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Ensaio cedido para publicação no projeto Músicos do Brasil: Uma Enciclopédia Instrumental,
patrocinado pela Petrobras através da Lei Rouanet
www.musicosdobrasil.com.br
A proposta que recebemos era espinhosa: traçar as tênues fronteiras entre a música popular e
a erudita, particularmente no Brasil. Discutir as diferenças entre a abordagem erudita e a abordagem popular, e
mostrar de que maneira essa ponte é feita. Parece fácil, mas não é. E a gente corre o risco de passar por freira
pontificando sobre sensualidade!
Quem de nós já não ouviu aquele clichê básico: “não existe música clássica e música popular,
existe música ruim e música boa“? A frase é uma saída honrosa para uma pergunta difícil: afinal, o que é
música popular? E o que é música clássica? Os eufemismos não resolvem o problema: música erudita, música
de concerto, música instrumental... são apenas outras tantas maneiras de driblar a questão.
O próprio Grove Dictionary online, referência segura para acabar com todas as brigas e pôr o
ponto final nas polêmicas mais acirradas, nos acompanha na viagem rumo ao topo do muro, ao tentar explicar
o que é música popular:
definidos, ou há toda uma camada intermediária, que desafia conceitos e definições? Em artigo no Jornal do
Brasil, já lá se vão 24 anos, o jornalista Luiz Paulo Horta1 declara:
1
Atualmente editorialista do jornal O Globo.
nome do compositor que confere certo status às peças por ele compostas. Qualquer um sabe que Beethoven é
um compositor importantíssimo. E assim se aceita, tacitamente, que qualquer peça de Beethoven é um
clássico, indiscutível e bom. Mas Beethoven, além de suas obras fundamentais e inquestionavelmente
excelentes, escreveu uma enorme quantidade de música medíocre e que não merece nem o epíteto de clássica,
nem tampouco o de “popular”, uma vez que se encontra justificadamente esquecida.
A confusão é mesmo grande, e não dá sinais de que vá se desfazer num futuro próximo.
Talvez com a especialização crescente, chegue um dia em que o popular e o clássico estejam definitivamente
separados e perfeitamente etiquetados na cabeça das pessoas. Mas não parece que isso esteja acontecendo, ou
mesmo que seja desejável. Ernesto Nazareth, por exemplo, seria popular? Não de acordo com Aline Oliveira
Martins. Em seu artigo intitulado Tensão e conciliação entre música popular e música de concerto no piano
nacionalista brasileiro a pesquisadora de Tocantins comenta:
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Na verdade há diversas músicas populares que apresentam tonalidades com muitos acidentes. Apesar de
ser incomum, não nos parece que seja isto que determine o grau de “erudição” de uma peça. Além do mais,
frequentemente músicos populares fazem modulações para outros tons com desenvoltura até mesmo maior do que seus
colegas de formação clássica. .
dissociado de seu trabalho como compositor de cinema, e suas peças são ouvidas hoje como “música pura”,
sendo nome freqüente nas coletâneas da revista Gramophone, a mais conhecida publicação sobre música de
concerto. O mesmo caminho seguem o húngaro Miklos Rozsa, os italianos Nino Rota e Ennio Morricone,
assim como o grande Bernard Herrmann, compositor favorito de Hitchcock. O argentino Lalo Schifrin (autor
do tema inconfundível de Missão Impossível), cujo disco The Dissection And Reconsruction Of Music From
The Past As Performed By The Inmates Of Lalo Schifrin's Demented Ensemble As A Tribute To The Memory
Of The Marquis De Sade foi um dos maiores sucessos populares da década de 60, misturou cravos, flautas
doces e sonoridades assumidamente barrocas a uma levada jazz-pop. Num desenvolvimento previsível, mas
ainda assim surpreendente, a sisuda e sofisticadíssima revista Fanfare, especializada em crítica de CDs
eruditos, abriu recentemente uma seção permanente de crítica dedicada à música composta para filmes ...de
Bollywood!
Há pouco estreou o filme Café dos Maestros, um documentário sobre Tango, com entrevistas
com a velha guarda sobre a música e seus executantes. É intrigante notar a total ausência de Astor Piazzolla,
cujo nome não é nem ao menos mencionado. Porque sua música não segue exatamente os cânones aplicados
ao gênero?
Mas não é necessário recorrer a exemplos geograficamente tão distantes de nós. Durante
muitos anos o Rio viu o Projeto Aquarius encher de gente a Quinta da Boa Vista e outros lugares igualmente
enormes, para assistirem sinfonias de Tchaikovsky e Mahler. Populares ou clássicas? O projeto Um Piano
pela Estrada, de Arthur Moreira Lima, que adentra o interior do Brasil levando recitais para piano, são
classificáveis em qual modalidade? E a ópera, um divertimento eminentemente popular na Itália, por que
constitui programa elitista no Brasil?
A questão nos remete a um episódio já antigo, mas varrido para debaixo do tapete, e lá
esquecido. Um conhecido flautista foi participar de um congresso da American Flute Association, com uma
comunicação sobre o flautista fluminense pioneiro Pattápio Silva. Escolheu particularmente uma peça, que
consta de uma gravação histórica, na qual o locutor da rádio anunciava, em altos brados algo como: “E agora
ouviremos Pattápio Silva, tocando Variações de flauta”. Pois o nosso pesquisador disse que se alongaria sobre
“uma peça inédita de Pattápio” sobre a qual ninguém havia escrito nada ainda. Falou, falou, falou... até que o
fórum foi aberto para discussões e perguntas. Imediatamente um dos musicólogos americanos presentes
apontou um pequeno detalhe: a peça em questão não era de Pattápio, mas sim do alemão Wilhelm Popp!
Apenas o locutor da gravação antiga havia omitido este fato, e o palestrante/flautista não havia se dado ao
trabalho de pesquisar o assunto a fundo.
Por que mencionamos o caso? Certamente não pelo insólito da situação. Mas sim porque nos
chama a atenção o fato de Pattápio ser às vezes considerado um compositor popular, mas a ninguém ocorreria
classificar Popp desta forma. E, no entanto o estilo de ambos, como se pode deduzir, é semelhante a ponto de
ser confundível. Peças como Margarida, Zinha, Oriental (sobretudo Oriental!) poderiam perfeitamente ser
ouvidas em qualquer salão de Viena, e em nada desfiam características eminentemente brasileiras. Ainda
assim, não falta quem diga que Pattápio é compositor popular.
Joaquim Callado, autor de Flor Amorosa, conhecido como “pai do Choro”, portanto pioneiro
da música popular instrumental brasileira, foi professor do Conservatório Imperial de Música, e do Liceu de
Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, e nesta sua função era, evidentemente, um músico erudito. Existe uma
história famosa (e questionável), relatada por Iza Queiroz Santos, de um duelo entre Callado e o famosíssimo
flautista belga Reichert, “vencido” pelo flautista brasileiro, em que ambos tocaram a mesma obra,
evidentemente, tendo assim Callado demonstrado que estava ao corrente dos últimos desenvolvimentos de
técnica flautística europeus. Seja ou não apócrifa a história, mostra que Callado gozava de uma reputação
brilhante, que não era “maculada” pelo seu status de músico de Choro.
Fazendo uma pequena digressão: recentemente o grupo Re-Toques fez uma tournée
patrocinada pelo SESC pelo Brasil inteiro, executando apenas obras clássicas contemporâneas brasileiras. De
início, o projeto poderia parecer uma loucura rematada: afinal, estaria o público de Ouricuri ou Pato Branco
preparado para ouvir um compositor moderno? Não faria mais sentido levar obras de Bach ou Vivaldi, mais
acessíveis ao público leigo? Durante as apresentações, porém, pode-se constatar um fenômeno curioso: uma
vez que aquele público de pequenas localidades perdidas no mapa nunca havia tido contato com qualquer
música clássica, também não tinha expectativa alguma a respeito: Johann Sebastian Bach ou Sérgio Roberto
de Oliveira3 (um jovem compositor carioca) são igualmente exóticos para um habitante de Mazagão Novo, e
recebidos com igual isenção e boa-vontade.
Então freqüentemente o problema de engavetar a música como clássica ou popular é
simplesmente uma questão de expectativa. Ou, no seu sentido primeiro, de pré-conceito. As diferenças entre
os dois tipos de música são estabelecidas com base em diversas formulações: no seu grau de sofisticação
estrutural, na especificidade da formação instrumental, por permitirem (ou não) improvisação, pela maior ou
menor liberdade concedida ao intérprete, pelo sucesso (ou não) alcançado, pela intenção inicial do compositor,
pela sua escolaridade ou origem social. São todos critérios muito subjetivos, e insuficientemente abrangentes
em si.
Existem pessoas que definem os dois tipos de música com base em sua simplicidade ou
sofisticação. Porém a teoria de que o popular possui uma estrutura musical simples cai por terra quando
pensamos no Choro e na música popular instrumental em geral, por exemplo – a complexidade de suas
3
É interessante observar que em seu site profissional Sergio escancara sua “vida dupla” tendo um link
direcionado exclusivamente para sua carreira na área da música popular!
melodias e harmonias apresenta dificuldades técnicas até para um músico de formação acadêmica, e portanto
teoricamente com uma técnica bem desenvolvida.
Mesmo quem pensa que a principal diferença entre as estéticas é a improvisação, caminha por
terreno minado. É verdade que a música popular geralmente demanda uma criatividade imediata, uma forma
de erudição que não se aprende na escola. Mas não devemos esquecer que há também espaço para a
improvisação na música denominada “erudita”, como por exemplo, a ornamentação e o uso do baixo contínuo
no barroco e as cadências livres no classicismo.
Outra diferença freqüentemente apontada entre o popular e o clássico é que a música clássica
seria escrita para formações muito específicas, não admitindo “improvisação” no campo das combinações
instrumentais; já as combinações instrumentais das obras populares não costumam ser pré-determinadas. Mas
é claro que se pensarmos nos períodos anteriores a 1760 tal afirmação é totalmente equivocada. Até mesmo
por razões comerciais, obras barrocas geralmente carregam no frontispício indicações do gênero: “para flauta,
flauta-doce, oboé ou violino”.
Mas se existem músicas que não conseguimos facilmente encaixar no paraíso da música
popular ou no inferno da clássica (ou vice-versa, dependendo do ponto de vista), mais intrigante ainda é o
purgatório daquelas que se encontram relegadas a um meio termo. Quando se fala em música de salão (valsas,
polcas, habaneras, etc.) é praxe não a classificarmos como popular, mas também não a consideramos clássica.
Na verdade ela é geralmente vista como uma espécie de música clássica de segunda categoria, assim como a
opereta. Se hoje as valsas de Johann Strauss são vendidas na seção de clássicos das lojas de música, e recebem
suntuosas interpretações de maestros do nível de Harnoncourt (regendo nada mais, nada menos do que a
Orquestra do Concertgebow, uma dos conjuntos “classe A” do mundo!), já houve época em que nenhum
músico clássico de respeito ousaria confessar sua predileção por este repertório, mesmo sob tortura! E nem foi
há tanto tempo assim. O que relega essas peças para o limbo de uma meia-vida?
Uma hipótese muito plausível é a manifestação de certo esnobismo intelectual, infelizmente
bem comum, que valoriza as peças de maneira inversamente proporcional a seu sucesso comercial. Aquilo que
é consumido por uma parcela minúscula da população, que é mais hermético e menos imediatamente acessível
ao ouvido, adquire uma conotação de refinamento, uma chancela de exclusividade que é bem cara aos
intelectuais. Não é a toa que Antonio Vivaldi, o mais “popular” dos compositores barrocos, tenha sido
considerado, durante décadas, um compositor vulgar, repetitivo e desprovido de méritos reais. Sua reabilitação
como “compositor sério” é recente, e muitos melômanos ainda fazem questão de torcer o nariz à simples
menção do nome do Padre ruivo.
Então o que separa o joio do trigo, será uma questão de nível de elaboração? Não mesmo! Se
a gente pensa nas peças de piano do compositor francês Erik Satie, elas são estruturalmente muito mais
simples do que as valsas de Johann Strauss, e no entanto são consideradas “mais clássicas”. As peças para
piano do francês Charles-Valentin Alkan, verdadeiras jóias em miniatura, que apenas recentemente estão
sendo devidamente apreciadas, são de uma simplicidade absolutamente estarrecedora, de um despojamento
melódico e harmônico total, certamente muito maior do que a sofisticação harmônica de um Tom Jobim. E no
entanto Jobim é certamente popular. Ou não?
No Brasil, a falta de fronteiras claras entre popular e erudita vem de longe. A partir de 1808,
com o aumento da importância do Rio de Janeiro como capital, a cidade passou a adquirir um peso cultural
muito grande e a ditar moda para o resto do país. Músicos do Brasil inteiro, e mesmo do exterior,
encontravam na cidade um ambiente propício para exercer suas profissões, e já em meados do século os
teatros em que se podia ouvir música de bom nível se espalhavam.
Os músicos, assim como na Europa, se desdobravam em múltiplas funções. Estávamos ainda
longe da especialização que vem se tornando uma norma no mundo hoje. Flautistas eram também oboistas,
saxofonistas, clarinetistas, maestros e até mesmo cantores. Como hoje em dia, também corriam de emprego
para emprego, para aumentar seus ganhos. O francês Pierre Laforge, por exemplo, um dos primeiros (senão o
primeiro) a editar música no Brasil, em 1834, além de integrar a Real Capela era membro da Real Câmara, e
tocava na Orquestra de S. Pedro de Alcântara. Nos cafés e ambientes mais descontraídos, a música ocupava
lugar de destaque.
A música popular, como a gente a considera hoje, com uma existência praticamente
autônoma, com seus próprios locais de desenvolvimento – os bares, os cabarés, os teatros de revista – só viria
a constituir um campo de emprego específico já em fins do século XIX. Até lá, os músicos eram
principalmente empregados nas orquestras e nas igrejas, e claro, se dedicavam tanto à música mais “séria”, a
música sacra – quanto aos saraus e à música ligeira, nas casas de espetáculo que começavam a florescer na
capital.
Como não havia ainda registro gravado de música, e a rádio e os discos ainda não eram
correntes, o comércio de partituras para uso doméstico e profissional se expandia e gozava de imensa
popularidade. Quem pensa em partituras, imagina que sejam de peças clássicas, como Polonaises de Chopin.
Afinal, o popular se divulga de ouvido, não precisa de partitura, certo? Errado! Essas partituras, muitas ainda
vivas em coleções e bibliotecas, mostram uma saudável mistura de gêneros e estilos e são calmamente
classificáveis como música popular. Mesmo hoje em dia, os songbooks que vêm sendo editados mundo afora,
inclusive no Brasil, nada mais são do que música popular sendo transcrita em arranjos para violão (com
cifras), piano, ou outro instrumento qualquer em partituras, bem ao estilo de antigamente. O perigoso é que a
aplicação de conceitos às coisas demanda um juízo de valor, afinal toda crítica é uma metalinguagem. Partir
de um determinado ponto de vista, inevitavelmente nos afasta de outros, mesmo que escolhamos os melhores
critérios para formulá-los.
Referências Bibliográficas:
HORTA, Luiz Paulo. “Música Clássica? Erudita? De concerto?”. Jornal do Brasil, 26/02/85.
MARTINS, Aline Oliveira. “Tensão e conciliação entre música popular e música de concerto no
piano nacionalista brasileiro”. In: XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Música (ANPPOM). Brasília, 2006.
http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2006/CDROM/POSTERES/11_Pos_
Musicologia/11POS_MusHist_10-224.pdf
MARTINS, Rosane. blog: www.amalgama.blog.br
MIDDLETON, Richard e MANUEL, Peter. Grove Dictionary Online, verbete “Popular Music”.
http://www.oxfordmusiconline.com/public/book/omo_gmo
PEDROSA, Henrique. Música Popular Brasileira Estilizada. Rio de Janeiro: Universidade Santa
Úrsula, 1988
SANTOS, Iza Queiroz. Origem e evolução da música em Portugal e sua influência no Brasil.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.
SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a Arte: o pensamento pragmatista e a estática popular. São
Paulo: Editora 34, 1998.