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nario rion S.C BrGOSo ‘+ A Escravidio Africana na América Latina e no Caribe — Herbert S. Klein * Estrutura © Dindmica do Antigo Sistema Colonial - Fernando A, Novais ‘ Hist6ria Econdmica do Brasil — Caio Prado Jt. ‘+ Negros, Estrangeiros — Os escravos libertos e sua volta & Africa ~ Manuela Carneiro da Cunha * O Negro no Brasil — J. J. Chiavenatto © A Rebelido Escrava no Brasil — Jodo José Reis ‘* Tumbeiros — 0 tafico escravista para 0 Brasil — Robert Edgard Conrad Coleco Primeiros Passos © O que é Racismo — Joe! Rufino dos Santos Coleco Tudo é Histér * A Aboligio da Escravido — Suely R. Reis de Queiroz * A Crise do Escravismo e a Grande Imigracio — Paula © Beigueiman ‘+ 0 Escravo Gaticho — Resisténcia e trabalho — Afério J. ‘Moestri Filho A Civilizagao do Agéicar — Vera L. A, Ferlini *# 0s Quilombos @ a Rebelo Negra —- Ciévis Moura Colegio Qual: ‘+ A Questo da Negritude — Zilé Bernd |Ciro Flamarion S. Cardoso Escravo ou camponés? © protocampesinato negro nas Américas BIBLIOTECA TASOFIa ERAS HIDMAIAS editora brasiliense Oto OPS muMENND CATA -1987 UNICAMP RINDINTEPA renTDAL Copyright © Ciro Flamarion S. Cardoso Capa: Douglas Canjani Araujo Reviséo: Fernanda Teixeira Antonio C. M. Genz Gy -20S830y6y editora brasiliense s.a, ‘ua da consolacio, 2697 01416 - sdo paulo - sp. fone (011) 280-1222 (brasiliense) telex: 11 33271 DBLM BR Indice Aescravidao: tema velho, tema novo . rae Escravidio antiga e escravidio moderna ......... 7 Novas maneiras de abordar um velho tema : 4 Em diregio a novas vistes sintéticas? .... 2 A“brecha camponesa” nosistemaescravista .. 31 O sistema escravista eal Prineipais opgbes te6ricase metodolégicas .. 37 A formacio histérica do escravismo colonial nas Américas... 7... ..0++ sesees 46 Fatores intervenientes na configuraco do es- cravismo colonial . © funcionamento econ‘ colonial ..... a A sociedade escravistae suas lutas . A“brecha camponesa” . Siconooceos Sul dos Estados Unidos 60 Caribe britanico 68 Caribe francés . 1 Caribe espanhol 84 Conclusio ..... 87 A “brecha camponesa” no Brasil: realidades, interpretagese polémicas .. 1 ‘A““brecha camponesa” no Brasil luz de fontes pi mérias e estudos recentes .... 91 © protocampesinato escravo como tema de estudos no Brasil: do relativo desinteresse & polémica ... 114 Este livro est dedicado, com afeto, minha turma de Histéria Antiga do Oriente (turno da manha) na Universidade Federal Fluminense, primeiro semestre de 1986. A escravidao: tema velho, tema novo - O nosso assunto especifico sé tem sentido no contexto de uma determinada visio do fenémeno da escravidao no Novo Mundo e de seu significado, mais abrangentemente de uma dada teoria do es- cravismo colonial moderno. Por tal razio, neste ca- pitulo trataremos de explorar novos enfoques que, ‘em anos recentes, tém renovado este tema, ja antigo na historiografia das Américas; e — por que no? — de propor outros, Mostraremos, sempre que neces- sario, a légica de tal incursio num terreno mais amplo do que 0 indicado pelo titulo de nosso livro. Em seu magnifico livro sobre a escravido an- tiga e a ideologia moderna, Moses Finley mostra — magistralmente — de que modo os estudos a res- peito da escravidao negra nas Américas tiveram re- percussées positivas sobre as andlises das sociedades cléssicas. Por exemplo, o conhecimento dos qui- lombos e das verdadeiras guerras a eles ligadas oca- sionalmente, de sua capacidade de resistir por anos a fio e, as yezes —como na Jamaica e no Suriname 8 CIRO FLAMARION S. CARDOSO —, de impor aos colonizadores verdadeiros tratados de paz (com concesstes feitas por ambas as partes), tornou crivel um episédio antes considerado alta- mente improvavel pelos classicistas: 0 de Drimaco, chefe de algo que poderia ser chamado de quilombo (salvo pelas conotagées africanas deste termo, claro) na ilha grega de Quios no século III a.C., tal como narrado por Ninfodoro de Siracusa apud Ateneu.' Por outro lado — ¢ af est4 um novo exemplo —, as diividas acerca do cardter escravista da sociedade clissica enfraqueceram-se devido ao fato de no Sul dos Estados Unidos, no século XIX, haver existido uma sociedade indubitayelmente escravista, sem que os escravos nela fossem jamais a maioria da po- pulagio (eram 33% em 1860) — conquanto, no passado, o argumento do cardter minoritério’ dos escravos (indubitavel, por exemplo, na ItAlia ro- mana de fins da Repiblica) fosse esgrimido para provar que Atenas ou Roma nunca foram escra- vistas? ‘Agora queremos propor 0 caminho inverso, através desta pergunta: ser que o avango conside- ravel, realizado nas tiltimas décadas, quanto ao es- tudo da escravidao antiga nao conter ligdes valiosas para os que se interessam pela escravidiio moderna? Pensamos, naturalmente, em ligdes antes de tudo metodolégicas e tedricas, nio numa impossivel transposic¢io automatica de resultados; mas acha- mos, também, que hé analogias e paralelos interes- santes a estabelecer, com os cuidados necessarios. Limitar-nos-emos, aqui, a dois exemplos somente, embora pudéssemos apresentar muitos mais, sem dificuldade. (0 Finley, M. 1, Ancient slavery and modern ideology, Nova Torque, ‘The Viking Press, 1960, pp. 113-114, (2) Idem, pp. 79°85. ESCRAVO OU CAMPONES? 9 ‘Uma preocupagiio, j4 presente em diversos au- tores hé varias décadas, tem-se acentuado — o que é muito positivo — em forma paralela nos estudos classicos e americanistas recentes: a de mostrar que a escravidao propriamente dita é apenas uma entre varias formas possiveis de uma categoria mais geral —otrabalho compulsério.? E provavel, porém, que alguns estudiosos da Antigiiidade tenham sistema- tizado mais adequadamente certas nocées titeis a respeito. Yvon Garlan, para o mundo grego — e suas conclustes sto facilmente generalizdveis para 0 ro- mano —, propés distinguir 0 escravo-mercadoria, tipico da escravidao classica plenamente desenvol- vida, de uma outra forma genérica de trabalho compuls6rio: as servidées comunitérias (0 autor usa, em francés, o termo servitude, no servage, 0 que tem a vantagem de evitar qualquer confusio com formas medievais de trabalho: em portugués, no entanto, nao ha como reproduzir a distingfo). As duas modalidades do trabalho forgado se diferen- ciavam em dois pontos centrais: 1) o tornar-se es- cravo-mercadoria — por captura ou nascimento — era um destino individual (mesmo se milhares fossem capturados ao mesmo tempo), enquanto os partici- pantes das serviddes comunitérias sempre inte- gravam categorias sociais cujo destino era coletivo; 2) a reprodugdo do sistema que se baseava no es- cravo-mercadoria era predominantemente externa (importaco de cativos), enquanto as “serviddes co- munitérias” se reproduziam internamente. Garlan propés, ainda, distinguir, quanto as serviddes comunitirias, dois subtipos basicos: 1) ser- (2) OF. Kloosterboer, Brill, 1960, Involuntary labour since the abolition of sl » CIRO FLAMARION S. CARDOSO vidio intracomunitéria, resultante de uma diferen- ciagao interna no seio de uma dada comunidade (por exemplo os servos por dividas, em Atenas antes das reformas de Sélon em 594-593 a.C., em Roma antes da lei Poetelia Papiria, que é talvez de 323 a.C.); 2) servidao intercomunitiria, ‘que ocorre nos casos em que uma determinada comunidade explora outra considerada distinta, mesmo se ambas inte- grassem politicamente alguma “comunidade supe- rior” (por exemplo, comunidades assim exploradas seriam, na Grécia, os hilotas de Esparta ou os pe- nestes da Tessélia além dos Jaoi dos reinos hele- nisticos).¢ Ora, estamos convencidos de que um raciocinio andlogo permitiria sistematizar em forma itil a classificagdio’ — usualmente confusa devido, entre outras razées, a uma nomenclatura superabundante nas préprias fontes primarias — das formas de tra- balho compulsério discerniveis nas Américas, so- bretudo até 0 século passado; e ajudaria a perceber a l6gica de sua adogao. Também em nosso conti- nente achariamos, além do escravo-mercadoria, exemplos claros e variados de “‘servidao intracomu- nitéria” (0 peonaje por deudas, certas formas de tra- balho presentes nos obrajes de tecidos da América Espanhola; 0 cambdo brasileiro, ligado também a sistemas de endividamento) ¢ intercomunitaria (as diversas formas do repartimiento de indios, tanto na América Espanhola quanto na Amazénia Portu- guesa, constituem um exemplo adequado). Na au- séncia de um sistema cémodo e bem fundamentado como o proposto por Garlan, com freqiiéncia se tem caido, nos estudos de nosso continente, quanto ao (4) Garin, Yvon, Les esclaves en Griceancionne, Pati, rangois Mas- pero, 1982, caps. 162. ESCRAVO OU CAMPONES? a tema do trabalho que nos interessa, numa de duas distorgées simetricamente opostas: 1) a confusio, sob a etiqueta “escravidao”, de formas de trabalho forcado, na verdade muito heterogéneas em sua 16- gica, em seu funcionamento e em suas conse- giiéncias;* 2) ou a propensio, criticada por Pérez Brignoli, A multiplicagao excessiva das categorias de andlise, por exemplo, transformando cada relagdo de produgdio que apresente algumas especificidades num modo de produgio distinto.* A Histéria Antiga teria a possibilidade, outros- sim, de auxiliar a das Américas sob outro prisma: 0 das condigdes histéricas em que a escravidao (neste caso nos referimos especificamente a escravidio propriamente dita, ao escravo-mercadoria) pode emergir como relacio central de produgdo. Isto Porgue, nas duas freas de pesquisa histérica, de- fendeu-se em diferentes momentos a tese errnea de gue, no surgimento do escravismo antigo ou mo- derno, a oferta de escravos precederia a procura — Por razées ligadas a guerra na Antigitidade (abun- dancia de cativos passiveis de escravizagao em certos periodos) e aos interesses da acumulagao mercantil nos Tempos Modernos.” No campo dos estudos classicos, I. Hahn siste- matizou muito bem a questio de quais seriam as (5) Um exemplo: Novais, Fernando, “Estrutura e dinimica do Antigo Sistema Colonial (séeulos XVI-XVII)", Cadernos CEBRAP, n° 17, So Pau lo, Brasliense, 1977, 38 ed. pp. 27-28. (6) Pérez Brignol, Héctor, “Colonial development and agricultural history in Latin America", in Chandra, B. (ed.), Typology of colonial eco- ‘nomic development, Budapeste, Akadémiai Kinds, 1982, pp. 19-27. (Para a Antigtidade, vera erica de Finley, op. eit, p. 86; para os ‘Tempos Modernos, f. Novas, op. ct. p. 32: “Paradoxalmente éa parir do \atico negrero que se pode entender a eseravidio africana colonial e nio 0 contririo”, 16 nos vltéramos contra esta tese num trabalho anterior: Car- oro, CiroF. S., A Afro-Amériea: a escravido no Novo Mundo, el. “Tudo & Histéria", n? 44, Sto Paulo, Brasiense, 1982, pp, 18-19. 2 CIRO FLAMARION S. CARDOSO condigdes necessdrias para que surgisse uma pro- cura de escravos suficiente para o langamento do modo de produgao escravista (j4 que tal procura precedeu, légica e historicamente, a oferta): 1) num mundo fundamentalmente agrério co- mo o antigo, a primeira condiglo é a existéncia de uma propriedade privada da terra, estando esta concentrada o suficiente para que certas familias nao pudessem cultivar suas terras sem uma mao- de-obra permanente extra familiar; 2) a segunda condig¢ao é um desenvolvimento suficiente da producdo mercantil — nao necessaria- mente sobre bases monetirias, porém — e dos mer- cados (locais ou distantes): os escravos eram impor- tados e era preciso compri-los, portanto nao teria sentido um escravismo desenvolvido sem producio para o mercado; 3) a iiltima condigdo consiste na inexisténcia de um suprimento interno adequado de fora de trabalho dependente, levando necessidade de ir buscé-a fora.* Até que ponto tais “‘condigdes necessirias” fo- ram igualmente necess4rias no caso da Histéria das Américas no periodo colonial para que surgisse a escravidao? Parece-nos que o foram in totum. A se- gunda delas chega até a ser tautolégica ao se tratar da colonizacao mercantilista. A primeira poderia ser ampliada no sentido de incluir a apropriagio de todos os recursos naturais estratégicos e nao sé a da (8) Hahin, I, Die Anflinge der antken Gesellchaftsformation in Gre chenland und das Problem der sogennanten asiatsclen Produktionwelse, Jahrbuch fr Wirtschaftsgeschichte, 2, 1971, pp. 29-47; Finley, idem, pp- 86. ‘50: generalize para Roma a anilise de Hahn, que se limitara & Grecia Car oso, Cito F. S., O trabalho compulsrio na Antiguidede, Rio de Janeiro, Graal, 1984, pp. 39-41 53.54. ESCRAVO OU CAMPONES? B terra.’ A iltima j4 fora bem percebida, em sua 16- gica especifica no continente americano nos Tempos Modernos, por S. Zavala hé mais de vinte anos.” E claro que o paralelo entre a escravidao antiga ea moderna nao constitui propriamente uma novi- dade. Os préprios colonizadores tinham consciéncia de certas analogias, o que fica patente em algumas legislagdes escravistas do século XVIII, que se apoiaram amplamente em definigdes e regras do Direito Romano," por exemplo, ao fazerem especi- ficagdes acerca do pectilio dos escravos. Por outro lado, uma obra relativamente recente, mas jé clés- sica, da historiografia da escravidao moderna, par- te, justamente, de tal paralelo.” A atitude metodo- l6gica comparativa é, porém, neste caso, dificultada pela compartimentagao académica que separa estri- tamente os especialistas em Histéria Antiga de seus colegas de Hist6ria da América. No Brasil, em espe- cial, a abolico das cdtedras universitérias foi até certo ponto puramente formal: as catedras se re- constituiram paralegalmente, como chasses gardées do saber compartimentado, sob 0 nome de “reas” ou “setores”, e quanto a isto os Departamentos de Historia nao so excecao. E dbvio que a separagao estanque resultante, feita em nome de uma especia- TizagHo necessaria — alids nem sempre de fato le- (9) Cardoso, CiroF.S., O trabalho ne América Lat ipios"n? 33, So Paulo, Atiea, 1985, pp. 36-37 (G0) Zavala, Silvio, Inigenes ef eolonisatewrs dans l'histoire d'Amé- raiers de Institué des Hautes Etudes de 'Amérique Latine, VI, 1964, colonial, “Prine Javier, Codigo Ne- ‘ero Carolino (1784), Santo Domingo, Ediciones de Taller 1974 (12) Davis, David Brion, £I problema de la esciavitud en la cultura occidental, trad. R. Bixio, Buenos Aes, Paidés, 1968 (original em inglés fol publicado ém 1966); yer também: Finley, Moses fique of David Brion Davis, The problem of slavery in Western culture”. The ‘New York Review of Books, 3, 1, 1967, pp. 7-10, “4 CIRO FLAMARION S. CARDOSO vada a sério, ou a pratica da pesquisa — pode ser tremendamente empobrecedora. Novas maneiras de abordar um velho tema Em 1982, ao publicar A Afro-América: a escra- vidao no Novo Mundo, fomos acusados de “des- Prezo quase olimpico pela produgao dos autores nacionais"’ e de “prosternagdo quase que de coloni- zado diante de obras de autores estrangeiros...”" Ora, o que constatavamos, ha quatro anos, con- tinua sendo verdade: no conjunto, a producao bra- sileira acerca da escravidio é que ignora de modo quase olimpico a imensa maioria do que se publica — sobretudo nos Estados Unidos e no Caribe, por vezes também na Europa — sobre a mesma tema- tica (com freqiiéncia sio ignorados até os textos es- pecificamente referentes 4 escravidao brasileira pu- blicados no exterior!). Talvez por isso mesmo aque- Ja producao as vezes continue se apoiando tranqiti- Jamente em paradigmas ja inaceitaveis (como a tese de E. Williams)... ou descobrindo a pélvoral! Nem sempre foi assim, entretanto: ha cerca de vinte anos, intelectuais brasileiros estiveram em perfeita e crénica sintonia com a corrente — ent&o uma novi- dade de peso — que, nos Estados Unidos, no Caribe ena América Latina, comecava a criticar um outro paradigma, muito influente desde os anos 1930: aquele baseado na distingao de sistemas escravistas especificos ou diferentes entre si, cujo fundamento (13) Moura, Clévis, “Escravisme, andliso © ago socal", “Folhetim’ Ho semanal de A Folha de S. Peulo), de 165.1982; pp. 810. Ver a iniiada entio, nos nimeros do “Folhetim'”, de 30.5.1982 e de 27. ESCRAVO OU CAMPONES? = 1s eram os trabalhos de G. Freyre, F. Tannenbaum, S. Elkins e H. Klein, por ordem de publicago." E claro que, também hoje em dia, ha excegdes que parecem desmentir nosso pessimismo: a obra de José de Souza Martins é um exemplo, pois, em lugar de repetir-se incansavelmente de um trabalho ao se- guinte, apresenta sempre visdes renovadas ou aper- feigoadas." Mesmo assim, no conjunto, é para fora do pafs que teremos de nos voltar, na maioria dos casos, para perceber enfoques realmente novos a respeito da escravidio nas Américas, se estivermos pensando no publicado durante os iiltimos quinze anos aproximadamente. Aqui sé poderemos fazer uma apreciagao muito seletiva. Mencionemos primeiro, partindo dos aspectos mais gerais, aquilo que Caio Prado Jr. chamou de 0 “sentido da colonizagao”." Quanto a isto, a evolugao dos estudos apre- sentou duas tendéncias que se nos afiguram impor- tantes: 1) confirmou-se 0 descrédito das teses de Eric Williams; 2) estendeu-se as col6nias escravistas © mesmo tipo de raciocinio € de anéllises, que se apli- cara anteriormente ao comércio da América Espa- nhola (por exemplo, nos trabalhos de J. Lynch e D. Brading). (14) 36 escrevemos sobre o debate em questto: Cardoso, Ciro F. $. Aericultura, eseravidaoe capitalism, 2 e4., Petrépalis, Vezes, 1982, cap. 2. (19) Para constai-o, basa comparar — quanto ao problema da tran- sig do trabalho eseravo a outras formas de trabalho — o recente artigo do ‘autor — Martins, José de Souza, "Del esclavo al asalariado en las haciendas ‘de enfé, 1860-1914. La génesis del trabajadorvolante”, in Sdnchez-Albornoz, 1N. (ed), Poblacién y mano de obra en Amériea Latina, Madr, Alianza E torial, 1985, pp. 229-257 — ao seu importante trabatho anterior: Mi José de Souza, O catveiro da tera, Sio Paulo, Ed. Ciéncias Humanas, 1979. (16) Prado Jr., Caio, Formario do Brasil contemporineo. Colbnia, ‘Sto Paulo, Brasiliense, 1963; "Sentido da colonizagho" € 0 titulo do eapitulo do fivro, pp. 13-26. 16 CIRO FLAMARION S. CARDOSO Na linha dos trabalhos anteriores de R. Anstey e S. Drescher, 0 artigo de D. Richardson acerca do trafico de escrayos pelo porto de Liverpool mostrou Iucros que, vistos num periodo longo, permane- ceram modestos (na curta duragdo, as oscilagdes eram violentas). O proprio Anstey calculou, para o periodo 1760-1810, que a contribui¢ao do trafico de escravos A formacio de capital na Inglaterra se si- tuou por volta de 0,11%! Nem todos assumiram uma posigio tao extrema, porém. R. Sheridan, como anteriormente C. Kindleberger, deslocando a questo dos termos em que a colocara E. Williams, mostrou que, se no “financiaram” a Revolucio In- dustrial como fora pensado, o trifico e o conjunto do comércio triangular trouxeram estimulos ao cres- cimento dos portos metropolitanos a eles ligados ¢ a suas regiées vizinhas, e, mais em geral, contri- buiram para a maturidade da economia britanica pré-industrial, de maneira predominantemente in- direta. A mesma conclusio foi estendida ao caso francés.” Seja como for, ninguém mais — a nao ser por ignorAncia ou falta de informacao — pode conti- nuar simplesmente a repetir, na atualidade, as afir- mages de E. Williams a respeito destes assuntos. Lynch e Brading haviam observado que, entre as teorias do monopélio colonial ¢ as realidades do funcionamento efetivo do comércio das colénias es- (17) Richardson, David, “Profits in the Liverpoot slave trade: the accounts of William Davenport, 1757-1784", in Anstey, R. ¢ Hair, P. E. H. Liverpool, the African slave trade and abolition, Liverpool, Historical Scie ‘of Lancashire and Cheshire, 1976, pp. 60-90; Anstey, R., The volume and ‘profitability ofthe British slave trade 1761-1807, in Engerman, S. L, © Ge- hovese, EO. (eds), Race and slavery in the western hemisphere. Quantitative studies, Princoton University Press, 197S, p. 24; Sheridan, R., Sugar and se tery. Am economic history of the British West Indies, 1622-1775, Baltimore, ‘The Jolins Hopkins University Press, 1974, p. 479; Pérotin-Dumon, Anne, Eire patrite sou les tropiques. La Guadeloupe, ta colonisation et la R&o- lution, Basse-Terre, Soeété d'Histoire de la Guadeloupe, 1985, pp. 57-58. 'ESCRAVO OU CAMPONES? ” panholas, podia haver um abismo — ou seja, em certas situagdes, 0 mundo colonial hispanico esca- para em boa medida ao exclusivo, embutido no sis- tema colonial." Esta constatacao foi feita também no relativo ao comércio antilhano: ao lado das ilhas de plantations, desenvolvidas em escala maior ou menor no quadro do monopélio, A Pérotin-Dumon nos fala das ilhas abertas, dedicadas A navegacao de ‘cabotagem, ao contrabando, a pirataria, em detri- mento do monopélio comercial metropolitano, Na mesma ordem de idéias se inscrevem as anélises do exclusif mitigé francés.” Estas tendéncias historiograficas tém a grande vantagem de corrigir a visdo das colénias como uma espécie de simples quintal das metrépoles, s6 impor- tando vé-las em funcao da economia européia, da acumulacio primitiva e do sistema colonial mercan- tilista. Conduzem, pelo contrario, & valorizacdo das varidveis internas, presentes nas proprias sociedades coloniais, 0 que na nossa opinido é altamente posi- tivo e 6 pode redundar em beneficio de tematicas como a que nos ocupara nos capitulos seguintes deste livro. Novidades houve também no tocante a discus- so acerca da rentabilidade das plantations escra- yistas — tema que convém diferenciar, como diz W. (18) Lynch, John, Administracién colonial expariole, 1782-1810, 28 ed,, trad. de G. Tjarks, Buenos Aires, EUDEBA, 1967; Brading, David A., "El mereantilamo ioric ye crecimiento econémico en la América Latina del siglo XVII", in Floressano, E.(ed.), Ensayo sobre ef desarrollo econémico Te México y América Latina (100-1975), México, Fondo de Cultura Econé- mica, 1979, pp. 293-314 (19) Perotin-Dumon, op. ct, pp. 67-88; Cardoso, Ciro F. S.. Eco nomia e sociedade em dreas colonais peifiricas: Guiana Francesa © Pard (1750-1817, Rio deJancire, Graal, 1964, pp. 40-41, 194-195. Em tese ainda tnéaita, Late Felipe Aleneastro estudou as rlagbes Brasi-Angola na época ‘lone, tema jétratado por Charles Borer e que vai no mesmo sentido dos texemplos aql indieados. 8 CIRO FLAMARION S. CARDOSO Barrett, em pelo menos trés aspectos diferentes: produtividade, eficiéncia e lucratividade (sendo os dois primeiros préximos um do outro, mas o terceiro bem distinto). Barrett escreveu um importante en- saio em que mostrou, baseando-se num estudo com- Parativo da questo do rendimento das terras e da produtividade do trabalho em diversas colénias es- cravistas e na regiio mexicana de Morelos (também agucareira como as'primeiras, mas no periodo estu- dado ja no escravista), a incid@ncia, no sentido de explicar as enormes variacdes constatadas, de fa- tores como as condi¢des naturais e a tecnologia em- pregada no setor agricola da plantation, recusando conclusées polares e simplificadoras.” No mesmo sentido vaio as andlises mais detalhadas de casos. Se em Worthy Park, plantation agucareira da Jamaica, entre 1783 ¢ a aboli¢do da escravidao (1833) a per- centagem dos lucros sobre o capital foi em média de 9%, € muito maior em certas ocasides (16,9% em 1774, 15,4% em 1794, 18,3% em 1814); e se na Ba- hia colonial talvez os lucros variassem entre 5 e 10% na maioria dos casos, sendo considerados excepcio- nais lucros entre 10 e 15%, na mesma Bahia ha os casos dos engenhos de Sergipe e de Santana, com lucros muito inferiores — embora Schwartz efetue cAlculos que mudam, até certo ponto, as conclusdes; © no Caribe francés 0 lucro sobre o capital investido nas plantations acucareiras da itha de Guadalupe era, em média, de 4,5% somente: o que reflete cer- tos dados estruturais, como a forte dependéncia dos plantadores locais frente aos comerciantes.* Tudo (20) Barret, Ward, The efficient plontation and the inefficient ha- cienda, The James Ford Bell Lectures, n? 16, Minneapolis, University of Min. nesota, 1979, (2) Craton, Michael, “Worthy Park, 1670-18 clones en el sistema jam cambios y contin de plantacion azucarera, in Florescano, ESCRAVO OU CAMPONES? 19 isto é importante para que nao se ceda a tentacgiio de eeneralizar as conclusées — aliés em si mesmas duyidosas — a que chegaram os autores de Time on the cross.” Por outro lado, todos estes trabalhos ajudaram a corrigir também outras perspectivas fal- sas, como, por exemplo, o fraco peso das despesas com escravos, encontrado por Mauro na contabili- dade de que dispés, relativa ao engenho de Sergipe do Conde, aliés incompleta, como mostra pees traram igualmente o carter arcaico, pouco pla- nejado e fragmentirio da gestio e da contabilidade ions coloniais. ons ours toma em que os estudos recentes vio contra o ufanismo escravista de Fogel e Engerman é a constatagdo a que permitem chegar, de que fre- qiientemente a mio-de-obra escrava representou uma taxa elevada de depreciagao do capital, limi- tando a lucratividade das plantations;" obvia- mente, ha casos de lucratividade maior, conhecidos sobretudo para o século XIX, mas a generalizacdo indiscriminada seria inadequada, o que impde a atengdo para os diferentes casos, regides e épocas. , 1 Lain, Mes, Sido ey Hao, tay planacione en An ' Sh eect se Cee rin senony Dralion ety, Baa 13 Se" Cn nay a 08 pp em Scan ‘Charles, “Suereries de la Guadeloupe dans la seconde moitié du XVIII? si sie taot Fans eaeeaie : : (22) Engerman, S. ¢ Fogel, R., Time on the cross, The ccomamis of Amer a Se os oie, or, Pv ann SECIS cts on uneasiness mm ‘in Pinheiro, Paulo Sérgio coset oy Trabalho escravo, economia. siedade, eae ete ib pp 95" sro Re ea Fda Le Riga le rl et 'Adantigue ov XV 2a EN ee he OS pp 29515 Ser re ley eroman econ a pt 'cunDancn op et sui ct sre asi nas se aekes mie er pp 2867 2» CIRO FLAMARION S. CARDOSO Avangou-se, também, no estudo social da es- crayidio, A plantation passou a ser analisada se- gundo um enfogue. tanto antropologico e social quanto econdmico; bem como em suas relagdes com a sociedade global.. Um livro excelente quanto a isto 6 0 ja citado, de S. Schwartz, sobre a Bahia. Pio- neiro em sua época foi'o de G. Hall sobre 0 controle social em sociedades escravistas. Mencionemos também a percepeaio da importincia dos campo- neses na economia e na sociedade, na época da es- cravidio.® Um ponto em que queremos insistir, no campo das pesquisas sociais, por ser bastante demonstra- tivo do isolacionismo brasileiro j4 mencionado quanto aos estudos da escravidiio, 6 o das revoltas quilombos. Enquanto as teses de autores como Jean Fouchard sio hoje objeto de criticas bem funda- mentadas,” no Brasil certas obras, aparentemente vinculadas 4 emergéncia recente de um movimento negro no pais, vém colocando inadeqtiadamente a questao da rebeldia negra e, em especial, a de seu papel na aboli¢éo da escravidio.” Outrossim, os autores dessas obras ignoram solenemente mesmo os trabalhos estrangeiros sobre Palmares e outros quilombos brasileiros — que no entanto, no caso palmarino, ao usarem documentacao holandesa itil Para a caracterizago interna do Estado negro na pa Stato ta, Gute Mi, Scien in sve lantation sites. A Comparison of St. Domingue and Cub Balter, ‘The Johns Hopkins Press, 1971. 7 (28) Gongs, Dei, “Sioe resistance suds and the Saint Domingue slave revolt some preliminary cosderations", Miami, Latin Amica and Caren eter era natn! Une) (Oecaoal Papers ste) Potames, or exemple texts de Cis Moura Maro Ma ESCRAVO OU CAMPONES? a primeira parte do século XVI, permitiriam dimi- nuir a distorséo que consiste em que a maior parte das fontes usadas aqui se concentra na destruicao ‘militar de Palmares, nfio em suas estruturas inter- nas! —, os quais chegam a resultados por vezes bem diversos sobre 0 quilombismo em nosso pais. De fato, certos textos publicados no Brasil, e que nao partilham as interpretagdes dos autores que men- ciondvamos, sfio também ignorados.® E claro que também aqui h4 excegées a citar, em especial o livro recém-publicado’e excelente de J. J. Reis.” Quanto 4 relacio entre rebeldia negra ¢ aboli¢ao no século XIX, parece-nos que a demonstragao de que a pri- meira, presente desde o inicio da escravidao e, por- tanto, traco estrutural da propria sociedade escra- vista, possa ter tido um peso especifico consideravel no processo da segunda, teria de seguir um de dois caminhos: 1) provar uma incidéncia quantitativa- mente maior de movimentos em 1850-1888; 2) ou mostrar como, nas novas condigdes inauguradas com a aboli¢io do trafico africano em 1850, mesmo uma incidéncia similar 4 do passado teria um peso maior na fragilizagao e crise do sistema escravista e, portanto, em sua superacio. Ora, ainda nos tra- balhos mais documentados, uma demonstracio como esta, na verdade, esta ausente ou no é con- (28) Gf. por exemplo, Kent, R, K., “Palmares: an Aftican state in Brasil", e Schwarz, Stuart B., “The Mocambo: slave resistance in colonial Bahia ambos os artignsincuidos in Price, Richard (ed), Maroon societies. Rebel save communities the Americas, Baltimore, The Johns Hopkins Uni- versity Press, 1983, pp, 170-190 e 202-226. Entre andlises publicadas no Brasil ‘que slosistematicamente “esquecidas" nas discussbes da relasio rebeldiane- fra/aboligio, mencionamos: Almada, Vilma Paraiso F. de, Bseravismo e transigéo, O Espirito Santo (1850-1856), Rio de Janeiro, Graal, 1984, pp. 154 174; Queiréa Mattosa, Katia M., Ser eeravo no Brasil tad, 3. Amado, Soo Paulo, Brasiiense, 1982, pp. 158166. (29) Reis, loio Jose, Rebelido eserava no Brasil. A histéria do levante dos melés, 1835, Sto Paulo, Brasliense, 1986. 2 CIRO FLAMARION S. CARDOSO vincente.” Todo este debate ganharia muito, evi- dentemente, com o conhecimento das novas dis- cussées sobre a rebeldia negra em outras areas das Américas (Sul dos Estados Unidos, Saint-Domin- gue/ Haiti, Cuba, etc.). Em diregao a novas visées sintéticas? Em fins da década de 1960 e na primeira me- tade da década seguinte, chegou ao auge a discussio internacional sobre os modos de produgio na Amé- rica Latina colonial. Tendo participado ativamente de tal debate, tentamos ha poucos meses explicar as Taz6es que o conduziram, por fim, a um impassse.” Ao mesmo tempo, afirmavamos entiio que, segundo Nos parece, uma conjuntura intelectual distinta e, sobretudo, 0 progresso muito grande que desde en- tdo se deu nos conhecimentos acerca das economias e sociedades coloniais (e de suas continuagées no sé- culo passado) permitiriam hoje, em principio, uma retomada mais proveitosa daquela discussio no sentido da busca de novas visdes de sintese — coisa que nos parece muito necesséria para uma organi- zacio adequada e teorizada dos conhecimentos, agora bem mais considerdveis, de que dispomos. HA também, no entanto, fatores que conspiram ainda contra isso. Alguns, ligados a certas modas intelectuais de duvidosa pertinéncia, hoje predomi- nantes nas esferas da intelectualidade latino-ameri- cana, foram abordados no livrinho a que se refere a (20) Bm nossa opinito isto ccorre com um livro, no entanto, bem do cumentado: Lima, Lana Lage da Gama, Rebeldia negra eaboliionismo, Rio {de Janeiro, Achiamé, 1981, (Gi) Cardoso, 0 trabalho na Amiri Latina colonial, ci, pp. 69-81. ESCRAVO OU CAMPONES? 2 ultima nota acima. Mas existem outros, talvez mais importantes. © gue mais nos chama a atengao, ao tentarmos uma visio de conjunto da historiografia latino-ame- ricana recente, é a sua falta de progressio légica. D. A. Brading 0 constatou'bem, ha varios anos, para a Historia Econémica, mas sua observacdo pode ser generalizada. Os livros importantes raramente pro- piciam debates piiblicos, e, quando tal ocorre, os efeitos desses debates no vao muito longe. Essas obras também tém efeitos multiplicadores limita~ dos, esporddicos ¢ assistemticos, no que tange 4 geragio de novas pesquisas e 4 formacao do que po- deriamos chamar de verdadeiras escolas de pesqui- sadores.” O mesmo tende a ocorrer com as dis- cussées de tipo teérico. As raz6es da descontinuidade, da falta de pro- gressio légica, séo de varios tipos. Refletem, em parte, 0 fato da auséncia de planejamento na es- colha dos temas de pesquisa — escolha que é deter- minada de forma quase exclusiva pelos interesses particulares dos pesquisadores. Eis aqui as obser- vagoes de E, Florescano sobre a historiografia mexi- cana, facilmente generalizaveis:” “0 itinerdrio seguido pela pesquisa histérica mexi- cana nos tiltimos anos se assemelha mais a um mapa de aventuras individuais, no qual pululam as aceleragdes sem continuidade, os cruzamentos & paralelismos fortuitos, as rupturas as rotas em zi- guezague, do que um roteiro em que se organizem_ (32) Brading, D. A, “Las tareas primarias en la historia econémica én ‘Amériea Latina’, in La historia esonémiea en Amériea Latin, vol. 2, México, ‘Secretaria de Edvencién Pibica, 1972, pp. 100-116. (G33) Florescano, Enrique, “Los historiadores y el poder”, Nexos (Mé- ico), 1V, 46, out. 1981, pp. 27-37 (a etagio€ da p. 33). 4 CIRO FLAMARION S. CARDOSO com nitidez correntes, tendéncias, encadeamentos e metas claras, perseguidas com continuidade”. Poder-se-ia argumentar que, também em pai- ses como os Estados Unidos, a Inglaterra ou a Fran- a, as tematicas de pesquisa sao de livre escolha dos historiadores e dos estudantes de pés-graduagio. Isso é verdade. Mas hé fatores que corrigem — em parte, pelo menos — a anarquia e a descontinui dade que disso poderiam resultar. Eis aqui alguns: a formacio de grupos coerentes de pesquisadores & volta de um intelectual de prestigio; uma densidade muito maior dos estudos e dos especialistas e uma fregiiéncia também mais importante das oportu1 dades de participacdo em reunides cientificas locais, nacionais e internacionais; a publicagdo relativa- mente rapida de boa parte das pesquisas produ- zidas, ¢ bibliotecas com recursos humanos e mate- riais suficientes para uma politica de compras que permita uma atualizag&o, razodvel e sem grandes obstculos, dos usuarios. Acima de tudo, os pesqui- sadores se movem num verdadeiro ambiente acadé- mico gue, entre outras coisas, submete sistematica- mente a critica as suas produgées. Os historiadores latino-americanos sao menos numerosos, mais dispersos e isolados, além de en- frentarem muitas dificuldades para publicar e para se informar suficientemente do que se tem feito em anos recentes em matéria de pesquisa histérica no seu proprio pais e em nivel internacional. Um ambiente académico débil e pouco estruturado pro- Picia cobrangas e criticas s6 em contados casos, 0 que permite quase sempre uma total impunidade & desatualizagio metodolégica, & escolha de temas irrelevantes, as vezes mesmo ao plagio ou a contra- fagao. As associagées profissionais praticam 0 po- | | ESCRAVO OU CAMPONES? 2% pulismo mais deslavado ou funcionam como simples sindicatos, abdicando de suas fungGes propriamente académicas (embora mantenham uma retorica de fa- chada a respeito). As funees de cobranga, na falta de uma massa critica suficiente entre os profissio- nais de Histéria, tém falhado lamentavelmente quando as assumem burocracias universitarias governamentais, alias, despreparadas para tarefa Ho dificil — sobretudo num ambiente como o nosso. proprio fato de, como mencionamos ante- riormente, se tentar as vezes fazer uma contraposi- cao entre producdo nacional e produgaio estrangeira no campo da escravidao é sintomatico de um outro tipo de problema. Para entender melhor do que se trata, comegaremos por falar das conseqiiéncias do processo de progressiva profissionalizagio e institu- cionalizaigao do trabalho dos historiadores (como de muitos outros intelectuais), ocorrido na América La- tina — ou pelo menos em seus paises maiores —, principalmente nas iltimas quatro décadas, mesmo se, como j4 foi mencionado, o resultado final desse proceso seja algo até agora mais débil, mais precé- rio e menos estruturado e coerente do que nos paises mais desenvolvidos. ‘Em artigo jé citado, Florescano analisa esta questo no tocante ao México. A partir de 1940, criaram-se naquele pais numerosas instituigdes dedi- cadas especialmente ao ensino, a pesquisa e publi- cago de obras historicas. Isto, ao gerar um espago social especifico, bloqueou e mediou as relagdes po- Iiticas diretas dos historiadores com os centros de poder e com as forgas sociais, estabeleceu normas de conhecimento e de praticas de pesquisa que passa- ram — apesar de tantas limitagdes — a nortear 0 34) Idem, % CIRO FLAMARION S. CARDOSO trabalho histérico e seus critérios de aceitacio e re- jeigdo, e criou exigéncias precisas de titulagiio. Acha © autor que a especializacdo e profissionalizagao re- sultantes levaram a que, em poucas décadas, se mul- tiplicasse muito a produgio de teses, livros ¢ artigos de Histéria. No entanto, enquanto o historiador do século XIX escrevia Historia a partir de uma moti- vagdo diretamente politica e numa linguagem com- preensivel para o piblico culto em geral, hoje em dia o hermetismo — trazido pela sofisticagao técnica © por.uma especializacao as vezes extrema — faz £om que o piiblico das obras de Historia seja consti- tuido quase exclusivamente pelos préprios historia- dores, professores ¢ estudantes de Histéria. Por ou- tro lado, o fato de pertencer a instituicdes teorica- mente de utilidade publica, onde as negociagées po- liticas e pessoais para conseguir verbas ficam redu- zidas a uns poucos chefes, permite que o historia- dor tenha a ilusio de ser um cientista puro e obje- tivo, distante do poder e das forcas sociais. Que dizer da andllise de Florescano? Alguns dos aspectos de que fala sao mais especificamente mexi- canos — um grau muito mais elevado de institucio- nalizago da profissio de historiador do que em ou- tros paises latino-americanos, relacdes de poder ex- tremamente concentradas e verticais nas instituigdes universitérias ¢ académicas —, mas, sem diivida, outros sdo mais gerais. No entanto, certas posigdes que assume em seu artigo nos deixam perplexos. O autor parece nao enxergar absolutamente a proble- matica da cientificidade da Histéria e a questdo dos critérios de tal cientificidade. Sera possivel ou dese- javel anular a evolucio no sentido da especializacao e da profissionalizacao dos historiadores? E prova- vel que a Fisica, na época de Newton, fosse muito mais compreensivel do que é hole para o ptiblico ESCRAVO OU CAMPONES? n culto em geral: mas a sofisticagio metodolégica & teérica que a tornaram inacessivel, salvo a um pu- nhado de especialistas, ao mesmo tempo a fizeram mais e nao menos capaz de influir socialmente. A maneira de discutir a questo, no caso da Histéria, torna claro que, no fundo, é vista por muitos de um Angulo estreitamente pragmitico, a partir de condi- Ges éticas ¢ ideolégicas que a desejam como uma técnica a servico desta ou daquela corrente politico- social e, implicitamente, manifestam total ceticismo quanto a suas possibilidades cientificas — posicio que me parece ingénua, romantica e nefasta.* Qual- quer discussio da profissionalizacao e da institucio- nalizacio da Histéria deveria levar em conta que a qualidade das melhores obras histéticas, com elas, melhorou muito, tornando-as potencialmente mais aptas para dar subsidios a explicacdo do presente e & preparacao do futuro, bem como a questo mais geral'de saber como funcionam e mudam as socie- dades humanas. O que nio invalida, obviamente, a preocupagiio legitima com a ampliagao dos canais que permitem que tal influéncia se exerga, ¢ com as indagagées acerca dos vinculos politicos da atividade profissional dos historiadores. Eugene Genovese, que teve alguns embates com os excessos do black power norte-americano na Area universitéria e de ‘pesquisa — mesmo achando no conjunto o impacto do movimento na vida intelectual saudavel, constru- tivo e longamente esperado —, escreveu:* “Eu gostaria de sugerir respeitosamente que, em- cen a Soman me eres Se Spruit een i ea in a sate cinta yg tae he 2% CIRO FLAMARION S. CARDOSO bora os oprimidos possam precisar da Hist6ria para identidade e inspiragao, precisam acima de tudo da verdade acerca do que o mundo fez deles e do que ajudaram a fazer do mundo. S6 este conhecimento pode produzir aquele sentido de identidade que deve constituir inspiragao suficiente; aqueles que Pretendem que a Historia fornega momentos glo- tiosos e herdis so levados invariavelmente a co- meter erros catastroficos de avaliacio politica. Es- Pecificamente, os revoluciondrios nao precisam de Nat Turner como um santo; eles precisam da ver- dade histérica sobre a revolta de Nat Turner — sua forga e sua fraqueza”. Falemos agora de um fator que, pelo contrario, pode ser muito favorvel a construcao. de sinteses mais sélidas. Por muitos anos, os estudos de pés- graduacdo em Histéria na América Latina foram ou inexistentes, ou concentrados em pouquissimos cen- tros, conforme os paises. Os tiltimos vinte ou quinze anos viram a sua multiplicagio. Uma das conse- qgiiéncias de tal fato foi uma nova énfase na Histéria regional ou local. Em paises muitas vezes marcados Por fortes especificidades em suas diferentes regides = como 0 nosso —, isto constituiu uma correo Stil ao habito comum de generalizar a experiéncia de certas regides como histéria nacional — coisa co- mum no que nos interessa, ou seja, na Histéria da escraviddo. Ao mesmo tempo, tal transformacao es- teve freqtientemente vinculada ao uso de fontes an- tes pouco usadas: livros paroquiais, assentamentos dos cartérios, listas de dizimos, etc. De novo, o mesmo vem acontecendo com as anilises da escravi- dao. Coisa muito wtil: “Os movimentos nacionais so agregados derivados de... movimentos indivi- duais, mas por serem médias de experiéncias locais, ESCRAVO OU CAMPONES? » eles podem tender a ocultar a natureza do meca- nismo de mudanga”’.”” Os historiadores, incluindo ‘os do escravismo (ou alguns deles), se tornaram, en- tio, interessados em verificar estruturas € processos que se dizia serem gerais, em relac&o ao comporta- mento das variaveis numa localidade ou regio: a multiplicagio de estudos regionais adequados pode evar de volta & generalizacao, mas esta se fara, en- to, sobre bases muito mais sdlidas. De fato, o mé- todo correto consiste em oscilar entre os dois niveis permanentemente: a regio nao é explicavel fora da totalidade de que faz parte e que lhe da sentido, ¢ as generalizagdes no verificadas localmente costumam ser muito menos gerais do que se acredita. Por fim, salientemos que os estudos acerca da escravidao nas Américas s6 terao a ganhar se per- manecerem fiéis a um dos seus pontos fortes nestas ‘iltimas décadas, que constitui um poderoso instru- mento de controle das generalizacdes sintéticas © explicativas: o chamado método comparativo.’ O futuro dira se nos encaminhamos ou nio a novos debates que conduzam a novas visées sinté- ticas — sem divida muito urgentes — do mundo colonial em geral, do escravismo colonial em parti- cular, O que est4 fora de qualquer divida é que as sinteses propostas até a década passada se acham irremediavelmente defasadas, impondo-se sua revi- so, Enfrentaremos esta tarefa, no tocante ao nosso proprio sistema explicativo, no inicio do proximo capitulo. A “brecha camponesa” no sistema escravista O sistema escravista Os trés artigos com que iniciamos, em 1973, nossa participagaio no debate internacional acerca dos modos de produ¢ao na América Latina colonial surgiram, de fato, como subprodutos da redacdo, na Franca, entre 1967 e 1971, de uma tese de dou- toramento cujo objeto principal era uma col6nia‘es- cravista: a Guiana Francesa no periodo 1715-1817. Dois desses artigos nao passam de capitulos daquela tese. O terceiro é um trabalho de inteng&o polé- mica.' Ao lado de propostas concretas a respeito de uma possivel explicagao das realidades coloniais (so- a Jan Caras (ore), Modor de produeion ow América Latina, Cuadernos de Pasado y Present (Cérdoba, Argentina), n® 40, maio 1973, es pectivamente pp. 83-109, 135-159 ¢ 193-282. Os publicados em portugués, mas com muitos erros, in Santiago, Théo (or), ‘Amiri colonial, Rio de Janeiro, Pallas, 1975, pp. 61-143. Note-se também {que 6 primeiro artigo fora publicado anteriormente, em 1972, em Estudios ‘Sociales Centroamericanos, sem conhecer,entho, a difusio que leve 20 apa: recer nos Cuadernos de Pasado y Present. 2 CIRO FLAMARION S. CARDOSO bretudo nas regides em que a escravidio negra fora a principal relago de producio e o eixo das estru- turas sociais) — propostas, alids, insuficientemente desenvolvidas —, na verdade todos aqueles textos nossos eram polémicos. Combatiam especificamente duas posigdes que acreditévamos(¢ continuamos acreditando) inaceita- veis: 1) a extensao ao periodo colonial das Américas, sem prévia andlise hist6rica séria apoiada em fontes primarias, que permitisse uma comprovagiio, dos resultados a que o marxismo chegara a respeito de uma outra area do mundo (a mediterraneo-euro- péia): resultados, por sinal, empobrecidos, distorci- dos por um enfoque dogmatico e simplificador, ti- pico da fase stalinista, mas naquela época ainda nao superada cabalmente; 2) a perspectiva baseada na idéia de uma espécie de capitalismo perene, do sé- culo XVI em diante instalado no continente ameri- cano, cujo fundamento teérico era uma definicao de capitalismo que nos parece absurda por partir da esfera da circulagao e de apreciagées sobre a busca do lucro aliadas a uma certa concepgo da raciona- lidade capitalista — e nao da esfera da produgio. A primeira posicao criticada era-nos conhecida, em primeiro lugar, através da obra de Nelson Werneck Sodré e da Histéria nova do Brasil. A segunda, pela obra de Caio Prado Jiinior e, mais recentemente, pelas posturas de A. Gunder Frank.” Nao se tratava, é claro, de que tais autores no usassem fontes primarias — embora, sem divida, fizessem em forma insuficiente; mas sim de que os (2) Sodré, Nelson Werneck, Formapto histérica do Brasil, 9 e4., Rio 4 Janeiro, Civlizagao Brasileira, 1976; Prado Jinior, Caio, Brasil contempordneo. Colbnia, 7 ed., Sio Paulo, Brailiense, 1963; Suntos, Joel Rufine dos eal, Histéria nova do Brasil, vol. 1, Sto Paulo, Braslinse, 1965, ESCRAVO OU CAMPONES? 3 documentos nao fossem empregados com o fito de comprovar os pontos de partida (verdadeiros postu- Jados, no hipéteses heuristicas a comprovar) rela- tivos, seja ao cardter escravista (no sentido de uma reedigao hist6rica do modo de producdo escravista antigo) ou feudal (em colénias como a Guatemala, estudada no magnifico livro de Severo Martinez Pe- Yéez?) das sociedades coloniais, seja, pelo contrario, a um carter capitalista das mesmas sociedades (ou do conjunto metrépole/col6nia ou centro/periferia), definido em termos mercantis, em lugar de se tomar © capitalismo como modo de producio especifico que é. O desenvolvimento do debate, pondo-nos em contato com maior mimero de textos e autores,‘ a partir de 1974 e até aproximadamente 1979 (quando nos afastamos de uma polémica teérica, aliés ja muito arrefecida), permitiu-nos perceber que 0 ad- versario principal, na década passada, ja nao era o marxismo dogmitico. Tratava-se, isto sim, da con- cepcio de capitalismo que, fazendo das estruturas internas da América Latina e do Caribe, em espe- cial, simples projegdes ou corolarios do impacto de elementos ou influxos cuja racionalidade basica se situaria fora daquelas regides, levava a afirmacao clara ou implicita de que suas sociedades nao eram formagies econémico-sociais diferenciadas ¢ autd- nomas. Dai que, em nossas tiltimas infervengdes no debate, nos concentrassemos de preferéncia na cri- tica a tal concepcao.’ Isto porque ela nos parecia ter (Martinez Peliez, Severo, La patria del criollo. Ensayo de inter- pretacén de la realidad colonial guatemolteca, Guatemala, Editorial Univer- Stara, 1971. ‘@ Porexempl, Angel Palerm, 1. Wallerstein, JC. Chiaramonte, A. Cueva, F. Novas. (8) Cardoso, Ciro F. S;, “Los modos de produccién colonials: estado deta cuestiny perspectiva erica, Estiios Sociales Centroamerieanos, San 4 ‘CIRO FLAMARION S. CARDOSO certas conseqiiéncias nefastas — em especial a ndio- consideracao das estruturas e contradigGes internas inerentes as sociedades coloniais. Era patente, por exemplo, a auséncia de andlises que levassem em conta fatores como as forcas produtivas e as lutas de classes. De certo modo, como ja percebiamos em 1974, nossa postura naquele debate era paralela assumida pela chamada teoria da dependéncia desde 1967 (¢ da qual tomaramos conhecimento em 1968). Quanto as propostas substantivas que avangd- ramos — em especial no artigo “El modo de pro- duccién esclavista colonial” — no relativo as soci dades escravistas das Américas, analisando-as hoje, com o recuo de mais de uma década, percebemos como problemas e insuficiéncias principais os se- guintes: 1) a aceitagao acritica de afirmagdes de Marx, muito mal fundamentadas a respeito do sistema es- cravista (sobre as forgas produtivas técnicas, a ques- tio dos faux frais ligados A vigilancia e A repressdo, ete.); 2) aadesio quase sem reservas a posi¢ées que, partindo da critica necesséria-a autores como G. Freyre, S. Elkins ou H. Klein, continham, entre- tanto, elementos inaceitaveis, como a visio do es- cravo como uma espécie de vitima inerme do sis- Jost, Costa Rica, 4, 10, 1975, pp. 87-105; Cardoso, Cito F. S., “As con- cepgbes acerca do ‘sistoma econdmien mundial” e do “antigo sistema colonia; § preocupagio obsessiva com a ‘extrapdo de excedente™, in Lapa, José Ro- berto do Amaral org.), Modas de produedo e realidede brasileira, Petropolis, Vozes, 1980, pp 109-132(stesltimo artigo foi redigido em 1979). . (© Gf, Cardoso, Fernando Henrique e Faleto, Enzo, Dependendié y subdesarrolioen América Eatina, Mésico, SigloXX1, 1969 (o livre eireulou pre- viamente em edi¢do mimeografada de 1967, 2 qual tive aesso em 1958). Jé ‘antes, porém,redigira um texto que s5 foi publicado em 1971: Cardoso, Ciro prodiction feodal” Soils, 1971, pp 7-69 (0 dossier preparaoie em quest fe discatdo no Gentred'Endrt de RechershesMarsetes em 2741985). ESCRAVO OU CAMPONES? 38 tema ea auséncia de uma verdadeira andlisé de clas- ses (substituida por nogdes inadequadas de socie- dade de castas ou estamental); embora estas inter- pretacdes, como tais, no tenham sido por nés en- campadas, o fato de nao as criticar e o de nao desen- volver suficientemente o tema empobrecem 0 exame das sociedades escravistas e suas lutas; no relativo ao tema deste livro, explicam que afirmassemos — erroneamente — nao terem os escravos condicdes para perceber em forma plena a realidade da brecha camponesa e para agir de acordo com tal percep¢io; 3) a falta de um estudo organico das forgas produtivas em todos os seus aspectos, relagdes econ- seqiiéncias: quanto a este ponto, nosso texto apre- sentaya s6 sob a forma de exemplos alguns dos pro- blemas basicos (como o das variantes técnicas discu- tidas no inicio deste capitulo), e esbocava somente outros tdo ou mais importantes; 4) Héctor Pérez Brignoli tem, provavelmente, azo ao dizer que nossa perspectiva no conseguiu “integrar o elemento de subordinacao as metrépoles de modo sistematico”:’ com efeito, o fato colonial aparecia mais superposto do que integrado ao resto da anélise; 5) por fim, mencionemos algo bem especifico, mas importante: seguindo uma interpretagdio cor- rente na época, afirmamos que, nas condigdes do escravismo, 0 escravo “faz parte do capital fixo, dos meios de produgo"; em ‘outra ocasidio j4 haviamos reconhecido a justeza da critica de J. Gorender no tocante a este ponto.* (7) Pérea Brin, Héctor, “Colonial development and agricultural history in Latin America", in Chandra, B. (ed), Typology of colonial eco- nomic development, Budapeste, Akadé iat Kind, 1962, pp. 19-27. : ‘Si0 Paulo, Ati, 1978, ‘econbmice (6) Gorender, Jacob, O escravismo colonia pp- 186-189; Cardoso, Ciro. S.e Pérez Brignoli, Héctor, Hi de América Latina, vol. 1, Barcelona, Critica, 1979, pp. 203-204, 36 CIRO FLAMARION S. CARDOSO Aspectos positivos parecem-nos ter sido, entre outros, nossa forte insisténcia em priorizar a andlise dos fatores e contradigées internos das sociedades coloniais escravistas; a critica das concepgies dog- miticas e circulacionistas; a afirmagao da impossi- bilidade de estender, sem prévia anilise, ao conti- nente americano resultados obtidos alhures; e a én- fase na grande importancia da economia propria dos escravos — tema deste livro. Em trabalhos posteriores, embora nao propria- mente no contexto de discussées tebricas como an- tes, tratamos de reformular diversas questdes, ina- dequada ou insuficientemente colocadas nos artigos de 1973 e 1975, tendo em vista novas descobertas e a evolugao de nossos préprios estudos. Foi assim que, em diferentes momentos, retomamos o tema da tec- nologia de produ¢ao sob o escravismo,’ o da critica das concepeies de castas ou estamentais,” sistema- tizamos a andlise da incidéncia de fatores de varia- dos tipos na configuragao das modalidades do tra- balho colonial," voltamos 4 questo da demografia dos escravos em funcdo do processo de reprodugao do sistema escravista,” ou mesmo apresentamos su- mariamente algumas consideragdes de conjunto acerca de tal sistema.” Faltou, porém, retomar em forma completa, corrigindo-a, a tentativa anterior de construg4o de um modelo global. Embora nao 0 pretendamos fazer agora, 0 que nos levaria muito (9) Cardoso, CiroF.S., Agricultura, eeravidGo e capitalism, Petx6- polis, Vazes, 1979, cap. 3. (10) Cardoso, Ciro F. S. e Pérez Brignoli, Héctor, El concepto de ela ses sociales, Madsi, Ayuso, 1977, pp. 107-126. (13) Cardoso, Ciro, F.S., 0 trabatho na América Latina colonial, Sto Paulo, Atica, 1985, pp. 24:38. (12) Cardoso, Ciro F. ravismo € dintimica da populagio es- ‘rava nas Américas", Estudos Ezondmicos, Sto Paulo, 13, 1983, pp. 4153, (13) Cardoso, CivoF.S., Afro-Améria: a escravidio no Novo Min- do, Sto Paulo, Braslense, 1982, pp. 3-47. ESCRAVO OU CAMPONES? 37 longe do tema central do livro, queremos pelo menos indicar as diregdes gerais que tomaria atualmente tal construgao, caso decidissemos empreendé-la. E possivel fazé-lo sucintamente, o que permitira, outrossim, contextuar melhor nosso assunto central. Abordaremos tal tarefa partindo de nossos arti- gos de 1973 e 1975. Principais opedes tedricas e metodolégicas Reunindo elementos presentes nos diversos tex- tos mencionados, julgamos serem trés as posicées te6rico-metodoldgicas de base. 1) Em primeiro lugar, uma nocdo infra-estru- tural do conceito de modo de produgiio (que, por- tanto, nao inclui as superestruturas), insistindo, por outro lado, em que nao o reduzamos s6 as relagdes de produgio (e menos ainda as de exploragao), mas que seja visto a partir da correspondéncia ou articu- lagdo historicamente dada entre forcas produtivas (nivel, formas de organizacao) e relacdes de produ- cdo. A expresso “historicamente dada” é impor- tante: nao nos parece possivel conceber um modo de producéo como uma espécie de modelo desencar- nado, separado das condigées histéricas especificas de seu aparecimento e desenvolvimento. O locus classico, na obra de Marx, onde a defini¢ao do con- ceito aparece talvez mais claramente, é a passagem seguinte de O capital: “A anilise cientifica do modo de produgao capita- lista demonstra que este modo é de natureza par- (14) Marx, Karl, E Capital, womo 3, trad. Wenceslao Roces, México, Fondo de Cultura Eeondmica, 1968, p. 744 38 CIRO FLAMARION S. CARDOSO ticular e responde a condigdes histéricas especi- ficas; da mesma maneira que qualquer outro modo de produgio, pressupde como condi histérica uma determinada fase das forgas produtivas sociais e das suas formas de desenvolvimento: condigao que, por sua vez, é resultado e produto hist6rico de um processo anterior do qual parte o novo modo de Produgo como de sua base dada; que as relagdes de produgo que correspondem a este modo de pro- dugio especifico, historicamente determinado — elagées que os homens contraem no seu processo social de vida, na criago da sua vida social —, apresentam um cardter especifico, hist6rico e tran- sitério; e, finalmente, que as relacoes de distri- buicio so essencialmente idénticas a estas relagdes de produgo, 0 reverso delas, pois ambas repre- sentam 0 mesmo carter histérico transitério”. que diz o final desta passagem é valido igual- mente para a circulacio de mercadorias: “Uma pro- dugdo determinada, portanto, determina um con- sumo, uma distribuicdo, um interedimbio determi- nados e relacbes reciprocas determinadas destes di- ferentes momentos”.' Isto se contrapée a qualquer possibilidade de interpretaco “‘circulacionista”. Sublinhavamos, outrossim, 0 fato de que, na obra de Marx, hé mais de um nivel de emprego do termo “modo de produgao”’. Isto no sentido de mos- trai, em especial, a diferenga entre os modos de pro- dugdo que aparecem como ““épocas de progresso da formagiio-econémica da sociedade” na anilise feita por Marx com base principalmente na histéria euro- péia, e secundariamente asidtica (com algumas refe- réncias, também, 4 América pré-colombiana) — (13) Mars, Karl, Elementos fundamentales para la critica de la eco ‘nomia politiea (Borrador) 1857-1858, vol. 1, trad. J. Aricb et ali, México, Siglo XX1, 1971, p. 20. ESCRAVO OU CAMPONES? » modo de produgio asiatico, feudalismo, capitalis- mo, ete. —, e modos de producdo secundarios, que no foram dominantes e coexistiram com modos de produciio do primeiro tipo. Marx fala, por exemplo, dos modos de producao “pequeno camponés” e“‘pe- queno burgués”, referindo-se ao que, em conjunto, se conhece mais correntemente como a pequena produco mercantil. Nossas consideracdes a respeito yisavam a, em outro momento, apoiar a possibil dade de usar 0 conceito num registro ainda distinto: aplicando-o a sociedades caracterizadas por modos de produgiio nao somente secundarios, quando vis- tos no conjunto do mundo ocidental em formacio, mas ainda marcados pela dependéncia, os quais, entretanto, puderam ser dominantes nas formagoes econémico-sociais coloniais. Se 0 conceito de modo de produgio é eminen- temente infra-estrutural, a andlise do conjunto ba- se/superestrutura pertence a esfera de outra nocio, a de formacao econémica da sociedade ou, mais usualmente, formagio econémico-social. Esta nogio era por nés manejada numa perspectiva derivada sobretudo de E. Serenie de M. Godelier. O primeiro, partindo da idéia central de que as construgdes te6- ticas s6 s&o validas quando tém fundamento na pra- tica, mostra a necessidade de serem analisadas as sociedades particulares, concretas, historicamente dadas: 0 conceito de forma¢ao econémico-social, in- corporando os elementos infra e superestruturais num todo dinamico unificado pela posicao central da determinante econdmica (a realizagfo de cujo significado exige, porém, que seja completada e se realize plenamente por sua relacéo constante com elementos extra-econ6micos), convém a tais anali- ses. Godelier, por sua vez, entende uma formagio econémico-social como nogdio que serve para a and- 0 CIRO FLAMARION S. CARDOSO lise de realidades histéricas concretas, singulares, num dado periodo. Sua definigdo consistiria na sin. tese da natureza da diversidade e da unidade das Telagdes econdmicas e sociais caracteristicas da so- ciedade, em estudo no periodo considerado. O que implicaria, na pratica, em: 1) identificar o mimero e a natureza dos diversos modos de produ¢do combi- nados na base econémica da sociedade de que se trata, no periodo em questio; 2) identificar os ele- mentos superestruturais que correspondem a tais modos de producio; 3) definir a forma e o contetido da articulagio, da hierarquia dos modos de pro- ducio — um dos quais é dominante; 4) definir as fungies especificas dos elementos superestruturais que, seja qual for a sua origem, sao necessariamente redefinidos pela légica da hierarquizagio mencio- nada no ponto anterior.'* Continuamos subscrevendo a tais principios. J4 dissemos que o defeito principal de sua aplicacao a nossos trabalhos de 1973 e 1975 consistiu em que a importancia primordial das forcas produtivas foi mais afirmada do que de fato demonstrada e desen- volvida na prépria anilise. 2) A segunda posicao teérica fundamental par- tia da idéia de que a adocdo de uma teoria e meto- dologia — as do marxismo, no caso — nao implica absolutamente a aceitacaio de que os resultados ob- tidos a partir delas, num ambiente histérico def nido, sejam ipso facto validos para todas as socie- dades do mundo. Dajse partia para a afirmacdo de Marx de que “a historia universal nao existiu sempre; a histéria (16) Sereni, Emilio, La categoria formacién econémicay social, in Se- et ali, La categoria de Jormacibn econéinica y social, Mérico, Rees, » Horizon, trajets marcistes en anthropalogie, Pati, pp. 83-84, Godelier, Maur ESCRAVO OU CAMPONES? “1 como histéria universal é um resultado.” Isto por- que o capitalismo foi historicamente o primeiro modo de produgiio que se caracterizou por um efeito dissolvente sobre os outros modos de producdo com que entrou em contato e, por isto, se tornou univer- sal. Antes de sua instalagio como modo de produ- ¢&o dominante no mundo, existiam somente formas Jocais e heterogéneas entre si — ou seja, especificas. Ora, em nossa opiniao, nao havendo objeto real al- gum que corresponda 4 categoria capitalismo co- mercial, 0 periodo em que se deu a colonizagfio nas Américas — basicamente os séculos XVI a XVIII — é um periodo pré-capitalista em quase toda a sua extensio: tanto no concernente as estruturas inter- nas da Europa Ocidental e as de suas colénias ame- ricanas, quanto no que tange ao mercado mundial entio em constituicao. O capitalismo — ou seja, 0 modo de produgao capitalista, nico capitalismo que reconhecemos como categoria valida — estava entdo em processo de formacao e ascensio nao near, e nao desenvolveu suas forcas produtivas espe- cificas em grau aprecidvel antes de fins do século XVIII. Achamos que, hoje, um texto ainda nao re- digido na época em que escrevemos nossos artigos — ode R. Brenner — é 0 que ha de melhor na de- fesa de idéias como estas." Se assim pensavamos, que conseqiiéncias teria tal opedo teérica para a questio concreta dos efeitos do processo de colonizaco européia nas Américas durante os Tempos Modernos?” (17) Marx, Elementos fundamental (18) Brenner, Rol tique of neo-smithian marxism”, New Left Review, jul.ago. 1977, sobretudo pp. 67-68, (19) B unicamente daquéla coloniaagio se tratava: assim, uma com- pparaglo do que Marx pudesse dizer sabre a India no séeulo XIX, em fungio da conquistainglesa num periodo jé plenamente capitalists, com os efeitos da texpansio colonial ds séeulos XVI a XVIII, em nossa opin seria absurd. op. elt, p31 a CIRO FLAMARION S. CARDOSO Falando das conquistas, dizia Marx:” “Todas as conquistas supdem trés possibilidades. O povo conquistador submete 0 povo conquistado ao seu proprio modo de produgo (por exemplo, os ingleses na Irlanda no século XIX e, em parte, na India); ou entao deixa subsistir 0 antigo modo e se contenta com um tributo (por exersplo, os turcos ‘0s romanos); ou ainda, se estabelece uma aco reci- roca que produz algo novo, uma sintese (isto ocor- reu em parte nas conquistas germanicas)”. Nossa opiniao, entdo, consistia em que, nas es- truturas coloniais da América Latina, do Caribe e | do Sul dos atuais Estados Unidos realizara-se de preferéncia a iiltima das possibilidades que expoe 0 texto de Marx. Defendiamos, em outras palavras, coloniais. ‘Ao partir para sua anilise, insistiamos no fato de que, neles, a dependéncia daquelas formagies eco- némico-sociais coloniais em relagio as suas metré- poles era um dado inseparavel do conceito ¢ das es- truturas dos modos de produgao que poderiam ex- plicar tais formagies. Implicitas nesta atitude estavam outras opgdes importantes: 1) a no aceitagao da idéia da impos- sibilidade de uma economia politica para o pré-capi- talismo em geral, em relagao ao qual alguns autores, por no verem naquela fase as categorias econémi- cas articuladas na realidade social como sistema autdnomo, auto-regulado, acham que a aplicagio de conceitos como o de modo de produgao é absur- da; 2) pelo contrério, a escolha do ponto de vista (20) Marx, K. Contribucin ala eritica de la ecomomia politics, Fondo

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