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Da relação entre política, dissimulação e

violência no pensamento de Maquiavel

Abraão Carvalho
abraaocarvalho.com

“(...); é o que Maquiavel fez ver


com evidência. Fingindo dar lições
aos reis, deu-as, grandes, aos povos”.1
Rousseau

Para nos encontrarmos com os temas lançados ao título deste breve


artigo, iremos percorrer indícios de interseção entre estes temas a partir da
obra de Nicolau Maquiavel, sobretudo com a perspectiva de demarcar alguns
traços de seu pensamento político a partir da obra O Príncipe. Neste sentido,
em um primeiro momento nos cabe ressaltar que o contexto histórico no qual
se inscreve o surgimento da obra de Maquiavel em questão, trata-se de uma
Itália radicalmente fragmentada politicamente, onde pipocam constantes
conflitos por disputa de território, o que torna o espaço da península
bastante vulnerável às empreitadas militares estrangeiras.

O fato de ter inscrito a sua marca indelével na história do pensamento


político moderno, não pode nos levar a pensar que Maquiavel tenha sido um
pensador surgido do ventre da academia européia, muito pelo contrário. Se
Maquiavel, mesmo depois de pouco mais de 400 anos desde a publicação de
O príncipe, ainda não foi lançado ao esquecimento, isto se deve, dentre
outras questões, ao fato de ter sido Maquiavel também um homem de intensa
atuação política, seja na esfera diplomática ou militar, principalmente nos
domínios de Florença, onde em 1505, insatisfeito com a atuação das milícias
daquele território, passou a recrutar soldados para uma nova milícia,
pautada em outros princípios que não os meramente mercenários. Acerca

1
Rousseau. Do contrato social III. Capítulo VI - Da monarquia. Página 89. Coleção
Os Pensadores. Nova cultural. São Paulo. 1991

1
desta questão, isto é, dos riscos de uma milícia meramente mercenária e
circunstancial na segurança de um príncipe, nos aponta Maquiavel: “Por
experiência, notamos que somente os príncipes e os exércitos republicanos
protagonizam grandes feitos e que as milícias mercenárias só fazem provocar
prejuízos.”2

No percurso da obra O príncipe, dedicada ao Magnífico Lourenço de


Médice - “... desejoso de apresentar-me à Vossa Magnificência com alguma
prova de minha submissão...” 3
-, o que lemos é o interesse de Maquiavel em
apontar como um príncipe agir para conquistar o poder de um determinado
território, expandir seus territórios, e sobretudo como manter estável e
seguro o poder político do príncipe diante de levantes, rebeliões ou
revoluções que tenham o interesse de colocar em risco tal domínio.

Nesta perspectiva, procurando situar o pensamento político de


Maquiavel no contexto da história da filosofia política ocidental, poderíamos
aqui indicar que encontramos um bom número de pensadores filiando-se
àquela tradição do pensamento político que tem um certo interesse em
pensar a política como ela deveria ser mas ainda não é. Platão finca na
história da filosofia a sua ideal “República”. Rousseau imagina uma
sociedade em que sua ideia de “contrato social” se realize, como um contrato
jurídico e cultural entre as partes, isto é, entre o povo e a sociedade política.
Marx, Gramsci e Florestan Fernandes no Brasil, por exemplo, projetam para
o futuro a “sociedade socialista”, fundada no equilíbrio da distribuição e
organização das forças econômicas. Bakunin lança a ação política para o
caminho futuro da “sociedade anarquista”, a sociedade sem Estado, sem
governo e implacável em relação à Igreja, que segundo Bakunin trata-se de
um aprisionamento da liberdade do ser humano. E Maquiavel, como pensa a
política em relação a estes pensadores?

A política situada no campo ideal do dever ser, cultivada pela tradição


da filosofia política até então, que trata da política como idealização da
2
O príncipe, p. 70
3
Idem, p. 3

2
prática como ela poderia ser, mas ainda não é - daí o trabalho da reflexão
filosófica -, tem no pensamento político de Maquiavel o seu derradeiro e
súbito deslize pelo ralo, na medida em que o interesse de Maquiavel trata-se
de, a partir de um olhar arregalado para o passado, para a história, orientar a
ação no presente.

Dito de outro modo, Maquiavel não se lança à elaboração de uma


doutrina política inovadora, mas sim, seu trabalho trata-se de reunir o que a
leitura do passado pôde fornecer de útil para o triunfo dos novos símbolos da
política à época da publicação da obra O príncipe, tais como Lourenço de
Médice, para o qual, como “prova” de sua “submissão” escreve a obra. Daí
lermos a seguinte afirmação em certo trecho da obra, do qual fala do
“homem prudente”: “... o homem prudente deverá constantemente seguir o
itinerário percorrido pelos grandes e imitar aqueles que mostraram-se
excepcionais...”4. Ainda sobre esta questão, mais adiante encontramos a
seguinte passagem:

“Quanto ao exercício de suas meditações, o príncipe deve ler


os relatos da história e neles considerar as ações dos grandes
homens; notar como comportaram-se nas guerras; examinar as
razões das suas vitórias e das suas derrotas – para estas poder
evitar e aquelas imitar...”5

A noção de Maquiavel acerca da política, do Estado, nos cabe ressaltar,


está intimamente ligada à sua visão acerca da natureza humana, se é que
podemos utilizar esta categoria, já que o uso deste termo, natureza humana,
indica uma certa substância perene que atravessa as ações dos seres
humanos no percurso da história, o que nos parece duvidoso quando nos
fazemos reflexões acerca daquelas características que são inatas a todos
seres humanos e que estão fora do campo biológico. Mas enfim, passemos à
noção de Maquiavel acerca do agir humano: “Dos homens em realidade,
pode-se dizer genericamente que eles são ingratos, volúveis, fementidos e

4
Idem, p. 29
5
Idem, p. 85

3
dissimulados, fugidios quando há perigo, e cobiçosos.” 6

Por entender certas características do ser humano como desta forma,


tal como lemos há pouco, Maquiavel marca a sua posição diante da política e
do Estado como situada desde a perspectiva da dissimulação, do engodo,
encobrimento, disfarce, ou antes mesmo, falseamento, na medida em que a
todo o momento, circunstância ou conjuntura política, a dissimulação pode
aparecer, se o interesse de um certo político profissional ou grupo político é
conquistar um território ou manter-se no poder.

O conluio, reciprocidade, ou intimidade entre as esferas da política e da


ética, cultivadas pela tradição da filosofia política até então, tem no
pensamento de Maquiavel a sua radical separação, distância, ou antes
mesmo, abismo. Isto significa dizer: entre a ética cristã fundada nos valores
do agir bem, e a política, aparece, meio que por modos similares ao das
placas tectônicas, um radical abismo. Sobre aquele que situa em seu agir o
valor da bondade como a sua meta, nos afirma Maquiavel:

“(...) um homem que de profissão queira fazer-se permanentemente


bom não poderá evitar a sua ruína, cercado de tantos que bons não
são. Assim, é necessário a um príncipe que deseja manter-se
príncipe aprender a não usar [apenas] a bondade, praticando-a ou
não de acordo com as injunções.” 7

Na medida em que o agir na esfera da política no pensamento de


Maquiavel, não é marcado pela noção de “bondade”, abre-se espaço então
para o que ele mesmo designou como “crueldades proveitosas” 8. Ora, mas no
que consistem estas “crueldades proveitosas” quando nos referimos ao
campo da política? À nossa interpretação, estas “crueldades proveitosas” que
lemos em certo trecho da obra O príncipe, aproximam-se, sobretudo do agir
fundado na dissimulação e na violência. Isto significa: se não é somente a

6
Idem, p. 95
7
Idem, p. 87
8
Idem, p. 52

4
bondade que deve orientar o príncipe, este, para se manter no poder, pode se
valer por exemplo da prática da violência ou da fraude. A partir daqui
começamos a nos situar melhor acerca da relação entre política,
dissimulação e violência no pensamento de Maquiavel. Vejamos este trecho
de Maquiavel acerca do Duque César Bórgia, grande exemplo para suas
reflexões sobre a política:

“Quem, portanto, julgar necessário, para o bem do seu nascente


principado, garanti-lo contra os seus inimigos, vencendo-os pela
força ou fraudulentamente; fazer novos aliados; fazer-se benquisto
ou temido pelo povo, acatado e respeitado pelos soldados; liquidar
aqueles que poderão ou deverão agir em seu prejuízo; (...)
demonstrar severidade e gratidão: dizimar as milícias infiéis e
instituir uma nova; conservar a amizade dos reis e dos príncipes, de
modo que estes lhe sejam de bom grado prestadios ou que o
afrontem com respeito, não poderá encontrar exemplos mais atuais
que os das ações desse Duque.” 9

O pacifismo, a diplomacia irrestrita, fundada na prática exclusivamente


do diálogo, como lemos neste trecho, não ocupa lugar nenhum, já que a
manutenção de uma certa ordem política na ótica de Maquiavel, para ser
preservada não pode abrir mão do conluio entre as armas e as máscaras,
importantes para ludibriar ou aterrorizar quem quer que seja.

REFERÊNCIA:

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Editora Martin Claret. Tradução: Pietro


Nassetti. 2003. São Paulo.

9
Idem, p. 44 e 45.

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