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Etica, Violéncia e Politica Embora ta ethé e mores signifiquem o mesmo, istoé, costumes e modos de agir de uma sociedade, no singular, ethos é o carater ou temperamento individual que deve ser educado para os valores da sociedade e ta éthiké uma parte da filosofia que se dedica as coisas referentes ao carter e & con- duta dos individuos e por isso volta-se para a andlise dos préprios valores propostos por uma sociedade e para a compreensio das condutas huma- nas individuais e coletivas, indagando sobre seu sentido, sua origem, seus fundamentos e finalidades. Toda moral é normativa, pois cabe-Ihe a tarefa de inculcar nos individuos os padrdes de conduta, os costumes e valores da sociedade em que vivem, mas nem toda ética precisa ser normativa (a de Espinosa, por exemplo, nao o é). Uma ética normativa é uma ética dos deveres e obrigagées (como ¢ o caso, por exemplo, da ética de Kant); uma ética nao-normativa é uma ética que estuda as ages e as paixdes em vista da felicidade, e que toma como critério as relagées entre a razao ea vontade no exercicio da liberdade como expressio da natureza singular do indivi- duo ético que aspira a felicidade. No entanto, quer a ética seja ou nfo normativa, nfo hi ética enquanto investigagio filos6fica se no houver uma teoria que fundamente as idéias de agente ético, agio ética e valores éticos. Sob essa perspectiva geral, po- demos dizer que uma ética procura defini, antes de mais nada, a figura do agente ético e de suas ages e 0 conjunto de nogdes (ou valores) que balizam ‘campo de uma acdo que se considere ética. O agente ético é pensado como sujeito ético, isto é como um ser racional e consciente que sabe 0 que faz, como um ser liore que decide e escolhe 0 que faz, e como um ser responsive! que responde pelo que faz. A agao ética é balizada pelas idéias de bom ¢ au, justo € injusto, virtude e vicio isto é, por valores cujo contetido pode variar de uma sociedade para outra ou na hist6ria de uma mesma socieda~ de, mas que propéem sempre uma diferenca intrinseca entre condutas, se- gundo o bem, o justo e o virtuoso. Assim, uma agdo s6 seré ética se for consciente, livre e responsdvel e s6 seré virtuosa se for realizada em confor- midade com o bom e 0 justo. A acao ética s6 € virtuosa se for livre ¢ s6 sera livre se for auténoma, isto é, se resultar de uma decisdo interior ao proprio agente e no vier da obediéncia a uma ordem, a um comando ou a uma pressio externos. Como a palavra autonomia indica, ¢ auténomo aquele que € capaz de dar a si mesmo as regras e normas de sua aco. Evidentemente, isso leva a perceber que ha um conflito entre a auto~ nomia do agente ético e a heteronomia dos valores morais de sua socieda- de: com efeito, esses valores constituem uma tébua de deveres e fins que, do exterior, obrigam o agente a agir de uma determinada maneira ¢ por isso operam como uma forca externa que o pressiona a agir segundo algo que nao foi ditado por ele mesmo. Em outras palavras, o agente no age em conformidade consigo mesmo e sim em conformidade com algo que Ihe é exterior e que constitui a moral de sua sociedade. Esse conflito s6 pode ser resolvido se 0 agente reconhecer os valores morais de sua sociedade como se tivessem sido instituidos por ele, como se ele pudesse ser 0 autor desses valores ou das normas morais de sua sociedade porque, neste caso, teré dado a si mesmo as normas e regras de sua acéo e poder ser considerado ‘auténomo. Por esse motivo, as diferentes éticas filos6ficas tendem a resol- ‘ver 0 conflito entre a autonomia do agente e a heteronomia de valores ¢ fins propondo a figura de um agente racional livre universal com 0 qual todos (05 agentes individuais esto em conformidade e no qual todos se reconhe- cem como instituidores das regras, normas e valores morais. Enfim, a agio s6 sera ética se realizar a natureza racional, livre ¢ res- ponsavel do agente e se o agente respeitar a racionalidade, liberdade e res- ponsabilidade dos outros agentes, de sorte que a subjetividade ética é uma intersubjetividade. A subjetividade e a intersubjetividade éticas sao agoes ¢ a ética é que existe péla e na agao dos sujeitos individuais e sociais, defin'- ddos por lacos e formas de sociabilidade criados também pela agéo humana em condigées hist6ricas determinadas. Etimologicamente, a palavra violéncia vem do latim vis, forca, e signi- fica: 1) tudo 0 que age usando a forca para ir contra a natureza de algum ser (6 desnaturar); 2) todo ato de forga contra a espontaneidade, a vontade ¢ a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violagao da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positi vamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressio contra aquelas coisas e ages que alguém ou uma sociedade define como justas ‘como um direito; 5) conseqiientemente, violéncia é um ato de brutalidade, sevicia e abuso fisico e/ou psiquico contra alguém e caracteriza relagdes intersubjetivas e sociais definidas pela opressio, intimidacao, pelo medo e pelo terror. A violencia se opée a ética porque trata seres racionais e sensiveis, dotados de linguagem e de liberdade, como se fossem coisas, isto 6 irracio- nais, insensiveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética & insepardvel da figura do sujeito racional, voluntario, livre e responsdvel, traté-lo como se fosse desprovido de razo, vontade, liberdade e responsa- bilidade é traté-lo néo como humano e sim como coisa, fazendo-lhe violén- cia nos cinco sentidos que demos a esta palavra. Hoje a palavra de ordem em toda parte 6 0 “retorno a ética” ou a “ne- cessidade de ética”. Fala-se em crise dos valores e na necessidade de um eo a ética, como se esta estivesse sempre pronta e disponivel em al- ‘gum lugar e como se n6s a perdéssemos periodicamente, devendo, peri dlicamente, reencontsé-la como sea ética foese uma coisa que se ganha, se guarda, se perde e se acha e nao a acdo intersubjetiva consciente e livre que se faz A medida que agimos e que existe somente por nossas agbes ¢ nelas. Por que a palavra de ordem “retorno a ética”? Porque: — 0 refluxo dos movimentos e das politicas de emancipacio do géne- ro humano criou um vazio que a ideologia neoliberal sente-se a vontade para preencher a seu bel-prazer uma vez. que no encon- tra opositores; — a forma atual da acumulacao ampliada do capital, chamada de acumulagio flexivel, produz a dispersdo, a fragmentacao de grupos e classes sociais, destruindo seus antigos referenciais de identidade € de acio e tornando altamente complicada a criagao de novos refe- renciais, de tal maneira que a fragmentagao e a dispersao tendem a parecer como naturais e a se oferecer como valores positivos; a naluralizagdo e valorizagio positiva da fragmentacao € disper ‘sfo socioeconémica aparecem no estimulo neoliberal ao individua ismo competitivo e ao sucesso a qualquer prego, de um lado, e, de outro lado, como a salvacio contra o egoismo pela produigio do sentimento comunitério por todas as formas religiosas de funda- mentalismo. O elogio do individualismo agressivo e a busca do fechamento religioso destroem o campo da acio intersubjetiva ¢ sociopolitica como campos de abertura e realizagao coletiva do pos sivel no tempo, isto é, a criagao histérica; — as mudangas tecnolégicas, a partir do momento em que a técnica deixa de ser ciéncia aplicada para se tornar ciéncia cristalizada em objetos de intervencdo humana sobre a natureza e a sociedade, transformam a tecnologia nao s6 em forma de poder, mas sobretu- do em forca produtiva e parte integrante do capital, ¢ essa trans- formagio, feita exclusivamente sob a légica do mercado, 6 sua trans~ formacao em légica do poder como decisio sobre a vida e a morte em escala planetaria; — a sociedade da midia e do consumo de bens effmeros, pereciveis ¢ descartéveis engendra uma subjetividade de tipo novo, o sujeito narcisista que cultua sua propria imagem como tinica realidade que lhe € acessivel porque formada e conservada pelas imagens que a midia constr6i e Ihe envia, e que, exatamente por ser narc sista, exige aquilo que a midia e o consumo lhe prometem sem cessar, isto 6, a satisfaco imediata dos desejos, a promessa ilimita- da de juventude, satide, beleza, sucesso € felicidade, promessas que, no entanto, nao podem se cumprir, gerando frustragéo ¢ niilismo. ‘Aesse quadro contrapée-se a palavra de ordem do “retomno a ética’ como panacéia geral. Como é pensada essa ética, a qual se pretenderia “retomar"? Em primeiro lugar, como reforma dos costumes (portanto, como mo- ralidade) e como restauracao de valores € ndo como analise das condicoes presentes de uma acio ética. Em segundo, como dispersio de éticas (ética politica, ética familiar, ética escolar, ética profissional, ética da empresa, ética médica, ética uni versitaria), desprovidas de qualquer universalidade porque espelham sem andlise e sem critica a dispersio e fragmentacao socioecondmica. Mais dé MALIN a que ideologia, essa pluralidade de éticas exprime a forma contemporiivea da alienacao, isto é, de uma sociedade totalmente fragmentada ¢ dispersa que nao consegue estabelecer para si mesma sequer a imagem da unidade que daria sentido a sua propria dispersao. Fragmentada em pequenas ti: «as locais, a que se reduz a ética? Ela passa a ser entendida como compe- téncia especifica de especialistas (as comissies de ética) que detém o senti- do das regras, normas, valores e fins locais e julgam as agoes dos demais segundo esses pequenos padres localizados, os quais freqiientemente es tao em contradicio com outras localidades, pois a sociedade capitalista ¢ tecida pelas contradicdes internas. Em terceiro lugar, é entendida como defesa humanitaria dos direitos humanos contra a violéncia, isto é, tanto como comentério indignado con« tra a politica, a ciéncia, a técnica, a mfdia, a policia e o exército, quanto como atendimento médico-alimentar e militar dos deserdados da terra. fio momento em que as ONGs deixam de ser vistas e pensadas como partes de movimentos sociais mais amplos ligados a cidadania, para ser reduzidas & condigao assistencial que a imagem das vitimas impde a consciéncia cul- pada dos privilegiados. Pensada dessa maneira, a ética se torna pura e simples ideologia e, como tal, propicia ao exercicio da violéncia. Por qué? Antes de mais nada, porque 0 sujeito ético ou 0 sujeito de direitos esta Cindido em dois: de um lado, o sujeito ético como vitima, como sofredor passivo e, de outro lado, 0 sujeito ético piedoso e compassivo que identifica © sofrimento e age para afasté-lo. Isso significa que a vitimizagao faz com que 0 agir ou a aco fiquem concentrados nas maos dos nao-sofredores, das ndo-vitimas, que devem trazer, de fora, a justica para os injusticados. Estes, portanto, perderam a condicao de sujeitos éticos propriamente ditos ara se tornar objetos de nossa compaixao. Isso significa que, para que os nao-sofredores possam ser éticos, sao necessérias duas violéncias: a pri- meira, factual, é a existéncia de vitimas; a segunda, o tratamento do outro como vitima sofredora passiva e inerte. Dai o horror causado pelo movi- mento dos sem-terra que se recusam a ocupar o lugar da vitima sofredora, passiva, muda e inerte, que recusam a compaixao e por isso mesmo, numa tipica inversio ideol6gica, sdo considerados nao sujeitos éticos e sim agen- tes da violencia. Além disso, como téo lucidamente observou Alain Badiou num pe- qqueno ensaio Sur le Mal, enquanto na ética é a idéia do bem, do justo e do feliz. que determina a autoconstrugdo do sujeito ético, na ideologia ética é a aw ienagem do mal que determina a imagem do bem, isto & 0 bem torna-se simplesmente @ nio-mal (nio ser ofendiclo no coxpo ¢ na almay nto set mmaltratado no corpo e na alma é 0 bem). bem se forma a mera ausonca de mal ou privagio de mal; ndo € algo afirmativo ¢ pestivo, mas purswente reativo. Fis por que a étia como ideologia salient e sublinha 0 sofrimento individual e coletivo, a corrupgao politica ¢ policial, pois com tais imagens ela oferece fatos visiveis que sustentam seu discurso e consegue obter 0 consenso da opinizo: somos todos contra o Mal, porém no nos perguatern sobre o Bem porque este divide a opinido, e a “modernidade”, como se sabe, € 0 consenso. : E finalmente, porque a imagem do mal e a imagem da vitima so do- tadas de poder midistco:sio poderosas imagens de espetéculo para nossa indignacao e compaixio, acalmando nossa consciéncia culpada. Precisa mos das imagens da violéncia para nos considerar sujeitos éticos. {A ética como ideologia significa que, em lugar de a ago reunir os seres humanos em torno de idéias e praticas positivas de liberdade e felici dade, ela os retine pelo consenso sobre o mal. Com isso, a étca como ideo- ogia é duplamente perversa: pot um lado, ela procura cee ima gem do presente como se este ni 36 fosse eterno, mas sobretuco como s existisse por si mesmo, como se nao fosse efito das agdes humanas © ns tivesse causas passadas e efeitos futuros, isto é, reduz.o presente ao instar te imediato sem meméria ¢ sem porvir; por outro lado, procura mostra) que qualquer idéia positiva do bem, da felicidade e da liberdade, da justice eda emancipacio humana é um mal. Em outras palavras, considera que a idéias modernas de racionalidade, sentido da histéria, abertura tempo do possivel pela acio humana, objetividade, subjetividade teriam sido res ponsaveis por toco o mal do nosso presente, cabendo traté-las como misti ficagdes totalitras. A ética como ideologia¢ perversa porque toma 0 Pre sente como fatalidade e anula a marca essencial do sujeito ético ¢ da aciv ética, isto é, a liberdade. il i ’io-violéncia brasileira, isto é, Ha no Brasil um mito poderoso, 0 da nio~ . imagem de um povo generoso, alegre, sensual, solidario, que desconhece racismo, o sexismo, o machismo, que respeita as diferencas étnicas, religic iserimi is etc. Pe sas e politicas, nao discrimina as pessoas por suas escolhas sexuais. 4 prego a palavra “mito” e nao o conceito de ideologia para me referir 4 maneira como a ndo-violéncia ¢ imaginada no Brasil? Emprego mito dan- dlo-the os seguintes tragos(1) ma narrativa da origem reiterada em inti ras narrativas derivadas que repetem a matriz de uma primeira narrativa perdida; 2) opera com antinomias, tensdes e contradigdes que néo podem ser resolvidas sem uma profunda transformagao da sociedade no seu toclo que por isso sao transferidas para uma solugdo imaginaria que nega ¢ justifica a realidade; 3) cristaliza-se em crengas que sao interiorizadas num grau tal que nao sao percebidas como crengas, mas como a propria realida- de e torna invisivel a realidade existente; 4) nao é apenas crenca, mas aco, pois resulta de agdes sociais e produz coiné resultado outras agGes sociai que o confirmam, isto 6, um mito produz valores, idéias, comportamentos ¢ praticas que o reiteram na e pela acdo dos membros da sociedade; 5) fem uma fungao apaziguadora e repetidora, assegurando a sociedade suduto- conservagao sob as transformacées histéricas. Isso significa que um mito é o suporte de ideologias: ele as fabrica para que possa, simultaneamente, en- frentar as mudangas histéricas e negé-las, pois cada forma ideolégica esti encarregada de manter a matriz mitica inicial. Em suma, a ideologia é a ex- pressio temporal de um mito fundador que a sociedade narra a si mesma Muitos indagarao como o mito da ndo-violéncia brasileira pode per- sistir sob o impacto da violéncia real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos tiltimos tempos, é também ampliada por sua divulgacdo e difusao pe- Jos meios de comunicagao de massa. Ora, é justamente no modo de inter- pretagdo da violencia que o mito encontra meios para se conservar: ele per- manece porque, gracas a ele, se pode admitir a existéncia empirica da vio léncia e pode-se, ao mesmo tempo, fabricar explicagées para denegé-la no instante mesmo em que é admitida. E isso que temos visto na produgo recente de uma imagem da violéncia obtida pela construgio de varias ima- gens da violéncia que ocultam a violéncia real no instante mesmo em que sio exibidos atos violentos. Se, por exemplo, prestarmos atengéo ao voca- buldrio empregado pela imprensa, pelo rédio e pela televisio, observare- mos que 0s vocébulos se distribuem de maneira sistemética: — fala-se em chacina e massacre para designar o assassinato em mas- ssa de pessoas indefesas, como criancas, favelados, encarcerados, sem-terra; — fala-se em indistingdo entre crime e policia para se referix & participa- ‘gdo de forcas policiais no crime organizado, particularmente 0 jogo do bicho, o narcotrafico e os seqiiestros; — fala-se em guerra civil tacita para se referit ao movimento dos sem- terra, aos embates entre garimpeiros e indios, policiais e narcotra~ ficantes, aos homicidios e furtos praticados em pequena ¢ larga escala, mas também para designar o aumento do contingente de desempregados ¢ habitantes das ruas, os assaltos coletivos a su permercados e mercados, e para falar dos acidentes de transits; — fala-se em fraqueza da sociedade civil para se referir & auséncia de entidades e organizagées sociais que articulem demandas, reivin- dicagses, criticas e fiscalizagao dos poderes publicos; — fala-se em debilidade das instituigGes politicas para se referir & cor- rrupgao nos trés poderes da reptiblica, & lentidao do poder judicis- rio, A falta de modernidade politica; — fala-se, por fim, em crise ética para se referir ao crime imotivado, aos lacos secretos entre a burguesia ¢ os poderes ptiblicos para ob- tengdo de recursos publicos para fins privados, 4 auséncia de de- coro politico, a impunidade no desrespeito aos consumidores por parte da indistria e do comércio, ea impunidade no mau exercicio da profisséo. Essas imagens tém a fungio de oferecer uma imagem unificada da vio- léncia, que seria como que 0 miicleo delas. Chacina, massacre, guerra civil ticita e indistingao entre policia e crime pretendem ser 0 lugar onde a violén- cia se situa e se realiza; fraqueza da sociedade civil, debilidade das institui- (des e crise ética so apresentadas como impotentes para coibir a violencia, que, portanto, estaria situada noutro lugar. As imagens indicam a divisio entre dois grupos: de um lado, estdo os grupos portadores de violéncia e, de outro, os grupos impotentes para combaté-la. £ exatamente essa divisdo que ros'permite falar numa ideologia da ética ou da ética como ideologia. v Como explicar que a exibi¢do continua da violencia no pais poss dlei- xar intocado 0 mito da nao-violéncia e ainda suscitar o clamor pelo retorne a ética? Para responder, precisamos examinar os mecanismos ideologicos de conservacéo da mitologia. Que mecanismos sdo esses? + 1)o da exclusdo: afirma-se que a nagdo brasileira é ndo-violenta e que, | se houver violéncia, esta é praticada por gente que nao faz. parte da nage va nena can {mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). © mecanismo da exclusiio | produ a diferenca entre um nés-brasileiros-ndo-violentos e um eles-ndio- brasileiros-violentos. “Eles” nao fazem parte do “nés"; 2) 0 da distingdo: distingue-se 0 essencial e o acidental, isto é, por es- séncia, 0s brasileiros nao sao violentos e, portanto, a violéncia é acidente, um acontecimento efémero, passageiro, uma “epidemia” ou um “surto” localizado na superficie de um tempo e de um espaco definidos, superdvel e que deixa intacta nossa esséncia ndo-violenta; 3) 0 juridico: a violéncia fica circunscrita ao campo da delingtiéncia ¢ da criminalidade, o crime sendo definido como ataque a propriedade pri vada (furto, roubo e latrocinio, isto é, roubo seguido de assassinato). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem sdo os “agentes vio- lentos” (de modo geral, os pobres) e legitimar a ado (esta sim, violenta) da policia contra a populacao pobre, os negros, as criangas de rua e os favelados. Aacao policial pode ser, as vezes, considerada violenta, recebendo o nome} |. de “chacina” ou “massacre” quando, de uma s6 vez e sem motivo, o ntime- | ro de assassinados é muito elevado. No restante das vezes, porém, 0 assas- \ sinato policial é considerado normal e natural, uma vez que se trata de \ proteger o “nés” contra o “eles”; 4) 0 sociolégico: atribui-se a “epidemia” de violéncia a um momento definido do tempo, aquele no qual se realiza a “transigao para a moderni- dade” das populagées que migraram do campo para a cidade e das regides mais pobres (Norte e Nordeste) para as mais ricas (Sul e Sudeste). A migra- do causaria o fendmeno tempordrio da anomia, no qual as formas antigas de sociabilidade se perderam e ainda nao foram substituidas por novas, fazendo com que os migrantes pobres tendam a praticar atos isolados de violéncia que desaparecerdo quando estiver completada a “transicao”. Aqui, nao s6 a violéncia é atribuida aos pobres e desadaptados, como ainda é consagrada como algo temporario ou epis6dico; 5) 0 da inversdo do real, gracas & produgo de méscaras que permitem dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem nao- violentos. Assim, por exemplo, 0 machismo é colocado como protecio na~ tural & natural fragilidade feminina, protecdo que inclui a idéia de que as mulheres precisam ser protegidas de si préprias, pois, como todos sabem, 0 estupro é decorrente de um ato feminino de provocagao e sedugao; 0 pater- nalismo branco é visto como protegao para auxiliar a natural inferioridade dos negros; a repressao contra os homossexuais é considerada protecdo na- tural aos valores sagrados da familia e, agora, da satide e da vida de todo 0 _género humano ameagado pela Aids, trazida pelos degeneradios; a vestet

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