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Sedi Hirano CASTAS, ESTAMENTOS E CLASSES SOCIAIS Introdugdo ao pensamento sociolégico de Marx e Weber 3# edigio revista SuMARIO Inmopucio——___. is Capitulo 1 ‘Castas COMO UMA DAS MODALIDADES DE FORMAGAO. SOCIAL PRE-CAPITALISTA ce ensnnenennntnenn ene 31 Capitulo 2 [ESTAMENTOS: DO FEUDALISMO A MONARQUIA ABSOLUTA...__-51 Capitulo 3 CLASSES SOGIAIS: DA MONARQUIA ABSOLUTA [AO CAPITALISMO MODERNO cease OL (CORRS pr reece 93 (BiREOGRAMA re — 207 Inropugao O presente estuco emergin da necessidade de rever as concepcbes de Karl Marx e Max Weber, dois classicos da sociologia alema, quanto a nogdes ¢ conccitos de casta, esta- mento e classe social, para que a investigacio sobre a estrutura de classes da sociedade brasileira pudesse ser empreendida de uma forma satisfatoria. A partir dessa preocupacio, deli- neamos o objetivo do presente livro: a) sistematizar 0 que os citados autores selecionaram como relevante & discussio dos conceitos ¢ nogdes de casta, estamento e classe social; b) relacionar as noses e os conceitos com determinadas formagdes sociais ¢ 0s seus respectivos modos de produgio c/ou modalidades tipico-ideais de organizagiio da produgao. O tema assim exposto conduz a0 agugamento dos mo e précapitalismo; c) andlise centralizada na instinct cstrutural (cconémica) ou nas esferas val das representagises id mente, d) centralizacio da anilise no ator ou no gru Estas colocagées preliminares servitio zamentos tebricos para o desenvolvimento do t sente estudo: castas, estamentos e classes sociais. 13 nsiderago as correntes tedricas neomarxistas € (endo como pequenas anotagées criticas de or conseguinte, intencionalmente sumérias ¢ es as), O que pretendemos com este estudo é tracar um nto entre metodologias radicalmente diversas, em ter 3s epistemoldgicos e axiolbgicos, que subsidiard a pesquisa estamos elaborando sobre a formacio da sociedade de lasses no Brasil. Com esse objetivo, empreendemos este estudo de cariter preliminar, quase marginal — no passa de aponta- mentos ou pequenos comentirios -, composto de trés capi tulos. © primeito, intitulado “Castas como uma das mo- dalidades de formacio social pré-capitalista”; 0 segundo, tamentos: do feudalismo 4 monarquia absoluta”; ¢ 0 ter= ceiro, “Classes sociais: da monarquia absoluta ao capitalismo modemo”, sendo os dois iltimos os capitulos centrais. Por out lado, principalmente em relacio a Marx, rocuraremos encadear estamentos sociais com classes so- ciais, numa articulagao que deverd pressupor, necessariamen- te, uma relagio de sucessiio. Os primeiros precedendo as de desenvolvimento his- térico-social. Em outras palavras, a base do estudo versara sobrea transformagio ou a transicio da sociedade estamental A sociedade de classes, Essa proposigio central nos conduzira a discussdo da transicio do feudalismo ao capitalismo, uma vvez que os pressupostos da sociedade estamental sio 0 modo de produgio feudal e a propriedade feudal ou estamental, como veremos em Marx, ¢ os da sociedade de classes, 0 modo de produgao capitalista moderno ¢ a propriedade pri- vada ou burguesa. Ao debater a transigio entre estes dois idios de desenvolvimento das forsas produtivas, coloca- 10s a discussio da seguinte questio: sera a monarquia 4 absoluta um Estado feudal ou burgués? Quem tores do poder, a burguesia emergente ou a aristoc decadéncia? As relacdes juridicas e politicas so ou 1 tielas das instituigées feudo-estamentais? Ou, de out io as relagdes juridicas e politicas, no periodo da moi quia absoluta, formas cristalizadas que refletem em seu gos o poder da burguesia? Estas questées nos remeterio discussio da formacio da burguesia e da constitui¢ao desse grupo social em classe social a partir das fissuras do feudalis- mo. Nesse contexto, seri desenvolvida a nossa interpretacio das classes sociais e da formacio da sociedade de classes. Em Weber, tornarseé desnecessirio, ou melhor, irrelevante, este encaminhamento, em face da polt-histo- icidade de suas formulagées tedricas,' como veremos mais adiante. Finalmente, 0 primeiso capitulo seré apenas um exemplo de uma das alternativas de formacio social pré- a, uma vez. que o regime de castas no € comum a todas elas. Quanto & técnica de exposicio, ela é aparentemente reiterativa por duas raz6est a) em vez de parafrasearmos Marx € Weber, optamos pelas citagdes de longos ¢ exaustivos excer- tos, localizando neles alguns elementos que consideramos fundamentais para a andlise da estratificago e da estrutura social; b) na caracterizacao sistemética, procuramos selecio- cio, desenvolvimento ¢ desintegracio de formagio social (no caso de Weber seria mais em de constituicdo, persisténcia e auséncia das ca tipico-ideais). Notulas metodolégicas Neste pequeno comentario metodoldgico, gosta- mos de realgar a irredutibilidade axiolbgica e episte- moldgica dos pensamentos de Marx e Weber. Em Weber, “a finalidade da construgao do conceit tipico-ideal é sempre tornar mais claramente explicita, no a categoria (classe) ou a caracteristica média, mas sim a carac- tetistica individual dos fenémenos culturais”. De forma in- tencional, Weber considera o tipo ideal essencialmente — se no exclusivamente — ‘como um constructo mental pata o levanta- mento minucioso e a caracterizacio sistemé- tica de padroes (de comportamento) indi- viduais concretos que sio significativos em sua singularidade, tais como cristianismo, capitalismo etc. Na caracterizacio sistemitica, por exemplo, ressal- tamsse de modo unilateral, abstraindo-se e acentuando-se, “cer- tos elementos conceitualmente essenciais”? A partir deste pro- cedimento, elaboram-se os conceitos tipico-ideais da socio- logia compreensiva, que tem por objeto de estudo as ages sociais intetindividuais dotadas de um sentido “mentado”. Em termos epistemoldgicos e axiolgicos a poli Aistoricidade dos conceitos weberianos advém de seu rela- tivismo e dos pressupostos metodolégicos assumidos pelo investigador, a saber: a realidade éinfinita (primeira assuncio); somente uma parcela desta dida e compreendida pelo sujeito da investigacéo (segunda assungio). A compreensio se completa a partir da captacio dos sentidos da agio e da relagio social, eos conceitos, apreen- 16 didos pelo sujeito através da abstragio, resultam em mentos de interpretagdo, no caso em conceitos tipico-ideais elaborados a partir da observacao a posteriori de uma dada realidade historico-cultural (apesar de no momento da in- vestigacio eles aparecerem como elaboragdes aprioristicas), Mas os conceitos “puros” (por serem frutos de uma depura- ‘go mental ¢ por sua fundamentacio légica) vio além desta realidade, transformando-se em experimento ideal. Raramen- te correspondem, de modo absoluto, a forma social histori- camente dada, ao objeto de investigacio. A sua pol-histo- ‘ricidadereside, em suma, no fato de ser a realidade inapreensivel em sua totalidade, mas parcialmente apreensivel, em alguns de seus elementos, pela representacio intelectualmente clabo- ada, escorada por regras formais, as quais garantem um conhecimento condicional que, na concepgio weberiana, em outras palavras, é a interpretagio dos fatos sociais, feita a par- tir de uma formalizagio de pressupostos que sio ordenagies aptioristicas e valorativas de conceitos socioldgicos. Em termos de teoria do conhecimento, segundo a interpretagio realizada por Merleau-Ponty, para Weber “a ver- dade sempre deixa uma margem de sombras, que ela nao esgota a realidade do passado e menos ainda a do presente, porque admite que a histéria € o lugar natural da violencia” Prosseguindo, esse autor afirma: Nao se poderia evitar a invasio da historia historia, porém podese proceder de tal modo que 0 entendimento histético, como © sujeito kantiano, construa de acordo com certas regras que Ihe assegurem, na sua re- presentacio do pasado, um valor intersub- jetivo. Ainda, segundo Merleau-Ponty, oentendimento histérico, como o entendimen- to fisico, forma uma verdade “objetiva” na me- dida em que a constréi e na qual o objeto somente um elemento numa representacio co- cerente, que pode ser retficada e precisada indefi- rnidamente, porém sem nunca se confundi com a coisa em si. O historiador nio pode observar © passado sem encontrar nele um sentido, sem acrescentarIhe o relevo do importante ¢ do acessorio, do essencial e do particular, esbogos ¢ realizagées, preparagies € decadéncias, e estes vetores tracados no conjunto compacto dos fir desfiguram uma realidade na qual tudo é igualmente real e fazem cristalizar nela os n05- 0s interesse.? Nessas passagens divisamos uma posigio metodo- lbgica e filosbfica que separa 0 ser cognoscente do objeto cognoscivel e afirma a impossibilidade de o primeito apreen- der o objeto em sua esséacia absoluta, isto & a negacio do conhecimento absoluto tal como existe na realidade hist6- rica, Portanto, de acordo com essa visio, Weber nega a pos- lade de © sujeito investigador apreender o objeto de conhecimento em sua pureza fenoménica e sua verdade ab- soluta, Por conseguinte, 0 entendimento histérico torna-se uuma probabilidade quando o investigador introduz nos fi- tos sociais uma representagio intelectual, escorada por te- gras que, como ja afirmamos, garantem 0 conhecimento ficional resultante da opcio do investigador quanto & relevncia que este atribui aos fenémenos sociais quando da selecio dos eventos considerados significativos do ponto de vista do conhecimento cientifico. 18 Considerando o exposto, a concepgio weber pressupée, na interpretacio das formas sociais, uma ordenagio a priori de um sistema de con- ygicos construidos através da ela- boracio tipicovideal, [..] a sociologia tem por objeto a interpretagio da ago social, para cexplicéla em seus desenvolvimentos ou efeitos compreender, interpretandoas, as agdes orientadas por um sentido. Segundo Flotestan Fernandes, “a interpretagio da aco social depende, inteiramente, da capacidade do socidlogo para descobrir 0 sentido subjetivo ou mental das agées [ seja do sentido existente de fato[..]seja do sentido construido como tipo ideale referido a agentes tipico-ideais”, Neste tltimo, “procurase captar 0 sentido ou a conexio de sentido através de sua construgio racional” (pela interpretago), levandose em consideracio “as conexdes de sentido irracionais, condicio- nadas afetivamente, do comportamento, que influem na aco, como ‘desvios’ de um desenvolvimento da mesma ‘cons- truido’ como puramente racional com relagio a fins”.* Como observa Florestan Fernandes, a0 construir 0 tipo ideal o investigador lida com duas séries, “uma real (os fenémenos observados em seu curso) ¢ outra ideal (0s fend ‘menos no curso do como s, sto é, no curso construido nalmente)”, 0 que permit paracio, “de forma positiva ¢ objetiva, os fatores re cessenciais e significativos para a interpretacio soc um fenémeno social dado”, Enfim, conforme ess posigio metodolégica de Weber, os “conceitos ass dos sio conceitos generalizadores: retém 0 no o que é acess6rio [.] parecem relativamente va v ica”, pois dentro de sua pureza conceitual as de andlise so construgées tedricas: “O mes- eno histotico pode ser ordenado, através de um de 8, por exemplo, como Audal, por outro como putrimonial, por algum outro ainda como burocritica, ¢ por outro como carismatico”. Sio simplesmente, acrescenta Florestan Fernandes, “formas ldgicas subjetivas de entendi- mento, utilizadas sociologicamente como esquemas in- texpretativos’ $ Em suma, os esquemas interpretativos resultantes da construcio de tipos ideais so conceitos puros, gene- ralizadores, invariantes, despojados da dimensio tempo. Nao se deve entender por polihistdrico, ressalte-se, uma possivel competicio entre os diversos elementos coexistentes na reali- ara se impor como domi- istoricidade esta no ape- nante, mas, ao contriio, a p nas no objeto, mas também no sujeito da aco social como sujeito polichistérico. Quanto A possibilidade de conduta, os individuos podem agir tanto de forma completamente irracional quanto racional: ‘A agio real sucede na maioria dos casos com obscura semiconscincia ou plena incons- citncia de seu sentido “mentado”. O ator [.] atua na maior parte dos casos por instinto ou costume. Apenas ocasionalmente — e, numa massa de ages andlogas, unicamente em a idividuos — se eleva & consciéneia um conceitos mediante uma classificagio dos pos- siveis “sentidos mentados” ¢ como se a agio real transcorresse orientada conscientemente com sentido Weber sustenta que “as historias” so atribuigées do sujeito da investigagéo, havendo mt cos conforme a posicio axioldgica desse sujeito em face da infinitude do real (a forma de ordenar os elementos que com- poem as unidades do real, dependendo da op¢io do investi gador, pode assumir as caracteristicas de “feudal” ou “caris- mitica”, ou ainda de “patrimonial”), Portanto, a sociologia compreensiva constréi concertos mediante uma classifica- io dos possiveis “sentidos mentados”, e estes so generaliza- es. Afirma JeanMarie Vincent que as categorias mais abstratas, por exemplo, as da sociologia compreensiva, estio sempre em intimo contato com um ponto de vista cul- tural, que é 0 fundamento de sua validez; in- temporais em sua formulagio, somente 0 sio, verdadeira ¢ condicionalmente, quando ser ‘vem para comparar a realidade cultural das distintas épocas histbricas a partir de valores relativamente constantes (ou seja, que se bene- m de uma aceitagio bastante ampla no mundo estudioso). E acrescenta: [Asistemitica (a sociologia) depend te sentido, da conexio intima com a histéria, a sociologia compreensiva — conjunto hie- rarquicamente classificado de tipos ideais — niio pode ter como missio se nao a de elevar & 21 altura da consciéncia racional os conteiidos da experiéncia social vivida.” Deste modo, os conceitos da sociologia compreen- siva sio genéricos, na medida em que resultam da abstrac30 dos elementos “impuros”, “residuais” ¢ culturalmente irre. levantes, salientando-se certos elementos que do ponto de vista do investigador so conceitualmente essenciais, No en- tanto, os conceitos, tais como casta, estamento e classe so- cial sio, por sua vez, singulares e especificos a uma dada formagio histbrico-cultural, Por exemplo, o conceito de classe em Weber, dependendo de certas caracteristicas que se acen- tuem, pode pertencer a fase do capitalismo moderno — no caso, acentuarseiam as caracteristicas Iucrativas em termos de compensagio de interesses no mercado, empresa lucrati- va, célculo racional etc; por outro lado, no de estamento, na medida em que se acentuassem 2 nogio de honra social e © problema da usurpagio destas honrarias, estilo de vida, privilégios, monopélios, qualificagao social etc., verlamos que a organizacio estamental entranha as caracteristicas do protocapitalismo, tais como 0 capitalismo aventureito, co- mercial , até mesmo, 0 capitalismo colonial, Neste sentido, em varias obras de Weber 0 tempo macro-histérico se fa presente, Em Weber, toda a anilise se centraliza no ator so- cial, no havendo para a sociologia compreensiva “uma per sonalidade coletiva em acio”; ¢ quando se fila do Estado, da nagio, da socie dade anénima, da familia, de um corpo mili- tar ou de qualquer outra formacio seme- Ihante referese unicamente a0 desenvolvi- mento, numa forma determinada, da acio social de alguns atores, seja real ou cons- truida como possivel.’ 2 Para Weber, a interpretagio da aco deve levar em consi- deragio 0 importante fato de que os conceitos empregados tanto pela linguagem cotidiana como pelos juristas (¢ também pelos outros profissionais) sio sepresensagées de algo que em parte existe e em parte se apresenta como um dever — se na mente dos homens conere- tos — [e que] essas representagSes enquanto tais possum uma poderosa, amitide domi- nante, significagio causal no desenvolvimento da conduta humana concreta? Com estas citagdes, esclarecemos em parte 0 problema da anilise centralizada no sujeito e o problema das represen- tapées idcologicas e juridico-politicas. Passando agora 20 exame da posigo metodologica de Marx, percebemos 0 seguinte: a) 0 sujeito cognoscente determina ¢, por sua vez, determinado pelas condigdes materiais objetivadas pela produgio social; b) 0 objeto de conhecimento é uma determinacio do sujeito. B neste con- texto que se coloca a questio dos conceitos como categorias histbricas, ou seja, como produtos das condigées histérico- sociais de uma dada formagio social. Em termos epistemol6gicos, segundo Florestan Femandes, 0 conhecimento cientifico ¢ 0 resultado do ajus compreensio desta se realiza definidas: quanto as condigées de formagio de um dado siste ‘Gio intima’ do sistema considerado eo sentido dessa alt Prosscgue Florestan Fernandes: “Uma explicagio des pretende reter os fendmenos 23 aspirando interpretar positivamente a origem, a vighncia ea transformacio dos processos sociais”.” ‘Marx denomina “dialético”® o seu método de anili- se da realidade social, e encontramolo exposto no prologo da Contribuicio a critica da economia politica. Portanto, € no preficio da citada obra que se encontram os fundamentos tedricos do método dialético, que resultou da “revisio critica da Filosofia do dircito, de Hegel”. Estas investigagdes, firma Marx, conduziram ao seguinte resultado: “As relagdes juridicas, assim como as formas de Estado, nio podem ser explicadas por si ‘mesmas, nem pela chamada evolugio geral do espirito huma- no” (critica filosofia racionalista ciealista;essas relagSes “tém, 0 contrério, suas raizes nas condigdes materiais de existéncia em seu conjunto, condigdes estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVII, compreendia sob 0 nome de sociedad civil”. Conduziram também & conclusio de “que.a anatomia da sociedade deve ser procurada na Econo- mia Politica”. Tendo tomado consciéncia do problema do conhe i ientifico da sociedad, resumidamente Manx formula da seguinte forma o esquema tebrico que serviu para orientar seus estudos: Na produgio social de sua existncia, os ho- ‘mens entram em relagGes determinadas, neces sirias, independentes de sua vontade; estas tela «Ges de producto comespondem a um grat de terminado de desenvolvimento de suas forcas materiais de produco. O conjunto destas rear ses de producio consttui a estrutura econd- ica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura juridica e politica € 4 social, politica ¢ intelectual em geral. Nao & a conscigncia dos homens que determina sua exis- téncia, pelo contritio, & a existincia social que determina sua consciéncia, A um certo grau de seu desenvolvimento, as forgas materia de pro- dugio da sociedade entram em conflito com as relagdes de produgio existentes, ou, o que nao -mais que sua expressio juridica, com as relagdes de propriedade no interior das quais se haviam movido até entio, De formas de desenvolvimen to das forcas produtivas que eram, esas con- digdes se transformam em pesadas travas. Ini- case entio uma era de revolugio social, A mu- danga produvida na base econdmica transtoma mais ou menos rapidamente todo 0 colossal edificio, Ao considerar tais transformagis, te- ‘mos de distinguir sempre ch palavra, as formas ideo! i homens adquirem consciéncia deste conflito © levam a suas tltimas conseqiiéncias. Assim, como nio se julga um individuo pela idéia que faz de si mesmo, também nao se julga uma épo- a de revolugio pela consciéncia que de si mesma, Esta consciéncia se exph Ihor pelas contradigdes da vida mate conflito que opde as forgas socais de as forgas de produgio que possa al relagées de producio novas e superiores nunca ‘ocupam seu lugar nela antes que as condigdes 25 materiais de existéncia dessas relages hajam sido incubadas no préprio seio da velha sociedade, ..] Esbocados em grandes tragos, os modos de producio asiitico, antigo, feu. dal e burgués moderno aparecem como épo- cas progressivas da formagio econdmica da sociedade.!® Este trecho demonstra que, a partir de seu ctiticos, Marx conclui que “as relagdes ou formas juridicas, oliticas e religiosas” e também “as formas de Estado” sio abstragdes genéricas e vazias de significagio, quando conside adas como categorias independentes ou categorias autode- tetminantes. Ao contritio, estas categorias (estruturas) juridicas ¢ politicas (Estado), religiosas (uma das manifestagdes da ide ologia do grupo dominante) etc, so determinadas em dilti- ma instincia pela producio social (rlagGes sociais de produ- io, forgas produtivas, divisio social do trabalho etc), Castas, cstamentos e lasses sociais sio determinagies especificas ou particulares de um modo determinado de produgio social. Sao categorias historicas e transit6rias, A brevidade das anota- 98cs metodologicas referentes a Marx se deve a0 fato de, no terceiro capftulo, haver uma apresentacio mais pormenorizada, onde se discute o problema das categorias ¢ dos conceitos hist6ricos e transitorios. No segundo capitulo, aparece o pro- blema da periodizacéo macro-historica em termos de pré-capita- lismo e capitalismo. No decorrer da anise sobre a estratificacio social em Marx, abordaremos de passagem os problemas rela- tivos 4 interpretacdo centralizada na insténaia infraestrutural € nas esferas supraestruturais e, finalmente, o problema da centralizacio da anilise no ator ow grupo social, Estes dois tiltimos itens se esclarecem em parte pelo fragmento que aca- bamos de citar, 26 Cabe ressaltar que a presente obra possui um cariter ndendo o autor, de forma que demandaria,além preliminar e provisbrio, nfo alguma, esgotar assunto tio 0o1 estes pequenos excertos, estudos mais acurados. an Notas stérico” foi retirado de Adorno, do ensaio “La conciencia de la sociologia del saber”, in Prismas: la ertica de Ja cultura y la sociedad, p. 30, editada em Barcelona, por Ediciones Ariel, em 1962. “Tanto em Mai maestre” (grifo * Weber, The methodology of the social sciences, 3 ed., 1964, As cite $@cs acima foram retiradas das paginas 101, 100 ¢ 99 do ensaio “Objectivity in socal science and social policy”, pp. 49-112. 5 MetleauPonty, Las aventuras de la dialéetica, 1957, pp. 13 ¢ B Fernandes, Fundamentas empiricos da explicacio sociol 1967, pp. 88, 89 © 90. Ver também Weber, M. Economia Y sociedad, 1964 a, v. I, pp.1620, Femandes,F, op. cit, p. 92. Ver também M. Weber, op. e17, © Weber, op. cit, p. 18 7 JearMarie Vincent, La metodologia de Max Weber, 1972, p, 22. Weber, Economia y sociedad, op. cit, p. 12, Ider, op. cit, pp. 12 ¢ 13, » Pp. 16 1967, p. 115. * Alguns autores utiizam os termos “inaterialismo dialético” rialismo histérico” com dialético” (ver L. Althusser ¢ E, Balibar, Para foer El N. Poulantzas, Rader politico y clase sociales en ef talista, 8 ed., 1971, principalmente a primeira uni ‘pp. 810. Ver também “Prologo”, pp. 7-12. 29 CapiruLo 1 CasTAs COMO UMA DAS MODALIDADES DE FORMAGAO SOCIAL PRE-CAPITALISTA Procuraremos desenvolver no presente capitulo a dis cussio do conceito de casta, em Weber ¢ M: mesmo tempo, articular as castas as for capitalists. Primeiramente, abordaremos o conceito de casta em ‘Weber. Na construcio dos tipos ideais, Max Weber conceitua casta a partir dos elementos sagrados € religiosas e, em vista disso, 0 componente vocagio assume uma posisio de impor. tdncia vital na compreensio do conceito de casta: “O regime de castas converte cada atividade parcial do trabalho, consid rada como nota diferencial das castas, numa “vocacii “oficio” de carater religioso e, por conseguinte, sagrad cada casta corresponds, portanto, uma atividade vocacional espectfica, uma atitude religiosa, uma ética que valoriza 0 s- grado, derivandose dai um conjunto de normas e valores, padres culturais e etiquetas, usos e costumes, simbolos ¢ sig- nos sociais que compéem as regras ritualisticas que definem 08 sentidos subjetivos® das agdes ¢ relagies sociais. Por outro Jado, os fragmentos retirados de Economia y sociedad, citados na nota 1, tragam um divisor entre a acéo tradicional e a ago rindos, de forma mais abrangente, como tipos polares de forma social de castas ¢ do capitalismo modemo, 31 ‘Num ¢ noutro caso, as contraposigdes so as que se seguem: a) uma maior especializacio e aperfeigoamento artesanal em detrimento da produtividade e de uma maior racionalizacio na divisio social do trabalho; b) penetraco dos elementos migico-eligiosos, essencialmente tradicionalistas, em oposicio a0 racionalismo, ou seja, a atividade econémica, no sistema de castas, é uma voca¢io imposta por deuses especificos e no a resultante de uma agio racional, visando valores ou fins racionais animados pela compensagdo ou consecucio de interesses; ¢) numa ocorre a valorizacio da qualidade, now- tra, a exploragio econdmica com aperfeigoamento tecno- légico visando essencialmente a uma economia lucrativa zacional; d) em summa, “pela consagracio religiosa” e, ainda, * ‘espirito’ e seus pressupostos”, a chave estrutural ‘por seu ‘e desta delimitacio do conceito de casta é a sagrapio de cada aco social produtiva como resultante, em termos de imputar co causal, de uma vocapio (predestinagio) profissional ads- crita pela religiao. A unidade da anilise weberiana é, portanto, a a¢io social reciprocamente referida ¢ de sentido “mentado”, 0 que, em iiltima instincia, depende da “representagio” que 0s sujeitos da acio postulam ter do universo circundante, ou melhor, depende também do que o investigador entende por “representacio” a partir da imputagio de sentido aos sujeitos dia aco, No caso especifico do conceito de casta, na medida em que a acio social em suas virias dimensdes é adscrita pela *vontade divina”, teoricamente nao ha varias alternativas possiveis nem de conduta nem de representacio, pois tanto esta como aquela é prescrita ¢, portanto, determinada por “uma vocagio atribuida por deuses espectticos”, ow ainda, conforme as palavras de Weber, “imposta por uma vontade divina especifica”, o que, simplesmente, retita dos sujeitos da 32 acio qualquer tipo de liberdade de opsio. Se, por outro lado, abstrairmos estes elementos migico-eligiosos, nos tes- tam 0s usos ¢ costumes, 0 universo cultural e suas representa g6es, ¢ para Weber a acio tradicional & por defini clo, “deter- minada por um costume arraigado”’ Novamente a alterna- tiva de opcio limita-se, segundo 0 conceito de agio tradicio- nal, que também € prescritiva ¢, conseqtientemente, imposta pelo processo de socializagia. Nas formas 50% : esta socializagio & realizada pela coergio plas regras e tabus sancionados pelos usos ¢ cionais, transmitidos de geragio em geragi lade de ocorrerem mutacbes © que torna o conceito ea prototipos invaridveis ‘As caracteristicas do regime de castas, enumeradas por Weber em outros ensaios ¢, especial nna parte a clas referente em A religio da fndia, demonstram set impro- vaveis 0 desenvolvimento nsformacio desse regime em capitalismo moderno. Inicialmente, veremos algumas estas caracteristicas perfiladas por Weber e, em seguida, 0 problema da transicio. i ‘Como vimos pelo titulo do livro, & a religiio da {india o objeto de estudo, ea cast a “insttuicio fundamental do hinduismo”. B a partir desta proposigio inicial que 0 au- tor de Economia y sociedad agrega outras caractersticas que constituem as bases essenciais do regime de castas da india. A primeira caracteristica é portanto, a propria definigao de cas- ta: “A casta, isto é 0 ritual de direitos e deveres que ela apresen- ta e impde, e a posigio dos bramanes, é a instituicio funda- mental do hinduismo”; em seguida, agrega uma segunda pro- posigio: “A casta &e permanece em esséncia uma order so- cial" Na primeira proposicio, temos dois elementos basi- 33 os: 0 ritual de direitos ¢ deveres — que a casta impde; a Posicao dos brmanes. O primeiro elemento é normativo € © segundo 0 ponto de partida de uma hierarquizacio or denativa: “A posicéo central dos brimanes no hinduismo se baseia fundamentalmente no fato de que a ordenaco social € determinada com referéncia aos bramanes” $ Dai resulta a conclusio légica que é a segunda proposicao, Por conse: Buinte, a caracterizacéo do regime de castas a caracterizagio desse “ritual de direitos e deveres” que, em sintese, sio as Rormas sociais culturalmente significativas para as castas Estas normas ou “regras” sociais sio as seguintes: a) endogamia — “as regras de endogamia sempre consti- tuem a base essencial da casta” incluindo as regras dietéticas ede comensalidade) b) barreiras rituais— estas “sio absol mente essenciais & casa [e] proprias do sistema de casts”; hhereditaiedacle — “a casta é essencialmente hereditivia”;d) ca- rater religioso — “a ordem de casta € religiosa e ritualmente orientada num gra nio atingido alhures”." Agregando-se a estas as caracteristicas referentes & “vocacio” profissional artesanal consagrada pela “vontade divina”, as bases essen- cialmente estéticas do conceito de castas se configuram, Em vista destas caracteristcas, podemos aventar pari passu com Weber: Apesar de tudo isso, tar extremamente improvivel que a moder- na organizacio do capitalismo industrial se teria originado base do sistema de castas, Uma lei ritual na qual toda modificagao de ‘ocupacao, toda modificagio da técnica de trabalho, podia resultar numa degradaggo ritual, certamente nio é capaz de dar ori- gens as revolugdes econdmica e técnica por 34 si propria, ou mesmo facilitar a germinagio do capitalismo em seu Esta tiltima proposigio descarta a possi ‘uma formagao social de castas gerar, por mecani ns, outros tipos de formas sociais. Em outras dos 0s outros tipos de formas sociais e, mais especificamen- axiolégico da ordenacio em castas é fundame ordenacio a partir do universo migicore! , ou seja, a repifo juridica-socialecultui nando a agio econémica (e esta tiltima, por c sendo presidida por valores ritualistico- mente tradicionalistas). Nos estudos tedricos de um autor co ‘Talcott Parsons, encontramos uma discussio do casta, na qual se patenteia a presenga de Weber: “I. regimede castes) um elemento de ordem que per Jo um sistema”. E, como um sistema, a casta “com um néimero muito grande de grupos hereditarios, g locais, rigidamente endogimicos, dispost de inferioridade e superioridade que 05 membros pertencentes & mesma casta man menos “a crenga de possuirem mesmo stat do “um sistema extraordinariamente elaborado de regras rituais que governam a preparacio ¢ o consumo de alimen- 0s € 0s contatos pessoais”, diferenciando uma casta em rela- glo as outras, e cada qual com as suas regras especificas. No 35 que se refere hierarquizacio, o autor de The structure of social action, obra da qual estamos retirando as nossas citagdes, afirma que apesar de haver “um elemento de im- precisio [..] a configuragio geral da hierarquia apresentase suficientemente nitida”, situandose no apice a casta bramane, derivando-se desta “o principal critério de status de cada casta, que é a relagio desta casta em particular com os bré- manes”. E, por fim, afirma que “tats critérios sio, no com- junto, de um tipo especial — relagdes rituais” (grifos nossos). Esta caracterizacao sumaria’ reitera as afirmagdcs anteriores: © sistema de castas praticamente anula a mobilidade vertical intercastas, na medida em que se situar numa determinada casta significa situarse hereditariamente de acorclo com a vo- cago da casta ¢ em conformidade com os valores, as notmas © a8 regras desta. As aspiragbes e as expectativas serio sempre as de se realizar dentro de sua propria casta, exercendo as atividades sacralizadas claramente configuradas e previamente determinadas em termos de vocagio do grupo, envolvendo um mecanismo de controle social rigido intra ¢ intercastas. Em Marx, ao contririo do que ocorre nas obras de Weber, no encontramos nem ensaio, nem itens ¢ subitens que tratem de uma forma sistematica daquilo que 0 autor de O capital entende por casta. Nas diversas obras escritas em épocas diferentes, no entanto, encontramos algumas alu- sbes a castas na india ¢ no Egito, ou, entio, aluses as forma- ‘Gées sociais de castas como fendmenos sociais histoticos € transitérios, refletindo determinados estidios de desenvolvi- mento da producio, A seguir, sem nos fixarmos a cronolo- gia da produgio intelectual de Marx, apresentaremos esses fragmentos esparsos a que aludimos, como matéria-prima a partir da qual tentaremos deslindar a nogio de casta como categoria social historica e transitéria. 36 Na obra O capital, capitulo XI problema da divisio do trabalho e manufitura, enc no segundo item a anilise referente a0 trabalhador parcial e seu instrumento, ¢ nesse contexto que a alusio a casta aparece: ‘A manufatura cria, com efeito, 0 virtuosismo do trabalhador especializado, reproduzindo ¢ levando a seus tltimos limites, de um modo sistematico, no interior da fabrica, a diferen- Giagdo elementar das indistrias com que se defronta na sociedade, De outra parte, essa tendéncia a converter 0 trabalho parcial em icia de um homem responde igas a declarar ‘ereditérias as profissdes, petrific ma de castas ou de corporagdes, quando se do determinadas condigdes histdricas que cengendram no individuo uma variabilidade incompativel com as castas. As castas € as corporagées nascem da mesma lei natural que informa a diferenciacio de plantas e ani- mais em espécies e subespécies, com a di- ferenca de que, a0 chegar a um certo grau de maturidade, 0 cariter hereditirio das castas ou 0 exclusivismo das corporagies sao de- crctados como /ei social Imediatamente, em nota de rodapé, actescenta Também as artes alcancam [... no Fgito um alto grau de perfeicio. Nesse pais, os atesio nao podem mesclar-se nos negocios de o' classe de cidadios, porém tém que se a desempenhar a profissio que hereditariamente a sua linhagen 37 _ Quanto a fndia, Marx cita a obra Historical and desctiptive account of British India, de Hugh Murray, James Wilson ¢ outros," na qual se evidencia a qualidade do pro- duto pela incorporagio da destreza e habilidade artistica do artesio, Em seguida, Marx arremata afirmando: Este virtuosismo os hindus, como as aranhas, devem-no a pe Para¢ao com a maioria dos trabalhadores das ‘manufaturas,trabalhos bastante complexos.” Destes fragmentos depreencemos os seguintes ele mentos consttutivos da formagio social de castas: a) o trabalho vitalicio ou 0 carder Aereditério das profissdes, b) seu resultado & especializagio extrema, c) diferenciacao entre as diversas espécies ou subespécies, ou 0 exclusivismo de umas em relagio as outras em termos da monopolize. 20 das atividades profissionais; d) formam grupos socias Jimpermedreis, e) os *destinos sociais” como produtes de “Leis sociai® _____ Todas essascaractersticas sio configuragées hist6- rico-sociais que determinam as formacées de castas come fenémeno histirico e transitorio, _ Em A sdeologiaalemi, obra de juventude, Marx cae racterizaessas formages sociais de castas como “a forma ton, a.com que se apresenta a divisio do trabalho entre os hindus © 0s egipcios”, e imediatamente acrescenta que esta forma rudimentar “provoca nesses povos o regime de castas pro. le seu Estado e de sua religido” e que “o historiador ta que o regime de castas foi a poténcia que engen- quela tosca forma social”.” Ja na Miséria da filoso- 38 fia encontramos algumas referéncias as castas"* ¢, numa delas, Marx acrescenta: Sob © sistema patriarcal, sob o sistema de ‘castas, sob o sistema feudal-corporativo, exis- tia uma divisio do trabalho da sociedade como um todo, conforme regras fixas. Estas leis eram estabelecidas por um legislador? Nao. Nasciam, originariamente, das con- dliges materiais de produgio e somente mais, tarde se estabeleciam como leis. E assim que estas diversas formas de divisio do trabalho transformaram-se em bases da organizagio social, Quanto a divisio do trabalho dentro ina, ela era muito pouco desenvol- vida em todos os tipos de sociedade men- cionados."* Um exemplo tebrico destas formagées sociais rudi- mentares, em especial as castas, nés 0 encontramos no ma- nuscrito intitulado Elementos findamentais para a crftica da economia politica (Grandrisse der kritik der politisches okonomie — 1857-1858), que segundo Hobsbawm uma obra da fase de maturidade intelectual de Marx.'® Nesta obra, quando trata das “formas que precedem a produgio capi talista”, ele analisa a relacio entre o trabalhador e as o es do trabalho, abordando o trabalhador como proprieté- rio dos instrumentos de produgio, um proprietério que tra- balha,¢0s instruments de produgio aparecendo como meio para 0 trabalho individual,” cuja configuracio Marx deno- mina de segundo estidio historico. Referindose a este esti- dio mamero Il, afirma que “o tipo particular do trabalho — a mestria em tal trabalho e, correspondentemente, a proprie- dade do instrumento de trabalho = (igual a) propriedade 9

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