos concretos:
vamos salvar as baleias, vamos defender tal bairro, vamos propor novos direitos
humanos no mundo, vamos defender os direitos da mulher, não através de uma
associação, mas com campanhas concretas. Em geral, verifica-se na sociedade uma
mudança dos movimentos sociais organizados para os movimentos sociais em rede,
com base em coligações que se constituem em torno de valores e projectos. A Internet
é a estrutura organizativa e o instrumento de comunicação que permite a flexibilidade
e a temporalidade da mobilização, mantendo ao mesmo tempo um carácter de
coordenação e uma capacidade de concentrar essa mobilização.

Segundo aspecto: os movimentos sociais na nossa sociedade desenvolvem-se, cada


vez mais, em torno de códigos culturais e valores. Há movimentos reivindicativos
tradicionais, mas os movimentos mais importantes – meio ambiente, ecologismo,
mulheres, direitos humanos- são movimentos de valores. Neste sentido, dependem,
sobretudo, da capacidade de comunicação e da capacidade de levar a cabo o
recrutamento de apoios e de estímulos, mediante o apelo aos valores, aos princípios e
às ideias. São movimentos de ideias e de valores. Pois bem, a Internet é fundamental,
porque podem colocar-se mensagens como esta: “aqui estou, este é o meu manifesto,
quem está de acordo comigo?” e “o que podemos fazer?” A transmissão em tempo
real de ideias num espaço muito amplo permite a união e a agregação em torno de
valores. Neste sentido, uma das ideias mais falaciosas sobre a Internet é a de um
famoso cómico publicada no New Yorker, há anos, de dois cães no computador, em
que um diz ao outro: “vês, na Internet ninguém sabe que és um cão”. Pois então
vejam. Na Internet, sabe-se que és um cão, porque se quiseres organizar os cães na
Internet e se te apresentas como gato, os gatos organizam-se. Deste modo, a
bandeira de organização, de comunicação e de afirmação de um certo valor tem que
ser consolidada em termos do que se quer ser, porque os movimentos sociais
constituem-se à volta daquilo que dizem ser, não se constituem de forma manipulada,

219
atraindo alguém para o que não é. Isso pode ser uma manipulação, mas em geral, as
manipulações não prosperam.

O terceiro aspecto específico aos movimentos sociais tem a ver com o facto de o
poder se estruturar, cada vez mais, em torno de redes globalizadas e de as pessoas
viverem e edificarem os seus valores, os seus movimentos de resistência e de
alternativa em sociedades locais. O grande problema que se coloca é como, a partir
do local, se pode controlar o global, como é que a partir da minha vivência e da
relação com o meu mundo local, que é onde me situo, onde vivo, posso opor-me à
globalização, à destruição do meio ambiente, ao massacre do Terceiro Mundo a nível
económico. Como se pode realizar tal tarefa? Pois bem, a Internet permite a
articulação de projectos alternativos locais mediante protestos globais, que acabam
por se radicar em algum lugar, por exemplo, em Seattle Washinggton, Praga, etc., mas
que se constituem, organizam e desenvolvem a partir da conexão à Internet, ou seja,
conexão global de movimentos locais e de vivências locais. A Internet é a conexão
global-local, constituindo a nova forma de controlo e de mobilização social na nossa
sociedade.

7. A relação da Internet com a actividade política organizada

O sétimo ponto da minha apresentação: a Internet também tem uma relação directa
com a actividade política organizada, tanto a nível partidário, como a nível de governos
de tipos distintos. Há aqui todo o tipo de projectos e de ideias. Em princípio, a Internet
poderia ser um extraordinário instrumento de participação de cidadania, um
instrumento de informação da classe política, dos governos e dos partidos aos
cidadãos e de relação interactiva. Poderia ser um ágora político sobre o qual escrevem
todos os futuristas. Ora bem, na prática, há algumas experiências interessantes de
democracia local, curiosamente local, como a Digital City, a cidade digital de
Amsterdão (hoje em séria crise), as redes de cidadania de Seattle, o programa
Iperbole em Bolonha (também em declínio, neste momento); mas, em geral, o que se
observa é que os governos, as administrações, os partidos políticos confundiram a
Internet com um painel de anúncios. De um modo geral, limitam-se a expor a
informação: aqui tem a nossa informação para que saiba o que fazemos e assim
poupa-me trabalho ou, se o desejar, diga-me a sua opinião. O que acontece é que não
se sabe o que se passa com essa opinião. Geralmente, há muito poucos exemplos
acerca da prática interactiva quotidiana entre o sistema político e os cidadãos.
Portanto, uma das dimensões de investigação que pretendo desenvolver relaciona-se

220
com a forma como a Internet pode permitir a desburocratização da política e superar a
crise de legitimidade dos governos que se desenvolve em todo o mundo, a partir de
uma maior participação dos cidadãos permanente, interactiva, e com uma informação
bidireccional constante. Na realidade, o que se observa é que isto não acontece.

Há um livro interessante que acaba de ser publicado sobre as relações entre a Internet
e alguns sistemas parlamentares que mostra, com base em estudos empíricos, que na
realidade todos os parlamentos têm um Web site, todos os partidos têm Internet em
todos os países desenvolvidos, mas são vias, insisto, unidireccionais de informação
para captar a opinião, converter simplesmente os cidadãos em votantes potenciais e
para que os partidos obtenham informação para saberem como ajustar a sua
publicidade. Neste sentido, eu diria que o problema não é a Internet. O problema é o
sistema político e, uma vez mais, temos um leitmotiv da apresentação que estou a
tentar transmitir, que é o de que a sociedade modela a Internet, e não o contrário.
Onde há mobilização social, a Internet converte-se num instrumento dinâmico de troca
social; onde há burocratização política e política estritamente mediática de
representação dos cidadãos, a Internet é simplesmente um painel de anúncios. Há
que mudar a política para mudar a Internet e, então, o uso político da Internet pode
reverter numa mudança da política em si mesma.

8. A privacidade na Internet

Muitos debates sobre a Internet, actualmente, enfocam a ideia dos efeitos da Internet
sobre a privacidade e sobre a capacidade de controlo da nossa vida íntima através da
Internet. Aqui há dois elementos: a relação governo-cidadãos e a relação privacidade-
Internet. Na relação governo-cidadãos, há um aspecto que preocupa muito os
governos: o facto de não poderem controlar a Internet. Há muitas razões, mas existe
uma muito mais decisiva que as demais. Pode argumentar-se se é tecnicamente
possível. Parece que não é tão fácil como alguns pensavam e, para o demonstrar,
cita-se sempre o caso de Singapura. Acabo de receber um estudo dos sociólogos de
Singapura que estudam a Internet que mostra, empiricamente, a actual incapacidade
do Governo de Singapura para controlar a Internet, devido à necessidade de abertura
ao exterior por razões económicas e financeiras. Naturalmente, a China, Singapura e
muitos outros países quiseram utilizar a Internet para os negócios, ao mesmo tempo
que não permitem o seu uso para a livre expressão dos cidadãos. Parece que, em
Singapura, esse controlo já não funciona. Na China funciona, porque, apesar de não

221
controlarem a difusão da informação na Internet, podem, contudo, procurar a pessoa
que recebeu ou difundiu a informação e prendê-la, o que é outra forma de controlo.
Como tal, a Internet parece difícil de controlar. Por outro lado, a razão fundamental
não é somente técnica, mas também institucional: nos Estados Unidos não pode fazer-
se, porque há várias decisões dos tribunais federais e, em particular, a que eliminou o
Communication Decent Act que Clinton apresentou em 1995 para censurar a Internet,
utilizando como argumento a pornografia infantil.

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos, declarou que existe, de facto, na Internet
todo o tipo de problemas, que na Internet a livre expressão conduz a excessos, e que
a Internet é o caos da expressão. Mas, passo a citar: “os cidadãos têm um direito
constitucional para o caos”. Eu creio que a ideia de um direito constitucional ao caos é
profundamente inovadora e faz com que, a partir desse momento, na medida em que
a Internet é uma rede global, e ao não haver controlo nos Estados Unidos, se procure
qualquer via para ultrapassar o obstáculo e poder expressar-se. Recorde-se que a
Internet está tecnicamente desenhada para interpretar qualquer censura como um
obstáculo técnico e reconfigurar a via de transmissão. Além de que os governos não
controlam a Internet – a única forma de fazê-lo seria desactivá-la, como fez o Irão, o
Afeganistão. Veremos o que irá passar-se com a Internet móvel. Apercebemo-nos,
assim, que há um problema muito mais profundo que o controlo dos governos sobre a
liberdade de expressão, que é o desaparecimento da privacidade num mundo onde
vivemos conectados à rede. Scott McNealy, que é um grande empresário de Silicon
Valley e foi o Presidente da Sun Microsystems no ano transacto, para que não o
incomodassem mais com este tema, fez uma declaração espectacular com a qual eu e
a maior parte das pessoas concorda: “privacidade na Internet? Esqueça isso. Já a
perdeu para sempre”. O que é que isso significa? Significa que qualquer coisa que
façamos na rede pode detectar-se electronicamente. O problema é saber quem está
interessado, como, quando, de que forma e como se faz, etc. Mas, existe a
possibilidade de fazê-lo. O FBI pode fazê-lo neste momento, já que desenvolveu um
novo programa, Carnivore, evidentemente com autorização judicial, mas, já se sabe,
isto pode ser efectuado por qualquer tipo de empresa que disponha do famoso cookie
no seu programa. Neste momento, se uma pessoa não quer fornecer o seu endereço
e as suas características a empresas que comercializam nesta área, tem que efectuar
uma verdadeira investigação, efectuar todo o tipo de cliques, sair de todo o tipo de
serviços, e praticamente isolar-se.

Nos Estados Unidos, já existem empresas que começam a comercializar a política. Há


uma empresa, a Aristotle, que desenvolveu este sistema para a campanha

222
presidencial actual a partir de informações obtidas em numerosos bancos de dados
comerciais. Elaborando perfis de personalidades e cruzando-os com padrões de votos
geográficos a níveis muito pequenos, de bairro, estabeleceu a tendência de voto
potencial para cento e cinquenta e seis milhões de cidadãos dos Estados Unidos. A
empresa está presentemente a vender a tendência de voto potencial aos vários
candidatos. Igualdade de oportunidades. Quem o compra, leva-o. Não é a espionagem
de um partido contra outro: é comercializar a intimidade política de cada um deles. A
União Europeia tem uma política muito mais restrita de protecção da privacidade, mas,
sem entrar demasiado em detalhes, a capacidade tecnológica da legislação Europeia
é muito débil. Há muitas formas de escapar a essa legislação. Por exemplo, a Yahoo
ou America on Line, fora das suas redes europeias, deixam de ser controladas pela
legislação europeia e, embora seja europeu, está conectado a uma rede global. E, se
qualquer empresa, qualquer portal deste tipo, dispuser de informação, pode vendê-la a
qualquer empresa europeia. O facto de estar numa rede global quer dizer que não há
privacidade. Este é um dos aspectos mais importantes. Recomendo-lhes a leitura de
um livro de Lessig sobre este tema que se chama Code. Neste livro, Lessig colocou
uma questão fundamental em que a privacidade aparece como essencial, isto é, o
debate sobre a capacidade de encriptação.

A encriptação permitiria a cada pessoa a possibilidade de determinar o seu código. A


encriptação é simplesmente um código que se autoconstrói e para o qual não existe
uma capacidade tecnológica de desencriptá-lo com métodos normais, só poderiam
fazê-lo os serviços secretos, trabalhando com computadores durante muito tempo. O
que acontece é que a encriptação foi proibida pelos governos, também nos Estados
Unidos, com o argumento de que os traficantes de drogas e outras pessoas sem ética
o poderiam utilizar para fazer os seus negócios através da Internet. Mas, de qualquer
forma, já fazem os seus negócios através da Internet e comunicam de inúmeras outras
formas. A encriptação seria realmente um sistema que permitiria às pessoas guardar a
sua informação, sem que outros pudessem aceder-lhe. A batalha da encriptação é,
neste momento, a batalha da privacidade.

9. A Internet e os Meios de Comunicação

Um último tema antes de concluir: a relação entre a Internet e a transformação da


comunicação através dos meios de comunicação. A Internet está a transformar
radicalmente os meios de comunicação, mas não pela convergência da Internet e
Televisão num mesmo meio tecnológico, a famosa caixa que terá em cima do seu

223
televisor e que chega a todos, o que se designa de Web TV. O que na realidade existe
é um aparelho que dispõe ao mesmo tempo de Internet e de televisão, mas são dois
sistemas. Embora se possa transmitir televisão via Internet tecnologicamente, não é
muito interessante, não é muito eficaz e, sobretudo, se se pretende transmitir de facto
a televisão que temos, não haveria, em nenhum país, capacidade de banda previsível
nos próximos vinte anos para fazê-lo, nem sequer nos Estados Unidos. A capacidade
de banda de transmissão para o enorme volume que representaria toda a televisão
que hoje se transmite é simplesmente impensável, muito caro e ineficaz. Quem
pretenderia receber exactamente através do mesmo canal televisão e Internet? Não
faz nenhum sentido.

Por outro lado, a Internet está a converter-se no centro de articulação dos diversos
meios, dos multimédia. Por outras palavras, está a converter-se no sistema operativo
que permite interagir e canalizar a informação sobre o que acontece, onde acontece, o
que podemos ver, o que não podemos ver e é, portanto, o sistema de conectividade
interactiva do conjunto do sector multimédia. É isto que a Internet está a mudar. Está
também a mudar os meios de comunicação e, em particular, contrariamente ao que
acreditamos, os meios de comunicação escrita. Em que sentido? Bom, o modelo
futuro já existe, como quase todos os modelos futuros. É o modelo de utilização da
Internet nos meios de comunicação que se utiliza no grupo Chicago Tribune, que
acaba de comprar o Los Angeles Times. A sala de redacção do Chicago Tribune, que
está a ser estudada por um dos meus alunos, consiste numa sala totalmente integrada
na Internet, onde os jornalistas processam a informação em tempo real e daí segue
para o Chicago Tribune, Los Angeles Times, outros jornais nos Estados Unidos, uma
série de estações de rádio e várias estações de televisão. Que tem isto de original?
Esta informação chega em tempo real e continua a processar-se em tempo real, ou
seja, é um meio de comunicação de massas, contínuo e interactivo, ao qual podem
aceder vários utilizadores, colocando perguntas, criticando e debatendo.

Toda esta informação chega aos jornalistas, que vão sendo substituídos por outros na
mesma sala de redacção, que continua a processar de forma ininterrupta essa
informação. Isto já existe e é o modelo que rapidamente está a ser adoptado pelos
grandes grupos multimédia e pela imprensa. A Internet está a revolucionar a
comunicação pela sua capacidade em curtocircuitar os grandes meios de
comunicação. O facto de ser uma comunicação horizontal, de cidadão para cidadão,
permite-me criar o meu próprio sistema de comunicação na Internet, fazer as minhas
escolhas e comunicá-las. Pela primeira vez há uma capacidade de comunicação de
massas não mediatizada pelos meios de comunicação de massas. Coloca-se então o

224
problema da credibilidade? Como pode acreditar-se no que aparece na Internet? No
ano passado, no congresso dos editores de jornais norte-americanos, havia um certo
temor por parte de vários empresários de Silicon Valley que profetizavam o fim dos
jornais: o New York Times desaparecerá, tudo será online. A minha posição nesse
momento era: haverá jornais online, o mesmo jornal ou algo distinto online, via
televisão, rádio ou em papel, em distintos formatos para momentos e contextos
distintos de utilização. Mas o problema essencial, quando tudo se encontra na Internet,
é a credibilidade, e é aí que os meios de comunicação têm um papel essencial, já que
tende a dar-se mais credibilidade à La Vanguardia, ao New York Times, ao El Pais ou
ao El Periódico da Catalunã, do que àquilo que Manuel Castells possa colocar na rede
num determinado momento. Neste sentido, o rótulo de veracidade - o brand name - é
importante, na condição de que esse rótulo seja respeitado, convertendo a
credibilidade de um meio de comunicação na sua única forma de sobrevivência num
mundo de interacção e de informação generalizada.

10. Conclusão: a sociedade em rede

Em suma, a Internet é a sociedade, expressa os processos, os interesses, os valores


e as instituições sociais. Se a Internet é a sociedade, qual então a sua especificidade?
A sua especificidade reside no facto de constituir a base material e tecnológica da
sociedade em rede, constituindo a infraestrutura tecnológica e o meio organizativo que
permite o desenvolvimento de um conjunto de novas formas de relação social que não
têm a sua origem na Internet, e que são fruto de uma série de mudanças históricas
mas que não poderiam desenvolver-se sem a Internet. Analiso esta sociedade em
rede como uma sociedade cuja estrutura social está construída em torno de redes de
informação a partir da tecnologia da informação microelectrónica estruturada na
Internet. Mas, a Internet nesse sentido não é apenas uma tecnologia, é também o
meio de comunicação que constitui a forma de organização das nossas sociedades, o
equivalente ao que foi a fábrica ou a grande empresa na Era industrial. A Internet é o
centro de um novo paradigma sociotécnico que, na realidade, constitui a base material
das nossas vidas e das nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O
que a Internet faz é processar a virtualidade e transformá-la na nossa realidade,
constituindo a sociedade em rede, que é a sociedade em que vivemos.

225
Porquê estudar os Media ?
O 11 de Setembro e a Ética da Distância

Roger Silverstone

Eu quero, neste texto, declarar que os media, são a base necessaria para perceber
aquilo a que Iasaiah Berlim chama " o contexto da prática".
Quero entender o que isso pode significar para nós que estamos envolvidos no estudo
dos media e para aqueles que poderão pensar que tal estudo não é possível nem
necessário.
Quero perguntar o que isso pode significar para nós, gente comum, no nosso dia a dia
de trabalho, agora, no novo milénio. Também quero perguntar quais são as
implicações que podem ter sobre o nosso bom senso como seres morais e políticos.
Por isso é perfeitamente claro que os media – especialmente os media electrónicos –
estão a tornar-se cada vez mais centrais, mais indispensáveis, mais críticos, e cada
vez mais profundamente enraizados na nossa maneira de viver no nosso dia a dia, no
movimento do tempo e da vida.
Os nossos media são ubíquos, diários, são a dimensão essencial da experiência
contemporânea. Não podemos escapar à presença dos médias, à sua representação
deles. Temos vindo a depender dos media, quer seja em suporte electrónico ou
escrito, por prazer e por informação, para conforto e segurança, ou num sentido de
continuidades da experiência, e de vez em quando também para intensificar a
experiência. Como exemplo disso, o ataque ao World Trade Center foi o mais recente
e o mais dramático caso da actualidade.
Posso contar as horas que um cidadão comum passou em frente à televisão, ao lado
do rádio, folheando os jornais, e, crescentemente, a navegar na Internet. Também
posso constatar como essas pessoas variam, globalmente, de Norte para Sul assim
como dentro das nações, de acordo com os recursos simbólicos e materiais. Posso
apontar quantidades de vendas globais de software, variações das idas ao cinema e
aluguer de vídeos, e a posse de computadores pessoais. Posso reflectir sobre os
padrões de mudança e, se for suficientemente ousadao, arriscar projecções quanto a
tendências futuras de consumo. No que diz respeito aos media encontro-me, neste
elencar de dados, a patinar à superfície, patinagem muitas vezes suficiente para os
que se interessam por vender e comprar mas manifestamente insuficiente para quem

226
quer conhecer os media, saber o que fazer com eles e abarcar a sua intensidade e
insistência nas nossas vidas. Para isso temos que transformar a quantidade em
qualidade.
Os media estão a mudar, mudaram, radicalmente. O último século viu o telefone, o
filme, a rádio, a televisão que se transformarem-se em objectos de consumo de massa
e em ferramentas essenciais para a vida quotidiana.
Agora confrontamo-nos com o espectro da intensificação da cultura mediática em todo
o mundo, devido à Internet, e com a expectativa (se não com a ameaça) de um mundo
interactivo ao qual nada nem ninguém pode aceder de forma imediata.
O debate contemporâneo sobre estas variações refere a sua velocidade mas mistura a
rapidez da mudança tecnológica com a da mudança social e cultural. Existe uma
relação constante entre o tecnológico, o comercial e o social que deve ser tida em
conta ao perspectivarmos os media como um verdadeiro processo de mediação em
cujo estudo encontramos linhs directas de causa e efeito que nos conduzem áquela
relação. As instituições não constroem significados, apenas nos permitem encontrá-
los.
A investigação nos media dá, ordinariamente, preferência ao que é mais significativo,
ao acontecimento, à crise. Temos visto imagens perturbadoras de violência ou de
abusos sexuais e tentámos medir os seus efeitos utilizando, como chave,
acontecimentos mediáticos de cariz humano e natural, para explicar o papel dos media
no manejo da realidade ou do exercício do poder. Centrámo-nos também nas grandes
cerimónias públicas do nosso tempo para perceber o seu papel na criação das
comunidades nacionais. È necessário ter tudo isto em conta desde que sabemos , por
Freud, que o conhecimento das patologias, e dos exageros também, nos revela muito
sobre o que é normal. Temos que reconhecer que é através da tensão constante entre
o excepcional e o comum que podemos começar a entender o trabalho dos media e a
sua importância.
Antes de mais, os media são diários. Têm uma presença constante nas nossas
vidas quer os liguemos ou apaguemos, andamos sempre de um espaço mediático a
outro, de uma conexão a outra; do rádio ao jornal ou ao telefone, da televisão ao hi-fi
até à Internet. Em público e em privado, sós ou acompanhados.
É na vida mundana que os media operam mais significativamente. Filtram e
modelam as realidades quotidianas através das suas representações, únicas ou
múltiplas, apresentando critérios e referências para os comportamentos a fim de
produzir e manter o senso comum. É este o ponto de partida para o estudo dos media,
podermos pensar que a nossa vida não é deixarmo-nos ir ao sabor da corrente, requer
a nossa participação ainda que às vezes com pouca ou nenhuma escolha. Os media

227
deram-nos voz, forneceram-nos conceitos não como forças invisíveis, agindo contra
nós, mas como uma parte da realidade que partilhamos diariamente em conversas e
interacções.
Os media constituem, aqui e agora, o centro dum projecto de reflexão em duas
vertentes: a dos discursos conscientes nos programas televisivos ou radiofónicos, em
directo, e a das notícias, assuntos correntes, anúncios, sob diferentes formas de
escrita, áudio e audiovisuais, o mundo, afinal, em que nos manifestamos e actuamos
repetida e infindavelmente.
Histórias da nossa vida, conversas, pensamentos, estão presentes em narrativas
formais dos media, em reportagens, na ficção e em eventos diários: palestras, boatos
e interacções casuais orientam-nos no espaço e no tempo e, sobretudo, na
aproximação ou separação, na partilha ou na recusa, individual e colectiva, na
amizade ou na inimizade, na paz e na guerra com as outras pessoas.
Tem-se sugerido que a estrutura e os conteúdos são interdependentes, nos media e
nas nossas conversas quotidianas, dando-nos, conjuntamente, a forma e a medida da
experiência humana.
O público e o privado também se interpenetram nas histórias, mediáticas ou não,
que contamos uns aos outros, isso nota-se tanto na telenovela como no talk show. A
vida privada das figuras públicas todos os dias é alvo de discussão. Os actores de
telenovela, à medida que se tornam figuras públicas têm que construir uma vida
privada para consumo público.
No coração dos discursos sociais que consolidam e modelam a experiência, para o
que os media se tornaram indispensáveis, encontramos o processo e a prática da
classificação: distinções e juízos de valor. A classificação, contudo, não é uma questão
puramente intelectual nem prática. É estética e ética. As nossas vidas desde
sempre, são influenciadas por alguma ordem que tem de dar-nos a segurança
suficiente para o dia a dia mas que não é neutra, nem nas condições que oferece nem
nas consequências que acarreta, no sentido em que a nossa ordem possa ter impacto
na dos outros porque isso dependerá da ordem (ou da desordem) por que eles se
regerem. Mesmo aí, confrontamo-nos com a estética , a ética e mesmo a política da
vida quotidiana para a qual os media nos armam, num grau significativo, com
ferramentas e problemas: conceitos, categorias e tecnologias com as quais
construímos limites e nos defendemos deles; conceitos, categorias e tecnologias para
construir e manter conexões. E, também, é claro, para as romper.
Na medida em que os media têm um papel central no processo de estabelecer
distinções e fazer juízos, enquanto medeiam a relação dialéctica entre a classificação -
que dá forma à experiência - e a experiência - que dá cor à classificação - temos que

228
inquirir das consequências dessa mediação, o que gostaria agora de fazer utilizando
uma estrutura específica: as reportagens sobre os acontecimentos do 11 de Setembro
e do seu rescaldo.

O 11 de Setembro

Toda a gente guarda na memória, mais ou menos, sons, imagens, vozes que
marcam a experiência própria que recolheram dos media, nesses dias terríveis. Eu
próprio, que estava em Londres, guardo alguns desses momentos como a imagem de
George Bush na sua primeira conferência de imprensa, depois do ataque e quando se
preparava para regressar à Colina do Capitólio, sentado entre generais e colegas
mais velhos, intencionalmente vestido com roupas que pareciam um compromisso
entre uma farda de combatente e um fato anti-vento: preparava-se para caçar
terroristas ou ursos? E a imagem dos três trabalhadores de meia idade, a sair do local
da destruição, apresentados ao mundo como se tivessem acabado de ser
fotografados, pelo National Geographic, ao emergirem de uma iniciação tribal. E,
ainda, a voz de John Simpson, o correspondente da BBC – Radio 4, não a fazer a sua
reportagem mas a exigir a libertação de Kabul dando um sentido mediático
inteiramente novo à palavra imperialismo.
Os momentos referidos mostram, no geral e em particular, maneiras distintas de
construir a nossa versão desses acontecimentos. Mas a capacidade de fazer isso,
mesmo a capacidade dos media de o fazer em primeiro lugar , depende da presença,
na nossa cultura e na nossa memória, de imagens preexistentes. Tornou-se um
lugar comum falar da luta, entre repórteres e audiências, acerca do verdadeiro sentido
dos acontecimentos, como sucedia em Hollywood. Apesar de tudo é necessário dar
um sentido mesmo ao que é horrível e ameaçador. Para além dos momentos originais,
catastróficos, do 11 de Setembro, os media possuem um arquivo, valioso ao nível do
consciente e do inconsciente, de imagens, figuras e narrações, que não só guardam
como explicam. Contém o que nos é familiar, o que reivindicamos como familiar, mais
cedo ou mais tarde, para suavizar o golpe. É o negativo da segurança, o conforto da
fábula.
Gostaria de sugerir, a partir de agora, que há uma dimensão estrutural na mediação
dos eventos do 11 de Setembro31. Talvez não se repita nada de semelhante mas
mesmo como catástrofe única, a sua relação com os media não pode ser entendida

31
Não se trata de uma inovação, veja-se, por exemplo, Dayan, Daniel e Katz, Elihu (1992) Media Events:
The Live Broadcasting of History, Cambridge, Harvard University Press

229
apenas naquele momento e no que se lhe seguiu. Para dar sentido ao que aconteceu
temos que o inserir num contexto mais vasto, o da representação, consistente e
persistente, do mundo feita pelos media, como eles representam, para nós, outros
povos, outras culturas, como definem a relação com o mundo que, de outra forma,
não teríamos.
A imagem imediata e a reportagem ao vivo são diferentes e aprendemos isso muito
bem com a guerra do Golfo. A imagem e a reportagem são condicionadas por
controlos impostos – legítima e cinicamente – pelos militares e pelo Estado mas
aparecem como se, de certo modo, os transcendessem. Torna-se difícil achar a
verdade, nestes casos, porque a acção vivida no imediato perturba o nosso grau de
entendimento que é também afectado pelo trabalho árduo dos media que envolve
selecção, montagem, tradução, tudo isto com consequências materiais para aqueles
de nós (a maioria) que não têm acesso a comunicação e informação alternativas,
dando-nos o que precisamos de saber não para compreendermos o que está a
acontecer mas para sabermos como devemos colocar-nos perante a situação.
Quero agora falar do 11 de Setembro, nos media, do ponto de vista da continuidade
e do conforto. Quero falar de interrupção (em termos de tempo); de transcendência (ao
nível do espaço) e do outro (no domínio da ética)32.

Interrupção

Patricia Mellencamp33, especialista e crítica cinematográfica americana, escrevendo


sobre a reportagem mediática do desastre do Challenger em 26 de Janeiro de 1986,
reflectiu acerca do que faz de uma catástrofe, uma catástrofe. Conhecer a realidade
do evento é apenas uma parte da história, ele só se transforma em catástrofe quando
interrompe as programações normais da rádio e da televisão. E é uma interrupção que
se torna também catastrófica porque ( imediatamente antes de um filme de John Wine
ou do episódio de uma telenovela) abala a segurança ontológica necessária a quem
está envolvido nas narrações contínuas, próprias da mediação diária. E este é um

32
Estas questões não podem ser desenvolvidas aqui. Para análises mais elaboradas embora ainda
incompletas, ver: Silverstone, Roger (1999) Why Study the Media?, London, Sage; Silverstone, Roger (in
press) Proper Distance: towards an ethics for cyberspace in Gunnar Liestol, Andrew Morrison, Terje
Rasmussen (eds) Innovations,Cambridge MA; MIT Press; Silverstone, Roger (in press) Complicity and
Collusion in the Mediation of Everiday Life, New Literary History
33
Mellencamp, Patricia (1990) TV Time and Catastrophe: or beyond the pleasure principle of television,
in Patriciaa Mellencamp (ed.) Logics of Television, Bloomington, Indiana University Press, 240-266

230
ponto muito sério. Atesta a enorme importância da continuidade nos media, das suas
sequências infindáveis, nos procedimentos de todos os dias34.
Apenas as catástrofes podem interromper o fluxo e a ordem da representação nos
media. A psicodinâmica dessa interrupção é, agora, suficientemente clara. O
envolvimento contínuo, o estar sempre ligado, a infinita presença de sons e imagens
cria um modelo de conforto e de criatividade35. As seguranças do quotidiano, enquanto
tais, baseiam-se substancialmente na preservação de um espaço mediador no qual
audiências e media respectivos, a pessoa e a tecnologia, a experiência do “real” e a
experiência do “virtual” se interinfluenciam criativamente, na semi-permanência da
familiaridade mediática. Essa tensão criativa raramente se quebra, na sua ritualização
e estrutura genérica de história sobre história, nem mesmo para o jornal da noite ou
as notícias da rádio que trazem os horrores do mundo posto a nu. A realidade não
mediada, a priori, raramente é violada pelos processos de mediação. De vez em
quando, no entanto, isso acontece como no 11 de Setembro de 2001, global e
dramaticamente. A própria reportagem no seu imediatismo vivenciado ilustrou a escala
e o desafio posto por aquela interrupção. Orson Welles, em 1938, pelo menos tinha
um guião para a Guerra dos Mundos e os que arrastaram pelas ruas o seu medo
mortal da aterragem dos marcianos puderam ter ,no fim, o conforto de terem sido
sujeitos ao tipo de interrupção mais comum: a do quotidiano, feita pelo seu equivalente
mediático36.
Mas no 11 de Setembro aconteceu o inverso. Foi o quotidiano – de um certo tipo –
que interrompeu os media. Não houve guião, ainda que estivesse pré- escrito e,
também, de certo modo, prescreveu37. A sua realidade fazia parte do conteúdo dos
media. Estava contida na violência, nos pontapés e nos gritos do “faz de conta” da
mediação diária, contida na metáfora, no cliché, no estereotipo porque se não
estivesse não faria sentido para nós. E se o não fizesse, a nossa vida seria
insuportável como aconteceu por algum tempo, em Nova Iorque, onde o alastrar do
fumo mal cheiroso da destruição deu origem à recordação permanente de um
determinado tipo de realidade, fortemente perturbadora.
Uma interrupção, portanto, mas talvez não por muito tempo, por razões óbvias. A
vida tem que continuar – eis a mensagem política, a retórica orientadora da resistência
e da sobrevivência social e psicológica, e também a mensagem dos media: não

34
Para um maior desenvolvimento da importância ontológica da segurança no processo de mediação de
massas, ver Silverstone, Roger (1994) Television and Everiday Life, London, Routledge, capítulo 1
35
Winnicot, D.W.(1975)Playing and Reality, Harmondsworth, Penguin
36
Cantril, H, Gaudet, H and Herzog, H (1940) The Invasion from Mars: a study in the psychology of
panic, Princeton, Princeton University Press
37
Nas notícias desta manhã, segundo li, o Presidente Bush avançou o aviso de um ataque.

231
apenas a vida, a televisão também tem que continuar. Dois meses depois do 11 de
Setembro e de quatro semanas de anthrax nos Correios dos Estados Unidos, três dos
mais categorizados canais de televisão americanos recusaram-se a repetir o discurso
que o Presidente Bush fizera ao vivo, o primeiro desde que haviam começado os
ataques com anthrax. A NBC por exemplo, optou por não retirar da programação o
episódio de Friends.
É claro que o tempo cura todos os males mas na sociedade moderna a cura
temporária é definida e dirigida vinte e quatro horas por dia, pelos nossos media cujas
estruturas afastam as audiências do imediato integrando-o nos padrões da vida de
todos os dias38. Foi o caso do funeral mediático da princesa Diana que mobilizou as
emoções nacionais e transformou as ruas em relíquias (em Paris e em Londres) e as
ruínas do World Trade Center não só em relíquias mas em local de atracção turística.
Ambas as situações denotam a capacidade que os media têm para reencantar o
quotidiano e para sacralizar a catástrofe.

Transcendência

Na mediação do terror, como na da guerra, os limites da distância estão entre o amigo


e o inimigo e a pretensão dos media é aniquilar a distância, conseguir transcender os
limites da comunicação não mediada a fim de criar formas inteiramente novas de
conexão global e livre, o que não deixa de ser contraditório. A pretensão, obviamente,
é que a imagem e a reportagem ao vivo coloquem a audiência – nós – em contacto
directo, palpável, com o que não é possível tocar.
A transcendência dos media, no balanço, tem custos e também apresenta lucros. O
imediato ao vivo, o avião a voar ao lado do World Trade Center, é claramente
mimético. A distância foi erradicada assim como o tempo, naquele momento. Nós, a
audiência global, estávamos lá e o ecrã tornava-se o espelho do que estava a
acontecer para lá do oceano. Contudo, como Kurt e Gladys Lang39 fizeram notar, com
rigor, há algum tempo, na sua análise da reportagem televisiva, ao vivo, sobre a
parada, em Nova Iorque, quando o general McArthur regressou da guerra da Coreia,

38
Anthony Giddens chama “sequestro da experiência” a esse colocar nas margens da vida social a morte,
a deficiência, a doença, a exploração como característica das sociedades mais recentes. Os media, pelo
contrário, confrontam-nos diariamente com esses aspectos mas sob uma forma mediatizada
(principalmente através de narrativas) e, consequentemente, torna-os visíveis embora não apareçam como
fazendo parte significativa das nossas vidas ou das dos nossos semelhantes: ver Giddens, Anthony (1990)
The Consequences of Modernity, Cambridge, Polity Press
39
Lang, K and Lang,G.E.(1953) The Unique Perspective of Television and its Effect, American
Sociological Review, 18(1), 103-112

232
embora algumas dessas imagens tivessem sido montadas, podemos pensar que eram
melhores do que as da realidade.

Há duas espécies de distância que aqui nos interessa considerar. A primeira é a


distância entre o acontecimento e a sua representação, a realidade e a sua imagem. A
segunda é a distância entre a imagem e as realidades do dia a dia em que as imagens
são reflectidas acima das frias continuidades do quotidiano e absorvidas (ou não) num
outro fluxo.
Compreender a mediação desses breves eventos requer a compreensão dos
aspectos gerais da relação entre os media e a vida de todos os dias, que podemos
sintetizar em dois pontos. Os media podem permitir, e na realidade permitem, miríades
de oportunidades para a libertação, utópica ou não, das pressões de todos os dias ou,
pelo menos, dão- nos uma alternativa à, por vezes, terrível realidade. Mas continuam
a ser, eles próprios, uma parte da realidade irrevogavelmente agarrada aos tempos e
aos espaços ordinários e a fronteira que existe, a separação que envolve a
possibilidade de mudar do profano para o sagrado, do ordinário para o extraordinário,
implica um retorno.
O segundo ponto, no entanto, é que a realidade já não é o que era. Como
argumenta John Thompson40, o dia a dia é agora um complexo de mediações, do face
a face para o quase face a face. É já uma mistura entre o físico e o virtual. A nossa
experiência do mundo é vertida pela mediação electrónica. O vivido e o representado
tornam-se, consequentemente, a urdidura do quotidiano e o que está em causa, na
investigação dessa interinfluência é a especificidade histórica e sociológica do que se
segue, as suas fraquezas e as suas forças, o que coincide e as contradições, o toque
da cultura – a ética e a estética da experiência.
Neste contexto, a transcendência da distância é uma ilusão. As pretensões
estruturais dos media vão no sentido da conexão capaz de criar o imediato e o vivido
na comunicação global. Aceitar este grau de conexão, implica que aceitemos a
electrónica como a pedra de toque da nossa ligação ao mundo e, como já disse, a
nossa capacidade de lidar com o quotidiano passa por aí mas tem um preço. Se
estamos realmente, a perceber a natureza estrutural dos media e as suas implicações,
então temos que encontrar uma maneira de ficar fora disso o que é muito difícil
embora seja essencial. Os media são, neste contexto, como que a nossa linguagem
natural e, como refere George Steiner41, não podemos sair daí tal como ninguém pode
sair para fora da sua sombra. O problema é que nós não temos nem instrumentos nem

40
Thompson, John (1995) Media and Modernity, Cambridge,Polity Press
41
Steiner, George (1975) After Babel, Oxford, Oxford University Press

233
sentido crítico adequados para ficar fora daquelas estruturas, no quotidiano. Podemos
abandonar o campo, virar as costas às imagens mediáticas mas não podemos, sem
grande esforço e dificuldade, colocarmo-nos contra elas.
É precisamente pela má colocação da experiência, nos media, que a transcendência
reivindica que é ainda possível que percam autenticidade na sociedade
contemporânea. Como resultado disso, a nossa capacidade de imaginar e de nos
envolvermos com indivíduos e mundos fora do nosso, com raras excepções, está
inteiramente contida e limitada pela estrutura dos media. Eles não sobrevivem muito
para além do ecrã o que demonstra que só podem sobreviver através das suas
próprias estruturas.
O 11 de Setembro foi um momento transcendente trazido à terra pela contínua
rearticulação e naturalização de imagens e histórias mediáticas. Essa naturalização
não poderá ser nem é suficientemente compreendida. A capacidade dos media para
nos conectarem com o outro, mesmo com o outro na morte e na destruição, está
provado que é ilusória, uma perniciosa ilusão.

O Outro

Tenho uma outra memória , esta radiofónica. A de um ferreiro afegão que, não
querendo deixar por mãos alheias a propaganda ao seu país, deu à BBC a sua versão
sobre a queda de tantas bombas à volta da aldeia onde habitava. Foi porque -
pensava ele – a Al Kaeda tinha morto um grande número de americanos - e os seus
burros - destruindo algumas das suas fortalezas. E não estava muito enganado. O
aparecimento da Al Jazira nos ecrãs ocidentais foi uma afronta não apenas por
Osama bin Laden aparecer nos quartos da frente das casas mas porque isso indicava
que eles tinham feito uma reportagem sobre nós – nós tínhamo-nos tornado o seu
outro.
Foi realmente um choque terrível devido à transgressão do lugar comum dos media
ocidentais. Isto porque nós produzimos as imagens deles, não eles as nossas. E a
nossa relação com o outro, em imagens e narrativas da nossa cultura mediática,
define-se pela incapacidade em reconhecer a diferença. A resposta pessoal e política,
aos erros e aos direitos humanos, depende da capacidade de conhecer e reconhecer
que, todos os que sofrem assim como os que lhes causam sofrimento, são seres
humanos. Só isso nos permite reconhecê-los e julgá-los. A diferença é o que nos leva
a pensar que há coisas neles que nós talvez nunca consigamos perceber.

234
As narrativas dominantes nos media ocidentais tendem à recusa de conhecer a
diferença. Os outros aparecem como sendo tão semelhantes a nós que nem se
distinguem ou tão diferentes que quase nem parecem humanos. Por um lado
incorporação, por outro aniquilação literal e simbólica. Esta polarização exacerba-se,
naturalmente, em épocas de crise mas não fica por aí. Nas notícias, nas narrativas
fragmentárias, nos anúncios da imprensa tablóide, a aceitação de uma humanidade
que nos é comum, que precisa de uma relação ética de apoio e compreensão, é
sistematicamente recusada.
Quanto mais o discurso dos media for no sentido do particular temporal e espacial,
visual e narrativo, de formas e filtros, menos, no geral e no específico, seremos
capazes de nos confrontarmos com a nossa humanidade ou desumanidade; menos
conseguiremos movimentar-nos no meio dos pretos e dos brancos da representação
comtemporânea.
São estes os elementos de que dispomos para compreender os acontecimentos do
11 de Setembro, o seu rescaldo e as reportagens subsequentes do conflito no
Afeganistão. Os instrumentos de representação das catástrofes estão prontos e à
espera de ser mobilizados. A sua renaturalização reside no repetir sem fim das
imagens e no reforço da narrativa, o que reitera a versão de um mundo que se move,
imperceptível mas inteiramente, dentro do familiar e do que não é excepcional. A
nossa vida continua com a distância espacial, temporal e de representação que
permite reprimir , em passes de mágica, o caos ameaçador.

As Políticas da Distância

Vivemos num mundo plural. Cheio de outras pessoas que se chamam Simpson e
Ewwings, Oprah Winfrey e Luís Figo, George W. Bush e Yasser Arafat. Chamam-lhes
Talibã e Tutsi, Al-Kaeda e Zapatista. Eles são os vizinhos que encontramos na rua e
os anónimos que vivem do outro lado do mundo. Vivemos com eles enquanto
semelhantes e diferentes de nós, dentro e fora dos media. Nenhuma política pode pôr
de lado o peso dos media nem ignorar aquele pluralismo. Segue-se que nenhuma
política nacional ou global pode dar-se ao luxo de ignorar os media.
Crucial para essas políticas é a questão da distância.
Um livro recente na nova revolução das comunicações tem por título A Morte da
Distância42. Trata da nova escala da vida humana permitida pela digitalização e, dum
modo geral, pelo trabalho electrónico em rede. Apresenta uma lista de trinta e duas

42
Cairncross, Frances (1997)The Dead of Distance: How the Communicatios Revolution Will Change our
Lives, London, Orion Busine ss Books

235
mudanças na vida actual mais a nível económico, menos político mas também social.
Vê no aumento da intensidade da comunicação global uma maior compreensão e
tolerância relativamente aos seres humanos de qualquer parte do mundo.
Contudo, a distância não pode ser completamente apagada pela tecnologia. Um
telefonema mantém longe a pessoa com quem estamos a falar. O problema não é a
conexão porque não é ela que garante a proximidade. Continuamos confrontados com
a distância. A tecnologia aplicada aos novos media não faz parar o genocídio nem a
guerra: pode torná-los mais eficientes (a informação posta ao serviço da destruição)
ou mais invisíveis ( a informação ao serviço da diferença) e pode manter-nos longe
providenciando imagens que nos isentam de preocupações e de responsabilidades
como as de conflitos sem derramamento de sangue, bombardeamentos sem danos
colaterais, batalhas sem exércitos, guerra sem vítimas. Acções que não trazem
consequências.
E, como acabei de sugerir, a tecnologia, por oposição, pode aniquilar a distância.
Pode trazer o outro até nós, demasiado perto até ao ponto de ser difícil
reconhecermos diferenças e fazer distinções. A política externa tem-se baseado na
ideia de que o mundo é uma mera projecção dos nossos modelos. Ao tecer as
imagens globais , apropriamo-nos de culturas diferentes para as incluir nas nossas
agendas (quantas vezes aparece nos anúncios publicitários a ideia de “primitivo” sob a
forma duma dança de África e o significado de pobreza contido na figura de um dos
seus habitantes) enquanto as expectativas de meio mundo são as de se
assemelharem cada vez mais a nós. E mesmo as imagens documentais de outros
mundos tem que estar em conformidade com os nossos pressupostos: os pobres têm
que parecer pobres, os esfomeados têm que ter barrigas inchadas e moscas nos
olhos. A familiaridade acarretada pela tecnologia pode não significar contemporização
mas pode contribuir para criar indiferença. Dificilmente conseguimos ver aquilo que
está, habitualmente, muito perto de nós.
As representações nos media, a comunicação que transcende os limites do face a
face, têm consequências na maneira como vivemos e como vemos o mundo.
Modelam-nos tanto como a experiência informal e requerem uma resposta ética na
medida em que também nos fornecem recursos para ela. As tecnologias que
sustentam as sociedades mais modernas em toda a sua complexidade e, acima de
todas a tecnologia dos media, mudaram o universo da ética que, tradicionalmente
estava contido no tempo e no espaço, e que nos dava capacidade para prosseguir nas
nossas acções, confrontando-nos com o mundo tal como ele se confronta connosco.
Há nisto um sentido, um pensamento difícil de aprofundar e de articular porque
contraria o que normalmente é aceite – no alcance global dos media actuais

236
confrontamo-nos com o mundo duma forma nova e preocupante – a expansão do
movimento de defesa do ambiente constitui exemplo – porque os media,
estruturalmente, são amorais. Criam e mascaram o encerramento da distância;
mantêm-nos conectados e, simultaneamente, afastados, mostram-se vulneráveis à
dissemelhança (desde a manipulação de imagens ao disfarce de identidades na
Internet), reduzem a visibilidade e retiram autenticidade às outras culturas, às outras
pessoas, às outras faces do mundo em que vivemos.
O “faz de conta” do mundo dos media é, neste sentido, desprovido de moralidade e
isto sem deixar de levar para a frente os mais poderosos programas, eventos
mediáticos ou reportagens que irrompem todos os dias pelas sensibilidades proibidas
do quotidiano de todos nós. É talvez uma dura conclusão tanto mais que fui aqui
argumentando acerca da centralidade dos media no que diz respeito à experiência
mas a verdade é que posso ir ainda mais longe se considerar que essa amoralidade
da distância pode ser reforçada por uma amoralidade que reside no efémero e na
capacidade de substituição do real que existe nas representações dos media : se não
gostamos de uma coisa podemos passar para outra e sabemos que, seja como for,
aquela vai desaparecer rapidamente, vai sair dos ecrãs, como por efeito de uma
lâmina que viesse barbear o mundo, como uma omelete que salta da frigideira.
Acabei de descrever uma dialéctica da distância e da proximidade, da diferença e da
indiferença, da familiaridade e do seu inverso. É assim que eu entendo a articulação
do mundo moderno, numa dialéctica em que os media se situam no ponto crucial.

Conclusão

Estudamos os media porque temos necessidade de perceber o seu contributo no


exercício do poder nas sociedades desenvolvidas actuais, não só dentro do processo
político estabelecido como fora dele. Estudamo-los porque queremos entender o seu
contributo para a textura geral da experiência e da qualidade da vida de todos os dias.
Os media são nem mais nem menos do que os responsáveis pela inteligibilidade do
mundo e é apenas dentro dessa inteligibilidade que o mundo e os que nele vivem,
ganham a dimensão de humanos. Aqueles de nós que estudam os media também
podem torná-los inteligíveis. É essa a nossa missão, participar de um projecto que
não é fácil nem confortável.
Eu, por mim, não escolheria outro qualquer caminho.

237
238
Desafios Morais na Sociedade de Informação
Cees J. Hamelink

A Sociedade de Informação

Tornou-se prática corrente descrever as sociedades modernas com o conceito


“sociedade de informação”. Este conceito refere-se de um modo geral a acréscimos
nos volumes de informação disponíveis, o significado do processamento de
informação em cada vez mais domínios sociais e o facto de que a tecnologia de
informação fornece uma infra-estrutura básica da qual as sociedades se tornam cada
vez mais dependentes.
O conceito é imperfeito e contestado. É questionável se podemos descrever
adequadamente as sociedades com apenas uma variável abrangente e caso isso seja
possível, poderá ser posto em causa se a informação é uma categoria mais precisa
que o dinheiro, o crime ou a agressão. Em qualquer caso deverá ser tido em conta
que as sociedades trilham caminhos muito diferentes de desenvolvimento e se
insistirmos no que se refere à informação, a noção plural de “sociedades de
informação” deverá ser utilizada.
Há indubitavelmente “desenvolvimentos informativos” nas sociedades modernas e
através da interacção com outros desenvolvimentos sociais estes terão um impacto na
forma como o futuro dessas sociedades se moldará de formas diferentes dependendo
das diferentes circunstancias históricas.
Em muita literatura corrente é sugerido em “cenários utópicos” que estes
desenvolvimentos têm efeitos positivos ao passo que os efeitos negativos são
realçados em “cenários não utópicos”. Em ambos os casos os analistas são
conduzidos por uma perspectiva determinística do desenvolvimento social: inovações
tecnológicas têm um impacto directo sobre os processos sociais. Não há espaço para
reflexão sobre a multiplicidade de caminhos em que a tecnologia e a sociedade estão
dialeticamente interligadas.
Contudo uma vantagem específica do discurso da sociedade de informação corrente
não deverá ser ignorada. A referência a “sociedade” inspira boas e velhas questões
sociológicas de poder, lucro e participação: quem beneficia, quem decide, quem
participa e quem é responsável?

239
*Com isto está lançado o primeiro desafio moral: estão as sociedades abertas para
colocarem estas perguntas chave da sociologia clássica face ao aparecimento das
sociedades de informação?

Informação
Essencial para a noção de sociedade de informação é obviamente a própria
“informação”. Muito do pensamento sobre o futuro das sociedades de informação é
baseado numa série de mitos populares.
Tais como: mais informação é melhor que menos informação; mais informação cria
mais conhecimento e compreensão; fluxos de informação aberta contribuem para a
evitar conflitos; mais informação significa menos incerteza e escolhas mais
adequadas; se as pessoas estiverem devidamente informadas actuarão de acordo
com essa informação; mais informação equivale a mais poder e uma vez que as
pessoas estejam mais bem informadas acerca umas das outras, entender-se-ão
melhor e estarão menos inclinadas para discordarem. Todas elas suposições muito
atraentes mas nenhuma necessariamente verdadeira.
Uma presunção popular diz que informação equivale a poder. A informação
transforma-se numa fonte de poder apenas se a infra-estrutura necessária à sua
produção, processamento, armazenagem, colheita e transporte estiver acessível e as
pessoas terem conhecimentos para aplicar a informação à pratica social e
participarem na rede social através da qual a informação pode ser usada para
aumentar os interesses de cada um. A presunção propõe que as pessoas nunca
foram capazes de exercer o poder por estarem mal informadas ou ignorarem.
Contudo com demasiada frequência estas sabiam precisamente o que estava mal e
era injusto e estavam bem informadas sobre o comportamento impróprio dos seus
governantes. No entanto não actuaram e o seu conhecimento não se transformou
numa fonte de poder, pois faltaram-lhes os meios materiais e estratégicos para se
revoltarem.

Uma linha de pensamento muito atractiva propõe que uma vez que as pessoas
estejam melhor informadas acerca umas das outras, entender-se-ão melhor e estarão
menos inclinadas para o conflito. Contudo, conflitos mortais não são normalmente
provocados por uma falta de informação. De facto podem ser baseados na
informação adequada que os adversários têm sobre cada um. De facto, bem
poderíamos igualmente propor a perspectiva em que a harmonia social é grandemente
devida ao grau de ignorância que os actores têm relativamente a cada um. Muitas
sociedades mantêm níveis de níveis de estabilidade porque empregam rituais,

240
costumes e convenções que permitem aos seus membros envolverem-se em
interacções sociais sem possuírem informação detalhada sobe quem eles realmente
são. Poderão de facto existirem situações de conflito por os adversários terem
excessiva informação sobre os objectivos e motivos de cada um. Existem situações
nas quais mais informação não é melhor que menos informação. Se todos tivessem
informação exaustiva sobre cada um com quem vive e trabalha a probabilidade de
eclodir uma violenta guerra civil seria muito grande.
A maioria das pressuposições acerca do papel e efeitos da informação e
conhecimento baseia-se em modelos de causa-efeito seriamente defeituosos. A
informação e o conhecimento são concebidos como variáveis chave nos processos
sociais e consoante a forma como forem manipuladas determinados efeitos sociais
ocorrerão. A investigação da ciência social ensinou-nos contudo que a partilha do
conhecimento e da informação não ocorre em modelos lineares ou de
estímulo/resposta simples, que proponham relações lineares e casuais entre inputs de
informação/conhecimento e outputs sociais.

*O segundo desafio moral é então para que as sociedades adoptem uma aproximação
realista àquilo que a informação pode fazer contanto que reconheçam completamente
a importância do fornecimento e produção de informação.

Tecnologia
Na base dos desenvolvimentos informativos estão as inovações no desenvolvimento e
aplicação da tecnologia de informação. Estas inovações são uma parte básica da
cultura tecnológica contemporânea que é caracterizada por uma interacção
humano/tecnologia muito agitada. Esta interacção é grandemente determinada pela
irracionalidade e irresponsabilidade e que pode ser resumida com a ajuda de três
metáforas: O Titanic, Cassandra e o Dr. Frankenstein.

*O Titanic representa uma forte crença na perfeição da tecnologia: o navio não pode
ser afundado e portanto é escusado ter a bordo os barcos salva-vidas necessários.
Daqui resulta que os verdadeiros riscos das inovações tecnológicas não são levados a
sério. A cultura tecnológica moderna demonstra um trajecto vigoroso em direcção à
sociedade livre de risco. Esta aspiração de alcançar um controlo sem riscos do
processo social é seriamente embaraçada no seu progresso pelo imprevisível e
inconstante actor humano. Na verdade, o ser humano está cada vez mais a ser visto
como o verdadeiro factor de risco. Daqui resulta que as sociedades modernas
desenvolvem todos os tipos de actividades para reduzir este risco, como seja a

241
monitorização expansiva da conduta humana através de câmaras de vigilância
omnipresentes e o registo electrónico dos movimentos das pessoas. O próximo passo
lógico é a substituição dos seres humanos por robots humanoides.

*Cassandra era a filha do rei Príamo de Tróia que avisou os troianos de que haviam
gregos dentro do cavalo de madeira. Ela era dotada com a capacidade de prever o
futuro, porém ela também tinha sido amaldiçoada por Apolo com o castigo de que
ninguém escutaria os seus avisos. Esta é uma característica da cultura tecnológica:
As vozes de aviso são ignoradas. Em situações onde aqueles que tomam decisões
experimentam uma nova era, uma postura de vencedor e as pressões do tempo e da
competição: todos os semáforos serão ignorados, os dissidentes serão silenciados e a
escolha tecnológica transforma-se numa questão de voar às cegas.

*Dr. Frankenstein personagem da novela escrita por Mary Shelly na qual o médico que
cria um monstro foge, do seu laboratório e é assombrado por este que o desafia a
assumir a responsabilidade por aquilo que criou. A metáfora levanta a questão critica
da responsabilidade pela inovação tecnológica. Quem é responsável quando as
coisas correm mal? Quem assumirá a responsabilidade se resolvermos a divisão
digital e subsequentemente fará face aos incríveis problemas ambientais: os
exagerados altos níveis de consumo energético global, a taxa de emissão de CO2 das
impressoras e computadores e o volume de lixo electrónico causado pelo rápido índice
de obsolescência dos telemóveis e computadores.

Adicionalmente a estas características, a cultura tecnológica moderna é inspirada por


uma forte crença no progresso moral histórico. Em escritos de pensadores sociais,
tais como Joachim di Fiori, Lessing, Hegel, Comte e autores da revolução da
informação contemporânea (Toffler, Negroponte e Gates), a história segue a passos
progressivos: através de esclarecimento e racionalidade e particularmente através da
ciência e tecnologia, a humanidade está no caminho da harmonia e da paz. Porém
este mito de progresso moral na modernidade estourou em Auschwitz e Hiroshima.
Estes acontecimentos confirmaram que não há nenhum progresso linear progressivo e
consequentemente a sugestão de progresso moral é enganadora. A História é circular
e a espécie humana está presa nas ondas recorrentes de conduta imoral grosseira e
da reflexão moral refinada. Apenas a criação de uma nova espécie num Novo Mundo
Corajoso poderia perceber a utopia de uma sociedade sem risco. Porém os
personagens desse Novo Mundo Corajoso jamais serão humanos.

242
*O terceiro desafio moral é o ser-se realista acerca do progresso moral humano
resultante dos avanços da ciência e da tecnologia, levar a sério os riscos da tecnologia
e aprovisionar uma quantidade suficiente de barcos salva-vidas a bordo.

Da informação à comunicação
Há no debate público actual, política e prática de uma forte ênfase na importância da
informação e da tecnologia de informação. A próxima Cimeira Mundial da Nações
Unidas sobre a Sociedade de Informação (Genebra, 2003) sublinha a perspectiva de
sociedades futuras como “sociedades de informação”.
É desconcertante que a maioria dos documentos para a “comunicação” da Cimeira
Mundial da Nações Unidas sobre a Sociedade de Informação (Genebra, 2003) tenham
praticamente desaparecido. Há um perigo real de que a Cimeira cometa os mesmos
erros que a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos (Viena,
1993), que na sua Declaração Final não fez referência à comunicação, mas apenas
mencionou informação como notícias. Porém, a verdadeira questão fulcral é como
moldar as “sociedades de comunicação”. De facto, para a solução dos problemas
mais prementes do mundo não necessitamos de mais processamento de informação
mas sim da capacidade para comunicar. Ironicamente à medida que a nossa
capacidade de processamento e distribuição de informação e conhecimento aumenta,
a nossa capacidade para comunicar e conversar diminui. Nas complexas sociedades
modernas precisamos contudo de comunicar urgentemente uns com os outros. Para a
solução dos nossos problemas sociais mais urgentes a capacidade de comunicar é
mais crítica que a capacidade de informar. É realmente uma perspectiva muito
perturbadora se conseguirmos desenvolver sociedades de informação ou mesmo de
conhecimento nas quais as pessoas são incapazes de conversar uns com os outros.

*O quarto desafio moral é consequentemente que o mundo não produz “sociedades de


informação/conhecimento” mas sim “sociedades de informação”

Diálogo
Para solucionar os problemas mais prementes do mundo, as pessoas não precisam de
mais volumes de informação e conhecimento, mas sim de adquirirem a capacidade de
falarem uns com os outros atravessando os limites da cultura, religião e língua. O
diálogo é absolutamente essencial e fundamental para o encontro entre civilizações.
Globalização sem diálogo transforma-se em homogeneização e hegemonia.
Localização sem diálogo transforma-se em fragmentação e isolamento. Em ambos os
casos a sustentabilidade do nosso futuro comum está seriamente em jogo.

243
O apelo ao diálogo soa a obvio e superficial. Contudo, na realidade o diálogo é uma
forma de discurso extremamente difícil. Em muitas sociedades as pessoas não têm
tempo ou paciência para uma comunicação dialogada. O diálogo não tem um
resultado concreto no imediato. O que entra em conflito com o espírito orientado para
a realização nas sociedades modernas. Além do mais os meios de informação em
massa não são particularmente prestativos em ensinar as sociedades nas artes da
conversação. Muito do seu conteúdo consiste em tagarelices (falas infindáveis sem
dizerem nada), discurso de ódio, palavreado de propaganda publicitária, agressões
sonoras ou debate polémico. Os requisitos para um começo com significado com a
necessidade para o diálogo interno. Isto implica que todos os participantes
questionem os seus julgamentos e suposições. A investigação crítica das nossas
suposições é no entanto um desafio maior uma vez que ignoramos frequentemente as
nossas suposições básicas. Suposições são mapas mentais que temos tendência
para seguir cegamente. Todos nós temos suposições muitas vezes diferentes e
conflituosas, e certamente quando somos originários de culturas diferentes.
Igualmente difícil é a suspensão de julgamento uma vez que estamos fortemente
agarrados às nossas opiniões e avaliações e preferimo-las às incertezas. O diálogo
requer a capacidade de escutar e estar em silêncio. Aprender a escutar é muito difícil
em sociedades que são cada vez mais influenciadas por culturas visuais ao passo
escutar exige uma cultura centrada na audição! Os mass media (meios de
comunicação em massa) oferecem “talk shows” (espectáculos falados) e não “listen
shows” (espectáculos escutados). Além do mais, tal como Krishnamurti diz “nós
escutamos realmente o nosso próprio ruído, o nosso próprio som, não o que está a ser
dito” – a maior parte do tempo escutamos defensivamente e não receptivamente!
“Escutamos para descobrir aquilo que nos ajudará – escutamos para antecipar um
possível perigo”(Ellinor & Gerard, 1998:103). O diálogo só pode ocorrer onde o
silêncio for respeitado. Isto faz fronteira com o impossível nas sociedades modernas
onde a tagarelice parece nunca parar e onde cada vazio necessita ser preenchido com
ruído uma vez que o silêncio deve ser evitado a todo o custo.

*o quinto desafio moral é assim a arte do diálogo.

O Direito de Comunicar
Um diálogo efectivo não poder ter lugar entre pessoas cujas vidas estão ameaçadas,
que não têm liberdade para falar ou para se reunirem, que não possuem meios para
expressar as suas vozes, que não podem falar em confidencialidade e em privado, ou
a quem são negadas formas básicas de educação e participação cultural. Há hoje em

244
dia uma necessidade urgente de adopção de uma declaração universal do direito de
comunicar. Este direito, de momento, não existe como uma clausula da lei
internacional. Tão cedo quanto 1969 Jean d’Arcy apresentou o direito de comunicar
por escrito, “o tempo virá quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos terá
que abranger um direito mais extensivo que o direito do homem à informação... Isto é
o direito dos homens em comunicarem” (D’Arcy, 1969). A força motivadora desta nova
abordagem foi a observação de que o articulado da lei dos direitos humanos existente
(como na Declaração Universal dos Direitos Humanos ou o Compromisso sobre
Direitos Políticos e Civis) era inadequado para lidar com a comunicação como um
processo interactivo.
O direito de comunicar deveria englobar direitos de informação tais como:
- O direito de liberdade de pensamento, consciência e religião.
- O direito de ter opiniões.
- O direito de exprimir opiniões sem a interferência de grupos públicos ou privados.
- O direito do público ser devidamente informado sobre matérias de interesse público.
- O direito de acesso à informação em matérias de interesse público (detidas por
fontes públicas ou privadas).
- O direito em aceder a meios públicos de distribuição de informação, ideias e
opiniões.
Parte do direito de comunicar também seriam direitos culturais tais como:
- O direito de promover e preservar a diversidade cultural.
- O direito de participar livremente na vida cultural da sua comunidade.
- O direito de praticar tradições culturais.
- O direito de fruir das artes e dos benefícios do progresso científico e suas aplicações.
- O direito de protecção à propriedade e património cultural nacional e internacional.
- O direito de criatividade e independência artística, literária e académica.
- O direito de cada um utilizar a sua língua em privado e em público.
- O direito das minorias e povos indígenas à educação e a estabelecerem os seu
próprios media.
Há direitos de protecção tais como:
- O direito do público em ser protegido contra a interferência na sua privacidade pelos
media ou pela comunicação em massa, ou por agências públicas ou privadas
envolvidas na colheita de dados.
- A protecção das comunicações privadas das pessoas contra a interferência de
grupos públicos ou privados.
- O direito ao respeito pelos valores morais vigentes em formas de comunicação
pública.

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- O direito à protecção contra formas de comunicação que sejam discriminatórias em
termos de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social.
- O direito a ser protegido contra informação enganadora e distorcida.
- O direito à protecção contra a propagação sistemática e intencional da crença que
indivíduos ou grupos sociais merecem ser eliminados.
- O direito à protecção da independência profissional de empregados de agências de
comunicação pública ou privada contra a interferência de gestores ou proprietários
dessas instituições.
Deveriam haver direitos para as comunidades tais como:
- O direito ao acesso às comunicações públicas por parte das comunidades.
- O direito ao desenvolvimento de infra-estruturas de comunicação, à obtenção de
recursos adequados, a partilha de conhecimentos e técnicas, a igualdade de
oportunidades económicas e a correcção de desigualdades.
- O direito ao reconhecimento de que os recursos de conhecimento são
amiudadamente um bem comum possuído pelo colectivo.
- O direito à protecção desses recursos contra a sua apropriação privada por indústrias
do conhecimento.
E uma variedade de direitos de participação deveriam ser reconhecidos tais como:
- O direito à aquisição das técnicas necessárias para participar totalmente na
comunicação pública.
- O direito à participação das pessoas na tomada de decisões públicas sobre o
fornecimento de informação, a produção de cultura ou a produção e aplicação de
conhecimentos.
- O direito à participação das pessoas na tomada de decisões públicas sobre a
escolha, desenvolvimento e aplicação da tecnologia de comunicação.

*O sexto desafio moral propõe que a comunidade internacional adopte e ponha em


forma de lei o direito humano de comunicar.

Conclusão
Estes seis desafios morais – se levados a sério – deveriam ser tópicos essenciais na
agenda desses praticantes de comunicação, estudantes e decisores que se
preocupam com o futuro das sociedades de comunicação cuja governação é inspirada
no respeito pelos padrões dos direitos humanos internacionais.

Bibliografia

246
D’Arcy, J. (1969), Direct Broadcasting Satallites & the right to communicate, in EBU
Review, 118:14-18.

Ellinor, l. & Gerard, G. (1998), Dialogue: Discover the Transforming Power of


Conversation, New York, John Wiley & Sons.

Hammelink, C. J. (2000), The Ethics of Cyberspace. London, Sage.

Webster. F. (1995) Theories of the Information Society. London, Routledge.

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