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CURITIBOCAS

DIÁLOGOS URBANOS
Governador
ROBERTO REQUIÃO DE MELLO E SILVA

Vice-Governador
ORLANDO PESSUTI

Chefe da Casa Civil


RAFAEL IATAURO

Secretária de Estado da Cultura


VERA MARIA HAJ MUSSI AUGUSTO

Diretor Presidente da Imprensa Oficial


EVITON MACHADO

CONSELHO ESTADUAL DE EDITORAÇÃO

Presidente: Vera Maria Haj Mussi Augusto

Membros Efetivos

Alice Áurea Penteado Martha


Carlos Augusto da Luz
Cláudio Fajardo
Geraldo Mattos
Marise Manoel

Membros Consultores

Adélia Maria Woellner


Dirceu Guimarães Brito
Flor de Maria Silva Duarte
José Carlos Veiga Lopes
Marta Morais da Costa
Verônica Daniel Kobs

Chefe do Setor de Editoração da SEEC/PR


Rosi Gloria Zandoná Lopes Salomão
João Varella
Cecilia Arbolave

CURITIBOCAS
DIÁLOGOS URBANOS

Governo do Paraná
Secretaria de Estado da Cultura

Curitiba 2008
Diagramação e Editoração de Imagens
Eliseu Tisato

Fotos
Bruna Bazzo
João Varella (capítulo 7)
Capa
Bruna Bazzo e Melisa Martinez
Revisão
Rochele Totta

Segunda edição
Revisão
Cíntia Maria Braga Carneiro
Finalização gráfica
Adriana Salmazo Zavadniak

Dados internacionais de catalogação na publicação


Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira

Varella, João Cezar.


Curitibocas : diálogos urbanos / João Cezar
Varella. - Curitiba : Imprensa Oficial, 2008.
333 p. ; 21 cm

ISBN 978-85-89696-28-9

1. Tipos populares - Curitiba (PR) -


Entrevistas. 2. Curitiba (PR) - Biografia. Título

CDD (21ª ed.)


398.0981621

Livro aprovado pelo Conselho de Editoração


da Secretaria de Estado da Cultura
Agradecimentos
Este livro foi concebido e é dedicado ao espírito
coletivo de criação e colaboração. Alguns nomes se
destacam:

Eliseu Tisato, Bruna Bazzo, Rochele Totta, Luis M.


Paredes, Melisa Martinez, José Carlos Fernandez,
Marcio “kk” Farias, Erica Wedech, Grupo Íbis, clãs
Varella e Arbolave.

Nosso agradecimento especial aos que acompanharam,


comentaram, criticaram e elogiaram a gênese do
projeto no blog www.curitibocas.com

Um muitíssimo obrigado aos 17 entrevistados


que aceitaram conversar com dois estudantes
desconhecidos, sem editora nem data de lançamento.

Além de você, que nós certamente esquecemos, mas


não foi por mal. Na próxima edição será corrigido.

Esclarecimento
Todas as entrevistas se deram no segundo trimestre
de 2007 e não refletem necessariamente a opinião dos
autores.
Índice

Capítulo 1  
Esterco na bota Ivo Rodrigues
Pág. 09

Capítulo 2
Olha a cobra, aqui tem Borboleta 13
Pág. 31

Capítulo 3
Caminhante Plá
Pág. 47

Capítulo 4
Mas que existem, existem Mila Behrendt
Pág. 65

Capítulo 5
Sem raízes Joba Tridente
Pág. 83

Capítulo 6
Aroma da dor Edilson Viriato
Pág. 103

Capítulo 7
Fundamentalismo futebolístico Suk
Pág. 121

Capítulo 8
Um anjo que luta Efigênia Ramos Rolim
Pág. 139

Capítulo 9
Mudança no hábito Irmã Custódia
Pág. 157

6
Capítulo 10  
Leitor da urbe Key Imaguirre
Pág. 175

Capítulo 11
Quem arte quer casa Didonet Thomaz
Pág. 195

Capítulo 12  
Um pastel na correria Paulo Cezar Rodrigues
Pág. 213

Capítulo 13  
A redenção do pipoqueiro Valdir Novaki
Pág. 231

Capítulo 14  
Leão na savana Oilman
Pág. 253

Capítulo 15  
Dentro da caixinha Hélio Leites
Pág. 273

Capítulo 16  
No outro lado da ponte Murilo Mendonça
Pág. 293

Capítulo 17  
Da escolinha do interiorzão Paixão
Pág. 315

Curitibocas | 7
Esterco na bota

G
olpeou suavemente o vidro com sua testa três vezes. O
ônibus que deveria estar do outro lado havia
sumido. Tinha a impressão de ter passado cinco
minutos no banheiro da rodoviária. O velho relógio de pulso
acusava quatro vezes este tempo. Mais um golpe no vidro. Manteve
a cabeça apoiada ali por algum tempo.
Perguntou para um gari se havia visto o ônibus. A resposta
confirmou a suspeita de que havia permanecido fora do veículo
por mais tempo do que deveria. Agradeceu ao servidor público
vestido de laranja pela má notícia.
Dirigiu-se em busca do guichê da Viação Citram. Fechado.
Uma folha A4 posta na frente da janela fechada indicava: “VIAÇÃO
CITRAM Aberto SEG-SEX 7H ÀS 20H / SÁB 7H-23H / DOM
6H-19H”.
Eram 2h31 da manhã. Indagou novamente o gari para
descobrir qual era o dia da semana. Depois de um pequeno debate
sobre quando os dias mudam – concluíram que as datas avançam
no calendário após a meia-noite, e não quando o indivíduo acorda
–, concordaram que eram as primeiras horas de uma terça.
Resolveu sentar em um banco para passar de maneira
cômoda as quatro horas e meia que faltavam para a abertura
do guichê. Apreciou a vista que dava para um estacionamento
e algumas árvores. Leu alguns cartazes que divulgavam as
belezas da cidade. Tratava-se da “Capital Ecológica”, segundo a
publicidade. Era a primeira vez de Darcy em Curitiba.

Curitibocas | 9
Embaixo do banco havia uma revista amassada. Um provável
futuro alvo do gari. A capa estampava um sujeito de turbante
sob um fundo de estrelas. Pouco promissor para os padrões
de Darcy. Começou a folhear a revista de trás para frente. Em
situação normal, os assuntos tratados pela publicação seriam
ignorados. Na presente, até leu alguns parágrafos sobre pedras
com poderes relaxantes, horóscopo, meios para manter uma
alimentação saudável e perguntas que revelam a alma de uma
pessoa. O relógio avançara pouco. Colocou a revista no bolso
da jaqueta.
Só então Darcy se deu conta da situação. Estava sem as
malas. Fechou os olhos com fé e revisou duas vezes cada bolso.
Encontrou chicletes, uma carteira com vinte e três reais, algumas
moedas, camisinhas, lenços aromatizados e um cartão de telefone
público com cinco unidades. Darcy sofreu dois furtos em dois
anos. Acreditava que seus documentos, dinheiro, celular e
canhoto da passagem estivessem mais seguros junto de sua
bagagem de mão.
Com raiva de si, resolveu caminhar. Sem rumo. Adotou o
critério de seguir pelas ruas com nomes iguais aos de sua cidade.
Encontrou um bar cinqüenta minutos depois.
Sentou no balcão. Viu de relance, em uma cadeira atrás, um
cara que parecia saído de algum filme de época. Pele pálida de
quem não vai para praia há um bom tempo, capa negra perfeita
para um velório e uma cartola. Darcy só tinha visto uma cartola
no circo que se instalava na cidade anualmente. O nariz pontudo
e o olhar firme reforçavam o ar aristocrático do ser.
Alguns metros ao lado, uma banda desmontava os aparatos.
Guitarra, violão, baixo e uma micro-bateria. O único que não
portava instrumentos era um cabeludo de risada fácil. Pela voz
grossa e alta que usava para contar piadas, Darcy inferiu que era
o vocalista. Um gurizão se aproximou dele.
- Pô, mas não vão tocar mais um?
- Você me desculpa, mas nós já tocamos três “mais um”. Agora
nós vamos encerrar –, respondeu o barítono, sorrindo.
- Mas eu queria que encerrasse com uma música própria da
banda.
- Você veja, encerramos com “Unchain My Hearth”, do Joe
Cocker. Tentamos acabar com uma música de alto astral, para
cima, para que as pessoas levassem uma boa lembrança, uma
recordação nossa, da alegria nossa de tocar.
- É, mas não pode ser.

10 | Ivo Rodrigues
- Você me desculpe, mas eu vou sentar ali.
O cabeludo veio para a mesa do misterioso homem de negro.
Uma menina meio embriagada se aproximou.
- Por que você não tocou mais um?
- Eu estava explicando ali para o meu amigo, você deve
conhecer ele, a razão.
- Ah, mas não pode. Uma pessoa como você não pode.
- Quer saber uma, comadre? Quem não gosta que vá para a
puta que o pariu.
A menina ficou com os olhos vermelhinhos.
- Você não é a pessoa que eu esperava –, disse enquanto
chorava copiosamente.
- Meu amor, o que eu posso fazer por você? Gostaria tanto
de ser seu amigo...
- Não tem mais o que explicar. Acabou.
A menina foi embora. Darcy segurou o ímpeto de se virar
para a cena. De costas, escutou o diálogo, transcrito abaixo,
entre o misterioso homem de negro e Ivo Rodrigues, vocalista
da banda Blindagem:

É sempre assim? Ela jogou fora toda aquela dedicação


minha. Dá impressão que eu não ligo para o público. A maior
preocupação minha é não ser antipático com as pessoas, ser
paciente, ser humilde. São virtudes que cultivo e me preocupo
com isso. Cheguei à conclusão de que é difícil agradar gregos,
troianos, fenícios e cartagineses.

Como você lida com a fama? Em primeiro lugar, eu


nunca fui estrela e nunca vou ser. É muito bom ter consideração
por mim e pelo meu trabalho e sempre me tratam com muito
carinho. Vale qualquer cachê do mundo. Mas não só eu, é com
todo o Blindagem. Agradeço a Deus por ter pessoas que me
tiraram do mau caminho.

Qual mau caminho? Quase fui para o espaço, passei uma


época bem ruim, internado no hospital, por causa de whisky e
pó. Pensei que ia embora mesmo. Deus me deu a chance de viver
novamente. Hoje em dia, tomo uma cervejinha, meio cabreiro
ainda, ou água. Tem nego que pensa que eu morri. Um amigo foi
para Salvador passar umas férias. Naquela época, havia morrido
um ex-baterista nosso. Disseram para ele:
- Sabe quem morreu? O cara do Blindagem.

Curitibocas | 11
- Porra, morreu o Ivo, pois ele estava mal quando saí de lá.
Foi na igreja e mandou rezar uma missa para mim. Quando
ele me viu, ficou branco. “Porra, pensei que você tinha morrido,
mandei rezar missa para você”.

E o que aconteceu com a banda nessa fase? Se não


fossem eles... Quem me levou para o hospital foi o Paulo Teixeira.
Estava tocando num lugar sozinho, já com aquele barrigão de
doente, copão duplo de whisky. Tomei mais de um litro por noite
durante uns 20 anos. Estava ali, ia começar entrou o Paulinho.
- Vamos lá para tua casa, a mala está pronta. Você vai para
o hospital.
- Mas o que é isso?
- Vamos. Nós já resolvemos, você vai.
Ele me deixou no hospital. Fiquei lá por três meses. E ia
morrer. Estava desenganado pelos médicos. “Olha, você acho
que não volta mais”, os caras me falavam. Pedi para o homem lá
em cima. E ele me ajudou.
Quem tinha morrido? O Marinho “Bocão”, primeiro
baterista do Blindagem. Era muito bom. Todos nós éramos
drogados na época, só que ele era demais. Era bocão mesmo,
queria tudo de uma vez só. Nós fomos fazer uma temporada no
Teatro Pinhão no Rio de Janeiro. Aí nós conseguimos juntar
um tijolão de fumo, nos enfiamos no camarim. Fumei uns dois,
três e fui dar um rolê. O cara ficou o tempo inteirinho fumando
com as meninas e com os amigos. Tomaram bola, cheiraram pó.
Chegou a noite, o cara estava imprestável. Fez tudo errado no
nosso show de estréia no Rio. Fiquei fudido. Continuou um bom
tempo, até que chegou uma época que não dava mais, teve que
sair fora. Queríamos ser profissionais e ele estava brincando.
Ele tentou formar outras bandas, sempre nessa loucura. Nunca
conseguiu sair da merda.

O que aconteceu com ele depois? Pegou doenças


venéreas, arrumou uma mulher que ele vendia para os caras
transarem. A mulher e o nenê também doentes. Andava por aí
pedindo esmola e o argumento dele era “Olha, eu fui o baterista
do Blindagem”.

Tentou ajudar ele? Levava cesta básica para ele. Trocava


tudo por drogas na favela. Nem leite para o filho guardava.
Fizemos tudo que podíamos. Internamos ele, mas fugia do

12 | Ivo Rodrigues
sanatório. Quando gravamos o primeiro disco, todas as músicas
eram minhas. Eu era o único que teria a carteira da Sicam –
Sociedade Independente de Cantores e Autores Musicais. Os
outros pediram para colocar o nome deles numa das músicas
como parceiro para que pudessem ter a carteira da Sicam e
também receber direitos autorais, por todo esse trabalho que
fazíamos juntos. Achei legal. Peguei e botei o nome do Marinho
em uma música minha. Coloquei o nome dele em “Cheiro de
Mato”. Ganhei um bom dinheiro só com essa música. O Marinho
nem sabia desses direitos autorais que ele tinha para receber em
São Paulo. Liguei para a Sicam.
- Quanto tem direito Mario Leite Barros Filho?
- Tem aqui oito mil reais.
- Se eu levar uma procuração dele, vocês me dão esse
dinheiro? Aqui é Ivo Rodrigues, também sou filiado.
- Não tem problema.
Ele me deu a procuração. Fui a São Paulo, peguei os oito pau.
Encontrei ele na rua.
- Marinho, tenho um dinheiro para você. É a última vez que
eu vou fazer alguma coisa por você. Pode muito bem com esse
dinheiro comprar uma bateria, voltar a trabalhar, alugar uma
casinha, comprar uns móveis.
A grana seria uns 20 pau hoje. Ele falou:
- Não Ivo, deixa comigo. Agora eu sei.
- Você não quer fazer o seguinte? Leva quinhentão para você
comprar umas coisas para tua casa e deixa 7.500 na casa da minha
mãe. Quando tiver um negócio bom para comprar uma bateria
usada, a minha mãe vai com você.
Minha mãe gostava muito dele. Aceitou. No outro dia, foi na
casa da minha velha e pegou tudo. Comprou tudo em crack e foi
para zona. Nunca mais ajudei ele. Fiquei sabendo que ele estava
numa decadência tão ruim que não tinha o que comer. Foi pegar
comida no lixo, um rato tinha mijado. Morreu daquela doença
que pega no xixi do rato [leptospirose].

Enquanto você esteve no hospital, recebeu uma


força dos amigos? Sempre, maior ajuda. A Rita Lee veio de
São Paulo para me ver, minha grande amiga. Também gravou
um depoimento para o nosso show no Guairão. Depois foi feito
um show para arrecadar grana para mim.

Curitibocas | 13
Então foi para isso aquele show de 25 anos... Foi.
Estava fudido. Precisava de sangue. Foi feito um movimento na
cidade e consegui. Quem vai ser transplantado precisa arrumar
cem litros de sangue para a cirurgia. Sou uma pessoa popular, até
tenho certa facilidade para conseguir isso. Mas eu fico pensando
naqueles caras tudo fudido, vêm lá do interior com a Bíblia
debaixo do braço. O que vai fazer? Não tem um banco de sangue
para assaltar. Cem litros de sangue sai 3.000 reais no mercado
negro. Sabia disso? É um protocolo estranho esse.

Se voltasse no tempo, mudaria algo para evitar essa


situação? Acho que poderia ter ficado bem melhor se tivesse
bebido menos. Bebida é uma droga filha da puta. O alcoolismo é
uma doença irrecuperável. Ela fica no sangue, o organismo fica
dependendo daquela quantidade de álcool para se satisfazer e se
sentir bem. Não bebo faz quatro anos, mas sei que sou alcoólatra.
A primeira coisa que penso de manhã quando eu acordo, ainda
na cama, é “puxa, uma dose dupla de Johnny Walker Black sem
gelo para começar bem”. Era viciado em pó. Consegui largar tudo.
Fumo eu não vou largar porque não considero droga, nem meus
médicos consideram. Tomo uma cervejinha às vezes. Assim estou
em paz com a minha família, meus amigos e Deus.

Se arrepende de ter usado drogas? Foi uma época da


minha vida, muito legal, que eu curti, que aprendi, que eu vivi.
Acho que o cara que não vive não tem condições nem de falar
“ah, não admito isso”. Já experimentou? Não? Então vai tomar
no teu cu.

E agora o que mudou? Mudou tudo. Senti de novo o prazer


de viver. Pior coisa que tem do alcoolismo e das drogas é que você
vira um verme, um vegetal, tudo você faz mal-humorado, com
má vontade. Tem vontade de fazer nada.

Como seria o Paulo Leminski sem as drogas? Seria


muito careta, muito babaca. Talvez seria ainda um seminarista.
Aquilo fazia parte da loucura do Paulo, da vida dele. Eu também
sou assim. Se eu mudar, cortar meu cabelo, virar caretão, vou
virar caixa de banco. Se Deus me der chance, quero estar com
70 anos curtindo a vida.

14 | Ivo Rodrigues
Como se conheceram? Tinha um amigo, Toninho Martins
Vaz, que eu conhecia muito antes de conhecer o Leminski. Ele foi
o biógrafo dele. Nós fazíamos muita loucura, íamos para a praia
juntos. Coisa da juventude efervescente. Eu tinha um grupo,
chamava-se Som Fúnebre, especializado em cantar em velórios,
enterros e guardamentos. Era o Carlão, que depois viria a ser o
baixista d’A Chave; o baterista era quem estivesse no lugar, e na
guitarra o Rodney, que está fora do Brasil. Nós inventávamos
músicas na hora, era aquele período louco. A platéia toda louca
também. Mas daí nessa época o Martins Vaz me levou na casa do
Leminski. Era lá perto do Atlético. Fomos lá. Foi amor à primeira
vista. Sem sexo, claro. Ficamos muito amigos. Não parei de ir
na casa dele, e ele vinha na minha. Fiquei muito amigo da Alice
[Ruiz] e dos filhos deles.

Uma das suas composições com o Leminski foi


cantada por Caetano Veloso. Gostou do resultado? O
Paulo teve contato com o Caetano na Bahia. Aí, o Caetano falou
no interesse de gravar “Verdura”. Ele gravou antes da gente.
No primeiro disco, queríamos colocar “Verdura”, mas os caras
da gravadora falaram “Não pode. Existe uma lei que só depois
de três meses que pode gravar novamente a mesma música”.
Depois, em um outro disco, colocamos. A versão do Caetano de
“Verdura” ficou meio lânguida [canta] “De repente me lembro do
verde / Da cor verde a mais verde que existe / A cor mais alegre,
a cor mais triste”.
Eu respeito a visão dele, é um gênio. É de outra área, outro
gênero, e viu dessa forma.

*****
A conversa é interrompida. Um polaco com as bochechas
rosadas se aproxima.
- Ivo, sempre quis falar contigo. Não estou atrapalhando?
- Como vai você? Eu estou aqui colaborando com uma
entrevista...
- Só quero fazer uma pergunta. Eu tenho 52 anos, só um lance.
Em 1970, fui em um show em Londrina que era com você, mas não
era o Blindagem. Quem era?
- A Chave.
- O Chave, isso.
- Foi a banda que antecedeu o Blindagem.

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- Eu sou daquele tempo, eu vou sempre nos shows do
Blindagem
- Quero lhe pedir desculpa, mas estamos conversando.
Amanhã de noite eu me apresento e aí conversaremos com
calma.
- Claro, claro... nos vemos à noite então, um abraço.
*****
O que foi A Chave? A Chave foi a primeira banda de rock
do sul do Brasil. Acabou em 76. Era o Paulo Teixeira, que toca
no Blindagem, eu e mais dois. Eu compunha muitas músicas
em parceria com o Leminski, mas era estritamente rock’n’roll,
só cacetada. Tinha um monte de outras músicas que eu cantava
desde guri, samba-canção, bolero, tango. Ouvia música 20 anos
antes, tinha uma formação bem diferente da deles, que tinham
conhecido o rock há pouco tempo. Em 1972, comecei a fazer
reggae, que não tinha no Brasil. Eu fiz [canta] “Sou legal, eu sei
/ Agora só falta convencer a lei / Sou real, eu sei Agora só falta
convencer o rei”.
Fiz baladas também. Mas não havia interesse d’A Chave.
E daí um tempo juntos, aquela encheção de saco. Tinham
personalidades muito distintas ali. Um era de família tradicional
de Lisboa, que veio com todo aquele ranço aristocrático europeu.
Aquilo já era chato de agüentar. O Carlão, leonino, o rei da
floresta, era o bom, era ele que falava mais alto. Paulinho, músico
fenomenal, conheço poucos guitarristas como ele. E eu que
cantava, que fazia as músicas.

Por que acabou a banda? Foi enchendo o saco, até que eu


conheci os guris do Blindagem, que eram dez anos mais jovens
do que eu. Ficaram, desde essa época, o Paulo Juk e o Alberto
Rodriguez. Os outros com o tempo foram saindo. Eles tocavam
todas as músicas que A Chave não queria tocar. Aí eles falaram
comigo e fomos para praia. Chamamos o Paulinho Teixeira.
Ficamos lá fumando e conversando. Mostrando as músicas uns
para os outros. Época que dava para ir para praia. Não tinha
luz, asfalto, polícia. Dava para tomar banho pelado, fazia o que
quisesse na areia. Eu peguei essa gurizada, fui ensaiar com eles
para começar um trabalho meu, novo, que se propunha a fazer
rock e outras coisas também.

A Chave acabou quando você saiu? Tentaram achar um


substituto. A Chave estava num pique legal na época. Foram a

16 | Ivo Rodrigues
São Paulo, tinham conhecido um cantor jovem, um tal de Celso,
guitarrista do Sá, Rodrigues & Guarabira. Tinha um timbre de
voz parecido com o meu. Trouxeram para Curitiba, ensaiaram
com ele, ficaram boas as músicas. Um dia estava no Bife Sujo,
um boteco das redondezas, e fomos apresentados. Eu não tinha
ficado de mal com ninguém. Ele falou:
- Ivo, preciso de você para aprender como é a tua interpretação
das músicas.
- Não tem problema nenhum.
- Você não quer ir no ensaio amanhã? É lá no centro de
criatividade.
Chego lá, “Vamos passar aquela para o Celso ver como é
[grita] BLÉÉÉÁÁÁAAAAAAAHHH”. Aí o Celso chegou no canto
e confessou:
- Acho que não vai dar. Ivo, eu sou cantor de estúdio. Você é
cantor de banda de rock.
- Está bom, Celso. Pode ficar com a gente mais uma semana
se quiser.
Foi embora. Hoje ele é conhecido como Celso Blues Boy
e é meu grande amigo. Celso Blues Bêbado. Aquilo bebe que
nem um animal... Quando ele está no palco tem um segundo
dele que não aparece, está todo de preto com um balde. Fica ali
esperando. A música não pára. O solo rolando, ele faz um sinal.
Vomita e volta.

Onde está o pessoal d’A Chave? O Carlão [Gaertner]


entrou para os Bartenders, um grupo que fez relativo sucesso.
Até gravei uma faixa minha no disco deles, “Meu ofício é o
rock’n’roll”. O outro, o Orlando [Azevedo], virou um fotógrafo
conhecido no mundo inteiro, ganha muito bem, está mais
milionário do que já era. O Paulinho está comigo até hoje no
Blindagem, é meu irmão.

Como o Blindagem estourou? Nós conseguimos o


apadrinhamento de um cara que já morreu, o Moacir Machado.
Depois, ficamos sabendo que ele era veado. Tinha atração por
alguém da banda, não sei por quem. Que nem o Brian Epstein, o
empresário dos Beatles, apaixonado pelo John Lennon. Quando
o John casou com a Cynthia [Powell], a primeira mulher dele, ele
[Epstein] ficou profundamente depressivo. Entrou numa baixaria
total e tomou um tipo de um over lá. Bagulho de supositório, onda
de veado mesmo. O que eu estava falando mesmo?

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Do padrinho de vocês. Ah, sim. Esse cara nos colocou
no casting da Continental/Chantecler, que, até então, era uma
gravadora especializada em música sertaneja. Ele meio que
mandava lá. Aí eles nos contrataram e quiseram que a gente
levasse mais para esse lado de terra. Não que a gente fosse fazer
música sertaneja. Nosso mote, na época, era a ecologia. Daí
“Marinheiro”, da Continental/Chentecler tocou e chegou em
quarto lugar em São Paulo. Até então, nenhum grupo de música
deles tinha tocado em FM.

Então a ecologia foi sua escada da fama? O Blindagem


marcou muito no seu primeiro disco pelo fato dessa nossa batalha
pela ecologia, aquela batalha do verde, barara-bururu. O Sá,
Rodrigues e Guarabira tinha deixado um caminho que foi o rock
rural brasileiro. Sem querer, nós pegamos um pouco aquele
caminho. Sem aquela bichisse de 14 Bis ou aqueles grupinhos
que teve na época. “Recordando o Vale das Maçãs”, um troço cu
de veludo para caralho [risos]. Não que eu fosse um mártir pela
natureza, nada disso. Foi uma forma de levantar uma boa grana.
Esse papo todo tem muita falsidade e sacanagem. Nós éramos os
caipiras do asfalto. Nas entrevistas no Rio, dizíamos: “Não somos
gatos de Ipanema, viemos com esterco na bota mesmo”.
A Continental/Chantecler gostou? Se encantaram
conosco. Fizeram o segundo disco, uma maravilha. Mas fomos
muito enganados também, sabe? Em uma ocasião, estávamos
no auge e surgiu uma oportunidade. Fomos ao Rio de Janeiro
gravar “Além do Silêncio”, lá na Odeon, na Barra da Tijuca.
Tivemos a oportunidade de conhecer o Roberto Menescal, esse
grande mestre da Bossa Nova e da música popular brasileira,
de quem sou fã incondicional. Mostramos a música, ele gostou,
mudou a segunda parte e fez de um jeito incrível. Ele falou:
“Vocês são o novo Roupa Nova do Brasil”. Roupa Nova tinha
estourado com aquelas músicas românticas babacas, mas era um
negócio comercial. Ele viu o nosso potencial e disse: “Eu tenho
um amigo meu que é o maior empresário de São Paulo que vai
ver isso também”. Manoel Poladian fez o Roupa Nova, Secos &
Molhados. Esse cara é fudido, só fazia os caras virarem sucesso.
Aí, soube o Menescal que o Roupa Nova estava se desligando
desse cara e estava na procura de um grupo bom que ele pudesse
investir e ter retorno. Nós seriamos esse grupo. O Menescal falou
com ele: “Você pode receber os meus amigos amanhã no teu

18 | Ivo Rodrigues
Curitibocas | 19
escritório?”. Marcamos o horário, chegamos lá, Manoel Poladian
falou para nós:
- Está feito, vocês vão ser meu novo processo.
- É verdade? - digo.
- É verdade. Eu quero preparar vocês para ir no Rio de
Janeiro. Voltem amanhã de manhã, falem com a minha secretária
para ver as passagens e nós já vamos ver um apartamento para
vocês lá e vamos começar a tratar da gravação de um novo LP,
com as músicas que eu vou escolher.
Saímos dali nas estrelas. Só que, claro, apesar do Roberto
Menescal ter ligado, Poladian não era puta nova. Em Curitiba,
a nossa fama sempre foi a mesma: maconheiro, burro e sem-
vergonha. Ligou para o Ovelara Amorim, um empresário que
eu tinha mandado tomar no cu um mês antes. O Manoel foi
nele pedir as referências. No outro dia, chegamos às 10h no
escritório dele.
- O seu Manoel teve que sair. Foi para a Europa.
- Foi para Europa? Ele falou que você ia nos receber, que
íamos acertar tudo para ir para o Rio de Janeiro.
- Não falou nada, não.
- Quando ele volta?
- Não sei, ele tem muitos assuntos.
Saímos dali, cara... Eu saí para um canto, fui para um
restaurante almoçar. Depois liguei para o pessoal para nos
encontrarmos e voltar para Curitiba.

Você é o líder do Blindagem? Não, nós somos cinco.


O Blindagem sempre foi um grupo, cada um com a sua
personalidade. Tem um que é família, outro que é da zona...
Todo mundo aprendeu a entender os delírios um do outro. A
gente conversa muito para decidir as coisas. Às vezes brigamos,
mas somos irmãos. Estamos ali juntos, sorrindo um para o outro.
Trinta anos, ninguém escapa disso.
O que mudou nesses trinta anos? Acho que a vivência.
E o fato de cada um se descolar para um lado. Isso foi um troço
que me deixou meio puto. Responsabilizo o fato do Blindagem
ser um grupo que ainda não tem grande sucesso porque cada um
seguiu em serviços extramusicais para ganhar dinheiro. Eu não.
Sempre trabalhei com e para o Blindagem. Claro que também
toco por aí, mas só quando o Blindagem não está tocando, ou
quando eles têm compromissos com as empresas. Eles são todos
ricos. Sou o único pé-de-chinelo pelo fato de nunca ter deixado

20 | Ivo Rodrigues
essa preocupação. Se todos do Blindagem fossem como eu,
estaríamos todos riquíssimos, com trabalho reconhecido nacional
e internacionalmente. Isso me tirou um pouco o tesão.
Mesmo assim, Blindagem foi a única banda de
Curitiba a alcançar sucesso nacional. É. Não me lembro de
nenhuma outra banda ter aparecido em nível nacional. Ficamos
em São Paulo e Rio durante muitos anos. Ninguém tinha mulher,
filho, não tinha nada. A gente estava à vontade no mundo.
Acredito que isso seja um fator para a gurizada sair daqui e ir
para São Paulo, apesar de ser bem próximo. São Paulo e Rio são
as vitrines do Brasil que você tem que aparecer.

Hoje em dia acha que falta paixão pela música?


Acho que está faltando criatividade. Cabeças pensantes, fazer
coisas novas. Você vê essas bandas novas, que para mim são
umas merdas, estão pegando sucessos antigos porque não têm
criatividade para criar nada novo. Falta pegar uma temática
boa para desenvolver boas letras, boas harmonias. Não que
isso seja fundamental no rock’n’roll básico. O rock básico são
quatro posições, ou três. Mas o lado de letras está faltando. Criar,
realmente, aqui no Brasil, acho que Titãs é uma banda realmente
criativa. O Angra, do Rio de Janeiro, é uma banda de metal que
eu considero boa.

Gosta de metal? Eu gosto. É boa música, é bem feita. Para


mim, o rei do rock é o Ozzy Osbourne. Depois, vem o Keith
Richards dos [Rolling] Stones e depois o “Iguana” [Iggy] Pop,
do Stooges.

É possível ainda criar boas músicas dentro dos


limites do rock? Ah, sim. Inclusive fica muito mais dançante,
muito mais fácil de entender a letra do que com milhões de riffs
de guitarra. Uma mensagem direta para o guri que está escutando
ali. Liga o rádio, o guri fumando um, curtindo. Porra, quer tesão
maior que esse? Com uma gata do lado. Melhor ainda.

Quem é a tua gata do lado atualmente? A que sempre


foi. É um troço gozado. Há mais ou menos trinta anos, quase
todos nós casamos juntos. Só eu que não. Sempre fui hippie
e nunca acreditei no casamento. Sempre falei que se fosse
bom, não precisava testemunha. Daí meus amigos casaram, se
preocupando em achar uma mulher da grana. Fui o contrário,

Curitibocas | 21
tinha uma namorada, pobretona como eu, a Suka. Um dia ela
ficou grávida. Eu disse, “Seguinte ó, acho bom você vir morar
comigo”. Eu era filho único e morava na praça Osório, na Vila
Nova. E eu falei para o meu pai:
- Vou trazer minha namorada que ela não tem para onde ir.
- Tudo bem, se virem aí - disse ele.
Ela foi para lá e nunca mais saiu. Meus amigos da banda,
todos eles se separaram, casaram de novo, se separaram,
casaram de novo. Eu que nunca me casei, nunca me separei e
sou apaixonado pela minha mulher. Moro eu, minha mulher e
meus dois filhos na nossa casa.

O nome dela é Suka ou é apelido? Apelido. Suka


Rodrigues. Isso era um ex-namorado que deu esse apelido para
ela, um japonês. Isso foi a história que me contaram. Eu nunca
vou saber a realidade.

O relacionamento foi prejudicado por causa da


banda? No princípio, é complicado até a mulher entender. Nós
fomos para a Itália três meses para gravar o disco “Dias Incertos”.
Fizemos shows pela Europa. Tinha que fazer programas de
televisão, divulgar os discos nas rádios. Era um negócio que você
tinha que estar lá, não podia pedir para ninguém fazer por você.
Então é um negócio meio complicado para mulher entender isso.
No nosso caso, da banda, as mulheres já estão vacinadas quanto
a isso, já sabem como é o esquema. Até que confiam em nós. Mas
ninguém está mais naquela fase de querer provar nada na nossa
idade. Estamos numa boa.

Como se portava a banda com relação às mulheres


dos outros? Nunca rolou ciúme. Porque a gente tinha a nossa
amizade fora disso aí. A gente se encontrava no estúdio não
tinha papo de mulher, papo de nada. O papo era nós, o nosso
futuro e a nossa música, só. O resto, cada um que resolvesse os
seus pepinos.

Como é a dinâmica da família Rodrigues? Parece tipo


família Osbourne. Acho muito louco. Nossa vida é maravilhosa.
Sempre tem o quebra-pau, do pai e da mãe, irmão com irmão.
Eu brigo com eles por causa disso: “Eu que sou filho único queria
ter um irmão para abraçar, dizer que gosto dele. Vocês que têm
essa oportunidade não fazem isso. Porque são dois loki”.

22 | Ivo Rodrigues
Que idades eles têm? Meu filho tem 24 e a minha filha
tem 26. Meu filho não quer saber mais de estudar, é baterista.
Ele se dedica à música dia e noite. Ele já tocou conosco. Paulinho
Teixeira também tem filho músico, o Gabriel, grande guitarrista
do Black Maria. Os dois filhos do nosso baixista, o Paulo Juk.
Um é um grande vocalista, o outro um guitarrista também
muito bom.
E tua filha? Ela é DJ. Não sei da onde ela tirou essa. Essa é
demais, porque eu não engulo esses troços. Ela diz:
- Pai eu vou tocar em tal lugar.
- Você aprendeu a tocar algum instrumento?
- Não, eu sou DJ. Eu toco os discos lá.
- Porra, mas que merda isso.
É muita cara de pau. Bota os discos e diz que ela toca. E os
caras curtem, é o maior sucesso. É bom até para o cara que é
dono de bar, em vez de gastar uma grana com uma banda, põe
um mané lá pondo disco.

Deve ser uma peleja musical entre ela e os roqueiros


da casa. Quanto à música, sim. Procuro não me aprofundar
muito porque cada um tem seu gosto. É a geração dela. Mas ela
gosta muito do Blindagem e de rock. Ela sempre vai comigo em
shows. O Ivan gosta de rock anos cinqüenta e sessenta. A banda
dele é tipo aqueles mods ingleses. Terninho, magrinhos, tipo
The Who, Keith Moon, aqueles troços. Eu comprei a primeira
bateria para ele quando ele tinha 14 anos. Incentivo, assim como
meu pai fez comigo.

Teu pai foi quem te levou à música? Na vida inteira.


Meu pai levava para cantar em programas de auditório desde os
sete anos de idade. Recebia carta de todo o Brasil, eu cantava na
rádio PRB2, de Curitiba. Tinha fã-clube e tudo. Pediam cabelo
meu. Então eu cantava e ganhava tudo que era prêmio. Tinha voz.
Meu pai sempre dizia para mim: “Cantor tem que ter voz. Não
me venha de Roberto Carlos”. Tenho muita saudade. O tipo de
formação, também no colégio, que era um colégio maravilhoso,
era muita música. Hinos em louvor ao senhor, eu cantava. E
era a maior, porque os hinos na Igreja católica são uma coisa
muito chata. Era um colégio adventista, era tudo professor
americano, e as músicas eram mais cool. Era fé em Deus, mas no
alto astral. Não era aquela tristeza de carregar a cruz de Cristo.
E dentro dessa liberdade musical, fui aprendendo um monte

Curitibocas | 23
de coisa, como, por exemplo, a harmonizar vozes. Nessa época,
formei quartetos que só cantavam hinos de louvor ao senhor.
Quarteto Hosana, de Hosanas nas alturas. Era uma loucura. As
harmonizações de vozes que fazíamos, eram tipo Crosby Stills
& Nash. Existiam quatro personagens: baixo, barítono, segundo
tenor e primeiro tenor, acompanhado por um piano.

Qual era o seu timbre? Quando comecei bem jovem eu


era segundo tenor. A tendência, quando você vai envelhecendo,
é a voz ficar mais grave. Então, depois virei barítono e, às vezes,
faço até baixo profundo.

Como passou desses cânticos para o rock’n’roll? Em


1966, ganhei um concurso aqui em Curitiba, apresentado pelo
Julio Rosenberg, já falecido. Era o homem do dedo duro, muito
conhecido no Brasil inteiro. Apresentava na televisão um festival
que escolhia o melhor cantor e o melhor grupo musical do sul do
Brasil. Eu ganhei como melhor cantor cantando música italiana.
A banda que ganhou foi os Jetsons, um grupo de Palmeira,
que viria ser A Chave. Estavam querendo começar a tocar. Já
tocavam bem. Nos conhecemos ali. Eles tinham prometido, para
os melhores, carro, gravação de LP e mil coisas. Sei que ninguém
ganhou merda nenhuma. Aí eles não sabiam como fazer para dar
alguma coisa para a gente, me deram um horário na televisão.
Naquela época não existia vídeo tape. A televisão era ao vivo. Se
errasse, dançou. Nós fizemos junto com o produtor, que já morreu
e pegava toda a grana que eu ganhava. Eu era bobão, nem sabia
que estava rolando grana por trás. Eu era manequim na época.
Desfilava pela Magazine Avenida. Eu era tipo galã, cara.

Um roqueiro desfilando? Eu usava as roupas dessas lojas


no meu programa e dizia: “Estou vestindo smoking da Lojas
Universal”. Cantava músicas do Tom Jones, Tonny Bennet.
Isso quando eu tinha 17 para 18 anos. Eu era Ivo Rodrigues
Junior, meu pai era Ivo Rodrigues. Aí eu virei Ivo Rodrigues,
em homenagem ao meu pai. E até hoje.

Largou os smokings e a moda pelo rock? A partir dos


20 desvirtuou tudo. Uma vez o Blindagem fez um show com
todos nus. Foi no TUC. É que a gente estava meio de saco cheio
daquela mesmice. Nesse show especialmente, estava lotado e
todo mundo bêbado e louco. Era uma e meia da manhã. Aí nós

24 | Ivo Rodrigues
chegamos primeiro, todo mundo de roupa no palco. Falamos
assim: “Agora, vamos fazer o nosso show diferente hoje, para
vocês. Vocês vão ter novidades, aguardem”. Fomos lá para trás,
tiramos tudo e fomos tocar pelados. As meninas ficaram loucas.
Queriam pular no palco, queriam nos agarrar, pegar a guitarra.
E nós tocando sem parar o som. De repente, escutei um apito.
Polícia, tudo entrando. Levaram todo mundo e nós também.
Fomos para a delegacia. Aí ficaram uns 20 dali. Pegaram tudo
chapado, com bagulho no bolso. Nós não tínhamos bolso.

Tentaram outras experiências sem roupa? Te falei


do Rocky Horror Show?

Não. É um musical escrito por Richard O’Brien, um inglês,


que foi traduzido para o português pelo Jorge Mautner. A
primeira versão que lançaram no Brasil foi em São Paulo, era
meio devagar. Não gostei muito. Aí nós fomos fazer o nosso
Rocky Horror Show. Primeiro no Guairinha, depois no Guairão.
Era uma proposta fudida para a época, porque nós reunimos no
palco bailarinos, músicos, cantores, atores. O diretor era o Luis
Carlos Kraide, que morreu de overdose. A maioria dos atores
morreu de overdose depois, por isso a dificuldade de encenar
novamente a peça.
Mas fizeram esses tempos de novo, não? Fizemos um
revival da peça lá no Bar Era Só o que Faltava. Não tinha nada a
ver com aquilo. Na versão que fizemos no Guairão nós colocamos
um Chevrolet 51 no palco para mostrar a época. Passou em cima
de um microfone Shure SM 45, aqueles americanos que custam
uma nota. Eu tenho lá em casa guardado. Foi um sucesso que
mexia com a cidade. Depois, o Richard O’Brian veio nos assistir
em Curitiba, a montagem no Guairão. Era um negócio louco
assim, é difícil de explicar que a história passa na década de
cinqüenta, começo da década de sessenta. Aqueles roquinhos
“Bá-bá-bá-bulu-lá”. Me lembro na primeira parte da peça que
eu entrava como narrador. [Voz grave] “Se me derem licença,
gostaria de lhes contar uma estranha e sinistra viagem. Era uma
noite de novembro, semelhante a qualquer noite de novembro.
Quando Brad Majors e Janet Weiss, dois jovens normais e
saudáveis partiram de Cantown, no norte da Inglaterra, para irem
à casa do professor Everrett Scott. Numa visita de agradecimento,
pois havia sido ele quem apresentara um ao outro. É bem verdade
que no local para onde se dirigiam, o céu estava encoberto por

Curitibocas | 25
nuvens negras e ameaçadores. É verdade, também, que o pneu
sobressalente também estava furado. But, despreocupados e
entretidos na companhia um do outro, não estavam a fim que uma
tempestade qualquer viesse estragar aquela noite. Era uma noite.
Mal sabiam eles coitadinhos, que seria uma noite da qual não se
esqueceriam por muitos e muitos anos”. O Brad era o Paulinho,
que aparecia pelado na peça. A Janet era uma das bailarinas. Aí
o pneu do carro estourou. Eles foram em um castelo pedir abrigo.
Vem o mordomo, quem fazia era o Luis Mello, da Globo. Naquela
época ele era nem Mello nem merda nenhuma. Mas sempre um
grande ator. Aí entram no castelo, está lá o mestre, o Vampiro.
Começa a música e todo mundo dançando. Os empregados
do castelo, a babá, que já morreu também, que contracenava
comigo. Eu fazia o Riff Raff, o filho do vampiro que deu errado,
que nasceu num laboratório. Tudo torto. Eu queria comer a babá,
uma gordona. Ela saía com os seios de fora. A platéia se mijava
de rir. Eu pegava nos peitos dela cantando.

Chega de falar do passado. Quando sai CD novo? Deve


sair um DVD e mais um CD agora. Tenho muitas composições
com o meu amigo Leminski, ainda inéditas. Músicas boas que
não foram gravadas estão lá guardadas comigo, na minha
cabeça, e nós pretendemos pôr no CD. Seria “Blindagem Canta
com Leminski”. Vai sair um filme produzido pela Globo, um
negócio grande, diretor de nome, atores de renome, com a vida
do Leminski. Tenho participação. Fui parte atuante da vida
dele. Cada um dos parceiros que o Leminski teve na vida vai ser
representado pelo filho. O papel do Caetano é feito pelo filho do
Caetano, o papel do Moraes é pelo filho do Moraes.

E o papel do Ivo? Sabe quem que os caras pediram


autorização para mim?
O Ivan. Não. O Ed Motta. Eu falei, nem fudendo, cara.
Querem por esse pau no cu que é feio para caralho. Acho que é
mais burro que eu. Falei para eles, se for para ter Ed Motta, não
contem com a minha colaboração para nada. Aí os caras falaram:
“É, vamos tratar de achar alguém”. Coisas da Globo. Tem que
cair na mosca.

Qual é o cúmulo da miséria? Cúmulo é o que a mula


disse para o mulo. “É o cu, mulo” [ri]. Não sei como te

26 | Ivo Rodrigues
responder isso aí. Acho que é muita tristeza, a dor, a
melancolia, a indisposição, a falta de prazeres.

Onde você gostaria de morar? No Brasil mesmo.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Poder


ver meu trabalho ser reconhecido, ver minha família com
muita saúde, meus amigos, eu também. E viver muitos e
muitos anos com alegria, paz, felicidade.

Para quais erros você tem maior tolerância?


Burrice.

Quais obras literárias você prefere? Herman Hesse,


Castañeda. Esses escritores fudidos, que te deixam
pensando.

Qual é seu personagem histórico favorito? Os


Beatles.

Seu pintor favorito? Salvador Dali.

Seu músico favorito? Pergunta cruel essa. Difícil


responder, John Key, do Steppenwolf; Joe Cocker; Ray
Charles, são muitos, muitos, e de todas as épocas.

A qualidade que prefere nos homens? Amizade.

A q ualidade que prefere nas mul heres?


Fidelidade.

Virtude que prefere? Saber ouvir.

Sua ocupação favorita? Música.

Quem você gostaria de ter sido? Gostaria de ter sido


um dos Beatles.

O que você mais aprecia nos amigos? Cumplicidade,


amizade.

Curitibocas | 27
Seu pior defeito? Sincero demais. Pelo fato de eu ser
de peixes, o simbolismo de peixes é um para lá e outro
para lá. Quer dizer, não tenho opinião própria. Peixes é a
base do zodíaco. É a sabedoria em si e ao mesmo tempo
é a burrice, sem ser declarada burrice, entendeu? Burrice
misturada com pureza. É mais para burro que para puro.
A pureza em excesso leva para isso.

Seu sonho de felicidade? Foi o que eu falei há


pouco.

Qual seria sua pior desgraça? Não quero nem


pensar.

O que você gostaria de ser? Gostaria de ser um músico


reconhecido por todos.

Sua cor favorita? Branco.

A flor que mais gosta? A papoula.

Qual pássaro preferido? Se eu fosse punk, eu diria


urubu. Se eu fosse Ozzy Osbourne, eu diria morcego. Acho
que o meu é a águia.

Seus autores favoritos em prosa? Acho que eu falei


já.

Seus poetas favoritos? Meu grande amigo Leminski.


Baudelaire.

Seus heróis na vida real? Keith Richards, pela


sobrevivência. Mel Brocks, pela genialidade. Ray Charles,
por ser rei.

Seus nomes favoritos? Eu gosto de Ivan, Ângela...


nomes dos meus filhos.

O que você detesta? Detesto falsidade.

28 | Ivo Rodrigues
O feito militar que mais admira? Posso citar dois?
Vietnã e a invasão da Baía dos Porcos, porque os EUA se
foderam. E o terceiro, agora no Oriente Médio.

Qual dom da natureza você gostaria de ter?


Polinizar as pessoas.

Como gostaria de morrer? Sem encher o saco de


ninguém.

Seu lema? Aprender sempre e viver o máximo possível.


O mínimo de organização, para o máximo de curtida.

Curitibocas | 29
Olha a cobra, aqui tem
Borboleta 13

D
arcy permaneceu de costas durante todo o diálogo.
Reconheceu de imediato as últimas 30 perguntas.
Eram as mesmas que havia encontrado na revista
da rodoviária. Enquanto os dois se despediam, Darcy abriu
a amassada revista e releu a matéria. Segundo a publicação,
as questões revelavam as características da alma de quem as
respondia. Antes de formular, haveria de se estabelecer um
“vínculo de empatia e confiança”. A matéria informava que as
perguntas foram elaboradas depois de muita pesquisa.

Curitibocas | 31
Era um privilégio ter escutado a conversa com quem
aparentemente era um ícone da cidade. E que vozeirão. Darcy
gostaria de estar no lugar do homem de preto.
Estava sem sono. Dormiu a maior parte da tarde e metade
da madrugada no ônibus. Pagou a conta – R$ 3,50, um centavo
por mililitro – e seguiu flanando pelas ruas que achava mais
interessante. A caminhada amenizava o frio matutino.
Já que estava em Curitiba, resolveu conhecer a famosa Rua
XV de Novembro, tão propalada nas publicidades turísticas. Os
mapas dos pontos de ônibus serviram de guia.
No caminho, passou por diversas praças. Em uma delas,
encontrou um jornal do dia anterior. Entreteve-se com as fotos
e sorrisos forçados do jet set. Apesar de não freqüentar a alta
sociedade, Darcy tinha uma espécie de prazer sádico ao ver a
elite retratada de maneira tão cafona. Fora isso, chamou-lhe a
atenção uma charge. Ela retratava de maneira bem-humorada a
corrupção dos mandantes do país. Mais uma vingança pessoal.
O resto não interessava. Darcy parou com o vício de informação
há dois anos. Não entende a necessidade da notícia diária,
muito menos do tempo real da internet. Prefere as revistas de
consultório médico e livros.
Teve vergonha de jogar no chão o jornal velho. Curitiba era
a cidade mais limpa que conhecera. Encontrou uma grande lata
de lixo, com quatro bocas de diferentes cores. Quanta burocracia.
Resolveu ir até uma pequena lata que aceitava todos os tipos de
dejetos.
Finalmente, chegou ao famoso Calçadão da XV.
Lamentavelmente, não era época de natal. Sempre quis
conhecer o coral infantil que se apresentava no local. Caminhava
vagarosamente, ao contrário do ritmo da maioria dos transeuntes.
Olhava languidamente as lojas que recém se abriam. Sua
cabeça estava um pouco afetada pela noite mal dormida e pelo
inesquecível diálogo que não teve.
“Olha a cobra, aqui tem”, irrompia uma voz potente e
melodiosa na esquina da XV com Monsenhor Celso, diante de
um banco. A autora estava sentada em uma cadeira de plástico,
com os lábios pintados, chapéu panamá branco e uma camiseta
laranja sem mangas. “Cobra, borboleta e jacaré”, anunciava, em
nova demonstração de seu reverberante jingle.
“Essa já deve estar rica”, comentava um jovem engravatado
para outro, que carregava um bilhete de loteria. “Faz anos que

32 | Borboleta 13
eu compro bilhetes com a Borboleta 13. De bilhete em bilhete,
devo ter dado um prêmio de loteria para ela”.
Da outra esquina, Darcy observava. Era notório o carisma de
Borboleta 13. Conversava com todos que passavam, para dar um
“bom dia” com um grande sorriso. Outra vendedora se esmerava
em atrair clientes com uma cantoria similar. Mas era como um
frágil pardal diante de um poderoso azulão na alvorada.
Darcy aproximou-se de Borboleta. Ofereceu um café.
Borboleta, frente ao inesperado convite, respondeu:
- Só tenho que vender mais estes três aqui. Daqui a pouco
vai chover. Aí a gente conversa, pode ser?
Darcy voltou para onde estava, no outro lado da esquina.
Aguardou, pacientemente, a venda dos três últimos bilhetes de
bilheteria. Levou menos de 15 minutos.
- Vamos a esse lugar que é bom. Gosto dos sucos daí.
Caminharam até um restaurante árabe fast-food. A
convidada pediu um suco de laranja. Cinco minutos depois,
começou uma garoa, que se transformou em chuva e se dissipou
em meia hora.

Achei seu apelido bastante peculiar. De onde surgiu?


A maioria me chama de “Mulher da Cobra”. Alguns me conhecem
como “Borboleta 13” por eu vender muitos bilhetes da borboleta
e da cobra. Nos dias 13, principalmente quando cai na sexta-feira,
chegam a fazer fila.

Sempre teve essa voz? Como a desenvolveu? Não


sei direito. Na escola, a gente estudava, cantava e a professora
analisava quem ia para o pelotão na frente. Eu era sempre a
chamada por causa da minha voz alta. Eu carregava o mastro da
bandeira, na frente, nos desfiles de 7 de Setembro, anunciava os
diplomas dos alunos. Desde pequena, gostava dessa coisa gostosa
de anunciar. Eu tinha vontade de ser uma pessoa de quartel. Mas
como tenho um problema na perna, não consegui.

Você canta? Cantava. Acho que eu peguei o dom de falar


bilhete e perdi o de cantar. Embora a maneira que eu anuncio
seja em ritmo de canto. Mas em casa eu falo baixinho.

Como você cuida da sua voz? Olha, eu posso tomar tudo


o que eu quiser. Tomo água gelada no inverno, no verão. Agora,
Fanta, se eu tomar, destrói minha voz. Tomo hoje, amanhã estou

Curitibocas | 33
rouca. Para cuidar, gosto de usar limão com sal. Às vezes, ponho
limão, sal, vinagre, coloco em um copo com água e gargarejo. O
médico diz que a minha garganta está ótima, a única coisa que eu
tenho problema é das vistas. Tenho que usar óculos para ler.

E quando fica gripada? É difícil ficar rouca. Se ameaça


uma rouquidão, faço um remedinho caseiro, de mato. Acredito
muito nas ervas. Guaco com mel, leite quente com mel.

Sua saúde é forte? É. Tenho 57 anos. Estou inteira aqui.


Estou com um problema na coluna, a vida vai cansando a gente.
Recebo um seguro doença e não posso exagerar nas coisas, tem
que ter cuidado. Tenho pressão alta. Fiz um eletrocardiograma,
diz que meu coração está inchado. Deve estar inchado de tanto
falar. Mas vou continuar trabalhando levemente, tranqüila. Eu
me sinto forte.
Tem seguro médico? Não. Eu faço pelo SUS. Não dá para
reclamar. As pessoas que reclamam não têm noção do que a gente
ganha. Tem exame do coração, garganta... Tudo é grátis. Tem que
ter um pouco de paciência. Conheço milionários que freqüentam
o SUS para não pagar consulta. Sempre fui bem atendida. Já fiz
40 raios-X no meu corpo, pela minha coluna ser torta. Eu firmo o
lado direito bastante, o esquerdo nem tanto. O médico recomenda
não erguer peso. Cuido, mas não sei ficar parada. Eu trabalho em
casa, lavo roupa. Só na rua que eu fico paradinha.

Porque veio trabalhar na rua? Trabalhei em firmas


antes, mas aí vi que não dava porque não tinha quem cuidar
das minhas crianças. Os parentes diziam que cuidavam, mas
deixavam elas atiradinhas. Tive seis filhos. Trabalhei na Placas
do Paraná, Copava, em supermercado... Tive que pedir a conta.

Veio para a rua com as crianças? Amamentava e


colocava numa caixinha aqui na XV. Um tomava conta do outro.
Dá um filme.

Teus filhos também trabalham na rua? Só eu que


trabalho aqui. Criei uma filha e cinco homens. Essa filha era a
segunda mãe deles em casa. Fui pegando o jeito do bilhete, fui
fazendo minha vida. Na real, eu ganho para sobreviver. Dinheiro
eu não tenho, mas tenho minha casa.

34 | Borboleta 13
Como foi o começo? Eu comecei ali, de pé, no canto do
Banestado. Sempre naquele canto, toda a vida. Quando eu vim
de Guarapuava, não tinha onde arrumar dinheiro. Aí eu vi uma
mulher com uma placa de bilhete para vender e perguntei para
ela: “Você confia em mim? Me dá dois pedacinhos de bilhete
para me ajudar. Estou com as crianças aqui, eu quero aprender
a vender bilhete”. Aí ela me ajudou. Dividiu a marmita com as
crianças e eu comecei a vender bilhete para ela. Até que aprendi.
Aí fui morar no porão da casa dela. Ela me deu a maior força.
Trabalhei para ela por quinze anos. Hoje, parou de vender bilhete.
Não me esqueço que foi a pessoa que dividiu a marmita com os
meus filhos.

Como foi a sensação de vender o primeiro bilhete?


[Sorri] O primeiro foi um pedacinho da cobra. Cheguei na rua
meio devagar: [sussurra] “Olha a cobra. Quer comprar um
bilhetinho?”. Eu nunca falei “para me ajudar”. Tinha vergonha.
“Um bilhetinho para você ganhar” é melhor. As pessoas preferem
ganhar a ajudar.

Como aprendeu suas técnicas de venda? Aprendi


sozinha. Força de vontade. Tudo no começo é difícil. Então, hoje,
eu sei o trabalho, sei analisar como que eu ganho. Ganhando um
pouquinho já está bom, não perco o negócio. Uma das coisas que
melhorei foi na maneira de chamar as pessoas. Antes tratava as
pessoas de mais idade de “tio”, “tia”. Aí uma senhora me parou
e disse “Não me chame assim. Tio e tia é só parente. Eu não
sou nada sua”. Eu fiquei com vergonha. Agora digo “querida”,
“meu anjo”, “meu amor”, “paixão”, “minha senhora”. Tudo com
respeito. Tem que respeitar e aprender a conviver com o povo.

Sempre está na mesma cadeira? Ah, sempre. Os


engraxates guardam para mim. Mas eu já perdi muita cadeira
boa. Os clientes que me dão.

Como é a concorrência? Vi outras vendedoras na


esquina... Tem uma ali, a “Cobrinha”, que já tentou ser mais do
que eu. Acho que o sol brilha para todos. Eu entrei para trabalhar
na rua, trabalhar por necessidade, não para ganhar fama. Se hoje
sou tão conhecida, é pelo meu trabalho. O bom vendedor tem
que estar alegre, limpinho. Tem que estar sempre agradável,
sorrindo. A pessoa vem, sente aquela coisa boa e compra. Isso aí

Curitibocas | 35
não é de hoje que eu sou assim. Eu aprendi a ser assim. Sempre
trato bem os clientes. Não gosto de pegar no pé deles. Outras
vendedoras tentam vender na marra. A pessoa compra se está
com boa vontade, não adianta insistir. Eu fico no meu cantinho.
As pessoas vêm em mim. Sempre fui assim.

Como lida com as imitadoras? Ah, eu deixo para lá. Eu


não coloquei meu apelido, foi o público. Saio na Gazeta [do Povo]
como “Mulher da Cobra” ou “Borboleta 13”. Saí no livro dos 300
anos de Curitiba com um baita desenho e escrito “Borboleta 13”.
Eu acho que a estrela que Deus me deu ninguém tira. Cada um
tem uma.

De quem você compra o bilhete? Eu compro das pessoas


que pegam da caixa e separam para mim os bilhetes que saem
mais: cobra, borboleta, cachorro, vaca, cavalo. Tem uns quatro
ou cinco cambistas que pegam o “13” para mim. Eles ganham
uns dez, quinze reais em cima, mas eu ganho mais.

Tem vontade de ir direto na Caixa comprar? Não.


Esquenta muito a cabeça. Há muito tempo que tem que ter cota,
dinheiro guardado. Não pode falhar em uma extração, senão eles
cortam. Eu prefiro revender, que é mais tranqüilo.

Já vendeu bilhetes premiados? Vendi muitos prêmios.


Têm pessoas que ganham e não voltam para dar gorjeta. Às
vezes, voltam, pegam endereço e somem. Mas está bom. Eu não
faço questão, eu quero que ganhem e sigam comprando o meu
bilhetinho.

Você aposta? Quando dá na telha eu jogo. Já ganhei


quatro vezes. Três foram pouquinho. Uma vez tirei o primeiro
prêmio. Daí saiu o terreno e a minha casa. Por isso eu gosto de
vender bilhete, foi o trabalho que deu o meu lar, que amparou
meus filhos. Embora eu tenha comprado um terreno frio. Estou
lá desde 1985, sem escritura. Eles venderam o terreno em uma
área pública. É uma praça no Jardim Dom Bosco, do lado do
Pinheirinho. Os lotes não existem. Mas tem até sargento lá. Têm
pessoas que não alugam casa para gente com criança. Então eu
tinha esse sonho de ganhar a loteria no natal para comprar uma
casinha para amparar meus filhos que eram todos pequenos. E
foi indo, até que um dia apareceu um velhinho que disse: “Nunca

36 | Borboleta 13
sonhe, consiga que você vai conseguir”. Um mês depois, eu ganhei
o primeiro prêmio da loteria federal. Deu 10 mil cruzeiros. Era
uma casinha de madeira simples.

Sempre joga no “13”? Às vezes “13”, às vezes outro


número que eu sonho. Ano passado ou retrasado, eu estava
precisando consertar a minha televisão e a minha boca – estava
com os dentes estragados. Pedi para o pai do céu me dar um
pedacinho de bilhete. Eu estava vendendo porco, cobra, cavalo
e vaca. Aí eu deixei na bolsa dois pedacinhos do porco. E me
esqueci. Vendi tudo os bilhetes, fui embora passar na lotérica para
pegar os resultados. Quando eu vi, achei que estava com o número
sorteado. Peguei, abri a bolsa e era o número. Aí, eu ganhei o
quarto prêmio, ganhei 1.200 certinho. Comprei a televisão à vista
por quinhentão, e no dentista foi mais quinhentão.

Qual o horário que você mais vende? Das 10 ao meio


dia e das 2 e meia às 4. Depois é fraco.

Quanto você ganha por dia? É difícil eu ficar sentada


na rua e não levar uns 30 ou 40 reais. Se eu tirar 30 por dia está
bom para os mantimentos em casa, para os remédios. Se chegar
em casa e faltar café ou carne, eu compro. Hoje, graças a Deus,
eu posso. Tenho condições de dar a minha marmita para as
pessoas que passam fome. Às vezes, a gente é burra e entra no
empréstimo. Os empréstimos levam nosso dinheiro embora. Eu
caí uma vez no empréstimo do Unibanco. Peguei para pagar, em
36 vezes. Ainda tenho que pagar por mais um ano.

Como é um dia típico da Borboleta? Não passa das


6h, eu acordo. Tomo café tranqüila. Assisto ao jornal para ver
se chove ou não. Se chove, eu fico no cantinho, embaixo da
marquise. 7h50 eu chego aqui. Pego o ônibus Pompéia, na frente
da minha casa, venho até o Pinheirinho, aí pego Santa Cândida
e vou até o Capão Raso, pego o Colombo/CIC e desço na Praça
Tiradentes. Demora uma hora para vir lá de casa até aqui. Aí, eu
venho aqui e fico o dia inteiro. Almoço às 13 ou 14h, quando dá
fome. Aí fico até as 16 ou 17h vendendo.

Quando chega em casa, o que faz? Vejo televisão, deito


no sofá, tomo meu banho, faço minha comidinha. Eu esqueço do
serviço completamente.

Curitibocas | 37
Trabalha nos domingos? Não. Nunca trabalhei. Domingo
eu lavo a minha roupa, dou uma ajeitadinha na casa. Gosto de
ver as curiosidades do canal 4 [GPP]. Gosto de ver coisa boa. Se
vejo coisa triste, choro junto. Sou muito emotiva.

Tem amigos aqui na rua? Tenho. Mas enquanto eu estou


trabalhando evito conversar. O serviço tem que render.

Como é sua vida social fora da XV? É difícil. Eu tive


amigas que entraram na minha vida particular e não foi bom.
Sempre fui isolada. O que existe são relações sinceras, amigo
não existe. Foi um amigo que matou meu marido. Mataram de
sacanagem, pensavam que ele era rico. A gente tinha dois terrenos
na área da casa. Alugamos para ele, que não queria pagar, e foi lá
em casa e matou o pai dos meus filhos. Isso foi em 88, três anos
depois de comprar nossa casa. Era um cara que tomava café na
minha xícara e comia no meu prato. Fiquei com filhos pequenos,
de oito, nove e dez anos. Acabei de criar eles até dois anos atrás.
Agora eu formei o caçula que tem 28.

Onde está esse “amigo”? Está morto. Está onde merece.


Mataram por que ele era bandido. “Quem com ferro fere, com
ferro será ferido”. Pior que os filhos dele se dão com os meus.

Você, como curitibana... Eu me considero curitibana,


mas nasci em Abelardo Luz, Santa Catarina. Quando meus
pais vieram para cá, eu era nova. Antes de vir para Curitiba, eu
trabalhava como cozinheira em Guarapuava. Cozinhava para até
400 pessoas em restaurantes.

Qual a sua especialidade na cozinha? Faço de tudo,


mas meu nhoque é imbatível. Minha mãe é italiana.

E depois da cozinha? Depois eu comecei a juntar papel.


Papelão antigamente era serviço, dava dinheiro. Mas não deu
mais. Aí eu falei para o meu marido, “Eu vou embora para
Curitiba, para ganhar dinheiro e arrumar um canto para nós”.
Primeiro lugar que eu fui morar foi no Parolin, em uma meia-
água com refugo de madeira. Aí, comecei a trabalhar por dois
cruzeiros para limpar a casa dos outros. De lá fui morar em São
José [dos Pinhais] e, depois, onde eu estou agora. Curitiba foi
uma cidade que eu entrei trabalhando. Fui bem recebida. Tive

38 | Borboleta 13
Curitibocas | 39
complicações pela minha voz. Os fiscais mandavam eu ficar
quieta, algumas pessoas reclamavam. Tive muito atrito, mas isso
passou. Hoje não tenho queixa. Em Curitiba não trabalha quem
não quer, quem não tem vontade de viver. Serviço tem até para
vender papel. Curitiba dá muita chance. Não tem chance quem
não gosta de trabalhar.

Hoje se sente curitibana então. O povão fala que eu sou


até parte histórica de Curitiba. As pessoas vêm de outras cidades
pedir autógrafo. Eu dou. Tiram foto comigo, levam para tudo
que é lugar do mundo. Eu não cobro nada. Nem que eu ganhe
milhões eu vou deixar de vir para a rua. É a história da minha
vida. Toda a pessoa que vem e compra um bilhetinho meu está
me ajudando. Eu sou muito feliz. Sou uma pessoa simples e
humilde. Minha casa é simples. Às vezes, você chega sem um
cruzeiro no bolso, de qualquer jeito você leva alguma coisa do
povo daqui. Tem cliente que me dá gorjeta de dezão. Esse anel
aqui é lembrança de uma que ganhou o prêmio. Mas isso é por
que eu estou há 36 anos aqui. Eles viram eu amamentar minhas
crianças aqui, deitadinhas no colo.

Então você é admirada por muitos. E você, quem


admira? Eu sou fã do Fernando da novela “Feia Mais Bela” [o
ator Jaime Camil]. Admiro os doutores que não são arrogantes,
que passam brincando. Tem gente que passa com dois metros
de beiço.

Onde estão seus familiares? Meus pais já são falecidos.


Minha mãe faz três anos que faleceu. Moravam em vários cantos
do Brasil. A última morada foi em Guarapuava. Tenho agora cinco
irmãos. Um faleceu ano passado em novembro. Ele trabalhou
muito em reciclagem de papel. Puxava muito papel. Acho que
ele morreu pelos venenos dos papéis que ele cheirava. Tenho três
filhos que moram comigo no quintal. Cada um fez uma meia-
água. Os outros moram fora, já fizeram a parte deles.

Eles valorizam o trabalho que você fez para eles?


Valorizam. Eles falam para mim: “Mãezinha, está na hora de
você parar, ficar em casa”. Mas eu não consigo, já acostumei.
Segunda a sexta, sempre aqui. Às vezes, no sábado, eu enforco
quando está chovendo. Mas, geralmente, eu venho até às 14h.
Sábado eu tiro um tempinho para comprar uma carne, fazer

40 | Borboleta 13
uma comida gostosa. Domingo vem todo mundo em casa comer
a comida da mama.

Farei a pergunta dos seus filhos: até quando vai ficar


trabalhando na rua? Enquanto eu tiver força de vontade. Não
é mole enfrentar sol de 30, 40 graus. Sol, chuva. Na minha casa
me sinto como uma visitante. Eu gosto muito dos curitibanos.
Cada um que passa dá um “bom dia” sorrindo. As pessoas vêm
conversar, sentam na minha cadeira para bater papo. Curitibanos
são fechados para algumas pessoas. Se eles se sentem bem com
uma pessoa, se abrem. Comecei a trabalhar aqui eu pesava 38
quilos, era magrinha. Estou virada em um pedaço de ferro daqui
da rua. Estou pensando em fazer umas economias para daqui uns
cinco anos aliviar mais a minha barra. Pretendo ir para um sítio
– minha irmã tem um. Ela veio na minha casa esses dias e me
deixou o endereço. Estou louca para comer uns frangos caipiras.
Depois que normalizar minha casa, quero só curtir. Trabalhar
um pouquinho para me alimentar. Você pode não ter nada, mas
tendo alimentação é tudo na tua vida.

Está juntando dinheiro para isto? O pouquinho que eu


ganho estou investindo para mim, porque vivi todos esses anos
ajudando meus filhos. Vou comprando as coisas. Já comprei
sofá, uma televisão para a sala e estou planejando comprar uma
estante. Vou investindo porque o dia que eu parar de trabalhar, ou
melhor, quando eu cansar, vou querer parar três dias da semana
para curtir um pouquinho a minha casa. Não sei o que é curtir.
Vejo meus filhos adultos, eu não vi eles crescerem. Para mim, eles
ainda são crianças. Vivi uma vida inteira para dar um lugar para
eles dormirem. Juntava sobra de mercado, quando eu cheguei em
Curitiba, para trocar para eles. Eu ia no mercadão buscar frutas.
Daí eu comprava uma lata de leite, levava uma bacia de fruta e
fazia um saladão. Aprendi a tratar os meus filhos com sopa de
caracu - aquele mocotó comprido, do osso do joelho do boi para
baixo. Ficaram bem gordinhos. Minha casa não é muito bonita, e
não está terminada por fora, mas eu valorizo tudo que consegui.
Agora que estou conseguindo acabar, porque eu acho que as
crianças estão bem encaminhadas. Tinha medo de meus filhos
se perderem na rua. Hoje todos têm moradia. A gente vê tantas
histórias tristes de crianças lindas perdidas. Nenhum trabalha
na rua, são todos profissionais.

Curitibocas | 41
Que profissão eles tem? Um é caminhoneiro, outro é
pedreiro, outro é eletricista da Eletrosul, o outro é conferente
de loja. Dois deles são pedreiros. A menina trabalha de diarista
e está estudando para ser uma profissional. Ela quer entrar em
uma empresa de montagem de computadores. O marido dela já
trabalha lá dentro, na Positivo, em montagem de móveis. Tem
um que está para tirar um curso de segurança, eu vou ajudar.
Ele já tirou, mas tem que fazer reciclagem.

Todos alinhados então. É, mas é bom estar de prontidão.


Há dois anos, eu tinha um filho em Minas Gerais. Aí me ligou
dizendo pelo amor de Deus para mandar dinheiro. E eu não
tinha dinheiro. Vendi jogo de quarto, jogo de sofá, barzinho,
televisão, tudo por quinhentão. Fiquei dormindo no chão. Mandei
dinheiro para ele voltar. Voltou seco, coitadinho. A mulher dele
era de Minas, aí largou dele e ele se perdeu. Entrou em um rolo
com o patrão. Foi trabalhar nas minas de carvão, dormia até nas
minas. Agora ele está bem, é pedreiro. Os patrões vão buscar ele
em casa. Ele trabalha desde pequeno nas fábricas de tijolos, é
bom trabalhador.
*****
Darcy remexe na jaqueta em busca da sua revista. Parece
que as condições estavam dadas para fazer as perguntas
reveladoras.
*****
Qual é o cúmulo da miséria? Passar fome, não tomar
banho e ser relaxado.

Onde você gostaria de morar? Eu gostaria de morar


em um morro alto, em uma casa que tivesse vista para
tudo quanto é lado.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? É paz,


amor e união na família.

Para quais erros você tem maior tolerância?


Prostituição eu tolero ainda.

Quais obras literárias você prefere? Não sei


responder.

42 | Borboleta 13
Qual é seu personagem histórico favorito? Eu
gostava daquele presidente que congelou tudo, o Sarney.
Se o Brasil congelasse tudo e deixasse só os salários
subirem, as coisas melhorariam 100%.

Seu pintor favorito? Não tenho.

Seu músico favorito? Tocando violão e sanfona, tudo


é bom.

A qualidade que prefere nos homens?


Honestidade.

A q ualidade que prefere nas mul heres?


Sinceridade.

A virtude que prefere? Não sei responder.

Sua ocupação favorita? Escutar música.

Quem você gostaria de ter sido? Glória Menezes.

O que você mais aprecia nos amigos? A sinceridade.

Seu pior defeito? Sou estressada em casa.

Seu sonho de felicidade? União da família.

Qual seria sua pior desgraça? Perder meus filhos,


Deus me livre.

O que você gostaria de ser? Uma pessoa bem poderosa


para poder ajudar o mundo.

Sua cor favorita? Azul e branco.

A flor que mais gosta? Rosas.

Qual pássaro preferido? Canarinho.

Seus autores favoritos em prosa? Não tenho.

Curitibocas | 43
Seus poetas favoritos? Não tenho.

Seus heróis na vida real? A minha família.

Seus nomes favoritos? Os nomes dos meus filhos.

O que você detesta? Mentira.

O feito militar que mais admira? Quartel. Admiro


muito o quartel.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? Não


sei responder.

Como gostaria de morrer? Em paz com a minha


família.

Seu lema? Eu quero, eu posso, eu consigo.

44 | Borboleta 13
Curitibocas | 45
Caminhante
Plá

C
om satisfação pela conversa, Darcy não sentia mais os
efeitos do cansaço. Porém, era o suficiente. Chega de
Curitiba, hora de ir à rodoviária buscar seus pertences.
A garoa voltara.
No caminho, achou muito inteligente a idéia de uma grande
ciclovia no meio do que aparentava ser uma avenida importante.
De vez em quando, passavam ônibus compridos, articulados
como sanfonas. Os ciclistas não se incomodavam.
A 500 metros da rodoviária, três senhores com mais de 50
anos estavam sentados em um banco no centro de uma praça.
Reclamavam de tudo. Com especial ênfase no futebol e na
política. E porque não mais um papo antes de ir embora?

Curitibocas | 47
Darcy se aproximou. Colocou a mão no encosto do banco.
Um idoso se inclinou para ver quem se aproximava. Por trás
de grandes óculos marrons, Darcy sentiu que os olhos dele
acusaram, julgaram e condenaram. O movimento foi seguido
pelos outros dois.
Seguiram conversando entre eles como se Darcy fosse um
dos pombos da praça. Dois longos e intermináveis minutos
passaram entre o momento que Darcy apoiou-se no banco, até
que resolveu movimentar-se. Esta resolução se deu depois de
Darcy testemunhar a ousadia dos velhos ao abordar uma jovem
moça de aspecto interiorano. Disseram coisas que fizeram a
jovem apurar o passo e suas bochechas rosarem.
Foi direto até a loja da Citram. Um rapaz de camisa, gravata,
sotaque carregado no “R” e suor abaixo das axilas era o único
funcionário. Outros quatro guichês da empresa estavam vazios.
Darcy entrou na fila, atrás de seis clientes.
Darcy explicou que desceu do ônibus em Curitiba achando
se tratar de pausa para lanche. Suas malas foram com o ônibus
até sua cidade natal.
- Desceu do ônibus em Curitiba, mas não era para descer?
Afirmativo.
- Aí você perdeu as malas?
Sim, era o que acabara de dizer.
- Eu peço que você fique no aguardo um minutinho que eu
vou estar verificando com a central a destinação de sua mala,
ok?
Enquanto ligava, o atendente emitia passagens. Entre um
“ahã”, “certo” e “ok”, ele desligou o telefone. O sistema estava
em manutenção, impossibilitando o rastreamento da bagagem,
porém seguiria tentando com a central. Previsão para a volta
do sistema? Três horas. Darcy pegou um cartão da Citram e
prometeu ligar.
A caminhada estava matando suas pernas. Sem contar a
fome de 18 horas sem comer. Darcy parou em uma barraca de
cachorro-quente perto da rodoviária. Sentou em uma banqueta
de plástico frágil, parecia que a qualquer momento cederia ao
seu peso.
- Vina ou calabresa?
Darcy não sabia o que era “vina”. Optou pela opção mais
conhecida. Depois de matar a fome, quis matar o tempo com um
bate-papo. Darcy se apresentou para um rapaz esguio, boné sujo

48 | Plá
e cordões dos calçados gigantes. “Não tenho dinheiro e estou com
pressa”, respondeu, e o jovem caminhou em outra direção.
Com um pouco de mágoa, voltou para a XV. Percorreu toda
a extensão do calçadão, desde uma universidade com aspecto
tradicional, até uma praça com convidativos bancos. Sentou-se,
o cansaço voltara. Transeuntes apressados passavam com seus
celulares. Darcy sentia-se invisível.
Um sujeito barbudo encostou uma bicicleta ao lado de Darcy.
Vestia andrajos brancos, portava um violão e bolsas. Espalhou
pelo chão panos com mensagens escritas à mão. “Quem planta
flores / colhe flores”, dizia uma. Na bicicleta, armou uma espécie
de balcão com CD’s empilhados.
Após as montagens, foi até uma cafeteria em frente. Violão
ainda nas costas. Darcy sentia que este sujeito de ar messiânico
poderia render um bom papo. Não poderia arriscar perder esse
papo. Lembrou que o misterioso homem de negro fazia uma
pesquisa. Todos os CD’s eram de autoria deste artista que se
apresentava como Plá. O sujeito voltou com um copo plástico de
café. Algumas gotas pingaram em sua vasta barba.
- Você quer um pouco? – pergunta ao perceber o olhar
curioso de Darcy.
Darcy agradeceu como quem declina e, antes de propor uma
conversa, um senhor encasacado e de óculos escuros interpela.
- Lembra de mim? Me dá o último CD. Dez reais, né?
- Isso aí. Obrigado.
- Olha, quero te parabenizar pela tua música e
autenticidade.
- Obrigado, obrigado - respondeu Plá, em tom tímido.
Finalmente, surge a oportunidade para Darcy explicar que
está fazendo uma pesquisa sobre “Cultura de rua”. Plá disse que
não havia problema em ceder uma entrevista. O diálogo se deu
da seguinte maneira.

Obrigado. Para começar, qual o seu nome? Ademir


Antunes dos Santos.

Conhecido em Curitiba como Plá? Não só em Curitiba,


mas em muitos lugares que eu ando.

Como surgiu o apelido? Não é propriamente um apelido.


É um nome de guerra. Surgiu da própria manifestação da arte
que eu faço há muito tempo. Como um toque, um grito, um plá,

Curitibocas | 49
um alô para a galera que dormia e dorme ainda. A arte que faço
visa mexer o interior da pessoa, questionar todos esses valores
vigentes dessa sociedade instituída que está praticamente nos
seus finais. A propaganda e a televisão mostram uma decadência
mundial. A humanidade está indo para um caos cada vez
maior.

Sempre toca aqui? Geralmente toco aqui na hora do


almoço. Faço um contato com as pessoas para mostrar o que eu
faço, e aos domingos no Largo da Ordem.

Seu violão é de 12 cordas? É, mas eu tirei 4 cordas. Era


muito difícil de afinar. Esse de 12 eu troquei por uma guitarra.
Guitarra toquei um pouco, mas não gostei. Tenho outro de seis.
Meu primeiro violão era de seis cordas, ganhei do meu pai.

Quando começou a tocar violão? Comecei bem pequeno.


A gente morava no interior, na colônia, numa roça. Tinha uma
cozinha de chão. Meu pai tocava um pouco de violão, pontiava,
cantava alguma coisa. Ele ficava tocando em volta do fogo. Fui
observando e aprendi as coisas. Tocava músicas bem simples,
aquelas meio caipiras. Aí ele tocava: [canta] “Eu nasci naquela
serra / num ranchinho beira chão”.

Onde isso? Em Campo Belo do Sul, interior de Santa


Catarina, quase divisa com o Rio Grande do Sul, onde nasci.
Eu me considero de Curitiba porque toda minha formação e
desenvolvimento foram aqui. Até então, não conhecia nenhuma
cidade grande. Me criei no sítio, trabalhando na roça, andando
a cavalo, tirando leite das vacas. Uma vida totalmente natural,
ligada à natureza.

Sente saudades? Acho uma vida supersadia. Tenho boas


lembranças. Tanto é que, mais adiante, me vejo longe dessa
bagunça, dessa coisa conturbada. Quero adquirir uma terra,
montar um barraco, cultivar umas plantas e só vir para a cidade
fazer uns contatos objetivos. Pretendo me integrar mais à
natureza. Em casa, eu tenho uma horta, tenho milharal, só que
na cidade é meio restrito.

Onde você morava quando chegou aqui? Morava


numa pensão, perto do relógio das flores. Aí fui conhecendo as

50 | Plá
pessoas e as coisas foram andando. Agora moro no Cabral, perto
do terminal [de ônibus].

Quando veio para Curitiba já compunha? Já. Vim em


1976. Tinha 18 anos. Bem jovem. Estava numa fase de descoberta.
Dava aula particular de violão. Aí decidi estudar para ter um
conhecimento maior desse dom meu, desde criança já gostava.

Quando você fez as primeiras composições? Eu era


guri ainda. As primeiras coisas eu aprendi com o meu pai. Depois,
vim para Curitiba e comecei a me dedicar mais. Fiz faculdade de
música por quatro anos. Só comecei a mostrar minha música para
a população, na rua, em 1984, depois que concluí a faculdade
na FAP [Faculdade de Artes do Paraná]. Até então, eu vinha
compondo e guardando. Mostrava para uma pessoa amiga, mas
eu não tinha muita convicção ainda do que eu estava criando, do
que estava nascendo em mim. O próprio curso de licenciatura
plena em música me ajudou no amadurecimento das idéias.
Depois, decidi que queria vir na rua mostrar minha música.

Como Curitiba recebeu a sua arte na rua? Era tudo


muito difícil. Tive que enfrentar muitas guerras, brigas com
fiscais e tudo o mais. Quando comecei a mostrar as primeiras
coisas na rua, vinha com um gravador. Colocava as pilhas, o K7
e vinha na Boca Maldita tocar para as pessoas. Bati um livrinho à
máquina com as cifras das letras. Eu colocava o gravador no chão
e começava a cantar. Ia gravando aquela fita. O pessoal parava,
eu dava o livrinho com as letras e falava: “Ó, quando eu acabar
de gravar essa fita, eu vou vender. O preço da fita vai ser tanto”.
Ficava uma fita superinteressante. Fiz várias. Foi a forma que
eu achei de começar a me contatar com as pessoas. Daí, nisso,
vinham os fiscais:
- Não pode.
- Como, não pode? Eu estou divulgando a minha própria
música. Não estou fazendo nada. É uma expressão livre.
Até convencer os caras foi difícil.

E onde estão essas fitas? Só fiquei com uma de recordação.


As outras eu vendi. Isso foi no começo, em 1984. Em 87, saiu o
show “Raio de Sol” no Paiol. Este show foi meu primeiro CD.

Curitibocas | 51
As composições são todas próprias? Tem músicas
que são de parceria. Mas a maioria é de minha própria autoria,
minha mesmo.

Da onde tira tua inspiração? Te dou um exemplo. A


faixa-título do novo CD que eu estou compondo, “A prova dos
nove”, é curtinha, escuta só [canta]: “Se vocês soubessem que
estão sendo ruelas / Nas engrenagens destruidoras / Desta
mecânica sugadora / Do seu sangue do seu suor / Da sua vida,
das sua liberdade / Principalmente vocês tão jovens / Nem
chegaram na prova dos nove / Principalmente vocês tão jovens
/ Nem chegaram a prova dos nove.
Por que, ser ruelas? / Se vocês têm muito mais a conquistar
/ É só descobrir o seu forte / E nele aplicar Sem se preocupar / É
só se ocupar / Principalmente vocês tão jovens / Nem chegaram
na prova dos nove / Principalmente vocês tão jovens / Nem
chegaram a prova dos nove”.
Entendeu? Então, é todo um contato com a realidade que
observo, como eu falei no começo. A sociedade é uma engrenagem
que destrói a liberdade das pessoas, da juventude, principalmente,
que não tem um discernimento. Ela se prepara para competir em
um mercado de trabalho completamente corroído, explorador e
vai jogar a vida dela fora. Aí, sugiro na música que descubra o
forte e aplique nisso. O que ela gosta de fazer, o que ela se sente
bem, o que ela pode desenvolver, a partir dela. Acreditar nisso e
se ocupar realmente. Aí vai se realizar, vai ser alguém que vale a
pena viver. Mas a maioria não questiona esses valores. Eu procuro
mostrar através das minhas músicas.

Suas letras parecem bastante questionadoras. É.


Tem um conteúdo vivencial, filosófico, de autoconhecimento e
da realidade. Não cai no sentido político, até porque a política
virou uma coisa que não dá para acreditar mais.

Você sente uma diferença nas composições do início


da carreira para hoje? Há um crescimento natural, da visão,
do desenvolvimento. Aí, se a pessoa quiser conhecer melhor,
é só pegar os CD’s e vai perceber o desenvolvimento. Há uma
caminhada. Aquele tempo eu estava em um ponto, agora estou
em outro... Bem adiante.

52 | Plá
Como compõe suas músicas? É instável. Mas geralmente
tem um período que brota mais a música. Eu estou sempre
compondo. O comum é geralmente umas três, quatro músicas
em um mês. Por exemplo, de um tempo para cá tenho feito várias
músicas. Só no Psicodália, fiz umas quatro ou cinco músicas em
quatro dias.

O que é Psicodália? Psicodália é um movimento com


compositores de rock’n’roll. Já aconteceram vários festivais. No
carnaval deste ano, teve um numa chácara em São Martinho,
perto de Floripa. 23 bandas de várias partes do país. Tinha mais
de 3 mil pessoas. Fiz o show de encerramento. Foi uma coisa
lindíssima.

Você é um roqueiro? Eu tendo mais para o rock e o


blues. Não para aquele rock pauleira, mas para uma coisa mais
melódica.

Quais são tuas influências? No começo, a pessoa que me


estimulava quando eu era piá era o Raul Seixas. Mais adiante,
ele começou a pirar muito e se perdeu na própria caminhada.
Foi uma pena. Se dopava demais, uma dó. Mas ele deixou uma
mensagem, um recado de estímulo para mim. Ele mostrou
que não é bem assim a sociedade, que há como viver de outro
modo, pode-se viver independente dessa coisa instituída. Não
sou muito assim de ouvir música de outros. Atualmente, eu
estou mais concentrado no meu som e em criar minha própria
caminhada.

Tem escutado algum artista novo? Não me atraí. Eu


vejo na televisão alguma coisa meio de relâmpago. No Psicodália
tocou a figura dos Mutantes, o Sérgio Dias. Os Mutantes foi uma
banda que marcou. Ele tem um trabalho muito interessante,
um lance que mistura umas músicas em inglês, uns embalos,
altos arranjos. Mas não senti muita firmeza na veia filosófica, no
conteúdo para o momento que a gente vive, não me tocou muito
na questão ideológica de vida e liberdade.

Convive com outros músicos? Ah, muito poucos.


Conheço o pessoal do Blindagem. O Ivo é meu amigo, figura
bacana. Conheci o João Lopes, não com muita intimidade. De
vez em quando a gente se encontra e dá um “oi”. Mas, no mais, eu

Curitibocas | 53
não tenho contato com o pessoal. A maioria não faz um trabalho
na rua, de estar em contato na praça e conversar.

Sempre trabalha sozinho? Nunca cheguei a formar


banda. Quando eu faço show em teatro, às vezes, tem uns
músicos que tocam junto. Vários dos meus CD’s foram shows
gravados com amigos meus músicos. No Paiol, no TUC [Teatro
Universitário de Curitiba], no Mini-Guaíra, no Teatro Cultura. Aí
tem arranjo de bateria, guitarra, sopro, sax, trompete. Mas banda
mesmo eu não gosto. Tem trabalhos com vários músicos juntos,
mas atualmente não estou muito preocupado. No Psicodália
fui só eu e o violão. Mas daí acabou entrosando o som na roda
da fogueira com um monte de gente que ficou lá acampada. Na
hora do show, várias pessoas subiram ao palco para cantar junto
e acompanhar.

Quem pára para te escutar? Quem tira proveito das


minhas mensagens é a juventude, que está buscando um
autoconhecimento, questionando a si mesma, transcendendo
um pouco a formalidade dessa sociedade medíocre, do dia-a-dia,
essa coisa comum. Na linguagem popular, são as pessoas mais
malucas, mais cabeças, que estão buscando algo dentro delas.
As crianças também gostam.

Qual o teu diferencial em relação ao músico normal?


A minha opção é criar um trabalho onde eu viva o dia-a-dia.
Então, eu prefiro sair na rua, encontro com as pessoas, vou nas
universidades, na Federal, na FAP. Quando o pessoal me convida
para ir num lugar eu vou. Ou quando é para fazer um show ou
outro. Mas eu não gosto do meio convencional, assim, sair, se
programar, fazer turnê, ensaiar, parar. Eu acho que a música é
uma conseqüência da minha vida. Então, eu não curto esse lado
assim muito pensado da coisa. Faço poucos CD’s. Acabo os que
eu tenho e faço mais cópias. Vou reproduzindo à medida que
vou vendendo.

Como é o processo de criação de um CD? Os últimos


eu tenho feito em estúdio, mas a maioria é de show ao vivo. Eu
tenho as músicas, vou lá no estúdio, pago por hora e gravo. A
qualidade fica bem melhor. Uns amigos que têm uma agência de
publicidade, a Asa 100, fazem a arte de capa. São uns camaradas
meus.

54 | Plá
Curitibocas | 55
E o primeiro, “Raio de Sol”, como foi? Foi de um show
que eu fiz no Teatro Paiol, em 1987. Já tocava na rua há três
anos. Na época, gravei ele numa fita K7. Antes de cair a censura.
Eu tive uma música censurada neste disco. Fiz uma música que
falava como se Curitiba fosse uma mulher, muito fechada, muito
reprimida, como se ela fosse ainda virgem. Eles censuraram a
música. Depois, em 1988, gravei essa música. Aí não parei mais
de compor e criar. Agora estou compondo o 33o CD.

Curitiba ainda é assim? Ainda é um pouco assim. Curitiba


é uma cidade um tanto conservadora. Mas já mudou um pouco.
Daí, tem uma outra música que eu fiz nessa época, que fala da
pobreza de espaço para a juventude se exteriorizar na noite de
Curitiba. Inclusive, pediram essa música no Psicodália. É de 1987,
[canta] “Que pobreza de espaço para a juventude se exteriorizar
/ Na noite de Curitiba / Mas que pobreza de espaço para a
juventude se exteriorizar / Na noite de Curitiba”.
No bar, o couvert é cobrado na porta e deve-se sentar
bonitinho / Comprar bebida, cigarro e salgadinho / Nas ruas e
praças, a polícia procura manter a ordem / E o sossego da city
/ Nas escolas e universidades, os professores e guardiões se
responsabilizam.
Mas que pobreza de espaço para a juventude se exteriorizar
/ Na noite de Curitiba...”
E assim vai. Não tem muita opção dentro da cidade. A não
ser os mais malucos, que se encontram e fazem um círculo de
amizade. Mas o comum de Curitiba não tem. Tem o bailão no
Ópera 1, uma discoteca não sei onde, uma coisa que não tem
lógica. Ou aquele esquema do bar. Fica enchendo a cara a noite
inteira falando abobrinha. Também não dá. Tinha que ter um
esquema de mais liberdade, mais vida, de compartilhar, mais
soltura. Então, ainda é super pobre a noite de Curitiba.

Aonde você vai de noite? A parte nenhuma. Só, às vezes,


que eu vou na casa de uma pessoa amiga, fazer uma fogueira,
tocar um violão. Ou faço uma fogueira na minha casa. Mas no
comum, no social, eu não vou, não participo. Bar não vale a
pena.

Você bebe? Um gole ou outro, esporadicamente, quando


estou com os amigos. Mas nada de encher a cara. Também não
fumo.

56 | Plá
O que você acha de Curitiba? É uma boa de morar, super
agradável. Sempre gostei daqui e continuo gostando. Apesar
dela ser uma cidade meio formal, grande, ela é tranqüila. Não
tem muita violência, como São Paulo, Rio de Janeiro, onde tem
assalto, briga, guerra, incêndio. Aqui você anda qualquer hora
e dificilmente acontecem coisas desastrosas. Apesar de ser uma
cidade meio formal, meio fechada. É muito agradável para viver,
se desenvolver. Tem várias coisas para aprender, se dedicar.
Sempre gostei e recomendo. Vale a pena. O que tem que melhorar
é a consciência das pessoas. A visão de vida, de mundo. Mas
isso não é só daqui. Todo o mundo tem que melhorar. Carnaval
e futebol são duas manifestações do sistema, que tentam tirar
proveito da ingenuidade do povão. Mostrar justamente um
lado assim que não traz evolução. É uma fantasia, um delírio
das massas pouco esclarecidas. O brasileiro é geralmente pouco
esclarecido, meio ingênuo. É um país novo, vasto, grande,
riquíssimo em natureza, em vida, mas tem essa falta de visão.
Está engatinhando em muita coisa.

Quem é o curitibano ícone? Aí é difícil. O pessoal fala


em algumas pessoas. Eu conheci algumas pessoas que marcaram,
como, por exemplo, Paulo Leminski, que era meu amigo. Várias
vezes ele tocou no meu violão. “O poeta”, me chamava. Ele era
um polacão enorme. Pegava o violão e quase estourava as cordas,
tocava super mal. Conheci ele no bar. Nos anos 80, eu ainda
participava, ia a barzinhos. Eu o via no Trem Azul, bar que tinha
na [rua] Treze de Maio.

Como foi o primeiro encontro com ele? Na rua mesmo.


Ele me via tocando e parava para conversar comigo. Ele pegava
o violão, cantava uma música, ia embora. Fazia uns esporros.
Era bem extravagante.

Gostaria de voltar para essa época? Era um tempo que


era bacana. Curitiba era mais tranqüila. De uns tempos para cá,
meio movimentada, agitada. Mas ainda está bom. Muitas pessoas
que vão passando. É assim a vida da gente.

Quais são seus maiores sucessos? Eu não estou


buscando reconhecimento. Nunca estive. Faço o que eu gosto.
Tenho prazer nisso, tem feito bem para bastante gente e para
mim também. Agora, as músicas que não podem faltar em

Curitibocas | 57
nenhum show são várias. “Não falo inglês”, “Maluco de Cara”,
“Metanóicos”, a galera sempre pede.

A sua família te deu apoio? Não. Familiares geralmente


são os últimos a acreditar. Eles respeitam o que eu faço, mas
não vivem como eu. Nem poderia ser diferente. Meu pai ficou
contente. Ele sempre teve maior orgulho de mim. Ele achava
que era isso mesmo, sempre deu a maior força. Tanto que me
deu o primeiro violão. A mãe também gostava, mas não tanto
quanto meu pai.

Teus irmãos se inclinaram também pela música?


Meus irmãos foram tomando um rumo comum da sociedade,
não se dedicaram à música. Nós somos dez. Tenho pouco contato
com eles. Duas ou três irmãs moram em Curitiba.

É solteiro? Conheci minha companheira no final de 1986.


Nesse período, eu tinha um terreno no Tanguá. Aí perguntei
para ela se ela iria morar comigo se eu fizesse uma casinha. Aí
eu fiz. Desde então, estamos nessa caminhada juntos, sem nada
de burocracia, sem papel nem nada. Temos duas moças, uma
tem 15 e a outra tem 14. A gente compartilha, briga, se entende.
Deixa a vida fluir naturalmente. Ela estudou serviço social, mas
só pegou um emprego no começo, quando a gente se conheceu,
depois parou. Eu viajava bastante no começo. Daí ela cuida mais
das meninas.

Como o Plá define o Plá? Como alguém assim, digamos,


que está aí para passar uma mensagem de vida para as pessoas,
de liberdade, de busca de uma realização, de uma saída de toda a
parte que condena a vida em geral do ser humano, da sociedade
em geral. Então, uma pessoa que vive aquilo que faz. A minha
passagem, a minha existência, é para dar um certo referencial
de reconhecimento melhor de um rumo que vai levar a pessoa a
uma libertação verdadeira, do próprio ser dela. Eu considero o
Plá uma figura que tem um conteúdo filosófico naquilo que faz. O
filósofo sai dos habitantes. Quem sai, realmente mostra a saída.
Não estou preocupado que as pessoas façam o que eu diga ou
o que eu faço. Tem que se espelhar naturalmente, tem que ver
quais pontos positivos, que proveito ele pode tirar para a vida
dele. Acho que cada um tem que encontrar o próprio referencial,
a sua vida, assumir a sua caminhada. Então, eu estou interessado

58 | Plá
em pouco a pouco sair de tudo isso. Eu estou saindo, já há muito
tempo, fazendo uma caminhada. Lógico que há a possibilidade.
Alguém que está procurando a própria caminhando e mostrando
que há uma luz dentro de si e que vale a pena caminhar.

Quando se deu conta da caminhada? Desde muito tempo


atrás. Nunca me dei bem com essa coisa formal da sociedade,
essa coisa cheia de regras, condicionamento e bitolação. Aí
comecei a questionar, dentro de mim, várias coisas. E procurei
me conhecer, me aprofundar em um autoconhecimento melhor
de mim mesmo. Aí eu tive contatos com pessoas conhecedoras,
com profundos conhecimentos de filosofia. Uma delas foi o Abílio
Giordanelli. A gente fez várias guerras em Curitiba e Cascavel
– até porque moramos lá – só que agora ele já transcendeu.
Tenho um monte de textos originais, que ele fazia palestras
gratuitas na rua e em outros lugares que ele ia sempre. Como eu
tinha um monte de cartazes guardados, achei um desperdício
deixar aquilo ali parado. Resolvi escrever à mão e reunir num
livro. Passo para frente, para a pessoa que interessar, mediante
uma contribuição espontânea. Não visa a lucro nenhum, a não
ser passar a mensagem adiante. É um catatau de coisa, onde
ele mostra claramente, assim, coisas superprofundas para a
pessoa. Então, conhecer melhor a si mesmo e à sua realidade a
à sua volta. Não ir no embalo, na propaganda, na massificação.
A minha proposta sempre foi essa aí, desde quando eu o conheci
em 87. Senti em uma palestra dele que bateu totalmente em
cheio com aquilo que eu estava vivendo e buscando. Assim vai
a caminhada.

Nessa caminhada você quer se afastar do mundo?


Não é bem se afastar. É uma coisa de estar no meio, mas não
fazer parte do meio. É mostrar o seu parecer diante de uma
coisa. Eu estou aqui, mas não faço diretamente parte dessa
sociedade automatizada, dessa engrenagem. Estou trazendo
algo que eu vivo. Aí, esse material me custa um certo capital, aí
eu passo adiante, tiro uma certa margem e vou pagando minha
subsistência por aqui, mas sem me macular numa coisa que está
corroída. Claro que, por enquanto, ainda dá para transitar aqui.
Mas têm muitos lugares no mundo que nem está dando mais.
Daqui a um tempo, talvez nem mesmo aqui tenha condição da
gente transitar, olhar o sol e ficar sossegado.

Curitibocas | 59
Quantos anos você tem? Essa pergunta é difícil de
responder. Eu costumo falar para o pessoal que o tempo que eu
vivo não conto normalmente. Não é como todo mundo, que conta
um ano com 365 dias, que tem feriados e tal. É mais pelo tempo
de vida intensivamente e interiormente. Eu moro em Curitiba
devem fazer mais de 700 anos. Eu me imagino assim, com 900
anos. Até fiz uma música um tempo atrás que eu falo que tenho
900 e tanto giros em torno do sol. Toco aqui na rua faz uns 400
e poucos anos. Quando eu comecei, era um adolescente.

Vai viver até quando? Vou viver para sempre. Quem


está vivo nunca morre. O corpo uma hora vai ficar. O espírito
continua.

Acredita em alguma religião? A palavra religião significa


religar-se a Deus. O meu modo de me ligar a Deus é através da
música que componho.

A música pode mudar o mundo? Claro. A música pode


mudar uma série de coisas. Não vou dizer o mundo porque o
mundo já não tem mais como mudar. Ele já está praticamente
traçado para uma coisa crítica, muito grave. A música pode
mudar a cabeça ou a visão de algumas pessoas. Pode ajudar
nessa conscientização. Até eu cantei uma música no Psicodália
que eu vou tocar agora. Chama-se “Vagões”. [Canta] “Vagões
abandonados pelos seus tripulantes / E cargas envelhecidas por
falta de renovação / Por falta de circulação da energia em cada
dia, em cada dia
Tripulantes que perderam o faro e de pouca razão / Perderam
a percepção / Para eles engatar o vagão em alguma locomotiva
é muito arriscado / Preferem ficar parados / Mesmo alguns
/ Já percebendo / Esse território praticamente quase todo
inundado
Isso sim é que é ser desleixado / Isso sim é que é ser
desleixado
Vagões abandonados pelos seus tripulantes / E cargas
envelhecidas por falta de renovação / Por falta de circulação da
energia em cada dia, em cada dia
Se primeiro com o seu próprio vagão / Tivesse cuidado /
Pusessem em devida movimentação / Por certo pouco a pouco
Se habilitariam / E logo teriam sua própria iluminação / E
força para a própria locomoção / E capacidade até para puxar

60 | Plá
um outro vagão / Para fora desse mundão / Para fora desse
mundão”.
Então, com essa música, tentei mostrar que as pessoas não
se conectam, abandonam o forte delas. Se ela cuidar da sua
própria condução, do seu corpo, pode influenciar outras pessoas
a se afastar e não fazer parte de uma coisa que não vai dar em
nada.
Qual é o cúmulo da miséria? A ignorância.

Onde você gostaria de morar? Onde eu moro.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Ver o


sol, sorrir, cantar.

Para quais erros você tem maior tolerância? Com


todos os erros.

Quais obras literárias você prefere? Eu conheço


pouco.

Personagem histórico favorito? Beethoven.

Pintor favorito? Aquele que cortou a orelha, Van


Gogh.

Músico favorito? Beethoven.

A qualidade que prefere no homem? Amor.

A qualidade que prefere na mulher? Amor.

A virtude que prefere? Amor.

Sua ocupação favorita? Tomar chimarrão e ficar em


volta da fogueira.

Quem você gostaria de ter sido? Eu mesmo.

O que você mais aprecia nos amigos? A


sinceridade.

Seu pior defeito? Não parei para pensar nisso.

Curitibocas | 61
Seu sonho de felicidade? Eu já sou feliz.

Qual seria sua pior desgraça? Seria eu me perder.

O que você gostaria de ser? Eu mesmo.

Sua cor favorita? Branco.

A flor que mais gosta? Lírio.

Qual pássaro preferido? Azulão.

Seus autores favoritos em prosa? Não sou chegado


em literatura.

Seus poetas favoritos? Leminski, mas eu conheço


poucos.

Seus heróis na vida real? Não tem heróis na vida


real.

Seus nomes favoritos? Anaíti e Egmara, os nomes


das minhas filhas.

O que você detesta? Pergunta chata.

O feito militar que mais admira? Não admiro quase


nada desses feitos militares.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? Eu


tenho o dom de ser natural.

Como gostaria de morrer? Eu não gostaria de


morrer.

Seu lema? Recomeçar a cada dia.

62 | Plá
Curitibocas | 63
64
Mila
Behrendt

D
arcy contemplou a performance do artista depois da
conversa. Quando o comércio começava a fechar,
lembrou que deveria ligar para saber de
sua passagem.
- Só um minutinho, que eu vou estar verificando -, respondeu
o atendente da Citram. Darcy passa um Vivaldi tocado à la
despertador do camelô.
O atendente volta desculpando-se pela demora. Diz que é
melhor Darcy arranjar um lugar para dormir, pois o sistema
provavelmente não voltaria naquele dia.

Curitibocas | 65
Darcy esperava isso. Argumenta que está sem dinheiro. O
atendente diz que nesse tipo de situação é possível dormir na
rodoviária. No chão da rodoviária, mais especificamente. Darcy
recusa. Desliga o telefone quatro segundos depois do orelhão
comer mais um crédito do cartão.
Senta-se no meio-fio. Não sabe o que fazer nessa terra
estranha.
- Não dá para querer essa situação. – O resmungo era de um
jovem de moletom que se sentou ao lado - O que querem que eu
faça eu não sei, eu não sei, eu não sei.
Darcy disse que estava numa situação ruim também.
- A vida é um desafio. Você sabe isso?
Darcy se deu conta que não era um diálogo com um potencial
amigo. Era um monólogo e a sua presença fazia pouca diferença.
Darcy apoiou as duas mãos para trás e observou o rapaz, que
seguiu em tom de voz baixo, para depois fazer uma performance
como se estivesse dirigindo um carro. Fez uma baliza perfeita
em uma vaga apertada, mas cometeu um equívoco. Deu-se uma
multa imaginária por ter esquecido de ligar o pisca-pisca. Darcy
ria e aplaudia o rapaz, que parecia, gradativamente, notar a
presença de seu público de uma pessoa só.
Darcy entrou na brincadeira. Os dois jogavam futebol sem
bola e sem regras, em que o objetivo poderia ser fazer gol, cesta,
game, ponto ou o melhor tempo. Dependia do que fosse divertido
para o momento. Jogavam sem perdedor. Só ganhadores.
O jogo terminou quando uma senhora, do alto de seus saltos
altos, aproximou-se. Pegou o rapaz pela mão e disse que era hora
do jantar. Em princípio, as ordens foram obedecidas. Depois
que o rapaz viu Darcy, desatou a protestar. Gritava a plenos
pulmões. Darcy não sabia se dava tchau, se fugia, ou se tomava
o rapaz pela mão.
- O que você está fazendo, caralho?
Darcy explica que estava se divertindo com o rapaz. A senhora
respira fundo. Antes de falar, olha para o jovem que esperneia
em sua mão direita.
- Você sabe que o Bruno é...?
Darcy se desculpa e reforça que achou o rapaz muito
simpático.
- E quem é você?
Darcy faz um resumo de sua situação.
- Meu nome é Andressa. Você pode dormir hoje lá em casa.
Não por muito tempo, porque o apartamento é pequeno.

66 | Mila Behrendt
Darcy agradeceu e seguiu a dupla. Andressa tem um pequeno
apartamento nas imediações da rodoviária. No caminho, Darcy
se distrai com a destreza dela. A calçada, toda feita de petit-
pave, não era obstáculo para a sandália cristal, salto agulha
de 15 centímetros. Aliás, não havia mulher baixa em Curitiba.
Algumas chegavam na altura-padrão feminina, vigente na cidade,
com botinas de solado tipo tijolão, no melhor estilo das bandas
roqueiras dos anos 80. A delicadeza feminina contrastava com o
estrondo causado a cada passo. Algumas chegavam a combinar
com bijuterias barulhentas e maquiagem carregada. Darcy via
essa produção na noite do clube de sua cidade ou nas árvores
de natal.
Chegaram no apartamento de sala-cozinha-quarto-banheiro.
Algumas caixas de papelão fechadas estavam empilhadas em um
canto da sala, ao lado de onde Darcy dormiria. Andressa e Bruno
dormiam no mesmo quarto.
Mesmo com todo o cansaço de um dia de trabalho, Andressa
foi preparar a janta. Desculpou-se pela sopa (deliciosa para
Darcy), mas era a única coisa que tinha em casa. Anunciou que
no dia seguinte iria às compras.
Depois de colocar Bruno para dormir, Andressa foi tomar
um banho. Apesar do corpo de Darcy acusar a falta de sono, não
conseguia pregar os olhos enquanto ouvia o barulho do chuveiro.
Queria uma ducha, mas estava com vergonha. Darcy não gostava
de freqüentar banheiros de estranhos.
Andressa foi até a sala de pijama. Sem maquiagem, a idade
pesava em seu rosto. Porém, ficava mais bela. Seu olhar denotava
muita vivência. Andressa disse que amanhã despertaria cedo.
Aconselhou Darcy a tomar um ônibus que vai à rodoviária e
passava ali próximo. Sem mais a dizer, Andressa deseja boa
noite e Darcy dorme de imediato no colchão entre as caixas, a
televisão, a cadeira e o sofá.
Despertou quase meio-dia. Darcy foi até o local indicado.
Esta parada ainda era dos ônibus pequenos. Darcy desejava
embarcar, um dia, em uma dessas em formato de túnel, feitas
de plástico e metal.
Darcy se deu conta de que a viagem estava tomando mais
tempo do que a pé. Imediatamente, pressionou o botão de
parada. Estava em um bairro residencial. Apesar do dia bonito,
ninguém na rua para dar informação. As casas eram similares às
das pequenas cidades, bem diferente do claustrofóbico Centro.
Este bairro já lhe parecia mais aconchegante. Tinha visto poucos

Curitibocas | 67
jardins em suas andanças em Curitiba. Darcy agachou-se para
afagar um cachorro de uma casa com um belo jardim.
Mal sabia que a dona da casa lhe vigiava da janela . Os
carinhos de Darcy acabaram atraindo outros dois cachorros da
casa e quem o vigiava pela janela. Uma senhora alta e magra,
toda vestida de negro - em contraste com sua pele e cabelos
claros - aproximou-se silenciosamente de Darcy, que não teve
medo. Seguiu brincando com os cães, sem perder o olhar da
imponente senhora.
Não houve ação física. A mulher ofereceu chá e bolinhos
para Darcy, que aceitou e percebeu um sotaque estrangeiro na
fala dela.
Mila Behrendt era o nome da senhora que deixou Darcy na
sala-de-estar enquanto ia à cozinha. A sala-de-estar continha
livros pelas quatro paredes. Dois sofás grandes onde, em alguns
minutos, estariam conversando, e uma série de objetos extraídos
diretamente de algum conto de fadas: miniaturas de maçã
vermelha, bonecas (especialmente bruxas), caldeirões, quebra-
cabeças, chaveiros, ossos, uma roda que cabe na palma da mão
com espelhos. Um ambiente cheio de vida, ao contrário do
apartamento que dormira. Leu o rótulo “aranhas” em uma lata ao
lado de uma boneca. Mila apareceu com uma bandeja prateada e
Darcy, imediatamente, deixou o objeto no lugar. O diálogo entre
as duas pessoas transcorreu da seguinte forma:

Você realmente guarda aranhas nessa lata? Tinha


uma moça que trabalhava aqui que tinha medo de aranha. Ela
começou a limpar e reclamava das aranhas-marrons. Aqui não
se mata nada. É da nossa filosofia, respeitamos a vida. Então,
mostrei para ela esse pote das aranhas. Eu disse o seguinte: “Vou
fazer um ritual. Se você me ajudar, as aranhas vão embora”.
Coloquei umas velas, afastei os móveis, fechei a janela, fizemos
uma dança e invocamos um mantra. Abri a porta e mandei que
as aranhas fossem embora. Na semana seguinte, ela me disse:
“Você sabia que todas as aranhas desapareceram?”. Eu estava
imaginando as aranhas arrumando suas trouxinhas e indo
embora. Parece que o ritual deu certo.

Acredita nas bruxas? Se eu não acreditasse, não


acreditaria em mim.

68 | Mila Behrendt
Então você é bruxa? Uma vizinha me disse: “Se você
vivesse na Idade Média, você já tinha sido queimada viva”. No
entanto, o que eu faço? Nada de extraordinário. Uma sessãozinha
para espantar as aranhas, um benzimento que me ensinaram
quando era criança, essas coisas que me dão na cabeça.

Quando as pessoas falam de bruxas, sempre se


imagina uma dessas bonecas [aponta uma]. Essa bruxa
preta foi uma invenção americana. Assim como Papai Noel não
era vermelho, quem o vestiu foi a Coca-Cola. O que a bruxa põe
no corpo é de acordo com ela, não com os outros. Se é moda
ou não, nem estamos aí. Ela está vestida do jeito que ela quer.
Agrada, põe no corpo.

Por que foram tão perseguidas? Porque faziam alguma


coisa que não era aprovada pela sociedade, ou que eles não
compreendiam. Às vezes, nem precisava fazer nada, era só sentir
antipatia por determinada mulher que já era presa. O termo surge
na Idade Média. Aí eles passaram a caracterizar a bruxa como
uma pessoa má e feia.

Você não gosta das fadas? São tão sem graça. Fada pode
ser ambivalente. Quer dizer, tem as duas facetas. Qual é a faceta
da fada? A fada é aquela mimosinha, bem vestida, que a sociedade
aprova, que é correta, que faz tudo que manda o figurino e que
tem uma varinha de condão. A bruxa não. Ela representa aquela
mulher que tem que lutar, que tem que se defender, que tem
que ter garra, como a Baba Yaga. Ela tinha que dar cotovelada e
arranhar para lutar por sua sobrevivência. Não é o que você vê a
maioria das mulheres fazendo, no Brasil principalmente? Tem
de abrir o caminho a cotoveladas e dentadas.

Você teve alguma formação religiosa? Fui batizada


porque quis. Eu via os colegas e achava bonito. Via aquele
cerimonial, daí eu quis me batizar. Amolei a paciência dos meus
pais tanto que eles me batizaram.

Então você é católica. Não. Hoje tenho uma atitude


consciente em relação à religião. Há muito tempo, ocorreram
problemas pessoais que eu refleti muito e posso assegurar que
não foi a religião que me ajudou a superá-los.

Curitibocas | 69
O que te ajudou? O conhecimento, a leitura, procurar saber,
principalmente, sobre a origem da vida, o porquê de estarmos
aqui e sobre a formação do universo. Tenho um projeto sobre a
evolução da espécie humana. É um livro para crianças, mostrando
como ocorreu, como nos tornamos bípedes e tudo mais. Eu
quero que tenham essa visão. Acredito que isso foi um retraso
da educação de todos nós. Grande parte da incompreensão do
ser humano em relação à natureza é porque ele afastou-se dela.
Ele desconhece sua própria origem.

Qual é a melhor maneira de explicar essa teoria às


crianças? Não tem problema nenhum, não é um antagonismo
com a teoria religiosa. Depende da habilidade de quem vai
transmitir. Ela pode tanto ter esse conhecimento como aquele.
Depois, mais tarde, quando ela puder pensar por si própria, ela
mesma vai decidir. Acho que está arrefecendo um pouco essa
tendência das pessoas procurarem a Igreja para isso ou para
aquilo. Rogarem, lá, seus problemas, suas mágoas. Isso está
diminuindo, talvez, por uma conscientização maior das pessoas.
Em outros países, as crianças podem aprender tudo sobre o
creativismo e a origem dada pela Bíblia, mas sabem também
a teoria evolucionista de Darwin. Olha este livro, por exemplo
[pega um livro da estante].

O que ele tem de especial? Foi produzido por equipes de


crianças, sob a orientação de um professor na cidade de Altamira,
na Espanha. No Museu de Altamira são feitos workshops, sessões
de conto de histórias em relação à origem das espécies. São
crianças de várias idades. Eu estive lá em 2003. É um prédio que
eles aproveitaram até a reentrância do terreno para ficar o mais
discreto possível na natureza. As crianças pintavam na parede
os bisontes e outros animais. Veja a riqueza de expressão deles.
É uma história que está sendo metida. Veja aqui [mostra um
desenho de uma mão]. Essa é a chamada mão em positivo. Quer
dizer, você molha a mão na tinta e marca. Agora, quando você
pega o aerógrafo, você põe a mão aqui e assopra. Em espanhol,
eles chamam mão em negativo. Pois então, essa técnica foi
descoberta por esses homens que viveram 15 mil anos antes
de Cristo. Eles pegavam uma caninha, faziam um furinho,
limpavam, punham a mão e, com óxido de ferro ou com cal,
sopravam. Dizem que é um simbolismo. Eu acho que não, acho

70 | Mila Behrendt
que eles faziam por diversão. Imagina na cabeça deles poderem
reproduzir a própria mão.

Acha que esse tipo de trabalho pode ser feito no


Brasil? Não. Aqui não há possibilidade. Mas estou escrevendo
um livro interativo voltado para 8 a 12 anos, idade em que
as crianças estão interessadas em solucionar alguma coisa.
Então, vai ter vários jogos, alguma coisa que a criança pode
participar.

Já trabalhou com crianças? Claro. Sou contadora de


histórias faz mais de 30 anos. Há uns 28 anos, eu e o Carlos
Daichman criamos o movimento de contadores de história.

Como começou com essa prática? Antigamente não


existia fogão a gás, nem elétrico, nem nada. A janta era sempre
uma refeição frugal. Depois, nos juntávamos ao redor do fogão
para contar histórias. Sempre alguém da família ou vizinhos
contavam.

Você já se destacava? Eu acho que não propriamente


destaque, porque todas as crianças, pela motivação que havia,
tinham sempre coisas para contar.

Qual era teu conto favorito na tua infância? Além de


contos maravilhosos e tantos outros clássicos da literatura, como
João e Maria, a Bela e a Fera, Frau Holle, a gente tinha muito
folclore. Acreditava perfeitamente em lobisomem, em mula-
sem-cabeça, em boitatá, em fogo fátuo. Era interessante, porque
havia muitas histórias inventadas. Essas coisas não assustavam
as crianças. Hoje em dia, não. Têm filmes na televisão que são
verdadeiros terrores.

Na escola também contavam contos? Não sei dizer


se foi tradição da época, ou exclusivamente da escola que eu
freqüentava, mas eram contadas histórias. Inclusive histórias
da cidade, de poloneses, de pessoas que vinham de outras
terras para o Brasil. Acho que não era tanto pela história, mas
pela dramaticidade, pelo gesto e pelas nuances que as pessoas
faziam. Então, quando contavam a história da mula-sem-cabeça,
falavam do aspecto da mula no campo, dos trovões, das coisas
que as pessoas faziam. Isso faz a criança voar.

Curitibocas | 71
Como você define um bom conto? Do ponto de vista
da criança, tem que ter começo, meio e fim. Para o adulto, já
muda de figura. Os contos simples também podem ser bons. Por
exemplo, eu estou para publicar um livro chamado “Contos do
Arco-da-Velha” que tem contos pequenos e simples, mas muito
significativos.

O que caracteriza uma boa contadora de histórias?


Daí estou fazendo louvor em causa própria. É um pouco difícil,
mas acho que cada contador de história tem sua peculiaridade
e características. Para mim, como você pode ver aqui na sala,
trabalho sempre com coisas que despertem o interesse da criança.
Eu tinha uma professora que levava uma maleta e cada vez que
ela abria tirava uma coisa interessante. A aula dela era depois
do recreio. As crianças estavam naquela balbúrdia, mas ela nem
ligava. Quando ela abria a maleta, já sabia que todo mundo
serenava, porque alguma coisa interessante sairia dali. Então,
essa expectativa que eu gosto de criar. Não gosto de pedir para
ficarem quietos. Induzo as crianças a prestarem atenção.

Como saber se a história entreteve as crianças? É


lógico que se você conta a história e fica todo mundo parado,
é porque não teve efeito. A reação é conforme a faixa etária.
De oito a dez anos são muito participativos. E, de repente, eles
também têm histórias para contar. Geralmente, percebo que é
próprio da meiguice e da falta de malícia da criança que eles vão
lá, me abraçam, beijam, pedem para voltar outra vez. Há uma
demonstração de carinho muito grande.

Acha que os contos são uma maneira de escapar


do mundo real? Tem tanta coisa que faz a gente escapar do
mundo real. Esses contos fazem a gente escapar melhor ainda.
Não tem pessoa mais realista que eu. E, no entanto, à noite,
impreterivelmente, leio algum conto ou algo que você poderia
dizer que é infantil.

Já trabalhou em escolas? Tenho uma lista. A maioria


escolas municipais. Mas agora já não tanto. Daí foram surgindo
outros contadores de histórias que têm mais disponibilidade e
que estão mais motivados. Sempre gostei de escrever e, para dar
conta dos dois, eu estava muito sacrificada. Trabalhei em Lyon,
na França, e também na Alemanha contando história.

72 | Mila Behrendt
Curitibocas | 73
Esse livro te toma muito tempo? Também estou
escrevendo um livro sobre o roubo da Mona Lisa. Faz muitos
anos que meu interesse foi despertado para esse assunto, mas eu
via que muitas coisas historicamente não batiam. Então, estou
fazendo um relato muito interessante de como que foi feito o
roubo dela, como ela foi tirada do meio do Louvre, no meio de
tantas pessoas. O homem passou por guardas, pela multidão e
ninguém se deu conta.

Tem livros publicados? Tenho oito livros publicados.


Até hoje, não tive nenhum empecilho para publicar meus livros
e tenho fé que vai seguir assim.

E depois, vai continuar escrevendo? Não só escrevendo,


viajando também. Não posso ficar num lugar só. Se tivesse um
temperamento mais tranqüilo, de ficar num só lugar, como
muitas pessoas fazem, produziria muito mais. Eu quero ir em
Korula, na Croácia, Índia e em outros lugares assim interessantes,
sabe?
Qual foi o lugar mais interessante que visitou? Fiz
o Caminho de Santiago de Compostela, em 1968, muito antes de
a televisão divulgar e haver tanta literatura. As contingências
da vida me impediram de ir antes. Foi uma experiência muito
interessante para mim. Quando eu dava aula de literatura,
já o conhecia através dos livros dentro de um fator histórico,
não místico. Foram 48 dias. Se Santiago passou por lá, é uma
dúvida. Não creio, mas você se sente bem no caminho. Ele tem
muita energia. Cada caminhante deixa uma energia. As pessoas,
lá, estão despidas de qualquer preconceito. Estão lá para gozar
do caminho em sua plenitude. Você se desliga de tudo, não tem
telefone, não tem campainha, banco para atender, impostos para
pagar. Vira outra pessoa. Quando você faz tudo isso, você entra
num tipo de Nirvana. Se não entrar, você vai morrer com bolha,
com calo, com queimada.

Que coisas mudaram com essa experiência? Mudança


muito grande em relação a tudo - a origem da vida, o que é a
vida, o significado da vida, a importância da vida, respeito pela
vida, uma compreensão enorme sobre o comum, o mundo, essa
energia cósmica, a falta e a interação das pessoas. Por que as
pessoas se sentem bem no Caminho de Santiago? Porque lá estão
em contato com a natureza. Daí, tudo mais vai embora. Veja,

74 | Mila Behrendt
fizemos uma caminhada há dois anos atrás, descemos a estrada
da Graciosa. Fomos até Morretes a pé. Metade do dia foi chuva, e
nós andando. Foi muito interessante, porque é só você entrar em
contato com a natureza e pronto. Lá, você começa a se acalmar,
a ficar centrada, você sente que tem uma percepção maior, que
você está se equilibrando.

Hoje em dia, os livros infantis concorrem com a


televisão na formação infantil. Que avaliação a senhora
faz sobre isso? A televisão dá informação na horizontal. O livro
na vertical. Considero a televisão um mal necessário.

Mal necessário? São como as parteiras do interior. Não


tem higiene nem técnica, só conhecimento prático. Melhor do
que nada. Numa turma com 40 crianças, se uma delas não tiver
televisão, esta fica defasada, fora do compasso. O problema não
é tanto da televisão, é das crianças assistirem o que querem,
quando querem. Isso tinha que ser normatizado e selecionado.
O progresso trouxe uma aceleração muito grande para os seres
humanos. Da Vinci se revelou como artista desde criança.
Ele tinha o professor que o estimulava, mas ficava o tempo
todo pintando. E não era acelerado por processo nenhum.
Tinha o tempo e a tranqüilidade. Imagina se tivesse celular e
computador? Ele não ia ter cabeça. É por isso que a arte, hoje
em dia, é rápida.

Como você vê as crianças de hoje daqui a 30 anos?


Isso é muito difícil de dizer. Não dá para generalizar. Vai
ter sempre exceções e tudo. A capacidade de produzir arte,
a capacidade intelectual para uma coisa ou outra, isso vai
permanecer. Mas toda essa parafernália tecnológica está tirando
a naturalidade da infância.

O que você acha dos best-sellers infanto-juvenis como


Harry Potter? Tenho um livro que é para entender o Harry
Potter, dá o significado de várias figuras míticas que aparecem.
Por exemplo, Cerberus. É o cão de três cabeças que fica de guarda
no inferno. A autora põe em determinado alçapão um cão de três
cabeças. Ela não fala que é o Cerberus, mas a criança fica tendo a
noção de um cão de três cabeças que está guardando a entrada de
algo descomunal. Tanto que eles vão tentar abrir aquele alçapão.
Joga muita mitologia, isso é interessante, muito bonito.

Curitibocas | 75
Você acha bom então? Acho. É uma fantasia extraordinária.
Ela nasceu no lugar certo, na hora certa. Teve uma riqueza muito
grande de mitologia, das lendas célticas na infância dela. É como
o Tolkien. Os livros dele são fantásticos.

Você gosta da mitologia? Se eu gosto? Sou apaixonada.

Esse anel de cobra tem algo a ver? Foi um presente do


meu marido. Significa a sabedoria. Não sei se você lê a Bíblia.

Alguns trechos. Já leu o Gênesis?

Algumas partes. Então você sabe da história de Adão e


Eva?

Sei. A cobra vê que o Adão e a Eva estão no paraíso, mas


eles não estão conscientes. Inclusive, a palavra “consciência”
vem de “com mais ciência”. Então, eles não têm consciência do
que está acontecendo, são duas pessoas alienadas. Eva era mais
ou menos ociosa, porque desde que foi criada parecia que não
tinha nenhuma tarefa propriamente para ela. E Deus era muito
mandão. Aí, apareceu a cobra e disse: “Você pode, sim, comer
daquela fruta, vai te fazer muito bem”. Tanto é que depois que ela
comeu que ela viu que estava nua. Por que antes ela não via? Ela
não tinha consciência de nada. Daí, ela vai mostrar para o Adão.
Na realidade, a Eva, a mulher, vai trazer para a humanidade a
luz, o fiat lux para a humanidade. A cobra fica como um símbolo
de sabedoria. Foi cultuada, durante muito tempo, como um
símbolo feminino.

Qual foi a sua formação? A minha formação, minha


índole, foi humanística. Desde criança isso. Acho que na minha
formação faltou muito conhecimento de matemática e ffísica, mas
não tive a oportunidade de estudar. Agora eu tenho interesse,
mas a aptidão não tenho. Sou formada em Letras.

Onde estudou? Me formei em Ponta Grossa, na UEPG. Fiz


especialização em contos maravilhosos na Alemanha. Nasci em
Irati, mas sou de família alemã.

Percebi pelo seu sotaque. No que te influenciou a


descendência alemã? Acho que, principalmente, na disciplina

76 | Mila Behrendt
para trabalhar com o corpo, na saúde. Continuo fazendo exercício
até hoje. E também na parte cultural. Sempre havia um costume
de manter determinadas tradições. Isso foi muito interessante
na minha formação intelectual.

Os alemães se caracterizam por serem autoritários.


Discordo. São bastante alegres e espontâneos depois de conhecer
a pessoa. Isso, talvez, dê a impressão, como os curitibanos, que
são fechados, austeros. Não é nada disso. São só reservados.

Como se relaciona com as pessoas daqui? Muito


bem. O mito das pessoas fechadas é clichê. Tenho uma vizinha
que é mineira, outra que é paulista. Para mim, se elas não me
contassem, diria que são daqui.

Chegou em Curitiba em que ano? 1982, eu acho. Nasci


em 1933. Vim trabalhar na Secretaria da Educação. Morava no
Jardim Social. Depois, trabalhei para a Fundação Cultural de
Curitiba e, por último, na Livraria Saraiva.

Como define Curitiba? Cidade muito boa, muito


acolhedora. Eu acho que eu devo muito à Curitiba. Aqui fui
compreendida, amada, homenageada. Andava muito desiludida
e eu vi o trabalho fantástico que foi feito naquela época pela
Secretaria de Educação. Curitiba foi a cidade que aceitou uma
bruxa.

O que há de bom em Curitiba? Tem muita coisa boa,


mas como eu falo sempre, em relação à educação, ainda falta
muita compreensão das pessoas, do que é realmente educação.
Não é só aquele dever do Estado de manter uma instituição, é
um conceito generalizado das pessoas. Tudo, tudo, o ponto, o
foco, a partida é a educação.

Existem artistas folclóricos da cidade? Hélio Leites,


Efigênia, Carlos Daitschaman, cada um na sua especialidade,
são muito bons. Acho que eles estão fazendo escola. Não vai ter
quem substitua. Nessa parte que eu acho que algo está falhando.
Deveria haver mais pessoas com esse espírito. Você chama
folclórico. Eu digo que são essas pessoas... sei lá, que não vivem
muito com o pé na terra.

Curitibocas | 77
Você se sente parte do povo curitibano? Sinto-me.
Tanto que sempre defendo quando atacam o curitibano. O
curitibano é empreendedor, batalhador. Penso isso do Brasil.
Quando viajo para o exterior, vejo o quanto a mulher brasileira
é batalhadora. Tem filho e vai para luta. Dá conta de casa, de
educação, de tudo.

Qual foi sua batalha mais difícil? Além dos momentos


de tristeza pelos quais passei, pela perda das pessoas que amava,
falando da vida em si, foi a minha luta para educar meus filhos e
ganhar a vida ao mesmo tempo. Uma luta muito difícil.

Quantos filhos você tem? Agora dois. Um eu perdi.

Seu marido? Morreu.

O que as pessoas acham de você? Não sei. Tenho muitas


amigas e amigos em Curitiba, gente excelente, mas eu tenho uma
característica que talvez seja natural de bruxa, vamos dizer. Às
vezes, uma pessoa me conhece e se anula, some, não quer saber
mais de conversar comigo, nem continuar a amizade, nem nada.
Ou então tenho pessoas que se tornam minhas amigas e sem
uma explicação lógica se afastam. Quer dizer, pelo menos eu
penso que não tem explicação lógica. Eu digo muito o que sinto
e, talvez, as pessoas não gostem. Mas a maioria dos meus amigos
e amigas tenho aqui em Curitiba. Na Europa, também tenho
amizade maravilhosa.

Como você se define? Ave Maria, isso eu acho difícil. A


maioria das pessoas não sabe quem é. Acho que não sei também
e nunca vou saber. Só sei que nasci com uma tendência para
querer reformular as coisas, querer ajudar as pessoas a abrirem
a mente. Não falo em intelecto, em conhecimento, mas falo em
percepção, em abertura de mente. Conheci uma criança que
pintava muito bem, ele tinha quinze anos. Ia fazer 16 agora.
Ele não tinha ainda formação, experiências, mas tinha a mente
aberta, uma percepção extraordinária das coisas. Sempre quis ter
uma máquina do tempo, mas eu nunca falei para este menino.
Um dia, ele me manda um desenho de uma máquina do tempo.
Tecnicamente essa máquina não tem lógica, é uma criatividade
enorme. Se funciona não interessa. “Hecho por Lucas G.B.S.”.
Ele morreu tragicamente ano passado.

78 | Mila Behrendt
Pode contar? Não. Eu o conheci em Valência. Ele estava
estudando e nas horas de folga, ia para o apartamento da minha
filha.

Aonde viajaria com sua máquina do tempo? Imagina


estar nas grutas dos homens de Cromagnon. Ou na época dos
homens de Neandertal, no neolítico. Gostaria também de
conhecer uma parte da China na época do Gengis Khan. Uma
viagem pela evolução da espécie.

Você é nostálgica? Acho que não. Procuro não ser. Acho


que nostalgia não leva a nada. Procuro viver o tempo presente.
Por exemplo, perdi meu cachorrinho. Nossa, era como um filho
para mim, mas o que eu posso fazer? Enquanto ele era vivo,
tudo o que eu pude fazer eu fiz. Então, depois eu tenho que me
concentrar. Às vezes, de noite, sinto falta do bercinho dele. Tudo
tem um começo, um meio e um fim.

Qual é o cúmulo da miséria? A pobreza espiritual.

Onde você gostaria de morar? Posso dar um nome,


mas pode ser qualquer lugar em que eu possa ficar
comungando com a natureza. Pode ser Korula.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Que


houvesse mais humanidade e menos sofrimento para
pessoas, para animais e para a natureza.

Para quais erros você tem maior tolerância? Tenho


muita paciência com pessoas simples e ignorantes, mas
isso não é erro. Tenho muita tolerância quando percebo
aquela pessoa que é ignorante e não admite outras idéias,
outras opiniões. Ela é ignorante e está convencida que é
dona da verdade.

Quais obras literárias você prefere? Sou


fundamentalista de livros. Gosto de obras de ficção, gosto
de obras literárias, de aventuras, posso gostar muito de
um “Código da Vinci”, de um “Irmãos Karmazov”. Não
tenho preferência propriamente. Tenho preferência por
autores.

Curitibocas | 79
Qual é seu personagem histórico favorito? Não
é Jesus Cristo com certeza. Nem histórico ele é - não
foi provado nada de Jesus Cristo. Um personagem
histórico favorito é o Gengis Khan, talvez por ele ser um
metrossexual. Personagens históricos geralmente fazem
parte da política e isso não me atrai.

Seu pintor favorito? Miró. Mas eu tenho uma porção


que me seduzem muito.

Seu músico favorito? Vivaldi.

A qualidade que prefere no homem? Gosto de


homens espontâneos. Que admitam ser metrossexuais ou
homossexuais tranqüilamente. Isso é maravilhoso.

A qualidade que prefere na mulher? A capacidade


de doação que elas têm, a ternura que elas têm. Não sei
se eu mesma tenho essa capacidade.

A virtude que prefere? Sinceridade.

Sua ocupação favorita? Ler.

Quem você gostaria ter sido? Madame ou Helena


Blavatsky.

O que você mais aprecia nos amigos? Carinho.

Seu pior defeito? Autoritária.

Seu sonho de felicidade? Viver em Korula.

Qual seria sua pior desgraça? Já aconteceu.

O que você gostaria de ser? Mais livre.

Sua cor favorita? Terracota.

A flor que mais gosta? Cosmos.

Qual pássaro preferido? Todos.

80 | Mila Behrendt
Seus autores favoritos em prosa? Dostoievski,
Flaubert, Vitor Hugo, Saramago.

Seus poetas favoritos? Fernando Pessoa, Vinicius de


Moraes, às vezes. Malapert.

Seus heróis na vida real? As mulheres brasileiras.

Seus nomes favoritos? Ludemila.

O que você detesta? Não tem.

O feito militar que mais admira? Nenhum.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? Estar


em toda parte.

Como gostaria de morrer? No apagão.

Seu lema? Prefiro morrer em pé que viver ajoelhada.

Curitibocas | 81
Sem raízes

Joba
Tridente

D
arcy pegou o mesmo ônibus em sentido contrário. Para
não correr risco, preferiu descer no mesmo ponto onde
tomara o coletivo. Fez o caminho até a rodoviária a pé.
Lá, a situação parecia uma repetição do dia anterior. Fila e
o mesmo atendente. Desta vez, a fila estava emperrada, pois a
impressora estava quebrada. E a linha de clientes aumentava. O
atendente manipulava o aparato de todas as formas. Mexia da
mesma forma que um primata faria. Alguns macacos usariam o
aparelho para abrir uma fruta. O atendente nem isso conseguia.
Clamava em seu rádio por ajuda.
– Atendimento e relacionamento com clientes para
manutenção de inventário, câmbio. Atendimento e relacionamento
com clientes... Só um minutinho, minha senhora, que vamos estar
fazendo a impressão de sua passagem.

Curitibocas | 83
O dia da Citram foi salvo por um funcionário de macacão
azul engraxado até a barba. Abriu uma gaveta, trocou a bobina
e o problema estava resolvido. Vinte minutos depois, chegou a
vez de Darcy:
– Sua mala, provavelmente, está no setor de achados e
perdidos da rodoviária que você estava indo. Você pode me
passar o canhoto da passagem para que eu possa estar efetuando
o rastreamento?
O canhoto estava dentro da bagagem de mão.
– Então, o que podemos estar fazendo é você comprar outra
passagem até lá e clamar por seus pertences.
Darcy explicou que não tinha dinheiro. Perguntou se o
atendente daria uma passagem com o trecho que faltava.
– Você tem o canhoto? – Darcy repetiu a resposta que recém
havia dado. Então, ficaria impossibilitado. Pode ser que ocorra
reembolso na rodoviária que você vai estar indo.
Darcy explicou que não tinha dinheiro.
- E o canhoto?
Era inútil. O rapaz parecia um robô. Darcy saiu dali a passos
rápidos. Queria chorar. Desde criança, não gostava de chorar
em público. A rua dava pauta para pensar em outros temas.
Mas, volta e meia, suprimia um soluço ou um suspiro triste, que
desatariam em lágrimas caso desse vazão aos sentimentos.
Quando quase se rendeu na batalha interna que levava quase
uma hora, encontrou o lugar perfeito para abrir as comportas
de suas emoções: uma sala de cinema. O espaço ainda tinha um
ar antigo e artístico - sempre convidativo para a nostalgia e a
tristeza. Nem prestou atenção na exposição da ante-sala, com
projetores e cartazes clássicos do cinema paranaense. Quis entrar
logo na escuridão atrás da cortina.
Havia seis espectadores para o filme que iniciaria em oito
minutos. Dois deles, casais. Darcy sentou no fundo e, o mais
disfarçadamente possível, chorou.
Quando se satisfez, o filme estava na metade. A ação da
película era lenta, cheia de papo e com algumas cenas de
nudez desnecessárias. Típico filme “artístico”, como dizem os
intelectuais.
Apenas um outro solitário não desviava a atenção da tela. Era
um careca com óculos. Na saída, Darcy não resistiu, havia algo
instigante no olhar por trás das lentes daquele sujeito. Chutou.

84 | Joba Tridente
Você é escritor? Escrevo em prosa, verso, mas não me
chama de poeta que eu odeio.

Por quê? Porque eu acho que as pessoas falam “fulano é


escritor E poeta”. É pejorativo, sabe? O que o poeta faz?

Poesia. Além disso.

Escreve. Então. Há uma diferença quando alguém se


refere a um escritor de prosa e a um escritor de versos. Como se
o escritor de versos não fosse um escritor. Dizem, com a boca
cheia, “FULANO É ESCRITOR!” e, com menosprezo, “beltrano
é poeta”. Por isso eu digo que sou escritor de prosa e verso. Já
escrevi roteiros para cinema, música, reportagem, poesia. Mas
por que a pergunta?

Mais tarde, Darcy descobriria que se tivesse perguntado se


Joba filma, desenha, diagrama, canta ou ensina, teria recebido
resposta positiva. Darcy explicou sobre sua pesquisa acadêmica,
“Os escritores no cinema”. O sujeito se apresentou como Joba
Tridente. “Quando você puder registrar, venha à minha casa”.
Darcy não entendeu. Joba se referia ao papel e caneta para as
anotações da pesquisa.
Logo depois do encontro, tomaram rumos opostos pela
rua Carlos Cavalcanti. Na primeira livraria que avistou, Darcy
comprou um bloco de notas e caneta. Tinha agora pouco mais
de R$ 10 na carteira. Viu, pelo reflexo da vitrine, que os olhos
estavam vermelhos pela choradeira. Não importava.
Em sua memória, revisava o que foi dito na conversa com
Joba. Assim que tivesse papel e caneta, poderia visitá-lo. Resolveu
ir imediatamente.
Joba abriu a porta e pareceu não se surpreender com a
rapidez da resposta de um convite normalmente feito por pura
educação. Pediu que Darcy tirasse os sapatos.
Nas paredes da sala, quadros chocantes. Símbolos religiosos
são pervertidos e reinterpretados no pincel do autor. O divino
e o demoníaco deixavam de ter uma divisão clara. Darcy não
colocaria um quadro desses na sua sala.

Os quadros são de sua autoria? Sim. Esse trabalho


foi exposto em Brasília, para maiores de 18 anos, graças a uma
censura ridícula que puseram. Aqui não teve problemas. O

Curitibocas | 85
pessoal ficou meio chocado, mas tudo bem. Todo mundo pensa
isso, mas ninguém tem coragem de dizer.

Não acha que são obras chocantes? Cara, é uma catarse


minha sobre religião, política e o mundo em geral. Trabalho com
esses temas sacros e profanos. O que é sagrado para mim pode
ser profano para você e vice-versa. A pessoa pode achar meus
trabalhos interessantes, mas dificilmente bota na parede. É uma
coisa que incomoda.

A arte deve ser bela ou impactar? Acho que arte você


gosta ou não gosta. Odeio aqueles monitores que ficam tentando
convencer que uma obra é boa. Não adianta forçar. Se eu vir uma
exposição e não conseguir ler o quadro, não preciso daquelas
explicações de metafísica, de metabobagem, para que eu entenda
o que o autor quis dizer. “Olha, está vendo essa bolinha aqui?
Com ela eu quis dizer que o universo é não sei o quê”. O melhor
termômetro para uma obra de arte são as crianças. Se elas
disserem que é feio, é feio mesmo. Aí, ficam aqueles monitores
querendo fazer a cabeça das crianças. O Millôr Fernandes uma
vez pintou um quadro de branco, de sacanagem, e botou. As
pessoas diziam que era uma maravilha. Ele ria.

O público entende seus quadros? Os meus quadros as


pessoas entendem sem precisar do título. Os mestres japoneses
da abstração colocam um haicai de título que complementa a
obra. Hoje em dia, nas escolas de arte, as pessoas não querem
perder tempo aprendendo a desenhar. Os grandes gênios da
pintura que trabalharam com abstracionismo construíram
primeiro, para desconstruir depois. Os salões de artes plásticas
são iguais - tanto faz se é daqui, do Rio de Janeiro, São Paulo,
da Conxinchina. Fazem qualquer risco e as pessoas acham lindo.
Sempre um misto de expressionismo, impressionismo, qualquer
bobagem contemporânea. Aquelas coisas sujas que querem dizer
absolutamente nada e que todos acham genial.

Pergunta clichê: o que é arte? Para mim, um carrinho


com lixo no meio de uma exposição vai continuar sendo um
carrinho de lixo. Para mim não é arte. Pode ser a manifestação
de um artista. Arte é aquilo que faz bem ao espírito, mesmo
que seja uma coisa prática. Veja Goya, as coisas brabas que ele
trabalhava. Te toca de uma forma diferente, te emociona. É

86 | Joba Tridente
trágico, mas tem alguma coisa que você não sabe dizer o que é.
Arte é totalmente individual.

Arte dá dinheiro? É difícil. Eu só vivo do que produzo.


Acho que sou o único artista que vive de arte. Tenho que
economizar e viver com o mínimo possível imaginável. Se você
quiser viver de arte, tem que imaginar isso. Se der a sorte de
encontrar as pessoas certas, no lugar certo, e você começar a
ganhar dinheiro, aproveite. Pode até ser que eu estoure, mas
já não faz parte da minha meta de vida. Não conseguiria ser
Paulo Coelho, não consigo escrever o que o povo gosta. Minha
linguagem é mais rebuscada.

Quando descobriu que queria ser artista? Resolvi


viver da minha arte quando fui para Brasília. Participei de
exposições, participei do Levante do Centro-Oeste, um dos mais
importantes movimentos de artes plásticas da região. Antes, eu
estava em São Paulo, trabalhando em escritório, em coisas que
não tinham nada a ver. Sou paulista de nascimento.

Você se sente paulista? Sou um cidadão do mundo. Se


pudesse, moraria um ano em cada lugar. Não gosto de ter raízes.
Gosto de estar livre para ir a qualquer lugar na hora em que
aparecer uma oportunidade.

Há quanto tempo está em Curitiba? 17 anos. Eu vim


em 1990. Era para eu ter saído. Fiquei 15 anos em Brasília. Daí
eu fui ficando, aparecendo um trabalho ou outro. Não quer dizer
que eu vou estar aqui para sempre. Uma hora eu vendo tudo e
vou-me embora.

Para onde gostaria de ir? Torres, no comecinho do Rio


Grande do Sul. Só vi em foto, dizem que é lindíssimo. Pode ser
que eu vá, pode ser que não.

O que acha de Curitiba? É pura fama. Inventaram um


marketing que é primeiro mundo. Uma cidade de interior,
normal, que as pessoas querem acreditar que aqui é Londres,
Europa. Nunca foi e jamais será. “Chove o ano inteiro”. Que
nada. Chove uns dias só. Nem faz tanto frio. Se você vê a história
de Curitiba, vê os imigrantes pés-rapados que vieram para cá.
Refugiados, refugo do refugo da Europa. Vieram enganadas pelo

Curitibocas | 87
governo. Isso foi formando Curitiba. É tudo aparência. Depois
veio o [Jaime] Lerner e encheu de gente para cá. É uma grande
farsa. Tem grandes artistas aqui, mas as pessoas demoram para
acontecer. Que grande nome tem aqui além do Dalton Trevisan?
Paulo Leminski, mas não tem a mesma dimensão. O problema
dos artistas locais é que pensam regionalmente. O mundo é para
fora. Exponha-se, expanda-se.

Gostaria de ter nascido em um lugar realmente de


primeiro mundo? Não sei. Tenho um pé atrás com as coisas,
o que esse povo europeu fez com os outros povos. Não considero
que os portugueses descobriram o Brasil, eles invadiram. Assim
foi em toda América Latina. Acabaram com os povos e impuseram
sua própria cultura. Achavam que os índios não eram gente. Eu
não sei como é lá, é outra cultura.

Como foi a época em que você trabalhava em


escritórios? O melhor foi no departamento de arte da Abril
Cultural, meu sonho de criança. Dizia que quando crescesse ia
trabalhar com quadrinhos. Eu estudava na Escola Panamericana
de Artes. Queria desenhar, criar, inventar, mas não sabia
exatamente o quê.

E conseguiu? Não, porque eu fazia preparação e montagem


de texto para os fascículos. Ainda não tinha vaga na arte. Antes
de abrir uma, fui embora.

O que fez depois? Quando estava trabalhando, um amigo


me falou que estava surgindo uma comunidade em Brasília.
Não conhecia ninguém. Entrei em férias da Abril e fiquei 15
anos em Brasília. Quando eu cheguei em Brasília e fui morar na
comunidade - que naquela época estava na moda -, me dei conta
de que eu era livre sem saber. Nunca tive problema, nenhuma
pressão.

Que comunidade era? A Ordem do Universo. Tinha um


restaurante macrobiótico e tal. Acho que nem existe mais isso.
Daí comecei a fazer exposições. O pessoal começou a me chamar,
a fazer matéria comigo. Fiquei na comunidade por um ano.

E os outros 14 anos? O Correio Braziliense me convidou


e comecei a escrever. Vivia sendo demitido do jornal. O editor

88 | Joba Tridente
falava “Se você não é comunista, não é socialista, que diabo você
é?”. Era apenas eu. Não sou de direita, de esquerda, de centro,
nada. Sempre fui muito pesado no texto. Na época, eu lia muito
Spinoza. Também gostava de Schopenhauer.

O que você acha de Brasília? Quando a “Isto É” estava


sendo lançada, eu fiz uma matéria para eles. O tema era as
religiões de Brasília. A religião que você imaginar tem. Tem até
uma que adora o Juscelino Kubitschek, achando que ele é uma
reencarnação do Tutankhamon. Eu tinha entrevistado ufólogos,
pessoal do budismo, todos achando que Brasília era a salvação
do país, que o mundo vai desaparecer e Brasília vai ficar de
pé. Cheguei a publicar o que eu penso de Brasília no Correio
Braziliense: “uma cidade / fria, feia, falsa, / suja, podre, mentirosa
/ que eu vou ver cair / sentado numa cadeira de balanço / e
morrendo de rir”.

E a reação dos brasilienses com esse manifesto? Não


existe brasiliense. Não existe nada lá, a cidade não existe. Hoje é
um monstro. Não tem indústria, não tem emprego, nada. Você
não sabe do que aquela gente vive, tem invasão para tudo quanto
é lado. Era para ser uma cidade burocrática, administrativa. Não
é para ser o que é.

Por que se mudou para a Bahia? Saiu um livro do


Fernando Morais chamado “A Ilha”. Resolvi fazer uma resenha
no Correio. Li o livro, achei que era bom, muito interessante.
Pintava Cuba como se fosse o paraíso. Hoje, eu não concordo
com absolutamente nada daquilo que escrevi. Cuba era e é uma
ditadura, o inferno. Então, fiz uma matéria que saiu no Caderno
B, com uma página inteira dizendo: “A Cuba de Fidel Castro ao
alcance de todos”. Foi um caos, recebia ligações o tempo todo.
Ou eu ia para Cuba ou desaparecia. Fui a Ilhéus trabalhar com
cooperativismo. Fiquei dois anos. Depois voltei e continuei
colaborando no Correio.

Como foram esses anos na Bahia? Eu morei na beira


da praia. Fazia história em quadrinhos, escrevia, editava e fazia a
edição gráfica do jornal “CooperCacau”. Honestamente, acredito
que o cooperativismo seja a solução para os problemas do mundo.
Mas não do jeito que ele é feito. Tem sempre alguém querendo
se aproveitar.

Curitibocas | 89
90 | Joba Tridente
Por que saiu de lá? Uma das coisas foi uma matéria. Eu
tinha feito uma entrevista com um cooperado falando o ponto
de vista dele sobre o cooperativismo. Não lembro quantos mil
exemplares foram impressos. Não deixaram sair nenhum. Fiquei
muito puto com isso. Quando eu fui para o Ministério da Cultura,
aconteceu a mesma coisa. Aí o tema era Direito Autoral. Quando
começam a acontecer esses negócios, penso em ir para outro
canto. Você é livre para dizer o que quiser. Talvez eu discorde
do que você falou, mas publico porque acredito no seu direito de
dizer. Naquele tempo, a gente era mais livre...

Mais livre na época da ditadura? Ah, sim. Você dizia as


coisas de uma forma metafórica, era muito mais criativo, mais
interessante. Naquela época, a gente aprendia a escrever nas
entrelinhas. Os repórteres de hoje não sabem fazer um lide, não
sabem desenvolver uma matéria. Eu vejo os telejornais e fico
irritado. Percebo quando é matéria paga ou não. Tem gente que
não tem a menor idéia.

Por que trocou Brasília por Curitiba? Trabalhava


no Conselho Nacional do Direito Autoral do MinC. Aí o Collor
entrou, acabou com tudo. Estava de saco cheio de estar em
Brasília, resolvi vir para cá. Quase fui embora para o Pantanal –
na época estava na moda aquela novela –, mas resolvi vir para
Curitiba. Já tinha conhecido um artista plástico, o Rogério Dias,
que me disse para vir no “Nicolau”.

O que foi o “Nicolau”? O “Nicolau” foi considerado o


melhor jornal cultural do país, era distribuído para o mundo
inteiro, chegava até na China e prisões de Israel. Era fantástico
graficamente. Nasceu em 87, criado pela Secretaria de Cultura
do Paraná. Aí, me convidaram para fazer um número e acabei
fazendo por cinco anos.

Por que fantástico graficamente? Muita gente


perguntava como a gente fazia. Tinha vez que queimávamos
papéis para conseguir os efeitos gráficos. Ficava inventando
coisa o tempo inteiro. Esse jornal tinha toda a cultura do mundo,
mas não era regional. A gente tinha os colaboradores mais
importantes, intelectualidade do Brasil e do mundo.

Curitibocas | 91
Ficou refém do poder? Não. O Wilson Bueno tinha toda
a liberdade para fazer o jornal, mas o Lerner entrou e um pessoal
da Academia Paranaense de Letras acabou com o jornal. Queriam
que refletisse só Curitiba. “Ah, mas tem espaço branco demais”,
eles diziam. Acredita?

Tem saudades dessa época? Era legal, mas era cansativo.


Praticamente pagávamos para fazer o jornal. Ganhava pouco e
trabalhava muito. Mas um número ficava melhor que o outro.
Todo mundo elogiando, ganhando prêmios.

Não tem vontade de reunir esses autores de novo?


É complicado, sabe. Importante é isso, quando você fala do
“Nicolau” todo mundo tem saudades, acabou no auge.

Depois do “Nicolau”, para onde foi? Aí o SESC da


Esquina me convidou para fazer uma oficina de literatura.
Criei uma chamada: “Hai-Kai Sem Compromisso”. A Fundação
Cultural de Curitiba me pediu uma outra que ensinasse a fazer
um jornal. Foi chamada “Assim Nasce um Jornal”. Gosto de
ensinar você a pensar a questão gráfica - os espaços, as fontes.
Hoje em dia, fico indignado, as pessoas se definem como
designers. Qualquer idiota é designer. O cara é manicure, mas
diz ser designer de mão. Sou artista gráfico, trabalho na área de
comunicação visual. Ensino esse tipo de coisa que as escolas não
ensinam mais, porque hoje já tem o programa pronto.

Teve alguma formação para essas noções? Depois


que você vai fazendo, vai aprendendo como as coisas funcionam.
Na minha época, não existia faculdade para a área gráfica. Hoje
em dia, as pessoas resolveram ensinar e ficam reinventando a
roda.

No Paraná, há alguma publicação interessante em


termos gráficos? Cara, eu não tenho visto muito. Tem uma
revista que sai pela Travessa [dos Editores], a “Et Cetera”, que é
boa, mas eu acho que ela é em cima do “Nicolau”, graficamente.
Agora, de novidade, original gráfico, nem no Brasil há algo
novo.

Hoje em dia quais oficinas está fazendo? Agora eu


estou com a “Edite seu Próprio Livro”. Também ensino a fazer e

92 | Joba Tridente
a contar histórias com bonecos. Comecei na época do Comboio
Cultural.

O que foi o Comboio Cultural? Comboio Cultural


foi organizado pela Secretaria de Cultura do Estado em 2001
e 2002. Eram vários ônibus com oficinas de teatro, música,
bonecos, literatura, orquestra e danças que viajavam o estado
inteiro. Eu trabalhava com literatura e interatividade plástica.
A poesia aleatória é um trabalho que você pensa a palavra antes
de pensar o poema. Então, faz um caça-palavras e depois você
as monta. Vira um jogo. Os professores podem trabalhar com as
crianças também. Pode resultar em um livro, se a cada dia você
fizer um poema.

Quando propõe esse método aleatório aos


professores, qual é a reação deles? Os professores são
meio bitolados - principalmente no interior, não têm informação,
nem formação suficiente. Preferem pegar um boneco, colocar em
cima do papel e copiar. Tem muito professor que é obrigado a ir
na oficina porque a Secretaria da Educação pede. Eles seguem
aquela metodologia, aquele currículo da escola e não saem disso,
mesmo que você possibilite uma nova didática. Meu trabalho é
dinâmico, mas vai dar um pouco de trabalho. É bom vir na oficina
para tentar apreender alguma coisa, não vir com o intuito de
aprender para aplicar.

Tem alguma fonte alternativa de dinheiro? Eu edito


meus próprios livros, já tenho vários. Você é o seu próprio editor,
você cobra o que você quiser. O primeiro saiu pela “Civilização
Brasileira”, ainda na época em que eu trabalhava em Brasília,
e se chama “A Ebulição da Escrivatura”. Depois, fiz um que
esgotou, “Fragmentos da História Antropofágica Estapafúrdia
de um Índio Polaco da Tribo dos Stankienambás”, que é uma
brincadeira em cima de biografia. Todo mundo adora escrever
biografias de gente famosa e tal, mas eu peguei uma pessoa
comum – um amigo meu que trabalha na Cinemateca, o Marcos
Stankievicz Saboia. Em 2000, a gente estava conversando, era
época dos 500 anos da invasão do Brasil, aí ele falou: “Ah, sabia
que eu sou descendente de índio?”. Ele é polaco. Explicou que
o avô era sei lá o quê, que casou com sei lá quem. Me propus a
fazer uma brincadeira de três ou quatro laudas. Virou um livro.
Esgotaram as 300 edições no lançamento. É um livro que você

Curitibocas | 93
pode ler de duas formas: o que está na página par é uma coisa,
o que está na impar é outra. É perfeito para ler na cama, porque
você não precisa ficar indo de um lado para o outro. Cada página
par é referência da página ímpar. Só que se você estiver em uma
e procurar na outra, você não consegue voltar, porque você vai
começar a ler e vai formar outra história. Tem coisas que nem
o Marcos sabe se são verdade ou mentira. Tem gente que leu o
livro e foi pesquisar em busca de mais referências. Eu falo de tal
forma que você acredita que é verdade. Só eu sei o que é ficção e
o que não é. O livro tem um lance que ninguém descobriu ainda.
Não posso contar, alguém tem que descobrir o mistério do livro.
O Marcos virou um personagem meu, eu já lancei vários livrinhos
pequenos sobre ele.

Com o sucesso da biografia, não tem vontade de


publicar com alguma editora? Não. Eu mandei só uma vez
para as editoras. Agora, para você chegar em uma editora você
tem que ter QI [Quem Indica]. Perdi todo o tesão de querer sair
por uma editora. Se acontecer tudo bem, mas eu vou tentar bancar
eu mesmo. No começo, ninguém queria publicar o Paulo Coelho.
Ele fez aquela história do caminho de Santiago de maneira
independente. Hoje está todo mundo correndo atrás dele. As
editoras querem aquela coisa certa, que venda. Outro lance com
editora é que eles se acham donos do teu livro. Eu, por exemplo,
sou artista gráfico e imagino como serão as ilustrações do livro.
Aí, eles pegam um cara que não tem nada a ver. Ilustrei um livro
de um autor que ficou decepcionado porque as ilustrações não
tinham cor. O livro era um prêmio da Secretaria da Cultura, que
ele tinha ganhado, e ficou chateado. Depois, reeditaram em São
Paulo com outro ilustrador e ilustrações coloridas.

Se você fosse para uma ilha deserta, qual livro


levaria? É complicado. Tem três livros que eu acho fundamentais:
“As Viagens de Gulliver”, que tem gente que acha que é para
criança. Tem nada a ver, é um livro altamente político, satírico.
Eu acho que é a formação do pensamento do Estado Político.
O segundo é “A Criação”, do Gore Vidal, com a formação do
pensamento religioso. E o terceiro... Eu não consigo lembrar.

Você mencionou em nossa primeira conversa


roteiros para cinema. Sempre tive vontade de fazer cinema.
Desde que eu me conheço por gente, eu vou ao cinema. Nos anos

94 | Joba Tridente
90, eu tinha uma câmera de vídeo e aprendi a filmar sozinho. Fiz
um documentário sobre o “Nicolau”. Levou um ano. Agora estou
dirigindo e assinei um roteiro com o Marcos Saboia. É baseado
em dois contos meus. Um é “Cortejo”, um microconto de três
parágrafos de uma mulher solitária que está passando pela rua e
vê um cara em um bar, rodeado de flores, e acha aquilo engraçado,
interessante. O cara percebe e vai atrás dela, dá um arranjo de
flores e começam a se envolver. Acabam fazendo sexo em cima
de um monte de flores – voa flor para tudo quanto é lado. Aí, ela
vai descobrir quem é o cara, e não vai ficar satisfeita. Não posso
falar o final porque todo mundo vai descobrir junto. E o outro se
chama “Palhaçada”, conta a história de um casal de palhaços –
são dois atores de um espetáculo de rua. As pessoas vão descobrir
no decorrer do filme que as gags são uma coisa violenta, dão
tapa. O povo começa a rir como se fosse coisa de palhaço, mas
na verdade estão lavando a roupa suja no espetáculo e partem
para a porrada. São duas histórias curtas que irão se entrelaçar
em um ponto, apesar de se passarem em tempos diferentes. Vai
ser no máximo 15 minutos.

O dinheiro para este filme, de onde saiu? Da Lei de


Incentivo. Recolhemos o dinheiro e estamos fazendo o filme. Na
verdade, você perde muita grana. Não vamos receber nada.

Que tipo de filme você gosta? Eu gosto de animação,


de ficção científica, cinema de arte e romance, se for bem feito.
Adoro documentário, quero fazer um sobre um trabalho que eu
fiz e que foi publicado na “Gazeta [do Povo]”, em 2000. Eram
seis artigos sobre as cidades minguantes. Lembro que começava
assim: “Quando você vai ao interior, você tem que descer do
pedestal”. Muita gente vai para lá como se fossem Deuses, mas
sabem nada. Vão mais para aprender do que para ensinar.
Suas influências aparecem em seus filmes? É difícil.
Tem um monte de gente que eu gosto, mas não estou usando
no meu filme. Quem sabe, depois do filme feito, as pessoas
consigam dizer com o que é parecido. Não vamos fazer nenhuma
homenagem, que é falta de criatividade disfarçada de solenidade.
Se vejo um filme, eu sei se é dirigido por homem ou mulher. É
o tratamento na direção, de como ele coloca o papel da mulher
e do homem. Você sente o diálogo, o ritmo do filme. Da mesma
forma, um cara acadêmico jamais vai ser primitivista, da mesma

Curitibocas | 95
forma que o primitivo não vai ser acadêmico. Se ele entrar na
escola, ele vai morrer. É diferente.

Depois deste filme, qual é o próximo desafio? Eu


gostaria de tentar fazer uma banda, retomar umas canções.

Retomar? Você é músico? Parei há uns dez anos. Fiz


um show em um festival em São Paulo. Quando cantei tinham
muitos músicos sendo presos. Minhas músicas também eram
meio pesadas.

Pesadas como? Eu falava das situações. Mas é aquela coisa,


era o que eu imaginava, o que para você poderia ser um crime.
A música era concreta antes do concretismo musical. Quando
apareceu o Walter Franco com aquelas coisas “Cabeça sabe que
ela pode explodir ou não”. Era meio incômodo. Até tenho essa
fita em algum lugar.

Em São Paulo você tocou sozinho? Sozinho. Quer


dizer, tinham uns músicos que me acompanhavam, mas não
éramos uma banda. A gente juntava para participar do festival.
A recepção foi fantástica.

Chegou a gravar um disco? Não. Tinha uma menina


que gravou, em Brasília, as minhas músicas. Chegou até a tocar
na rádio da época. Cheguei a escrever uma peça em Brasília, só
com músicas minhas. Até eu quero reescrever essa peça para
os dias de hoje. Na época, a gente conseguiu que fosse liberada.
Tentei montar mas não consegui e depois deixei meio de lado.
Eu sou assim, gosto de saber fazer. Se eu quiser escrever, eu sei,
se precisar tocar um instrumento, eu sei.

Que instrumento toca? Na época, eu tocava violão. Só


que ele não era um violão normal. Tinha cordas de nylon, aço e
guitarra. Saía um som totalmente diferente.

Vi você sozinho no cinema. Você é solitário? Talvez,


não sei. Eu estou sempre fazendo muita coisa. Se tem gente que
quer ir comigo no cinema, vai. Senão, vou sozinho. Não deixo
de fazer alguma coisa por falta de companhia. Já me acostumei
com essa idéia. De repente, você se dá conta de que as pessoas
não estão entendendo aquilo que você está falando. Não vejo

96 | Joba Tridente
muita televisão, não vejo esses programas de axé, baixaria. Então,
a gente fica sem assunto. Querer uma companhia só para me
acompanhar sem ter assunto? Eu também viajo o tempo todo.
Não sei se dá tempo de cultuar uma amizade.

Tem alguém que te conhece o suficiente, como para


escrever tua biografia? Talvez. Não sei se alguém se daria
ao trabalho. O que restaria de mim? Acho que hoje em dia é
tudo efêmero, rápido. Se você não faz sucesso, as pessoas não
te conhecem.

Tem amigos? Alguns. Nunca fui de ter milhões de


amigos.

Sentiu que teus amigos ficaram para trás? Eu acho


que sim. Na época em que eu trabalhava na Abril Cultural até
tinha algumas pessoas, mas era meio radical, brabo, cabeludo,
barbudo. Como eu me mudei para Brasília, as pessoas foram
ficando. Conheci outras pessoas lá, que adoravam o que eu
escrevia. Na época em que eu publicava os artigos no “Correio”,
as pessoas achavam que eu tinha que criar uma religião e sair
pregando essas coisas por aí. Isso me deixou apavorado. Comecei
a compreender o perigo da palavra - perigosíssima - se você não
souber como usá-la. Tem muita gente influenciável. Tinha um
trabalho plástico que eu fazia chamado “Quadro-Prático-Plástico-
Astro-Numerológico”, em que eu fazia um estudo cabalístico em
cima do nome e transformava em um quadro. Então, tinham
muitas coincidências que saíam ali, mas as pessoas levavam
muito a sério. Quando a coisa começa a ficar perigosa para os
outros, eu paro de fazer.

Não criou uma religião, mas acredita em alguma?


Sou espirituoso e espiritualista. Acredito no que quero
acreditar. Meu Deus não é esse que as pessoas acreditam, essa
coisa sadomasoquista. Acredito em uma força. É uma coisa de
equilíbrio do negativo e do positivo, o que não significa que um
seja bom e o outro ruim, são forças que se completam. Posso
acender vela para quem eu quiser. Na real, o que fez minha cabeça
foi mitologia grega. Fui, até uma certa idade, católico apostólico
romano. Aí, quando comecei a questionar, ninguém me dava
respostas. Comecei a estudar a mitologia grega e lá encontrei
resposta para tudo. Claro que é o simbolismo. Eu só uso anel de

Curitibocas | 97
cobra. Se você estuda a mitologia de qualquer povo, a cobra tem
o mesmo significado. É um elemento que significa sabedoria,
conhecimento, verdade, poder e amor – um pentagrama. É o
único elemento que serve de ligação entre o homem e o cosmos.
Se você vir na mitologia judaico cristã, na lenda em que Deus teria
dito que a cobra seria pisada pelo calcanhar de uma mulher, se
você vir aqueles santinhos que mostram uma senhora pisando
em uma cobra, tem a Terra, a cobra e a santa – a cobra é o que
liga o homem ao cosmos.

Despertou a consciência de Adão e Eva. Ela oferece o


conhecimento. Você não vai ficar mais sob o jugo de ninguém. É
o que qualquer Igreja quer, que você se mantenha na ignorância
para usar você de todas as formas possíveis e imaginárias. A
“cobra” chega e te liberta – isso ela faz em todas as mitologias,
principalmente no budismo, em que a cobra é mentora do próprio
Buda. No meu altar tem tudo. Tem Buda, tem cobra. Rezo para
quem está em cima, embaixo e do lado. A mitologia judaico-cristã
é calcada na mitologia grega. Essa figura mística de Cristo é a
mesma de Castor e Pólux.

Esse negócio de tirar os sapatos para entrar é parte


de alguma religião? Isso eu aprendi na época da comunidade.
É uma coisa que veio dos orientais. Quando você caminha pela
rua, a terra é um ímã, ela vai puxando energia das pessoas. Com
o sapato você carrega toda essa energia para dentro da tua casa.
Em Brasília, eu era mais radical. Vivia nu dentro de casa. Só
botava roupa quando alguém aparecia. A gente vive em uma
sociedade muito hipócrita. No carnaval pode tudo, as pessoas
podem até andar nuas, fora disso não. Na praia você fica de
cueca e tudo bem.

E a tua família? Te deu apoio na arte? Não, sou de


uma família muito humilde, de dez filhos. Todo mundo tinha
que sair, batalhar. E eu sempre fui meio estranho, sempre tive
umas idéias diferentes, sempre fugi à regra. Não era aquela
coisa convencional. Dos nove irmãos, só eu fui para esse lado
e nunca tive incentivo. Quando eu falei para minha mãe que
estava indo para Brasília, ela falou tudo bem. Recentemente,
uma irmã morreu e eu escrevi um livro, “Éramos Doze”. Eu sou
o nono. O resto está tudo vivo. Já sou tio-avô, já tenho sobrinhos
casados.

98 | Joba Tridente
Quais foram suas influências na infância? Minha
única referência é um tio que era ator. Lia tudo que tinha em casa.
“As Fábulas de La Fontaine”, um livro com gravuras maravilhosas
de Doré. Eu devorava aquilo. Lia Dante sem saber quem era
Dante. Gostava das ilustrações, aquelas coisas de céu e inferno,
achava um deslumbre. Os pais não deixavam ler gibi porque era
pecado, atrasava na escola. Mesmo assim, eu lia. Já desenhava
no meu caderno de história, do colégio, uns indiozinhos. [Pega
uma foto da família e mostra].

Família Batella. Mas espera aí, teu nome não é


Joba Tridente? Joba Tridente é o meu nome. Meu nome de
família é outro, é José Batella.

Não gosta desse nome? Aí tem a ver com as minhas


transações. O nome que as pessoas lhe dão nem sempre é o nome
que você tem. Um pouco antes de ir para Brasília, na época em
que eu comecei meus estudos esotéricos, eu descobri isso. Nem
minha família me chama de José Batella. Só uso o nome para
assuntos burocráticos. Faz mais de 30 anos que sou Joba. O
nome foi ficando forte, o pessoal achou diferente. Não adianta
me perguntar que eu não vou te falar o porquê do meu nome.

Qual é o cúmulo da miséria? Passar fome.

Onde você gostaria morar? Onde eu me sinta bem.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Ir para


o espaço.

Para quais erros você tem maior tolerância?


Nenhum.

Quais obras literárias você prefere? Adoro


mitologia, adoro romance, regionalismo, conto, contos
de fada, biografias, história. Gosto de tudo. Difícil dizer.
Grande Sertão: Veredas, A criação, Alice no País das
Maravilhas, As Aventuras de Gulliver.

Qual é seu personagem histórico favorito?


Tiradentes.

Curitibocas | 99
Seu pintor favorito? Bosch.

Seu músico favorito? Beethoven.

A qualidade que prefere no homem? Sinceridade.

A qualidade que prefere na mulher? Também.

A virtude que prefere? Não sei.

Sua ocupação favorita? Arte, em todas as formas


possíveis e imagináveis.

Quem você gostaria ter sido? Eu mesmo.

O que você mais aprecia nos amigos? Amizade.

Seu pior defeito? Ser muito chato.

Seu sonho de felicidade? Encarnar na Enterprise do


Capitão Kirk.

Qual seria sua pior desgraça? Ser obrigado a cantar


ou dançar música axé.

O que você gostaria de ser? Eu mesmo.

Sua cor favorita? Azul.

A flor que mais gosta? Margarida.

Qual pássaro preferido? É um pássaro que eu nunca


vi, o Trinca-ferro. O canto dele é uma peça clássica.
Primeira vez, achei que fosse um reloginho do Paraguai,
aí me disseram que era um pássaro.

Seus autores favoritos em prosa? Guimarães Rosa,


Gore Vidal, Herman Hesse, Ítalo Calvino, Jorge Mautner,
Peregrino Júnior.

Seus poetas favoritos? Guerra Junqueiro.

100 | Joba Tridente


Seus heróis na vida real? Existe?

Seus nomes favoritos? Joba Tridente.

O que você detesta? Ser tão exigente comigo mesmo


e com os outros.

O feito militar que mais admira? Nenhum.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? O troco


da natureza. Reflorestar a Terra e revidar cada machadada
numa árvore em quem a maltrata. Quebrar os dedos de
quem quebra galhos de árvores. Fazer aparecer na cara
dos pichadores as pichações que eles fizeram no muro.

Como gostaria de morrer? Dormir e não acordar.

Seu lema? Viva.

Curitibocas | 101
Aroma da dor

Edilson
Viriato

N
o elevador, Darcy se deu conta de que o bloquinho e a
caneta ficaram no bolso. Resolveu fazer uso. A
linguagem escrita não era o forte de Darcy. Colocou
algumas palavras garranchadas e desconexas enquanto
caminhava até o apartamento de Andressa.
Em frente ao pequeno apartamento, estava Bruno
discursando e brincando. Darcy sentou-se na porta, com a
atenção dividida entre Bruno e planos para sair de Curitiba. De
repente, se deu conta de algo que fazia toda a diferença. Bruno
não executava monólogos. Eram diálogos. Quais eram as réplicas
que só Bruno ouvia?
Andressa chega e se surpreende que Darcy ainda esteja na
cidade. Darcy explicou o que aconteceu. Teve vergonha de pedir
mais ajuda para Andressa. Ela pega Bruno com uma mão e com a
outra um celular. “Escute, eu estou aqui com...”, assim Andressa
começou a expor a situação de Darcy para alguém do outro lado
da linha. Quais eram as réplicas que só Andressa ouvia?
- Olha, tem um jeito de você seguir o seu rumo. Veja bem, você
está numa situação fudida. Tenho um amigo dono de uma
empresa que presta serviços no aeroporto. Ele não assina carteira,
mas paga R$1,75 por hora. Acabei de falar com ele. Você pode
começar segunda às 6h.

Curitibocas | 103
Darcy aceitou no ato. Fez a promessa de ajudar com as
despesas da casa. Nesta noite, Darcy ajudou Andressa no jantar,
arrumou a casa, deu os remédios de Bruno e ajeitou seu colchão
na sala. Nas conversas do jantar, Andressa deixou transparecer
seu otimismo sem convicção, ou seja, era quase uma pessimista.
Na escuridão da sala-de-estar, Darcy resolveu ver um pouco de
televisão. Os comerciais locais eram diferentes. Havia um em
especial, com um polaco de tom de voz desagradável, que fez
com que Darcy apagasse a televisão. Prometeu jamais renovar
sua casa naquela loja.
No instante em que Darcy apagou a televisão, Andressa
entrou na sala com uma tela e um cavalete. Ajeitou-se, de costas
para Darcy, no pouco espaço que restava na sala. Darcy gostaria
de fazer umas perguntas para Andressa, mas não queria estragar
a concentração da anfitriã. Andressa percebeu o interesse de
Darcy. Explicou que é orientada pelo artista plástico Edilson
Viriato, no atelier tal, em tal rua. Ela tinha que entregar o quadro
para no dia seguinte, por isso o horário pouco usual. Meia hora
de silenciosa observação depois, Darcy dormiu.
No outro dia, acordou com a televisão. Bruno parecia tentar
assistir a todos os canais ao mesmo tempo. Apertava o controle
remoto freneticamente em um volume ensurdecedor. Darcy
tentou acalmá-lo. Quando insinuou tirar o controle das mãos
dele, levou um empurrão. Darcy achou melhor sair dali.
Deu-se conta de que estava em uma situação nova na cidade.
Tinha que esperar até a segunda para começar a juntar dinheiro.
Estava livre para fazer o que quisesse - dentro da limitada
perspectiva financeira que tinha, claro. Resolveu tentar achar
um camelô para comprar algo para Andressa, em agradecimento
pela hospedagem. Em sua cidade, havia uma praça cheia de
importadores. Como estava em Curitiba, cidade mais próxima
da fonte de produtos alternativos, imaginou que encontraria
um camelódromo gigantesco. Ledo engano. Só algumas
barraquinhas espalhadas pela cidade, com alguns produtos de
indumentária e acessórios de segunda linha. Mochilas falsificadas
de conglomerados educacionais eram o mais comum. Nada
daquele monte de eletrônicos chineses. O mais próximo de um
camelô normal que encontrou foi um rapaz que expunha CD’s
piratas em cima de uma lona. Toda vez que alguém comprava
algo, o rapaz se manifestava:
- Pirataria é crime. O freguês ficava por três segundos
constrangido, quem sabe caindo em uma cilada de programas

104 | Edilson Viriato


de televisão ou da polícia. – Não roube barcos, ok? – completava
o vendedor, para alívio do sonegador de propriedade intelectual
e fomentador da quebra de patentes.
Caso chegassem fiscais, o vendedor já tinha tudo pronto para
recolher seu material com um puxão. Darcy tentou achar um CD
do Blindagem para dar a Andressa. Não encontrou.
Como tinha ainda todo um dia pela frente, resolveu ir
até o atelier seguindo as indicações de Andressa. Achou fácil
o endereço. A grade de ferro da entrada estava aberta. Darcy
escutava gargalhadas vindas dos fundos. Ao entrar no quarto,
encontrou um homem extrovertido e cheiroso que transitava
entre cinco mulheres falantes e pintoras. As paredes lotadas de
imagens não deixavam dúvidas de que este era um atelier de arte.
Sem dúvida, o homem era Edilson.
Viriato pediu para Darcy aguardar em uma cadeira de
plástico. Talvez pelo ambiente, aproveitou e puxou seu bloquinho
para rabiscar. De longe, Edílson percebeu o objeto nas mãos de
Darcy. Revirou os olhos e cochichou com uma de suas alunas.
Após dez minutos, Edílson sentou-se em outra cadeira ao
lado e indagou sobre o assunto que trazia Darcy. Quando tomou
fôlego para replicar, Edílson disparou a falar:

Bem eu...Você veio até mim e não sabe nem quem eu sou.
Antes tem que estudar quem eu sou para fazer perguntas. Pega
a minha vida, pega o meu histórico, leia meu livro, pesquisa e
vem. Cara, toda a semana é a mesma coisa. Estou cansado de
mandar jornalista voltar outro dia. Uma menina que pesquisou
me perguntou esses dias: “Você já pensou em matar seus pais?”.
Isso sim é que é pergunta. Se perguntar tudo que é normal, o
que é comum, eu não respondo. Então, que tipo de perguntas
você vai fazer?

Darcy não pretendia conversar com o sujeito até então. Mas


era um desafio irresistível. Parecia que já começava a adquirir
uma aura de entrevistador. Ligou seu lado inquisidor e esclareceu
que se tratava do estudo “Convergências da arte além da tela – os
novos e velhos suportes”. O diálogo a seguir, se deu em meio às
consultas das alunas. Quando não era interrompido, o artista
respondia de duas formas. Para falar de suas extravagâncias ou
de arte, usava sua língua rápida, debochada e mortífera. Quando
enveredava para o passado ou assuntos pessoais profundos, seu

Curitibocas | 105
olhar ficava perdido, o tom de voz baixo e um sorriso que lhe
dava um ar ingênuo.

Minha proposta é diferente... Então, que tipo de


perguntas você vai fazer? “O que é sua carreira?”, “Porque você
faz isso?”, “Como começou?”. Esse tipo de coisa é foda.

Não. Irei por outro caminho. Podemos começar. Mas


se fizer essas perguntas, eu vou ser sincero, não é ser grosso, ser
antipático, mas é cansativo. “Fale um pouco da sua obra”. Que
obra? Se às vezes nem tenho obra.

Tem assessoria de imprensa? Não, é comigo. Mas, é que


eu dirijo os espaços do Hotel Mabu, daí tem assessoria lá. Faço
a curadoria da parte cultural deles.

Nunca teve interesse? Eu tenho acesso fácil à mídia. Quer


dizer, para mim é fácil. Claro, no começo tudo é muito difícil, mas
hoje tenho uma mídia legal. Não posso reclamar. Sempre ganhei
página inteira, meia página. E sempre mídias grandes.

Quando foi a primeira aparição na mídia? Não me


lembro, mas eu tenho tudo separado. Eu-artista, eu-pessoa, eu-
orientador, eu-curador.

Gosta de aparecer? É parte do meu trabalho. Se eu não


aparecer, meu trabalho não aparece. Claro, se eu fosse diferente
dentro da profissão de arte - um cantor ou ator, a minha pessoa
seria mais importante. Mas, chegou um ponto em que o meu
trabalho sou também eu. Uso o meu próprio corpo para expressar
o meu trabalho. Quando você mostra conceitualmente o que você
é, expõe o que a sociedade pensa, você automaticamente está
dentro desse conceito.

Sabe qual o limite para se expor? Eu sou objeto para ser


usado. Posso ser usado para muita coisa. Não tem problema.

Você é uma marionete da mídia? Pelo contrário. Às


vezes, a mídia se faz de marionete. É um jogo. Ela depende de
mim e eu, dela. Se eu não existir, a imprensa não aparece.

106 | Edilson Viriato


Você acha que a arte tem um tratamento adequado
na mídia? Acho que a mídia paranaense, para arte, já foi melhor.
Nos anos 80 e 90 era bom, era mais fluente. Depois, deu uma
murchada. Os cadernos de cultura diminuíram. Ficaram falando
muito de artista de fora e esqueceram dos artistas que têm. Anjo
de casa não aparece. Isso é em tudo aqui em Curitiba. Tudo que
vem de fora se estende o tapete vermelho. No próprio MON, era
tudo de fora. E nós temos gente muito boa. Espero que isso mude,
mas é difícil. Antes, nos jornais tinham colunas de arte, tinha
roteiro. Hoje, você pega um roteiro e eles estão desatualizados,
não tem preocupação com isso.

Você pressiona a mídia? É complicado. Se você for


pressionar a mídia, eles pegam e te cortam. Você tem que fazer
papel de legal.

Por que os artistas não se unem para fazer pressão?


Os artistas daqui sabotam um ao outro. Cansei de ir para fora,
em exposições, e as pessoas falarem:
- Ah, mas tem fulano de tal que também é de Curitiba.
Eu falo:
- Nossa, faz um trabalho bonito com isso, isso e isso.
Quando outras pessoas vão para fora e falam:
- Ah, mas o Viriato também é de Curitiba.
Falam totalmente contra. O povo é passivo. Falta garra.

Você tem garra? Tenho. Senão, não estaria há 15 anos


trabalhando no meu atelier. Houve muita perseguição, todo
mundo odiava a gente. Hoje eles engolem. É um diferencial da
cidade. Não vou queimar a cara. Se um grupo se unir [contra a
mídia], serão marginalizados. Sempre terão outros que serão
contra. Em Curitiba tem a Associação dos Artistas Plásticos.
A Presidente é do meu atelier. Como eu não tenho tempo
disponível, fico quieto no meu canto e deixo o povo tocar o
barco deles. Falo quando pedem, mas acho que o sol brilha para
todos: pintor da feirinha, o outro que é cult, que fica filosofando
e idealizando a arte trancado no quarto, outro que só lê e tem
mil conceitos. Não tem que ter esses conflitos de gueto. Cansei
de ser humilde. Baixei muito a cabeça. Se tiver alguém melhor
do que eu, que apareça.

Curitibocas | 107
Você não é humilde? Claro que sou humilde dentro do
que posso ser. Ano passado, decidi que mudava tudo na minha
vida artística ou ia embora do Brasil. Sou mais conhecido fora do
Brasil que aqui. Para quê ficar batendo pé numa coisa, sabendo
que não vai ter retorno?

Já teve alguma experiência ruim antes de cansar de


ser humilde? Não. Nunca confiei em ninguém. O que estou
querendo dizer é que, antigamente, eu estava iniciando minha
carreira. Tinha limites. Não podia discutir com alguém que
estava acima de mim. Ainda tenho muito que aprender, mas há
um diferencial.

Você se arrepende por ter sido humilde? Ah, sim.


Fiz minha primeira Bienal, em São Paulo, muito novo. Tinha
25 anos, era bobinho. Hoje, meu marketing seria outro. Dos 22
brasileiros, éramos 2 do Paraná. Participei de um evento com
mais de 122 artistas do mundo todo e o governo não me deu
apoio. Aí o que aconteceu? Minas ligou para mim perguntando
se eu queria representar eles. Eles já tinham uns 13. “Você quer
vir? Nós damos tudo para você”.

E porque não aceitou? Ainda acredito que isso aqui pode


ser alguma coisa. É o meu karma. Curitiba é uma cidade que me
propõe a fazer as coisas. Curitiba ainda é legal porque eu tiro a
roupa e a Câmara dos Deputados me dá um diploma de honra
ao mérito. É engraçado. A cada exposição que faço, as pessoas
ficam ansiosas. Surpreendo em tudo que faço. Eles dizem que
eu sou polêmico. Respondo que a polêmica está na cabeça de
cada um. Eu mostro, mais nada. Para uns, choca. Outros me
chamam de bárbaro. Mas é tudo realidade. É tudo normal. É o
que está acontecendo. Aí, as pessoas não querem ver de frente
e se sentem agredidas.

É possível chocar o público nos dias de hoje? Ainda


acontece tudo. Ainda tem tabu. Cara, eu expus no Museu de Belas
Artes do Rio de Janeiro, a cidade mais sexuada. Todo mundo anda
à vontade. Exala sexo nas praias todas, em tudo que é canto que
você vai. Quando eu coloco caralho, buceta, pinto, eles ficam em
choque. Eu nunca imaginei que iria ter uma reação dessas. Aí,
eles dizem que foi porque eu pus no seio da arte. Ah, mas tem
uma réplica de uma escultura de David, pelada, nua. Claro que
tudo já aconteceu. Só que tem que ver que eu sou diferente de

108 | Edilson Viriato


Curitibocas | 109
você. Quando você mostra quem você é, você é original, tem uma
maneira de amarrar a coisa.

Qual é a fórmula para ser um bom artista? Nunca


acreditei em fórmulas, receita. Tenho um estúdio onde oriento
oitenta e poucos artistas. Tiro o máximo em cada um deles. Pela
maneira que trabalha, que cores que pega e tal, eu sei como a
pessoa é. A maioria está há muito tempo trabalhando comigo.
Tem gente que está aqui há 10, 15 anos.

Mas aonde está o limite de orientar e influenciar o


artista? Todos têm liberdade de fazer o que quiserem, mas tem
a questão das técnicas, composições, cores, como apresentar...
Os limites dentro da arte têm que estar. Senão, vira samba do
crioulo doido.

Quanto custa a sua orientação? Depende de quantas


orientações vai fazer, mas tem que dar quatro cheques pré-
datados. Não tem como sair. Se você não ficar comigo e sustar o
cheque, eu vou acabar com a tua carreira antes de começar. Se
você nunca viu escola de samba entrar, você vai ver, porque eu
vou rodar a baiana [gargalha].

Já levou calote? Nunca, porque não são doidos. Vou na


frente da casa, no trabalho. Vai ter que pôr dinheiro na minha
sunga para poder pagar.

Quem foi teu orientador? Tive uma só, a Marize


Canabrava, lá de Paraíso do Norte, minha cidade natal. Depois
eu fiz Belas Artes. Aprendi, claro. Mas ficou muito a desejar. A
faculdade dizia que eu era muito moderno.

Acha que um artista precisa de faculdade? De jeito


nenhum. Faculdade serve para fazer amigos, para casar, para
dar aula no colégio, para dizer que é formado e para quando for
preso ficar numa cela legal.

Pós-graduação nem pensar então. Eu não fiz pós, mas


o meu pessoal faz. Acho que tem que fazer. Eu acho que os outros
têm que fazer tudo [ri]. Eu nasci para ser general. Vou fazer o
Atelier Militar de Artes do Viriato.

110 | Edilson Viriato


Os quadros de galeria são bem diferentes daqueles
vendidos na rua. Você não gosta deste estilo mais fácil
de entender? Tudo se pode considerar “arte”. Agora você pode
fazer arte e não ser artista. Eles sabem a técnica, fazem aquilo pela
grana. E não estão errados. Azar de quem compra. O requisito
não é a boa obra. O requisito é desenvolver o artista para você
conseguir fazer uma boa obra. Às vezes são insights que você
tem, a coisa acontece e nunca mais repete. Assim como eu posso
cheirar cocaína e fazer uma puta letra de música e eu nunca mais
cheirar cocaína e não fazer mais nada. É uma boa obra? É. Sou
um músico? Não. Você não pode isolar a obra do artista. A boa
obra vem do desenvolvimento da carreira dele. Toda a minha
carreira é minha grande obra.

Está satisfeito com a tua obra? Eu nunca estou satisfeito


com nada. Se você me der uma página de jornal, eu quero duas.
Se me der meia, eu quero uma inteira. Sou um eterno insatisfeito.
Na hora em que estiver satisfeito, eu paro. A gente sempre tem
que querer mais. Isso não é ser ganancioso ou algo do gênero.

Você disse que sua “grande obra” tem mais


reconhecimento fora do país. Em que lugares? Uma
das coisas mais brilhantes da minha vida foi quando eu estava
participando de uma exposição no Museu Henie-Onstad
Kunstcenter Hovikodden, em Oslo, na Noruega. O diretor
desse museu disse que o meu trabalho tem uma brasilidade,
mas é entendido em todo canto do mundo. Mas não tem cara de
cucaracha, ou seja, não precisa estar com periquito, papagaio
de verde e amarelo para ser entendido. Nessa exposição, eu
tomei um banho de lama e tinta vermelha, segurando um balão
azul. Entrei às 15h dentro do museu, gritando: “Help me”. Uma
senhora toda fina saiu gritando atrás de mim: “I help you”. Foi
fascinante. Fui até o meu trabalho, que eram vários brinquedos
ligados por transfusão de sangue, por mangueiras infestadas de
agulhas. Aí eu tirava as 50 agulhas do brinquedo e me espetava.
Eu sentia. Cada vez que eu enfiava uma agulha, doía. Eu gritava
desesperadamente. E ela gritava desesperadamente. E o povo
gritava desesperadamente. O Museu estava lotado. Eu tinha 27,
28 anos de idade.

Você conversou com ela depois? Ela veio falar comigo,


agradecer. O filho dela tinha morrido na semana anterior de

Curitibocas | 111
AIDS. Mais maravilhoso foi no outro dia, que saí na capa do jornal
norueguês. Quando entrei no Teatro Municipal de Oslo, a platéia
inteira levantou, aplaudiu e gritou: “Brazilian art, Viriato”. Uma
coisa que nunca tive aqui.

Gosta de interagir com o público? Muito. É gostoso


quando a platéia participa, mas é complicado. Às vezes, o público
não entende. Tenho uma performance, “A noiva negra”, que eu
como dois tubos de pasta de dente, uma dúzia de rosas e saio
agarrando nas pernas das pessoas vomitando e gritando. Elas
ficam horrorizadas. Tem outra que eu distribuo picolé para as
pessoas, elas ficam chupando e eu fico transando com um balão.
Aí, eu saio gritando “Chupa, chupa, chupa”, e eu transando. Aí,
quando se liga, pára de chupar e fica escorrendo picolé na mão,
que derrete. Aí tem que lamber, eu grito: “Lambe, lambe”, e eu
transando. As inaugurações das minhas exposições têm sempre
algo assim. A última, por exemplo, eu coloquei a Brigitte, uma
drag, vestida de serpente, distribuindo um monte de maçãs
pedindo para cair em tentação. Lá dentro tinha outra drag, a Betty
Boop, vestida de sado, dando chicotadas nas pessoas.

O que fez florescer em Paraíso do Norte um artista?


É uma cidade pequena e pacata. A minha educação foi normal
como qualquer outra. Eu que sou o pervertido da história. Outra
celebridade é o padre Reginaldo, da Igreja do Guadalupe. Ele é
um sucesso aqui em Curitiba, e é da minha cidade. Ele é sagrado,
eu sou profano.

Como é tua relação com a religião? É ótima. Ela lá,


eu aqui. Venho de uma família completamente católica. Fui
coroinha, cheguei a ir ao seminário. Essas coisas sempre me
instigaram.

Segue alguma religião? A minha, a viriatiana. As meninas


daqui [do atelier], todas seguem essa religião. Se eu fosse pastor,
seria mais rico. Eu teria um templo da salvação, ao invés de um
atelier. Viriato Universal do Reino de Deus. [gargalha] Falando
sério agora, por trás dessa questão sagrada tem uma coisa
profana muito forte. Acho que o lado sexual é um ato sagrado. E
o lado sagrado tem o lado do prazer também. Por mais que seja
sadomasoquista. A parte de você bater, morder, agredir a outra
pessoa, é todo um ritual sagrado.

112 | Edilson Viriato


Você gosta disso? Acho bárbaro, adoro. Eu sou da facção
leather, adoro couro. Eu não sou sado pesado. Eu tenho tudo.
Calça de couro, chicote...

Vela? Nos outros. Sou mais mestre, não sou slaver


[gargalha]. Também adoro ser slaver. Esse ano, provavelmente,
eu faça uma exposição de fotografia e uma das questões que eu
abordo é o sado. Isso claro que agride as pessoas. É uma coisa
que não tem no Brasil, está aflorando. Na Europa, têm clubes e
clubes disso. É uma questão de fetiche.

Como descobriu o sado? Eu estava participando dessa


exposição em Oslo, na volta passei por Amsterdã. Lá, eu entrei
num bar leather. Sou curioso, entro em tudo. Logo que entrei,
alguém me ofereceu uma cerveja. Daí eu vi aquele monte de
pessoas por trás de um vidro, só com os braços aparecendo. Olhei
e tudo aquilo me fascinou, achei estranho.
Aceitou a cerveja que o cara te ofereceu? Com certeza.
Tinha uns galpões com luzes vermelhas. Para mim era uma
novidade. As cores me fascinaram. De repente, começaram umas
mãos a me pegar. Sabe “Esqueceram de Mim”? Eu gritei igual ao
menino. Quando vi, eu estava no meio da rua, correndo. Fui para
o hotel. No outro dia voltei. Aí, eu comecei a conhecer a casa e tirei
a inspiração para os meus desenhos. Comecei a embasar mais
essas questões. Você precisa do prazer para poder viver, mas esse
prazer também pode te causar a morte. Até que ponto vai isso
tudo? Quais são os limites disso? O sado pesado é pesado. Você
está mexendo com sangue, coisas que são complicadas.

Como te influenciou? Comecei a trabalhar com prata,


vermelho, preto e branco. Nas roupas do sado não tem dourado.
Só tem prata porque é frio, metal nobre, lembra as bandejas do
necrotério, tem uma relação forte com a morte. O preto é muito
próximo da morte. É o obscuro de tudo, e o que é obscuro,
proibido, dá prazer. O vermelho é a vida e o sangue, que leva a
vida e traz a morte. O branco é o etéreo, o transcendental, que
vai além. Cada cor começou a influir no meu trabalho. Trabalhei
muito com máscaras, roseiras, comecei a colocar uns objetos
sagrados no meio. Cristo foi um grande sado e Maria uma grande
voyeur. Aceitar colocar uma coroa de espinhos, se machucar,
fazer tudo aquilo por amor aos outros, isso é ser sado. E Maria

Curitibocas | 113
ficou complacente o tempo todo. Se fosse qualquer mãe, iria se
jogar, correr, fazer algo.

Falemos um pouco da cidade. O que te atraiu para


Curitiba? Curitiba é meio européia, e eu adoro Europa. Eu
já peguei tudo de Curitiba, só não falo leitE quentE. Estou em
Curitiba há 20 e poucos anos. A gente chamava os curitibanos
de curitibocas. Curitibano não faz amizade com qualquer um.
Depois que faz, não desgruda do pé.

Voltaria para Paraíso do Norte? Tudo ia depender


da circunstância. Hoje não tem porque eu morar lá. Mas se eu
precisar, por que não? Claro que estou mais para São Paulo.
Não gosto de mato, não gosto de bicho. Se eu pudesse calçar as
praias, eu calçava.

Que praia você vai? Florianópolis e as praias catarinenses.


Gosto também das nossas. Se é para ser elitizado, eu gosto. Se é
para ser brega, popular, também gosto.

Curitiba é elitizada ou popular? Hoje tem de tudo.


Adoro entrar em ônibus, ouvir as conversas do povo. De manhã,
ouço Renato Gaúcho, na [rádio] Caiobá. “A música da sua vida”.
Coisa brega. Tem o horóscopo...

Acredita no horóscopo? Meu pai adora horóscopo. Chego


em casa, ele fala: “Olha, hoje a lua não está boa para você”. O
que eu faço, espero mudar? Acho legal. Sou Câncer, romântico,
eu choro.

Qual a última vez que você chorou? Quase todo dia


eu choro, faz bem para a pele. No meu aniversário, eu morri
chorando. Ah cara... Você fazer 40 anos de idade, saindo de onde
eu saí, chegar onde cheguei... Valeu viver até agora. Não casei,
não debutei, não fiz festa de 15 anos, não fiz festa de formatura.
Fiz uma festa show de 40 anos, com tudo que tinha direito, no
Center Hall. Tinha shows de drag, cantei, dancei.

Retomando o assunto Curitiba, qual é a identidade


dela hoje? Agora virou metrópole. Chegou um monte de
gente para atrapalhar. Tem característica muito forte. Muita
imigração européia. Agora, já virou de ponta cabeça. Até preferia

114 | Edilson Viriato


quando era mais curitiboca. Mas tem essas características que
diferenciam. As pessoas respeitam a fila... Hoje tem muito
vândalo, pichador.

Sente saudade dos curitibocas? Sinto. Agora tem hippie,


tem tudo. Quando eu era estudante, andava de madrugada na
rua sem medo. Isso não faz muito tempo, em 84. Aquela garoa,
neblina, geada. Usava aqueles roupãozões. Hoje, se eu for até o
Shopping Curitiba [300 metros do atelier], posso ser assaltado
quatro vezes. Isso não é gente daqui, é gente que veio de fora
[ri]. É uma cidade que ainda pode acontecer mais. O defeito é o
povo deixar ela acontecer.

O que te segura aqui? O meu pessoal, que é maravilhoso.


Minha família me ajudou a comprar esta casa. A intenção, agora,
é montar uma instituição e depois uma fundação, um museu.
Vou morrer, mas vou ter onde ficar.

Tua família te apóia? Meu pai acha fascinante, os amigos


todos comentam quando eu apareço no jornal. Sou o orgulho da
família. Na época em que eu tirei a roupa, a minha irmã ficou
incomodada. “Por que você vai fazer isso?” Aí, eu expliquei que
era o meu trabalho, estava usando o meu corpo como suporte
para minha arte, que não estava colocando o nome deles em
nada. Aí nunca mais falaram.

Teus pais são paranaenses? Meu pai é cearense, minha


avó por parte de mãe era pernambucana, prima segunda de
Lampião. Andava com peixeira dentro da bolsa. Todos foram para
o noroeste do Paraná. Meu pai foi gerente da Volks e conheceu
minha mãe, caixa das Lojas Pernambucanas. Uma história
super-romântica.

Teve histórias românticas também? Tive. Duas. Uma


bem forte. Faz seis anos. Até a última, agora no lançamento do
livro, tinha algumas coisas.

Resolveu bem essa questão? Bem, graças a Deus.


Gostaria de não ter resolvido. Faz dois anos que eu não tenho
mais contato. Não mora aqui, mora em Londres.

Curitibocas | 115
Essas histórias aparecem na tua arte? Meu, foram três
exposições só em cima disso. Todo meu trabalho é vivenciado.
Quando eu fiquei um mês no hospital, em coma, quase morri,
internado com meningite, fiz uma exposição no MAC, com soro
e elementos do hospital. Tudo eu tiro partido.

E a infância, como foi? Eu era debilitado, era frágil.


Sei que tenho uma deficiência imunológica. Não sou daqueles
que podem planejar uma velhice. Eu tive três vezes meningite,
três vezes hepatite, todos os “ites” que você possa imaginar. Os
cuidados que tenho com a minha saúde são vários. É complicado.
É complicado saber que você não é como todo mundo. Mas isso
não me influencia. Eu posso pegar outra doença, ou morrer
atropelado mais rápido que isso. Não me abala, mas eu tenho
consciência de que eu não tenho o mesmo percurso de vida que
as outras pessoas. Meus pais sempre me cuidavam. Meus irmãos
não são assim.

E tua mãe? Hoje ela é artista. Começou não faz muito


tempo, está se destacando. Ela não usa o meu nome para não
ter relação.

Dá para identificar algo do DNA? Nada.

Gostaria de trabalhar junto? Meu processo de criação


é outro. Ela senta numa mesa calma, faz muito detalhe. Eu
trabalho com música alta, cantando, dançando, pulando. Em
cinco minutos ela ia me mandar embora.

Que música escuta? Escuto tudo. Eu sou superpopular.


Gosto de sertanejo, pagode. Só não gosto de rock pesado. O
restante eu gosto. Música romântica, brega... CALYPSOOOOO.
Adoro quando ela grita.

A música te influencia? Muito. Música é tudo. Ela


completa o meu trabalho. Fiz cinco anos de dança clássica no
Guaíra. Fiz sapateado, contemporâneo, jazz. Fui coreógrafo
do SESC durante muito tempo. A minha grande dúvida foi ser
bailarino ou artista plástico. Por isso que faço muita performance.
A dança é a arte mais completa. Você consegue expressar tudo
pelo corpo, sem abrir a boca. Só não segui na dança porque neste
país é pior ainda. E eu tinha um problema no meu pé. Não fazia

116 | Edilson Viriato


a primeira direito, porque ele caía para frente. Meu primeiro
prêmio com artes plásticas veio muito cedo, com quinze anos. Eu
ganhava um prêmio de dança, um de artes plásticas. A hora em
que eu parei a dança, fui convidado para a Bienal de São Paulo.
Aí, minha carreira tomou outro rumo.
Teu corpo sentiu a diferença? Tenho a elasticidade toda
ainda. Faço espacato completo, levanto a perna lá em cima. Adoro
cultuar o corpo. Aprendi a gostar de mim mesmo. Não sou top
model, mas tudo no lugar. Sou fascinado por mim.

Desde quando tem essa autofascinação? Eu me amo.


E quem não gostar que se dane. Não sou bala de coco mesmo.
Tem pessoa que gosta. Sempre fui meio narcisista. Vem aquela
neura: “Eu devia ser um pouco maior, um pouco mais forte”.
Mas tudo na vida depende de você. Não sou filhinho de papai,
eu vim de uma cidade miúda, lá no cu do mundo. Só não sou e
não tenho mais, porque eu não quero.

Você é metrossexual? Claro, com certeza. Acho show.


Enquanto você está vivo. Os bichos vão comer tudo, vão tacar
fogo em você.

Tem medo de envelhecer? Não tenho nem um pouco de


medo. Uma vez me disseram que os bons morrem cedo. Eu tenho
40. Eu acho que chego aos 60, com o corpo funcionando tudo. A
morte é uma coisa bem resolvida para mim.

E seu funeral, como será? Quero uma festa. Tudo


chiquérrimo. Aprendi que artista tem que ter tudo do bom e do
melhor. Essa coisa de artista boêmio, que enche a cara, que corta
a orelha, que fica no quarto, que não quer vender a obra não está
com nada [ri]. Agora, claro que eu me cuido. Passo creme, vou
para academia.

Você se preocupa muito com a tua imagem? Cuido


quando vou sair. Para trabalhar venho com qualquer coisa. Eu
tenho quinhentas e poucas sungas. Adoro. Perfume, eu tenho
tonelada. Saio de manhã, eu passo um. Deu cinco minutos, passo
outro, chega hora do almoço, passo outro. Amo perfume. Adoro
aquelas pessoas cheirosas, que você chega perto tem aquele ar.

Curitibocas | 117
Qual é o cúmulo da miséria? [Pausa] Não sei. Acho
que é o não querer.

Onde você gostaria de morar? Colônia.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Felicidades


são momentos, não tenho ideal.

Para quais erros você tem maior tolerância? Eu


não sei se eu tenho tolerância para alguma coisa assim.

Quais obras literárias você prefere? As que têm


imagem.

Qual é seu personagem histórico favorito? Adoro


Jesus Cristo. Acho ele bonito, meio sado. Acho tudo.

Seu pintor favorito? Um cara que fez de tudo:


Picasso.

Seu músico favorito? Madonna. Foi meu ícone, minha


geração, minha época de jovem.

A qualidade que prefere no homem? Inteligência.

A qualidade que prefere na mulher? Inteligência,


também.

A virtude que prefere? Não sei, é difícil.

Sua ocupação favorita? Trabalhar, adoro trabalhar.

Quem você gostaria ter sido? Olha, quando eu era


criança, eu dizia que queria ser famoso que nem o Papa.
Ah, eu gostaria de ser eu mesmo. Eu me adoro.

O que você mais aprecia nos amigos? Ser amigo.

Seu pior defeito? Eu tenho tantos defeitos. Meu pior


defeito é não aceitar desculpa.

Seu sonho de felicidade? Viver. Eu acho que tenho

118 | Edilson Viriato


muito para fazer ainda.

Qual seria sua pior desgraça? Se acontecesse algo


com o meu corpo que me impedisse de trabalhar.

O que você gostaria de ser? Não gostaria de ser


ninguém, mas de ser alguém. Eu acho que eu vim com uma
missão muito legal. Sei que milhares de pessoas passam e
eu sei que vou ficar. Quem sabe, daqui a 200 anos meus
trabalhos vão estar ilustrando um livro, ou em algum
museu. Acho que tenho esse privilégio como artista.

Sua cor favorita? Azul.

A flor que mais gosta? Difícil. Eu gosto tanto de flor.


Faço sempre lírio.

Qual pássaro preferido? Arara.

Seus autores favoritos em prosa? Drummond.

Poeta favorito? Helena Kolody. Muito pura.

Seus heróis na vida real? Não tenho.

Seus nomes favoritos? Muitos.

O que você detesta? Mentira e inveja.

O feito militar que mais admira? Democracia.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? De


criar.

Como gostaria de morrer? Deitado, dormindo.

Seu lema? O sol brilha para todos, é só você ir até ele.

Curitibocas | 119
Fundamentalismo
futebolístico

Suk

D
arcy perambulou à procura do quadro de Andressa.
Imaginava o que resultaria da personalidade
dela, com a atitude do orientador. Ao lado
de um quadro que retratava uma paisagem de Curitiba, com
borrões à volta, Darcy encontrou um quadro libidinoso, uma cena
erótica retratada em cores quentes e indutivas. Muitos ficariam
chocados. Para Darcy, que conhecia a autora, era triste.
A volúpia de Andressa parecia outrora forte. O quadro
significava uma nova canalização da energia. Andressa era
uma sacerdotiza da beleza. O quadro era dela.

Curitibocas | 121
Onde ela estava? As colegas artistas disseram que toda vez
que tem jogo do Atlético Paranaense ela vai embora cedo.
Darcy não tinha a menor pretensão de ir ao estádio,
que ficava próximo do atelier. Tinha medo da violência nas
arquibancadas. Queria acompanhar o jogo, para ter um assunto
agradável para comentar com Andressa na hora do jantar. Se
bem que a fome forçava que o pensamento se focasse no almoço.
Entrou em um bar com atendentes orientais, comida barata e
uma televisão sintonizada no futebol. Tudo que Darcy queria.
O boteco era próximo do estádio, possibilitava ouvir os gritos
da torcida pela tv e ao vivo.
Comprou um pão de batata recheado de frango com
requeijão (catupiry, em termos marketeiros). Sentou-se junto
ao balcão de vidro engordurado, prestando atenção na televisão.
O Atlético ganhava de três a zero de algum time desconhecido
do interior paranaense. Mesmo com o placar inchado, a partida
estava morrinha, bem típica dos campeonatos regionais. Mesmo
assim, as câmeras de televisão mostravam a festa da torcida:
com fogos, bateria, cânticos e pulos. Os mais animados estavam
tão empolgados que ficavam de costas para o campo. A maior
parte do espetáculo da arquibancada era protagonizada por
torcedores com estampas de “Os Fanáticos”. Cantavam sem
parar. Darcy não conseguia imaginar Andressa nesse meio. De
relance, parecia ter visto um sujeito com uma cartola e capote
preto, similar ao que vira em sua primeira noite em Curitiba.
Fim de jogo. Darcy pediu mais um salgadinho. Seu olhar
ficou perdido em um gato de porcelana com uma pata levantada,
enquanto sua imaginação voava. A sede dos Fanáticos devia
estar próxima.
As praças de Curitiba já pareciam rotina nas andanças de
Darcy. Esta se destacava por ter um posto policial em um canto
da quadra e grades por todo o perímetro. Com isso, a pista de
skate estava bem protegida.
Dentro da jaula, dois jovens portando tábuas com rodinhas
analisavam um buraco cimentado. Darcy se aproximou dos
jovens que, por sua vez, afastaram-se cinco passos. Darcy deu
mais cinco passos, os jovens caminharam oito. Darcy os olhava
e fez um teste. Deu um passo. Os jovens deram dois, sempre
conversando entre si e olhando desconfiados.
Darcy resolveu apelar para uma mulher sentada com
um bebê em um banco de pedra. Ela deu a informação de
uma maneira seca. Darcy anunciou que estudava as torcidas

122 | Suk
organizadas de um ponto de vista da antropologia experimental.
Nem bola. É melhor apresentar a pesquisa antes de qualquer
coisa, pensou.
A sede da Fanáticos estava com sua porta de metal
escancarada. Muitos dos que exibiam sua alegria na televisão
seguiam exultantes no QG. Por não portar as cores rubro-
negras da agremiação, Darcy chamou a atenção das dezenas
de torcedores reunidas. Falou de sua pesquisa sobre a “Arte
coletiva das arquibancadas: uma visão contemporânea da festa
do futebol”, e que precisava falar com os responsáveis pela
torcida. Avisar da pesquisa parece ter acalmado a desconfiança
geral. Suk foi o nome indicado para responder a Darcy.
Um rapaz de touca, barba por fazer e voz grossa veio ao
encontro de Darcy. Disse que adoraria contribuir para tão
importante pesquisa. Sentaram-se em uma mesa afastada da
algazarra. Suk estava com o corpo inclinado em direção a Darcy
e, entre uma saudação e outra de um membro da torcida que
se aproximava, participou do seguinte diálogo.

Você é Suk? Juliano Rodrigues. Suk é apelido.

De onde surgiu? Uma vez, que em vez de falar “suco”, eu


falei “suk”, e a piazada estava junto. Coisa boba. E ficou. Não
tenho nada contra, foi imposto faz uns 20 anos. Não esquento
a cabeça com algumas coisas irrelevantes. É parte da minha
identidade. 95% me chamam de Suk. Amigos de muitos anos e
a família me chamam de Juliano.

Como é a sua trajetória aqui? Primeiro jogo que eu fui


foi em 74, com dois anos. Tive esse privilégio. Meu pai sempre
procurou me levar para o caminho do futebol. Sou atleticano de
berço. Tenho 35 anos e faço parte da associação desde o final da
década de 80. Venho aqui constantemente. É um ritual diário,
para mim, falar de Atlético, viver de Atlético. Tenho minha vida
particular e tudo, mas o Atlético é a minha vida.

Qual é teu cargo aqui? Tomo conta daqui na ausência do


presidente, o Julião. Se você acompanha futebol, deve conhecer.
Hoje, estou bem conceituado, tenho anos de torcida. Sou vice-
presidente desde 1999. O Atlético estava numa transformação,
ainda não era tão grande. [Mário Celso] Petraglia e a diretoria

Curitibocas | 123
precisavam muito da gente ainda. Quando cresceu, esqueceu o
que ajudou ele a chegar nesse ponto.

Como assim? A gente não concorda muito com a política


dele, com o jeito que ele administra o nosso amor, a nossa paixão.
A gente não é uma máquina, não é uma empresa. É um clube,
que nasce de futebol, que tem paixão. Ele trata os torcedores
como uma coisa descartável. O valor que ele cobra no ingresso,
por exemplo. Muitos deixaram de ir ao estádio por isso. O
ingresso do Atlético está fora da realidade. Não é fácil pagar 30,
40 reais. A falta de clareza no orçamento, outro exemplo. Não
acompanhamos porque não é colocado para todo o mundo. É à
maneira de imperador, só ele decide, não conversa com ninguém.
Tudo, democraticamente, funciona melhor.

A torcida tem ingresso gratuito? Não temos ajuda


nenhuma, nossa associação é totalmente independente deles.

Quantos membros tem a Torcida? Temos 19 mil


cadastrados.

Pagam mensalidade? Esse é um grande problema. A


pessoa faz a carteirinha e não paga a mensalidade, que é dez
reais. O pessoal só quer ter a carteirinha de torcedor.

Como é a organização da torcida na hora do jogo?


Dentro da arquibancada, nós temos uma bateria e um puxador.
Esse puxador fica olhando, de acordo com o jogo, então ele vai
cantando e todo o mundo o acompanha. Assim, vai se alastrando
e, de vez em quando, o estádio inteiro está cantando com o
puxador.

Quem é o puxador? Sou eu. E sempre tem pessoas que


nos ajudam.

Você compõe? Não. Não tenho esse dom de compor. Nós


temos um rapaz muito bom aqui. Essas músicas vêm de anos.
Se não sou eu, tem uns dois ou três mais.

Você deve berrar no estádio. Não berrar, mas tem que


cantar bem alto. A gente já está habituado. Nada melhor que
cantar pelo Atlético.

124 | Suk
Aquela “atirei o pau no Coxa...” é de autoria da
Fanáticos, né? Isso. A letra foi adaptada da música do Pink
Floyd [Another Brick in], The Wall. Foi criada em 1990.

Quantas pessoas vocês levam aos jogos? A gente leva,


em média, 30 a 40% do estádio. Tem jogos em que é mais, que
levamos 50%.

Você viaja com o Atlético? A gente viaja. Conheço o


Brasil inteiro, já fui para o exterior. Não viajamos junto com
a delegação. A torcida é totalmente separada. Dependendo da
quilometragem, a gente vai de ônibus, em último caso, a gente
vai de avião. A gente sempre dá um jeito, sempre tem algum
integrante. Onde o Atlético estiver, tem uma faixa da torcida. É
uma das nossas ideologias.

Da onde saem os recursos? A viagem, cada um custeia


do seu bolso. A gente loca o ônibus, divide pelo número de
passageiros e vai. Mas como a sede é própria, a gente tem recursos
da nossa loja, do nosso bar, e algumas doações de associados
que apreciam o nosso trabalho. Mas, quanto à manutenção da
sede, é caro – é IPTU, luz, água, manutenção, limpeza e assim
por diante.
Eventos? Tem vários eventos de pagode, reggae, rock’n’roll.
Várias coisas que a gente procura estar desenvolvendo para ter
recursos e poder manter nossa associação.

Por vestir a camiseta dos Fanáticos, a sociedade


enquadra imediatamente como um delinqüente? De vez
em quando, você é discriminado por isso. Por pessoas que não
conhecem o que estão falando.

Você sente preconceito? Não. Pessoas que me conhecem,


que são minhas amigas, sabem quem sou. Então, não dou muito
espaço a pessoas que não têm intimidade para falar alguma coisa.
Quem fala alguma coisa são pessoas que não têm conhecimento
da nossa associação, do nosso trabalho. Falo pela Torcida dos
Fanáticos, pela índole das pessoas que estão aqui e assim por
diante.

Como se formou o estereótipo negativo do torcedor


de torcida organizada? Acho que essa imagem está muito

Curitibocas | 125
vinculada à sociedade atual. A gente associa a própria torcida
com alguns torcedores. Porque se você vai em qualquer lugar do
Brasil hoje, você encontra dificuldades de relacionamento, vai
encontrar pessoas de boa e má índole. O que varia é a maneira
que a imprensa explora. As torcidas organizadas chamam muito
a atenção, e ela coloca sempre fatos negativos. Quem dá essa
opinião, que torcida organizada é violenta, é quem não entende
do assunto e não freqüenta o dia-a-dia de uma, para ver como
o trabalho é sério, com objetivo. Também não se pode espelhar
muito nas torcidas organizadas do foco Rio-São Paulo, onde
realmente há grande quantidade de gente com más intenções.
Digamos que lá tem pessoas que não têm boas intenções dentro
de torcida organizada.

Vocês combatem a má imagem das torcidas? A


gente sempre trabalha em prol da festa na arquibancada. Nosso
trabalho é para atingir quem freqüenta o estádio. Se você fizer
uma pesquisa, vai ver que quem freqüenta o estádio gosta da
torcida. Esse percentual que não freqüenta estádio não nos
interessa.

Curitibanos, em geral, parecem não freqüentar


estádios de futebol. Não tem tradição.

Você acha que a torcida organizada beneficia o


time? Beneficia. Posso me basear pelo último jogo. Todo mundo
foi unânime, que quem venceu o jogo foi a torcida. A torcida
cantou do começo ao fim. A Fanáticos é uma torcida vibrante,
que diferencia muito das outras aqui da capital. Os próprios
jogadores do Atlético admitiram que a torcida é primordial
para alcançar a diferença. Eles pediram para a diretoria baixar
o valor do ingresso. Se não fosse importante, os jogadores não
pediriam isso.
Como é um dia aqui na Fanáticos? Digamos que dia de
jogo é movimentado. Chega cedo, já abre. O bar tem que estar
organizado, com cerveja, espetinho, esse tipo de coisa. Tem um
rapaz que cuida da loja, uma secretaria dos associados. Muita
gente circula aqui na sede. Enche. Sábado é dia de reunião
geral, vem gente de tudo que é lado trocar uma idéia, discutir
os problemas, o que está acontecendo, o que nós vamos fazer
e tem ensaio de bateria. Dia normal também tem o pessoal

126 | Suk
Curitibocas | 127
da manutenção. Assim por diante. A Fanáticos é uma torcida
dinâmica. Você fica aí, tem coisa para fazer.

Tem mulheres na Fanáticos? Tem, bastante. As esposas


de muita gente freqüentam, as namoradas, as meninas solteiras
também.

Esse mito das mulheres incompatíveis com o


futebol... Mulher freqüenta bastante futebol. Mesma coisa
que o dia-a-dia de um homem. O campo do Atlético é bem
freqüentado por mulheres. Não existe mais da torcida pegar no
pé. Isso acabou. Hoje em dia, até a gente não deixa, de nenhuma
maneira, desrespeitar mulher aqui dentro. De uns dez anos para
cá, elas começaram a ser mais aceitas.

Que diferenças percebe de quando começou a


freqüentar o estádio e hoje? No começo, quando eu era
piá, era totalmente outra visão. O Atlético, antes, era um time
menor, campo menor, o povo era mais unido. Tinha mais calor
humano.

Tem saudade? Não sei se era porque eu era piá, mas sinto
um pouco de saudade, sim. A gente era feliz e não sabia. Hoje
em dia, dizem que é estádio de primeiro mundo, melhor estádio
da América Latina e tal.

Você concorda com isso? Olha, eu conheço bastante


estádio. Diria que é um dos melhores que eu já fui. Boa visão,
bom acesso. Tem várias coisas que dá para você concordar.
Nunca fui para Europa, eu não conheço estádios que falam que
é de primeiro mundo.

O que aconteceu em 2001 para o Atlético ter


estourado? O time em sincronia com a torcida. Levaram
sorte, contrataram uns caras líderes e bons jogadores. Aí não
tem erro.

Você já vaiou o Atlético? Acho que quem vaia no primeiro


erro do jogador não é torcedor. Acho que a torcida tem que
trabalhar de acordo com o que está acontecendo. Você pode
reivindicar por falta de um elenco que possa vestir a camiseta do
Atlético, por falta de raça, mas não, no meio do jogo, criticar por

128 | Suk
uma jogada errada. A gente procura reivindicar quando vê que
é hora, não a qualquer momento. Nunca vaiei. Cheguei a xingar
jogadores, o próprio presidente.

Qual foi o momento mais difícil dentro do estádio?


Na Baixada nova, em 2004, eles não deixavam entrar nem com
a bateria da torcida. Tinha gente perdendo o interesse. Essa
fase foi difícil. O Atlético poderia ter sido campeão brasileiro se
nós estivéssemos lá. Na Baixada antiga, foi a destruição dela. A
despedida, em 1985. Fomos para o Pinheirão. Foi triste ver tudo
aquilo abandonado.

Como foi essa fase do Pinheirão? O time só capengava.


Mas fizemos grandes festas lá.

Fanáticos é a única torcida organizada do Atlético?


Tem a Ultras. Mas não se considera uma torcida, são dois caras
que botam uma faixa.

Quando você começou a freqüentar estádio, já tinha


torcida organizada? Naquela época, na década de 70, tinha o
ETA, Esquadrão Torcida Atleticana. O presidente era o Doático
Santos. Daí, nossa torcida foi fundada, com a extinção do ETA,
dois anos depois, e foi criado Os Fanáticos, em 24 de outubro
de 1977.

Como é a rixa com as outras torcidas? Tem algumas


torcidas que realmente a gente tem rixa, que a gente é odiado.
Isso faz parte. Então, tem torcidas que a gente não tem diálogo.
Tem torcidas que são co-irmãs nossa, que tem diálogo.

Quais, por exemplo? Nós somos amigos da torcida TUF,


Torcida Uniformizada do Fortaleza, da Falange Azul, do Londrina,
Esquadrão, do Vila Nova, da Máfia Azul, do Cruzeiro, e assim por
diante. Uma boa amizade. Por conseqüência, nós somos inimigos
da Galoucura, do Atlético Mineiro, e da Cearamor.

Imagino que a Império, do Coxa, seja amiga da


Galoucura. Matou a xarada. É uma harmonia. Nada impede que,
de vez em quando, a gente tenha amizades com inimigas, mas tem
que ver o que acontece. Nós não temos amizade com a Império,
nem com a torcida do Paraná. Conseqüentemente, a gente cria

Curitibocas | 129
algumas torcidas que a gente é amigo e, conseqüentemente, os
inimigos deles sabem.

Qual outra torcida organizada que você admira? A


TUF, do Fortaleza Grande, trabalho sério. Admiro a torcida do
Corinthians, a Gaviões. É uma torcida grande. Não gosto deles
na arquibancada, gosto do trabalho deles fora.
A Gaviões pressiona seus jogadores no centro de
treinamento. A Fanáticos já fez isso? Já, mas com diálogo
e de maneira ordeira. Procurando os jogadores que são líderes,
para trocar uma idéia. Dizendo que estamos do lado deles,
procurar não deixar os caras fazerem noitada – já tivemos
bastante problema com jogador da noite.

O que faziam? Monitoramento para cima dos caras. Não


de proporção de invadir, querer aparecer na mídia. A gente faz o
nosso trabalho para obter resultado. Uma colaboração.

Como vocês tratam as torcidas que vêm de fora?


Aqui, hoje em dia, a polícia faz um trabalho muito sério. Bate
valendo, sabe? Não deixa acontecer episódios negativos entre
torcidas.

Qual foi o pior episódio? Nunca levei uma negativa.


Acaba levando uns cascudos da polícia. Já levei mordida de
cachorro da polícia. Estavam fazendo a revista, o cara que estava
segurando o cachorro não segurou e o cachorro me mordeu.

Fez alguma coisa? Que adianta a gente fazer uma


sindicância contra a polícia? Tem que aceitar. Não vai dar
resultado. A gente procura fazer um trabalho para evitar isso,
conversa e tudo, mas não adianta.

Você já se envolveu em brigas? Acontece de você de


vez em quando se envolver em confusão, uma briga. Faz parte.
Não é fácil você chegar no ônibus, num estádio que tem 50, 60,
70, 80 mil pessoas. Às vezes, você não é bem aceito e acaba se
envolvendo em confusão.

Vai no estádio do Coxa e do Paraná torcer pelos


visitantes? Odeio fazer isso. Já fui várias vezes como atleticano,

130 | Suk
em Atletiba. Fui em todos Atletibas. Às vezes, com co-irmã
nossa eu vou, mas eu não gosto. Não gosto de ver a torcida do
Coritiba.

Você seca? Não. Não gosto de assistir o Coritiba. Só vejo


o Coritiba quando joga contra nós. Posso até ver alguns lances,
mas não de assistir.

Se o presidente da Império estivesse aqui, que elogio


você diria a ele? Não deixaria ele entrar aqui, para começar.
Mas não teria nenhum elogio. Para esse atual, nenhum. O Luizão,
que era o antigo presidente, eu poderia fazer um elogio, que ele
era muito inteligente. Eu não gosto nem de comentar sobre a
Império atualmente.

Quais os desafios da Fanáticos hoje? Conquistar seus


espaços novamente e, também, em relação ao crescimento dela.
Hoje, na baixada, a gente não pode entrar com faixa, não pode
entrar com nossa caveira de isopor.

Como você se informa sobre futebol? Vejo a Tribuna no


Esporte, Globo Esporte, Cultura, Educativa, Bandeirantes. Leio a
Tribuna do Paraná, Gazeta do Povo e Internet, essas coisas.

A Fanáticos possui sítio na Internet? Tem. A página é


mais visitada que a do próprio Atlético. Disparado. A nossa tem
informação que o torcedor quer. Torcedor quer saber opinião do
torcedor. O Atlético é muito vinculado aos seus interesses. Tem
a furacao.com, que é bem visitada, independente. Opiniões do
torcedor, críticas, elogios e assim por diante.

Qual é o maior jogador de todos os tempos? Pelé,


Zico.

E do Paraná? Aí você me pegou.

Zé Roberto? Falam muito desse Zé Roberto, mas do nosso


tempo... deixa eu pensar.

Sucupira? Sucupira é atleticano vira casaca. Eu citaria


Washington, Alex Mineiro.

Curitibocas | 131
Qual é o jogador símbolo atleticano? Caju. Esse é
unanimidade. Tanto que o centro de treinamento do Atlético se
chama CT do Caju.

Você nasceu em Curitiba? Sim. Nascido e criado no


Água Verde, perto do campo do Atlético. Sempre morei no
mesmo lugar.

O que a cidade significa para você? Curitiba é a


minha área, o meu lar, uma cidade que eu gosto de morar e tem
meu time. Quero ter meu projeto de vida dentro da cidade de
Curitiba. É a raiz do lugar. A coisa que eu mais gosto de fazer,
que é o Atlético, minha família, que é a minha vida. Você nasceu,
criou identidade. Só saio daqui por uma necessidade ou projeto
muito bom.

Curitiba não tem defeitos? Gostaria que o povo daqui


fosse mais comunicativo. Eu converso com todo mundo. Tem
umas regiões que a gente vê que o povo é fechado, não quer
conversar e tudo. Falta aqui uma praia também.

O fato de a Arena estar em um bairro de classe alta


influencia o tipo de pessoa que torce pelo Atlético? Não,
não. Atlético é o time do povão. Até gosto disso, o pessoal da
periferia é atleticano em peso. O time do Atlético é de todas as
classes sociais.

Você joga futebol? Jogo. Sou atacante. Jogo suíço. Tem


um time da Fanáticos.

Você é bom? Não, não... Faço uns golzinhos de vez em


quando.

Já imaginou ser um jogador profissional? Coisa de


criança, sim. Mas não nasci com esse dom de ser profissional.
Não adianta querer, tem que saber.

Alguma vez pensou em fazer outra coisa além da


Fanáticos? Tenho minha vida particular totalmente. Estudo na
Unicenp. Sou universitário do quinto ano de Direito e trabalho
com informática. Não ganho nenhum recurso financeiro da
torcida, nem nada. Aqui é pela paixão. No meio do ano vou tentar

132 | Suk
a guerra do exame da OAB. Saí um pouco daquela fase de não
levar a sério. No tempo que eu tenho disponível, sempre estou
dando uma lida.

E como você faz para relacionar os estudos com


essas viagens? Já perdeu prova? Já perdi prova, já perdi
relação com mulher, já perdi oportunidades de emprego... Um
monte de coisa. Mas eu não me arrependo de nada que eu fiz até
hoje. A paixão é mais forte. Você corre atrás do Atlético, perde
muita coisa, puxa vida. Mas, fazer o quê? Faz parte.

Tem gente que chegou a desistir de ser da Fanáticos


por isso? Por “N” motivos.

Você chegou a desejar sair? Não. Sem chance.

Como tua família vê esse tipo de coisa? Só quem


faz parte da torcida sou eu. Tenho familiares que freqüentam
aqui. Tomam uma cerveja, vêm conversar. Minha família está
acostumada. Só de vez em quando têm uns comentariozinhos,
quando acontece no domingo de você almoçar em casa. A mãe:
“Pelo menos um domingo veio almoçar com a gente”. E quando
você não pode: “Oh, nem na Páscoa você veio, preferiu ir lá para
Paranaguá”. Faz parte.

Você tem irmãos? Tenho um irmão mais velho e uma irmã


mais nova. Atleticanos também. Nunca entraram na torcida.
Torcida só eu que levei adiante.

Já teve relacionamentos perdidos pelo Atlético...


Não foi nem um, nem dois. Foram vários. Hoje estou namorando.
Digamos que a vida é muito dinâmica, então a pessoa que vier se
relacionar comigo tem que aceitar como eu sou, tem que aceitar.
Alguns finais de semana que eu não vou estar, vou estar atrás do
Atlético. Não pode botar em xeque: ou eu, ou Atlético, de jeito
nenhum. Pessoa tem que aceitar de acordo com o que a gente é,
não de acordo com as pretensões próprias. É assim e acabou.

Você tem filhos? Não que eu saiba.

Imagina se você tiver um filho e ele disser: “Pai,


quero torcer para o outro”? [Levanta tom de voz] É muito

Curitibocas | 133
difícil, pelo seguinte. [Modera o tom] Geralmente, os filhos ficam
do outro time para aqueles pais que torcem para o time da boca
para fora. “Eu sou tal time, mas não tão... eu não freqüento
estádio”. Às vezes, encontra os amigos e fica de outro time. Mas
no caso, como que iria ficar de outro time? Você acaba convivendo
e pegando amor pelo negócio.

Que tipo de educação futebolística daria? Só de


acompanhar o pai, vir aqui na sede, ir no jogo. Os meus sobrinhos
têm três anos e só falam em Atlético. Minha sobrinha de sete
anos fala do Atlético. Vê o tio falando, o pai, no quarto do tio só
tem Atlético.

Juliano descrevendo Juliano. É difícil se autodescrever.


Sou uma pessoa que tem um projeto de futuro. Não uso drogas,
não bebo. Quero ser alguém, quero trabalhar para isso, quero
conquistar meu espaço e quero ver o Atlético ganhando. Tenho
uma boa família que me ama, e que eu amo. Procuro sempre ser
uma pessoa cada vez melhor para conquistar meus objetivos.

Qual é o cúmulo da miséria? Fome.

Onde você gostaria de morar? Curitiba.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra?


Atlético.

Para quais erros você tem maior tolerância? Erro


humano.

Quais obras literárias você prefere? Livros.

Qual é seu personagem histórico favorito?


Platão.

Seu pintor favorito? Não tenho.

Seu músico favorito? Jimmy Hendrix.

A qualidade que prefere no homem?


Hombridade.

134 | Suk
A qualidade que prefere na mulher? Simpatia.

A virtude que prefere? Verdade.

Sua ocupação favorita? Atlético.

Quem você gostaria ter sido? Juliano Rodrigues.

O que você mais aprecia nos amigos? Sinceridade.

Seu pior defeito? Ansiedade.

Seu sonho de felicidade? Saúde e família.

Qual seria sua pior desgraça? A morte da minha


mãe.

O que você gostaria de ser? Promotor de Justiça.

Sua cor favorita? Vermelho e preto.

A flor que mais gosta? Não tenho flores.

Qual pássaro preferido? Sabiá.

Seus autores favoritos em prosa? Machado de


Assis.

Seus poetas favoritos? Machado de Assis, Vinicius


de Moraes.

Seus heróis na vida real? Meu pai, minha mãe, meu


irmão, minha irmã, meus avós.

Seus nomes favoritos? Maria Lúcia, Juliano Rodrigues,


Joel Rodrigues, Josué Rodrigues e assim por diante.

O que você detesta? Enterro.

O feito militar que mais admira? Bravura.

Curitibocas | 135
Qual dom da natureza você gostaria de ter? A
paz.

Como gostaria de morrer? Dormindo.

Seu lema? Só os leões permanecem na Arena.

136 | Suk
Curitibocas | 137
Um anjo que luta

Efigênia
Ramos
Rolim

D
arcy aproveitou um pouco da festa rubro-negra.
Dançou alegremente e recebeu convites para integrar
a torcida. Já noite, rumou ao apartamento. Antes,
perambulou pela cidade, feliz com sua série de conversas.
No caminho, encontrou, em meio ao contexto do bonito e
arrumado centro da cidade, uma ponte enferrujada de uma linha
férrea abandonada. A ponte ligava o nada com coisa alguma. Por
que os tão cuidadosos curitibanos ainda não removeram este
monumento à inutilidade? Ode à oxidação. Segundo uma placa, a
Ponte Preta era patrimônio histórico da cidade. Quanta carência.
Os pichadores deram algum colorido, mas o esforço era em vão.
Quanto que o ferro-velho paga por quilo?

Curitibocas | 139
Poucas quadras adiante, passou por um terminal de ônibus
que destoava em relação aos outros. Envolto por um ambiente de
bares sujos, de onde só pela fachada e cheiro podia inferir drogas,
sinuca e prostituição barata. De dia, funcionava o comércio de
produtos de segunda linha e ônibus que levam às periferias da
cidade. Uma pobre verruga dentro do Centro plástico. Uma igreja
no núcleo do antro dava um ar irônico ao quadro.
Na entrada do prédio, encontrou Andressa, que recém
chegava. Subiram juntos. Ela exalava odor de perfumes caros.
Andressa não cumprimenta o porteiro e dá apenas “oi” e “tchau”
para os vizinhos que compartilham o elevador. Parecia outra vez
cansada. Um não perguntou como foi o dia do outro. Falaram
sobre o tempo louco de Curitiba e o jogo. Andressa não vai ao
estádio. Ela visita um amigo que tem uma mulher ciumenta.
Aproveita que ela, sim, não falta aos jogos do Atlético, no
domingo, para conversar.
No outro dia, pela primeira vez, Darcy acordou mais cedo
que os dois. Colocou a mesa para o café como Andressa e
Bruno gostavam. Faltava um dia para começar o plano de fuga.
Pensou que em breve perderia Curitiba. Ouviu falar tanto na
tal Feirinha do Largo da Ordem que resolveu ir lá em busca de
uma lembrança.
O diminutivo não fazia jus às centenas de barracas
espalhadas pela praça. Todo tipo de produto artesanal (alguns
artesanalmente industriais) era comercializado para um mar de
gente que se exprimia em vielas formadas por barracas de lona
amarela. Comeu um pastel e tomou caldo de cana.
Depois de um tempo, tudo parecia igual – montanha de
cacarecos para juntar pó. A tenda mais curiosa era a de uma
idosa que vestia roupas espalhafatosas feitas de lixo. Ela cantava,
feliz, em meio a obras feitas de material reciclado. Tudo parecia
fugir do conceito vulgar de beleza. A linguagem estética dela era
outra. Nas obras da artesã, o lixo era contorcido para ganhar uma
forma nova - bonecas e animais, principalmente - sem perder a
identidade do objeto de outrora.
“Olha que lindo”, exaltava uma criança com uma mão
segurando a mãe, e a outra com o dedo em riste, apontando para
uma girafa. A mãe arregala os olhos e comenta para a filha, em
volume de voz suficiente para todas as barracas das imediações
ouvirem: “Que coisa horrenda”. De bate pronto, a autora das
obras respondeu:

140 | Efigênia Ramos Rolim


- Um pouquinho de loucura que está dentro de mim / Vou
mostrar para as criaturas que a vida é sempre assim / Eu não
tenho muita cultura para seguir este caminho / Mas nas minhas
aventuras eu sei que não estou sozinha
Eu não sei para onde vou / Ninguém sabe de onde eu vim /
Mas se Deus me convidou, eu fico até o fim
Pelas ruas isoladas / Ninguém me conhecia / Eu sentava nas
calçadas / E declamava poesia
Mas nem tudo que diz a verdade / Mas pode ser verdade que
diz / A maior felicidade é saber ser feliz
Felicidade não é ‘avoar’ alto / Mas ter onde pousar
Como o chapéu na cabeça é muito pouco / Espero que o
mundo reconheça quais são os loucos / Quais são os loucos? /
Eu fiz a minha roupa com tanto capricho / Chamam de louca
por que visto lixo?
As crianças que me chamam de bruxinha / Pobre sem defesa
que defende a natureza / Então me chama de madrinha
Darcy aplaudiu. Espremeu-se por mais um tempo pela
extensa feira. Quando viu os comerciantes desmanchando as
tendas, voltou até a barraca da poetisa chamada Efigênia Ramos
Rolim. Ajudou-lhe a juntar suas coisas e a acompanhou até sua
casa na Vila Oficinas. O diálogo transcrito a seguir aconteceu no
ônibus e na casa da poeta.

O que acha das reações dos outros em relação à sua


arte? Tem pessoas que não entendem. Daqui a cem anos, eles
vão entender que eu queria ajudar a Terra. Brinco com o lixo,
brinco com a arte. Uma vez eu paguei um mico. Fiquei vendo um
quadro bonito, bem trabalhado, mas era muito risco e rabisco. Aí
eu vi um risco de caneta no meio. Falei com um cara que estava
atrás de mim:
- Olha que coisa engraçada. O homem faz o quadro e ainda
dá um risco de caneta.
Aí ele falou:
- Olha, Efigênia, ninguém é obrigado a explicar a arte. Daqui
a cem anos você vai descobrir por que o autor deu um risco de
caneta.

A senhora já entendeu aquele risco? É para viajar.

A incompreensão te afeta? Antes era o terror. Agora eu


falo: “Se você conhecesse arte, iria valorizar mais”. Nem Jesus

Curitibocas | 141
conseguiu agradar todo mundo. Agora declamo essa poesia
que você ouviu, a primeira que eu fiz. Nunca li e nunca estudei.
Imagina quanta coisa tem no universo. Imagina quanta coisa está
lá em cima, que Deus quer mandar para o homem. E o homem
passa por baixo, ou pisa por cima, e vai buscar uma coisa grande.
Mas, se busca uma coisa grande, esquece das pequeninas. Então,
a gente quer buscar as coisas grandes e nem faz as pequenas. É
um dródio.

Dródio? Dródio é quem acha bonito, diz que vai fazer e não
faz. Tudo dá trabalho.

Tem muito dródio aqui? Tenho uma história. Tinha o


Laurito e o Laurenzo. O Laurito que estudava muito e era um
grande admirador do pai. O Laurenzo era um dródio que não fazia
nada, só ficava vendo as coisas. “Seu dródio, seu dródio”, xingava
o pai. Daí, disseram que o Laurenzo era um criado, o pai deles
não admitia que era filho legítimo. Laurito era superdiferente,
ficou um estudantão. Enquanto o dródio criou o hip-hop.

Como assim, criou o hip-hop? Levaram o dródio lá para


o Rio de Janeiro. Daí, ele pegou e foi para a feira e encontrou o
pessoal catando latinha:
- É hoje que eu vou fazer alguma coisa, vou fazer algo agora
- Laurenzo disse.
Aí, ele pegou as latinhas, brigou com os outros catadores.
- Eu só quero duas - disse ele.
- Uma eu dou, seu dródio.
- Me dá mais uma que eu estou criando uma coisa muito
bonita.
E aí começou a cantar. [Efigênia canta e marca o ritmo com
duas latas]:
Mandaram no restaurante buscar comida / Lá tinha /
Perguntaram o que tinha lá / Lá tinha / Feijão, lá tinha
Mas eu não tinha nenhum tostão para comprar / Depois que
fizeram a recessão / Lá tinha / Virou minha canção / Depois que
comeu o alimento /
Lá tinha / Virou meu instrumento
Então minha barriga vazia tum / E a lá tinha? / Fazia parte
do meu tum tum tum
Aí, todo mundo largou dos carrinhos de papel. Pegou uns
instrumento, umas tampa de lata, tampa de chaleira, tampa de

142 | Efigênia Ramos Rolim


panela e começou pá-pá-pá. Você sabe que jornalista quando
não tem o que fazer, qualquer merda é prato cheio. Pegaram e
viram um grupo de pessoas batendo latinha. Alguém passou e
avisou para o Laurito que o dródio estava fazendo alguma coisa
com um grupo de pessoas.
- Onde está aquele banana?
- Está lá ó. A televisão está em volta dele. Aí, ele foi lá e
chamou o irmão de otário.
Você me chamou de otário / Porque eu ando de pé no chão
/ No dia do meu aniversário / Eu vou ganhar um sapatão
Você me chamou de otário / Porque eu ando de caminhão /
No dia do meu aniversário / Eu vou ganhar um carrão
Você me chamou de otário / Porque diz que eu sou um bobão
/ No dia do meu aniversário / Você vai ter uma surpresa / Você
vai ter a certeza / Que o otário é o seu irmão
Você me chamou de otário / Porque eu deito no calçadão /
No dia do meu aniversário / Eu vou ganhar um colchão
Você me chamou de otário / Porque disse que eu passo
fome de pão / Mas no dia do meu aniversário / Eu vou ganhar
um bolão
Uma velhinha que passava ali disse:
- Olha, Laurenzo, você é filho do meu filho, você é meu
neto.
- Mas avó, por que só agora você me falou?
- Porque a gente tinha vergonha de você. Agora você é
poderoso e famoso, agora a gente pode falar.
- Mas eu não vou estudar. Eu sou Hip Hop. Eu sou hippie,
o resto do povo é o hop.

Onde você começou a exibir sua poesia? Parti para


a Feira do Poeta em 1990. Era o lugar que os poetas reuniam
para falar poesia. Tinha apoio da Prefeitura. Achava que os
poetas tinham que ser bonito, rico. Mas era tudo diferente do
que eu pensava. Nessa época, comecei no artesanato. Uma vez,
na rua, achei que tinha encontrado uma jóia. Peguei e vi que era
um papelzinho de bala. Se fosse uma jóia, eu só ia usar e acabar
a questão. Agora eu estava tentando dar vida a um mísero papel
caído. Fiz uma roupa, um chapéu.

Como iniciou na Feira do Largo? No começo, foi um


desastre. Trabalhava na barraca do Hélio e levava meus bonecos

Curitibocas | 143
para mostrar. A Magda Modesto viu minhas bonequinhas e falou:
“Ela é louca de lúcida”. Foi o primeiro salto na minha carreira.

Onde foi pousar esse salto na carreira? A Julieta Reis,


que era vereadora, viu eu com os bichinhos e gostou. Pedi para
ela se eu podia fazer exposição do meu trabalho. “Ah, Efigênia,
por que não faz outra coisa? Você é tão inteligente, faz um
santinho. Por que está fazendo isso?”. Fiquei meio chateada e
dei uma de João-sem-braço. Fui lá na Fundação Cultural e falei
com a diretora, que queria fazer uma exposição. Aí, ela ligou
para ela: “Julieta, sabe quem está aqui comigo? A Efigênia. Você
está expulsando a Efigênia da nossa Curitiba? A Efigênia quer
fazer exposição e você está dizendo para ela mudar de idéia? Vai
aparecer um americano, um suíço, e leva ela”. Daí a Julieta me
deu um canto ao lado do Hélio, aquele com topete branco. Não
tinha barraca nem nada. Eu usava uma bandeira que os sem-terra
tinham me dado depois de um show que eu fiz para eles. Foi um
escândalo. Só assim me deram uma barraca, em 92.

Moraria em outra cidade? Não. Já acostumei com esse


povo, com essa língua. Se eu voltar para Minas, não voltaria mais
a falar a língua dos mineiros. O mineiro fala muito enrolado.
Você está conversando, eles chegam e já querem contar os casos
deles. Aprendi a esperar os outros falar aqui. Quando juntava os
mineiros falando, ninguém se entendia. Claro que eu tenho um
carinho especial por Minas. É minha terra natal. Os mineiros são
maravilhosos, mas eu acostumei com o ritual de Curitiba.

De onde você tira sua inspiração? É um dom que veio


de Deus. A poesia está enclausurada no universo. Nem todo
o mundo tem a graça, a essência. Cada um tem sua arte. Que
adianta fazer isso aqui e não botar na rua. Arte é uma busca no
universo. Toda hora tem, todo minuto tem algo para a gente fazer.
Não posso deixar passar. É uma guerra. Isso aqui é o sonho do
meu sonho.

Sente reconhecimento? Engraçado, sou criadora de


invento, mas não me valorizam muito aqui em Curitiba. Fui falar
com a Lala Schneider e ela falou que a minha coisa não tem graça.
Cada invento maravilhoso que eu crio. Mas, aí, eu vou falar com
as pessoas e cada um acha que o seu é mais importante. Então,
fico com os meus bonecos.

144 | Efigênia Ramos Rolim


Quanto você cobra por peça? Eu não ganho muito lá.
Cobro 10, 15. Cobro um real por foto. Mas também, às vezes, não
cobro. Tem gente que não paga e eu nem vou atrás.

Paga quanto pelo espaço na Feirinha? Eles queriam


que eu pagasse. Diziam:
- Mas você não ganha um bom dinheiro?
- Engraçado, eu fico lá o dia inteiro e nunca vi vocês irem lá
me dar dinheiro.
- Bom, Efigênia, eu assino. Mas, se você falar para alguém,
eu te caço - me falou o diretor.
Aí, uma semana depois, o Jaime Lerner apareceu lá. Fizeram
uma matéria comigo porque eu tinha sido escolhida para
representar o Paraná nos 500 anos.
- Pois é, mas essa semana alguém me falou que ia me
caçar.
- Caçar a Efigênia? Essa mulher que está numa luta
tremenda?
- Olha, seu Jaime Lerner, eu acho que vocês deviam me dar
um salário. Se eu sou um patrimônio de Curitiba, por que eu
tenho que pagar para trabalhar pela cidade?
Daí, deu uma semana, ele estava me chamando para ir para
Brasília. Aí, parei de pagar.

Os políticos sempre apóiam a senhora? Nem sempre.


O [Roberto] Requião mandou desmontar 200 obras que eu tinha
em um museu de Piraquara. Abandonaram um hospital holandês,
muito poderoso. Pegaram, juntaram tudo e se mandaram.
Deixaram aquele espaço de dez mil metros quadrados do Estado.
Tinha gerador, tinha tudo. Daí, quando ficou aberta a construção,
em 1980, começou a entrar gente. Aí, a prefeitura recolheu os
artistas populares e disse que podia ficar lá para trabalhar. Eu e
uns cinco artistas tínhamos entrado lá. Estava feliz por ter um
novo espaço. Daí, quando o Requião descobriu que nós estávamos
lá, mandou jogar tudo fora. Disse que era invasão. Nós fomos
burros e não pegamos assinatura de ninguém. Mas não quis abrir
processo, que eu não posso brigar com os grandes.
Como foi na comemoração dos 500 anos? Cada estado
tinha que apresentar o que tinha melhor. Tive a grande honra
de viajar de avião pelo meu próprio mérito. Fiquei num hotel
que era mil reais por dia, me levaram nos melhores restaurantes

Curitibocas | 145
alternativos. Foi uma exposição no Senado individual. O Requião
estava lá em Brasília para ver.

Você falou com o Requião naquele dia? Não.

Quantos anos você tem? Sou de 1931, 21 de setembro.


Acho que estou vivendo uma vida muito de criança.

É casada? Casei com 19 anos. Fiquei casada 39 anos. Meu


marido morreu em outubro de 88. Era um homem muito bom,
carinhoso. Gostava de mexer com lavoura e planta. Ele ficou
muito doente lá no Norte do Paraná. Daí, quando perdi meu
marido, pensei: “Sou viúva. E agora? Vou ficar em casa”. Daí, meu
filho falou: “Mãe, sua vida é tão preciosa, por que fica aí dentro
de casa? Vai lá fora”. Fiquei viúva, resolvi não casar mais. Tinha
muito mais coisa para fazer do que cuidar de marido.

Quantos filhos você tem? Sou mãe de nove filhos. Um


está lá no céu, com Deus. Foi uma morte inédita lá no Shopping
Mueller. Tinha 27 anos, casado, pai de um menino de cinco meses
na época. Estava no caminho do serviço quando bateram no carro
dele. Batida acontece, mas foi uma coisa muito esquisita, porque
amassou todo o carro. Aí, ele apareceu enforcado, no banheiro do
Shopping Mueller, com uma corda de varal. Nem procuro saber
o que aconteceu, nem tenho como. Isso aconteceu em 1996, na
véspera de Natal. Não deu em jornal nem nada. São poderosos, os
caras do shopping. Aí, a mulher dele falou que não era para nós
saber o porquê. Acho que ela tem uma parcela de culpa. Ela era
a esposa e não quis saber. Vamos parar por aí, que eu quero paz
e isso já passou. Minha vida acabou naquela época. Pensei que
não tinha mais condições de viver. Mas recebi muito apoio dos
outros. Jesus falou comigo. Não diretamente - não escuto vozes,
sou bem lúcida. Decidi que não faria vingança comigo mesma.

E os outros filhos estão bem? Meu filho Geraldo tem


uma deficiência. Ele é o mais velho, tem 56 anos, mas é bem
frágil. Graças a Nossa Senhora Mãe de Deus que deu para ele uma
oportunidade de não ser um excepcional. Ele é uma pessoa que
só tem problema físico. O médico falou que ele viveu por milagre.
Eu falei que todos nós vivemos por milagre. Essa vida, com toda
a força que a gente tem, escapa de uma hora para outra.

146 | Efigênia Ramos Rolim


Curitibocas | 147
Você falou do Norte do Paraná. Quando morou lá?
Nasci em Minas, em Abre Campo. Papai era fazendeiro. Depois,
casei lá em Minas. Fiquei muito pobre, tocando lavoura. Não
dava certo, meu marido não estava bem de saúde, tinha problema
de fígado. Aí, meu cunhado veio para cá no Paraná. O pai dele
comprou um terreno aqui. Aí, ele falou que se eu quisesse vir,
era só chegar. Em 64, o meu cunhado veio buscar nós, que
estávamos com sete filhos e muito pobres. Quando temos uma
missão, não adianta meu pai ser rico. Se eu tenho que ser pobre,
vou ser pobre. Porque depois vem a riqueza, né? Envolvida com
minha riqueza, eu jamais veria o valor de um papelzinho de
bala na rua. Pegamos uma formação de café, mas não tivemos
sorte nenhuma. No quinto dia, veio aquela geada preta de 1964
e destruiu tudo.

Essa geada é histórica. Não sei como nós não morremos


de frio. Morávamos em um barraco de madeira. No outro dia,
levantei cedo. Cheguei no fogão de lenha e vi aquela coisa
branca. Peguei o caneco para fazer o café, estava uma pedra.
“Óia, o que é isso?”. O meu cunhado respondeu: “Oh, boba. Isso
é geada, você não agüenta”. Em Minas não tem geada. Ainda
mais no nortão de Minas. “Vem deitá”, dizia ele. Aí me enfiei
debaixo dos cobertores. Quando veio o sol, estava tudo esquisito.
Parecia que tinham prendido fogo nas bananeiras. As plantações
estavam todas mortas. Ainda bem que eu sou forte. Nunca mais
apareceu geada como aquela. Dava para fazer uns muros de
geada. Perdemos tudo. Aí, plantamos feijão. Deu 40 sacas. Teve
que podar o café para poder brotar de novo. Depois, plantamos
arroz. Um ano depois, veio um vento que destruiu todo o arrozal.
Aí, meu cunhado pegou uma fazenda para cuidar. Estava bem
animado. Nossa lavoura estava muito boa. Porque a geada tem
uma coisa: mata todos os vírus. Quem planta no ano seguinte,
aproveita. Ele mandou nós embora porque estávamos devendo
para ele. Eu estava grávida, queria ir embora. Meu cunhado, que
estava rico, disse que não agüentava mais a gente. Aí, em 68,
fomos para a cidade de Tamarana.

O que fizeram em Tamarana? Comecei a trabalhar


de bóia-fria para manter o aluguel. Lavava roupa em duas ou
três casas. A irmã duma vizinha falava que tinha uma casa
em Curitiba, que se eu fosse para lá, tudo ia dar certo e que
se precisasse eu poderia dormir na casa dela. Aí, meu marido

148 | Efigênia Ramos Rolim


ficou muito mal. O médico disse que ele tinha um problema
no coração, que não podia deixar ele lá. Como ele era bom. Se
a gente quer manter a vida firme, mesmo na pobreza, como os
anjos que lutam pela guerra, encontramos muita gente boa no
mundo. Então, ele pegou e mandou uma carta para um médico
de Curitiba. Isso foi em 71. Dos oito filhos, só trouxe três para
Curitiba. Uma menina de cinco anos, um menino de três, e um
menino que ainda amamentava.

Aonde veio morar aqui? Fui para o albergue da dona


Ervira, na Mateus Leme. Lá paguei todos os meus pecados.
Achei que tinha ido no inferno, em vida. Não podia ter cristão
que agüentasse aquele negócio. Era através de chicotada, grito,
através de não dar comida. Tinha cara que catava casca de ovo ou
de banana do lixo para não passar fome. Ela [done Ervira] punha
eu para dormir no piso. Como meus filhos faziam xixi na cama,
não podia dormir na cama. Tinha que ser um cobertor para a
gente cobrir e outro para forrar. No final da noite, enrolava tudo.
E tinha gente que ainda roubava os cobertores por que estava
passando frio. Fiquei 11 dias nesse lugar.

E depois, para onde foi? Fui para a Catedral de Curitiba.


Estava com meu neném no peito, os pés descalços e meu marido
tremendo de frio. Aí, eu saí e falei para Nossa Senhora: - Maria,
seu filho está tão bem. É dono de tudo isso aí no mundo. Não
precisa mais sofrer, ele que sofreu tanto.
Ela respondeu no meu coração:
- Eu fiz meu filho transformar água em vinho, no melhor
vinho. Ele até hoje transforma. Só que o homem não sabe pedir
meu vinho. Pede para ficar embriagado.
- Me dá esse vinho. Estou aqui sem ninguém, sentada num
banco que não é meu e daqui a pouco tenho que sair.
Assisti à primeira missa. De repente, alguém, ao invés de pôr
o dinheiro na capelinha, deu dinheiro na mão da minha filha.
“Mãe! Mãe! Olha, Pai! Ganhei dinheiro”. Eu até hoje lembro dessa
história para ela. O menor falou assim: “Tem que dar para o pai,
né?”. Nesse dia, assisti a três missas. A primeira, por devoção e
outras duas, por interesse. Não foi justo. Vi o pessoal queimando
vela nos pés de Jesus. Disse:
- Aí Jesus, não tenho dinheiro para queimar vela.
Jesus falou assim:
- Você já é o fogo.

Curitibocas | 149
- Um foguinho apagado. Pareço um borrãozinho de
cigarro.
- O que pega fogo na floresta? Ninguém vai com um faixão
de fogo na floresta. É um borrão de cigarro, que se soprar pega
fogo.
- Sopra-me, Senhor, sopra-me.
Aí, ele me deu um sopro. Recebi um dinheiro bom lá. Mais do
que um homem quando trabalha o mês inteiro. Daí, os monges
franciscanos, da Igreja do Espírito Santo, falaram que podia
ir para lá para comer. Eu fui. Minha menina comeu tanto que
teve disenteria e vômito. Comida muito farta, ela não estava
acostumada.

E a sua amiga que ofereceu casa em Curitiba? Cheguei


na favela do Seminário para procurar ela. Não estava. Esperei
sentadinha. Uma senhora crente falou:
- Você está esperando a Zumira? A Zumira foi para casa dos
parentes dela e não sei se volta hoje. Acho que ela não vai poder
recolher vocês. O avô dela está doente.
Nesse dia que dormi no albergue. A crente disse que eu
poderia comer e beber sem pagar nada. E quem disse que não
queria pagar nada? Sou anjo de luta mesmo. Aí, eu fui para cidade
para recolher aquele pão. Fui procurar e deixei um dinheiro com
a senhora crente. Ela alugou uma casinha na favela do Seminário.
Quando voltei, ela tinha feito um fogão de lenha com tijolos,
tinha posto colchão, roupa, louça, vasilhame. Pessoal de favela,
na hora de ajudar os outros, ajuda mesmo. Os vicentinos me
ajudaram. Deram roupa, calçado. Não saí mais da Catedral com
frio. Vestiram eu, meus filhos e o meu marido.

Quanto tempo passou na favela do Seminário?


Cheguei no fim de fevereiro de 71. Nessa época, eu trabalhava
como doméstica. Comprei o terreno e a casa da Vila Oficinas, no
natal daquele ano. Acho que nunca mais vou ter um natal tão
lindo. Acho que nunca teve um natal tão lindo. Os vicentinos
fizeram a maior caridade do mundo. Trouxeram tudo o que
precisava na casa. Cama, colchão, fogão, roupa, brinquedo... Aí,
eu fui para a missa do galo. Naquele tempo, era à meia-noite.
Hoje é mais cedo. Quando chegamos, a casa estava acessa, estava
linda. Oh, noite feliz. Só quando eu for para o céu.

Desde então você está aqui? Não. Depois, meu filho nos

150 | Efigênia Ramos Rolim


levou para Pinhais. Moramos sete anos lá. Que tempo perdido.
Pinhais tem muita carência de arte. Morava nos fundos da casa de
um filho. Fui para lá em 2000. Agora, voltei para a Vila Oficinas.
Dizem que nem todo mundo tem a oportunidade de saborear
o fruto que plantou. Trabalhei muito aqui: com pastoral, mãe
gestante, criança que morria de fome, costura para as mães.
Era uma atividade não-governamental, para ajudar o povo, para
ajudar às crianças que estavam com fome. Por fim, voltei. Agora
está todo mundo sorrindo. As crianças que nasceram naquele
tempo estão casadas. O pedreiro que ajudou a reformar meu
muro comia os pratos de soja com seis anos na minha casa. Hoje
é pai de família, tem 37 anos.

Por que foi para Pinhais? Minha filha veio e pegou a


casa para ela. Nós compramos todo mundo junto. A casa estava
no nome dela, porque ela trabalhava na lanchonete com carteira
assinada. Ela, antes, morava em uma casa que ficava de frente
para um ponto de encontro dos traficantes. Ela estava sofrendo
muito porque meu genro dizia que ia jogar água fervendo nos
maconheiro tudo. Ela veio e pegou a casa.

Como você vai de saúde? Estou muito boa. Se não fizesse


nada, acho que estaria doente. Nasci de sete meses, fui criada
de muito trabalho. Era muito frágil, mas, toda a vida, tive muita
saúde. Já tive uns caroços aí, um problema no estômago. Tive
cinco operações em um ano. Estava com uma bolsa grande. Aí,
levei um tropicão e torci. A dor ficou. Saiu minha bacia do lugar,
fiquei numa cadeira de rodas. O médico disse que ia colocar a
bacia no lugar. Eu dizia: “Doutor, é só a bacia ou tem tigela,
caneco, talher? Se for a bacia está fácil de arrumar”. Ele falou
para eu não brincar mais. As pessoas se admiram, com a minha
idade, a saúde que tenho. Não tomo remédio nenhum.

O que aconteceu com seu olho direito? Deu uma


catarata. Fui num médico do posto de saúde que disse que
tinha que tirar, mas tinha que madurar primeiro. Aí, eu deixei.
Quando voltei, ele disse que estava muito feio, que virou caso
de urgência. Fui no Hospital de Clínicas. Levaram duas horas
para tirar a catarata. Não deu certo. Furou a cristalina do olho.
Ficou muito chateado. Na terceira consulta, me chamou na sala
de psicologia. Falei: “Não tem problema doutor. Tem tanta gente
que não enxerga e que faz tanta coisa boa. Vai ver tenho que pagar

Curitibocas | 151
alguma coisa”. Não quis brigar. Que culpa o médico tem se deu
errado? Se não deu certo, paciência. Pensava que meu trabalho
ia cair. Tive que reaprender muita coisa. Conforme vira o olho,
não dava para subir escada, por exemplo. Não sabia que dois
olhos na cara são tão importantes. E não é que enxergo pouco.
O outro parece que começou a enxergar muito mais.

Além do artesanato, o que você gosta de fazer?


Trabalho com soja. Sou nutricionista desde o tempo do
Figueiredo.

Aonde aprendeu a fazer essa comida alternativa?


Fiz esse curso aqui em Curitiba, no Centro Social Urbano Omar
Sabbag, e comecei a dar o curso nas escola. Eu ensino mais de
70 pratos de soja. Cajuzinho, brigadeiro, beijinho, empadão
recheado. No curso do governo, eu aprendi cinco pratos. O resto
foi criação minha. Trabalhei muito com aniversário, tudo fica
muito barato.

Como define Curitiba? Curitiba é um lugar muito


acolhedor. É uma cidade muito procurada, muito visitada. É
ecológica. Se não fosse Curitiba, eu não estaria nesse caminho.
É uma cidade boa, respeitada, e muito especial, apesar de umas
coisas ruins que acontecem. Ela dá muito apoio ao pessoal que
vem de fora. Acho que ela tem que crescer mais. Por isso, eu
chamo de Curitibebê - é um bebê ainda.

Crescer em que sentido? Pela quantidade de visitas que


recebe, devia crescer mais. Na arte, por exemplo. Graças a Deus,
está melhorando. Não é mais aquele artesanato só interessado em
vender e ganhar dinheiro. Tem uns grupos se juntando na praça,
as capoeiras que não se via mais. Curitiba está melhorando, está
aceitando. Tinha que abrir um fórum para conseguir recurso para
os artistas populares. Ninguém fica ali cantando, se gastando,
sem ganhar nada. Por enquanto, só quem ganha nos grupos
são uns. Só o professor de capoeira ganha. Mas e os outros? Me
dou muito bem com os curitibanos em geral. O pessoal respeita,
acredita em mim, mesmo na idade que estou. Curitiba tem muita
desigualdade. Por exemplo, um menino está deitado no chão,
o povo passa como se não existisse ninguém ali. É um pouco
de discriminação e racismo. O curitibano vive a vida dele e não
quer se envolver com a vida dos outros. Lá em Minas, era uma

152 | Efigênia Ramos Rolim


coisa incrível. Bahia também. O pessoal vive muito unido. Mas,
o resto tudo, não tenho do que reclamar. Gosto muito da vida
religiosa de Curitiba. A gente sempre tem uma casa aqui na terra,
um paraíso. Depois, nós vamos nessa luta. Aí, aparecem os anjos
que lutam, os espíritos de Deus que lutam para vencer. A guerra
é todos os dias. Cada dia nós vencemos um pedacinho. Tem que
ter aqueles soldados que morrem tanto. Mas eles vão à luta até
o último. Enquanto tem um, tem guerra. Sou um soldado. Se
recuar, sou fraca.

Qual é o cúmulo da miséria? A falta de trabalho.

Onde você gostaria de morar? No céu.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Quando


eu estou falando com as pessoas.

Para quais erros você tem maior tolerância? As


pessoas que não tomam banho.

Quais obras literárias você prefere? Eu gosto de


ouvir as pessoas lerem.

Qual é seu personagem histórico favorito? Gosto


quando criam os personagens.

Seu pintor favorito? Pode ser aquele que dá o risco e


rabisco e vira arte.

Seu músico favorito? Bruno e Marrone.

A qualidade que prefere no homem? Aqueles que


fazem mais do que falam.

A qualidade que prefere na mulher? Eu gosto


quando elas se vestem bem.

A virtude que prefere? Todos os tipos de caridade.

Sua ocupação favorita? (hobby) Conversar com as


amigas.

Curitibocas | 153
Quem você gostaria de ter sido? Eu gosto de ser eu
mesma.

O que você mais aprecia nos amigos? A troca de


emoções, a paciência, o amor.

Seu pior defeito? Falar muito.

Seu sonho de felicidade? Ver a minha família unida.

Qual seria sua pior desgraça? Eu ficar muito velhinha


e não poder andar mais.

O que você gostaria de ser? Eu mesma.

Sua cor favorita? Amarelo.

A flor que mais gosta? Margarida.

Qual pássaro preferido? Sabiá.

Seus autores favoritos em prosa? João Belo.

Seus poetas favoritos? Hélio Leites.

Seus heróis na vida real? Geraldo, meu filho.

Seus nomes favoritos? Clemente.

O que você detesta? Pessoas que podem fazer e não


fazem.

O feito militar que mais admira? As policiais


femininas.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? Plantar


muitas árvores e criar um jardim.

Como gostaria de morrer? Dormindo.

Seu lema? Na luta pela vida, o meu lema é vencer.

154 | Efigênia Ramos Rolim


Curitibocas | 155
Mudança no hábito

Irmã
Custódia

N
a volta da Vila Autódromo, Darcy prestou mais
atenção no ônibus biarticulado que tomara. Na
ida, sua concentração estava toda focada
na conversa.
O sistema de voz, com o nome do ponto, quais portas que
se abririam, e um conselho (“cuidado com furtos no interior do
veículo”) era primoroso. Não conseguia entender por que tanta
densidade de passageiros na entrada e saída. Os corredores
poderiam acomodar os espremidos da porta.
O Largo da Ordem pouco parecia com o que presenciara
algumas horas atrás. A única atividade era o halterocopismo
em mesas espalhadas ao ar livre. Não sobrara nem uma
barraquinha. Em frente à igreja, agora, era perceptível o mau
gosto da fonte em forma de cabeça de cavalo por onde a água
era despejada como uma baba incessante. Postes e outros
elementos, somados à ponte enferrujada do dia anterior,
colocavam em dúvida a propalada arquitetura da cidade.

Curitibocas | 157
Darcy resolveu explorar além dos limites da parte histórica
da cidade. Encontrou uma vídeolocadora. Quem sabe, isso
animasse um pouco Andressa e Bruno a se reunirem junto
de Darcy, na sala, por mais de uma hora. Queria um filme
romântico e com ação. Afinal, toda história que não tem tiros
e beijos é enfadonha. Havia um cartaz antigo que parecia se
encaixar no que Darcy buscava: “O Gralha e o Oil-Man - Um
Encontro Explosivo”. Mas o atendente frustrou os planos de
Darcy ao pedir algum documento.
O jeito era caminhar. Darcy seguia, sem maiores
pretensões, uma pós-balzaquiana charmosa, de fino trato,
portando uma grande mala. Um barbudo, mais ou menos da
mesma idade, encostado em um muro, a fitava de longe. Ela
passou diante dele, que, pronunciadamente, acompanhou as
ancas da senhora com o pescoço. Ela parou, deu meia volta e
encarou o barbudo. O homem sorriu com o canto direito da
boca. A mulher pediu para que ele cuidasse da mala, que ela
já voltava. Precisava ir à lanchonete ao lado. Rapidamente,
estava de volta.
- É, tem um hotel ali perto que a gente podia ir.
- Senhor, eu sou religiosa, sou freira, fui telefonar para as
irmãs. A vida não é só o que o senhor pensa, não. A vida tem
outros aspectos, não é só sexo, somos inteligentes. Obrigada
por cuidar minha mala, boa noite e até logo.
Freira?!?! Sem pensar duas vezes, Darcy pediu uma
entrevista para agregar dados na pesquisa “Freiras na urbe
pós-moderna”. Respondeu que gostava de dar entrevistas.
A freira deu a entrevista, depois de largar suas malas na
Congregação que estava a 50 passos. Parte da entrevista foi
respondida por meio dos gestos das mãos de Custódia Maria
Cardoso, mais conhecida como Irmã Custódia. Religião, nas
palavras dela, perde o ar solene e afetado. O alto astral não
se abateu nem nas perguntas que colocaram em xeque os
dogmas da religião.

Eu via a interpelação desrespeitosa que a senhora


sofreu. Concordo que realmente você está muito
elegante hoje. Não é hoje, é sempre.

Vaidade não é pecado? Não. Acho que, no caso de dentro,


a pureza de intenção é o que conta. Agora, quando as pessoas me
vêem e digo que sou freira, estranham um pouco.

158 | Irmã Custódia


Já levou outras cantadas? É muito comum. Outra que
aconteceu foi quando eu vinha de Apucarana para Sorocaba. Eu
não uso aliança de casada, como símbolo de união a Deus, como
as outras irmãs. Quando os caras olham que não tem aliança, eles
atacam. Então, um cara dava sinal e parou. Aí, ele passou e eu ri,
porque não posso ficar séria. Continuei. Quando chegou em um
posto de gasolina, dei sinal e ele parou. “Eu vi que você parou lá.
Eu sou religiosa, estou indo para a reunião. Eu ri porque é próprio
do ser humano, não por querer sexo. Quero dizer para você que
a vida não é só isso, não”. Aí, ele ficou preto, vermelho, amarelo.
Quando eu fazia a faculdade, em Bauru, eu usava hábito. De vez
em quando, passavam uns caras dizendo: “Ô, desilusão”. Foi
difundido em novelas e livros que a vida religiosa é para resolver
problemas. Se a filha tem um problema, era para mandar para o
convento. O pai queria que casasse com um, e, se não desse certo,
mandava para o convento. Em Apucarana, tivemos mulheres que
queriam ser irmãs porque brigaram com o noivo. Tem muito
disso. Então, as freiras me admiram bastante, eu acho.

Nessas cortadas, você não tem medo do cara


ter uma reação agressiva? Não tenho medo, sou de uma
família muito democrática. Eu defendo os pobres, até falo com a
polícia. Uma vez, na rodoviária, veio um policial tirar um mendigo
sentado em um banco na madrugada. Falei que ele estava quieto,
não tinha por que tirar ele. Uma amiga disse: “Mas você está
louca? Aqui em São Paulo todo mundo respeita a polícia”. Se
uma pessoa precisa de mim, eu defendo. Se eu recebi a graça de
enxergar, tenho que falar.

Por que você não usa hábito? Muitas colegas minhas,


quando viraram irmãs, falaram: “A vida religiosa é muito dura”.
Tem gente que até hoje me encontra e diz que eu não pareço
freira por eu ser alegre, bonita. Então, você quer que eu me
consagre a Deus como uma mulher acabrunhada e triste? Eu
vou dar cursos no Rio de Janeiro, Manaus, Salvador, Maceió, São
Paulo, Santa Catarina. Quando você vai nas outras congregações
religiosas mais fechadas, que ainda não abraçaram o Concílio do
Vaticano II, aí eles ficam assim [expressão de surpresa]. Para
ser consagrado a Deus, a gente tem que ser feliz. Agora, a gente
tem que viver muito o perdão profundo, a fraternidade. Isso eu
ponho na minha vida.

Curitibocas | 159
Você já usou hábito? Já. Tenho foto e tudo. Quando a
congregação liberou, eu deixei de usar. A nossa Congregação,
“Irmãzinhas da Imaculada Concepção”, é brasileira. É mais fácil
de você conviver e explicitar. As irmãs trabalhavam, por exemplo,
em Mato Grosso ou em Manaus, com 41 graus. Nem a pintura
pára. As irmãs começaram a ir até os índios, porque a Santa
Paulina acreditava que a vida religiosa devia servir a Deus onde
mais o povo precisasse. Então, as nossas freiras trabalhavam
com loucos, aidéticos, na periferia. Aí, as irmãs perceberam que
os hábitos estavam diferenciando muito, distanciando muito.
“Por que estamos usando hábito, que é uma questão de hábito
da Idade Média, em uma congregação brasileira?”, questionou
a Congregação. O hábito das irmãs comuns, compridos, das
mulheres camponesas. Você veja as vicentinas, aquelas de
chapéus enormes, é uma coisa das damas francesas. Então foi
votado e nós fomos aderindo.
O hábito não é uma questão programática da
Igreja? Os fundadores das congregações não exigiam hábito.
São Francisco, por exemplo, usava uma trapeira. Então, como
foi estruturando, a Igreja foi igualando, mas as congregações
ficaram cada uma com sua marca. Nós achamos que o necessário
na vida religiosa é o testemunho, não a roupa. As vicentinas, que
são uma das maiores do mundo, estão liberando. As congregações
brasileiras são mais fáceis mudar. Europeu é mais fechado. A
maioria das irmãs da nossa Congregação não usa hábito. Eu, além
de não usar hábito, ando arrumada. Faz parte da minha família,
de mim. Estou aperfeiçoando a natureza. As irmãs aprovam. As
que não aprovam, não falam. E quando falam, eu rebato.

Se Jesus voltasse, usaria as roupas opulentas do


Papa? De fato, Jesus não usaria. Falo para alguns padres que
é fantasia. O Concílio do Vaticano II veio e disse que as roupas
deviam ser sóbrias, as túnicas deviam ser brancas, para não
ter muita renda. Lembro de um padre que usava uns bordados
iguais aos do meu sutiã, na manga. A Igreja sempre foi sóbria,
até Constantino. Quando ele foi imperador católico, quis mostrar
para os imperadores pagãos que o Deus dele era maior. Você
nota essa diferença é quando você vai a Roma e à Terra Santa.
Constantino tornou os templos grandes. Isso trouxe um mal
durante um tempo para a Igreja. O Concílio Vaticano II pediu
maior sobriedade.

160 | Irmã Custódia


O que acha do papa? Eu estou torcendo para que o
próximo papa seja italiano. Italiano é bonna gente, não sofreu
muita perseguição, então não tem aquela marca. O João Paulo
II era um cara aberto nas questões sociais, mas fechado na
ortodoxia. Isso porque ele sofreu a perseguição na Polônia. Ele
viu o campo de concentração, sofreu na pele. O medo dele era
que voltasse o nazismo. Bento XVI é alemão, tem pavor de tudo
que sofreu. Eles têm na pele esse sentimento de infância, esse
pavor.

Um papa brasileiro daria certo? Seria muito legal.


Teria que ser um papa aberto, não adianta ser um brasileiro
fechado, porque isso vem da família. Se você apanhou muito,
você se fecha. Se você vem de uma família democrática, você
tem liberdade. Por exemplo, minha mãe é professora, lecionava
muito bem, nós falávamos muito. Meu pai pregava na Igreja,
discutia com protestante, falava da justiça. Isso vai passando,
pode ver que eu puxei mais o pai. Também a liderança dentro
da família. O líder nasce.

O número de fiéis católicos vem diminuindo. O que


a Igreja deve fazer para reverter isso? O meu marketing é a
música e a liturgia. Sou seguidora ferrenha do Concílio Vaticano
II, onde começa uma Igreja nova, onde o povo tem participação.
A vida religiosa não é fuga mundis, mas estar no meio do povo.
Leonardo Boff fala que a vida religiosa não é uma consagração
como os pagãos faziam onde mulheres virgens eram consagradas
para aplacar a ira dos deuses. Nosso Deus precisa de mulheres
de perna, braço e coração Dele no meio do povo. Boff começa a
ter uma ótica da teologia diferente. A Igreja de Santo Agostinho
parte de uma ótica de cima para baixo: parte de Deus e depois
chega na pessoa. Leonardo Boff e seu grupo acreditam que parte
da pessoa e chega a Deus. Essa teologia cresceu muito na América
Latina por causa da opressão e da colonização. Essa é a Teologia
da Libertação.

Houve cisão na Igreja entre os conservadores e


liberais, como Boff? Não. Com Lutero houve sim uma cisão.
O que foi uma pena. Ele era um cara aberto para sua época e
acabou fazendo a reforma fora da Igreja.

Curitibocas | 161
Ele foi perseguido. A Igreja da época também. Há 45 anos,
o Papa João XXIII, quando falou: “Precisamos abrir as janelas
da Igreja para entrar o ar lá de fora e ver como está lá fora”. Se
Lutero tivesse permanecido, fazia uma reforma parecida com a
de João XXIII.

A Igreja errou? Na disciplina, sim. Na linha mestra dos


valores de Jesus, não. Sempre tem uma turma, em todas as
épocas, despertando, falando, contestando.

A Igreja deveria pagar penitência pelos erros


disciplinares? Ela mesma percebe. O problema histórico é
que houve uma época em que os papas eram eleitos pelo poder.
Napoleão Bonaparte não aceitou nem que o Papa colocasse a
coroa na cabeça dele. Ela esteve muito tempo ligada ao Estado.
O poder é laico e a Igreja tem a sua liberdade. E por que há os
concílios? Os concílios são esse acordar dos cardeais, de gente
da base que vai falando, que a base que faz as reformas. Por isso
que você tem que falar.

Acha que deveria ter um novo Concílio? Um novo


concílio ainda não, porque o Concílio do Vaticano II é quase
pleno. Inclusive, ele tem a idéia de onde existe uma diocese, há
a Igreja plena. Coloca o aspecto da participação do leigo, que
a Igreja somos todos nós e surge toda essa turma da América
Latina que aporta muito.

Você falou que fez faculdade em Bauru. O que


estudou? Sou formada em produção de rádio e televisão pela
PUC/USP. Fiz folclore, também em Bauru, na Universidade
do Sagrado Coração (USC). Aprendi o aspecto dos povos,
dos costumes, porque folclore é a “sabença” do povo. Gosto
muito dessa história, da evolução, cultura, dança. Depois, fiz
especialização em liturgia e freqüentei os encontros de liturgia de
rádio e TV pela Igreja da América Latina aqui no Paraná. Minha
vida está muito pautada sobre o aspecto social e a liturgia da
Igreja. Fiz teologia, depois de irmã, em Passo Fundo. Era uma
turma aberta, muito seguidora do Concílio do Vaticano II. Sempre
fui ligada à música. A Congregação libera você para fazer o que
quiser para crescer por dentro.

162 | Irmã Custódia


Você trabalhou com música sacra? Criei um coral
movimentado, nos anos 70. A música sempre foi ligada ao
movimento. Saí da faculdade em 65 e, em 1979, gravamos um
CD com o coral Pequenos Cantores de Apucarana. Pode pegar
a Bíblia na parte de Salmos, tem um coro com harpa, lira,
tamborim - até dá os instrumentos. A música está em nossa vida,
no mundo, está em todas ocasiões da nossa vida. O que a gente
precisa é explorar mais, cantar mais. Música tem a emoção, vem
de melus. Quando você atinge a emoção da pessoa, você atinge
toda ela, é todo o seu ser que opta. A Igreja, após o Concílio
Vaticano II, fala que a música é parte integrante da liturgia. Não
é para enfeitar, é para explicitar de maneira emocionada. Santo
Agostinho falava que a música é a expressão sonora da fé, que
os textos litúrgicos rezados têm uma influência no povo, mas
cantados tem um valor muito maior. A música sacra chega mais
perto de um determinado credo, a um determinado grupo. A
música litúrgica é bíblica, está de acordo com os ensinamentos
da Igreja, com o tempo litúrgico, com a celebração litúrgica.
Bach, Händel eram músicos evangélicos, que compunham mais
na parte dos oratórios, alguma coisa bíblica.

Qual a sua avaliação da “dança do Senhor”, de


Marcelo Rossi? Ele é um grande valor e surgiu na mídia por
causa do jeito dele. Hoje, as pessoas precisam de ternura, o
mundo está muito grosseiro, parece que falta tempo. Ele foi
cativando as pessoas. Ele não é como o Padre Zezinho que compõe
- tem 45 anos de música e até hoje grava. Padre Marcelo é um
cara que vai passar, porque ele não é compositor, ele compra
as músicas. Não gosto de falar isso, mas é um cara que não se
compromete muito. Se perguntar para ele algum caso de justiça,
ele sai pela tangente.

Tem que descer do muro? Não vou usar a palavra


“muro”, mas acho que ele devia ser mais fiel. Através dele, muita
gente descobriu a Igreja. Só que não basta ficar nisso. Ele teria
que fazer o pessoal se centrar mais e ir para as comunidades
viver mais o cristianismo da fraternidade. Ele devia ter mais
fidelidade com a prática de Jesus, que é uma prática de justiça
e solidariedade.

Já pensou em ter um programa como o dele? Tive


um programa de rádio por 20 anos chamado “Palavras Amigas”

Curitibocas | 163
e, depois, “Oração da Tarde”. Meu programa não tem nada
de semelhança com ele. Eu acho que alienar não dá. No meu
programa, você tinha que pôr aquela força e pensar em Jesus.
Meu programa era mais centralizado no evangelho, lendo
bastante a prática da fé e da justiça, ação e contemplação.
Onde era transmitido o programa? Na Rádio Difusora
Apucarana. Depois, produzi e apresentei durante 18 anos a missa
de televisão, o “Onze vai à Missa”. Era transmitido no antigo
SBT, na TV Tibagi de Apucarana. Foi um programa que ganhou
prêmio de melhor programa religioso, superando o Rex Humbert,
um crente que fazia um programa muito bem feito, mas que era
produção americana.

Por que parou? Infelizmente, a nossa igreja não investe


muito na comunicação social. As dioceses foram acostumadas a
receber horário de graça do governo. Esse costume pegou e está
duro de tirar. Hoje, somos uma sociedade laica. Os evangélicos
investem. Quando chega um pastor protestante, a primeira coisa
que faz é pegar um programa de rádio e depois forma a Igreja.
É questão de cultura histórica. Rádio e televisão são brinquedos
caros. Também, os evangélicos têm uma coisa que nós nunca
vamos fazer: alienar e mentir como eles mentem com a teologia
da economia, que você vai sarar se você der tanto. Cabe a mim
lutar para que eles não alienem o povo. Acho que a minha vida foi
lutar, tenho processo e tudo. Já chamei vereador de vira-lata, no
rádio, e isso deu problema. Além disso, quando o diretor daquele
horário vê que tem outro que paga mais, você perde o horário.

Quem são os atuais vira-latas da política? Tem


bastante. Nós temos que purificar a autoridade. Está difícil, mas
eu não perco a esperança. Filho de político vai seguir o mesmo
caminho, parece cobra criada, você vê, Ratinho e companhia
limitada já têm um filho. Nós precisamos nos unir e fazer com que
a geração dos que nos governam não seja herança do coronelismo,
mas sejam, de fato, governantes do Brasil.

Você usava a rádio como meio para clamar o povo


em prol das causas sociais? Claro. Uma vez convoquei o
exército das botas brancas, os que trabalhavam no frigorífico,
para ajudar um pessoal que queria morar em umas casas vazias.
Não digo invasão, quem invadiu o povo foram os coronéis, os
ricos. Eles estão procurando um lugar para viver. Chamaram

164 | Irmã Custódia


Curitibocas | 165
polícia, eu ia junto, para apanhar e tudo. Foi o maior problema.
Mas, ainda me chamam muito para dar entrevista no rádio.
Vou em nome da Igreja, tudo. Naquela época da campanha no
carnaval, com o peru que mandava botar camisinha em tudo, eu
fui chamada para mesas redondas.

Qual a sua opinião sobre isso? Estava lá [no programa


de televisão] o chefe dos veados, os caras ativistas. A propaganda
deve ser feita? Deve. O problema é que essa propaganda era uma
chacota, uma leviandade para um problema sério. A propaganda
não defendia a vida. Tem que ver quando me chamam para
falar do Papai Noel. Sempre digo que Papai Noel é um palhaço
vermelho para vender mais. Lembro que Papai Noel foi São
Nicolau, que a história foi outra, ele foi padroeiro da Rússia. A
roupa vermelha foi de lá. Hoje tem que tomar cuidado para ele
não tomar lugar do verdadeiro símbolo que é Jesus.

Você é a favor do uso da camisinha? Olha, acho que


se for para defender a vida, sim. Acho que um filho tem que
ser uma coisa planejada. O mundo será mais equilibrado se as
crianças forem equilibradas. A criança não é que nem uma mesa.
A personalidade é formada pelo afeto. Tem um parapsicólogo
que fala que 70% do ser humano é afeto.

O que acha do sexo antes do casamento? Hoje tem


os meios de comunicação, que é duro o sujeito agüentar. Falo
para as moças que andam com essas calças baixas, que hoje a
mulher se veste como uma prostituta. Quando vem o tarado do
parque, acha que o cara que tem culpa? O cara não tem dinheiro,
está necessitado, aí vê uma mulher se mostrando, parece que
está querendo. Então olha... [sexo antes do casamento] teria
que ser com muito cuidado. Depende da idade também. Sou
contra adolescentes praticando sexo. É muito cedo, tem que se
formar.

Qual é a idade então? Eu acho que não pode ter marca


de idade. Tem que ter marca da formação da família. Por que o
nosso jovem passa diretamente para o sexo? Então, eles pulam a
parte afetiva, para a parte erótica. Isso é um desequilíbrio.

Mesmo assim, o dogma da Igreja diz outra coisa.


Não estou falando da Igreja. Estou falando a minha opinião.

166 | Irmã Custódia


Falo em valores cristãos. A disciplina é para poder o conjunto
todo subsistir, mas a Igreja tem que ser seguidora da práxis de
Jesus, do jeitão de Jesus. Essa é a nossa missão. O resto é tudo
andaime para poder ajudar nisso. A Igreja, hoje, não admite esse
aspecto do sexo antes do casamento.

E não admite a camisinha. E ainda não quer admitir a


camisinha. Tenho a impressão que usar preservativo no sexo
não é gratificante. A gente fala com outras pessoas, também, que
alguns riem e não dá certo. Acho que a gente tem que formar a
pessoa para o amor. Não colocar o sexo na frente do amor. O sexo
deve ser o final, o coroamento, o louro. O amor está relacionado
com o estudo. Quanto mais você estuda, mais tem capacidade,
mais o seu amor vai ser intenso. Mais você é completo para o
outro ou outra. Não é só o sexo. Os animais também fazem sexo.
Inclusive, com as minhas meninas cantoras, que têm namorados,
eu falo para botar a rapaziada para estudar. Se não estudar, não
vai ter futuro.

A religião deve interferir na política? A política é a arte


em benefício do povo. A Igreja tem que sempre defender a vida.
Como a respeito da discriminação da mulher. Nesse ponto, ela
não é seguidora de Jesus. À mulher não é permitido participar
das decisões da Igreja. Jesus não ordenou as mulheres porque
as mulheres, naquela época, não eram emancipadas, não eram
cidadãs. A posição política tem que estar sempre cuidando do
povo, pastoreando o povo, sempre orientando os fiéis.

Gostaria de ser padre? Uma maioria pensa que, se


houvesse a ordenação de mulheres, eu seria bispa direto. Estou
sempre com o microfone. Trabalho muito para que as mulheres
tenham possibilidade de fazer parte da hierarquia da Igreja. Isso
é disciplinar, não teológico. O que é disciplinar, nós podemos
mudar. O que é teológico, de Jesus, não. Igual ao celibato.
São Pedro era casado. O celibato dos padres é uma questão
disciplinar.

Você é contra o celibato? Celibato deveria ser voluntário.


As outras igrejas são assim e os fiéis vão para a igreja do mesmo
jeito.

Curitibocas | 167
Sempre tive uma dúvida: para as freiras é mais
difícil conseguir trabalho? Pelo contrário. Temos mais
facilidade. Primeiro, porque na estrutura religiosa sempre tem
trabalho. As irmãs vão vendo as moças conforme as inclinações.
Elas vão indicando para determinado curso. Eu, por exemplo,
sempre gostei de música. Então, eu fiz escola e já cantava,
regia, trabalhava no rádio, falava nos microfones, dirigia festa.
Atualmente, por exemplo, quem quer trabalhar com periferia vai
fazer faculdade de serviço social e já tem uma base e tudo. Quando
você fala que é freira, tem uma porta aberta, porque todo mundo
sabe do nosso espírito de formação de autenticidade. Tem gente
que fura, mas é muito pouco. Uma em cada quinhentas assim.

Você mencionou vir de uma família democrática.


Fala um pouco de você antes de se tornar freira. Sou
brasileira cabocla. Meu avô era de descendência portuguesa,
mas já era brasileiro. E a minha mãe é descendente muito longe
de espanhol. Era uma família feliz. Somos dez moças, eu sou a
quinta. Tenho boa relação com todas. O pai e a mãe conseguiram
fazer aquela harmonia. A mãe nos vestia muito bem. A gente
participava muito das festas na escola, na igreja. Sempre tivemos
empregadas boas. A mãe saía para lecionar, o pai cuidava da loja
grande de secos e molhados. Meu pai contava história com tanto
entusiasmo, que minha mãe, às vezes, achava que era briga. E
muita gente aprendeu doutrina com o meu pai. Eu aprendi a
Bíblia no balcão. Das dez irmãs, só eu fiquei religiosa.

A tua mãe era professora de quê? Professora primária,


depois foi a primeira mulher de Santa Catarina a criar um mobral
para as pessoas mais velhas que não podiam ler, aprender.
Ela era política, sempre foi de oposição. Desde pequenas, nos
colocava para cantar nos ônibus e cabalar votos. Minhas irmãs
são funcionárias públicas graças à minha mãe. Meu pai sempre
discutia religião com outras pessoas. Nós tínhamos lojas, fomos
uma família bem de vida, tínhamos boas roupas. Quando eu falei,
aos 14 anos, que queria ser irmã, eu achava e ainda acho, que com
a vida religiosa podia ajudar mais os outros. No começo, eu queria
ir com os índios e dançar com eles. A mãe falou: “Mas é tão bonito
uma religiosa estudada”. Sempre trabalhei com comunicação. Em
Apucarana, fui redatora-chefe do jornal Pulsando.

168 | Irmã Custódia


Quando chegou em Curitiba? Faz 12 anos. Quando eu
cheguei a Curitiba e fui para a Catedral cantar, eu bato palma,
tudo. As pessoas idosas vinham agradecer. Pediam para nós
continuarmos para a Igreja seguir viva. Os idosos querem ser
alegres, nós que rotulamos que eles querem ser tristes. Agora,
aqui em Curitiba, os bispos são muito ternura, tudo, mas o Paraná
tem uma Igreja mais fechada. Não assumiu tanto o Concílio
Vaticano II.

Qual a diferença do seu trabalho de Apucarana para


Curitiba? Em Apucarana, tem uma comunidade de base que se
chama Irmã Custódia - começou lá por 1970. Então, a gente se
engajou muito, de fazer aqueles pequenos grupos, para ir além
de ir à missa no domingo, mas aprofundar a sua fé estudando.
Isso tem que ser em pequenos grupos. Depois, vieram também
muitos que continuaram. Logo fiquei assessora dos bispos do
Paraná e comecei a trabalhar mais em âmbito estadual. Na Igreja,
tem até os bispos que falam que meu estilo é único, porque dirijo
a liturgia com mais alegria. Eles acham que eu tenho a minha
marca, tem bastante “Custodinhas” entre as meninas, que são
bem livres. Aqui, como a cidade é muito grande, você não tem
uma atuação política tão forte quanto em Apucarana. Lá, tinham
poucas rádios. Aqui, são cento e poucas rádios, televisão são 15
ou 17. Faço assessoria de músicas sacras do regional, junto com
a liturgia, e assessoro mais em âmbito de Brasil. Recebo convites
inclusive do cardeal do Brasil, Dom Magela, para ir a Salvador.
Trabalhei como assessora dele aqui no Paraná.

Os fiéis do norte se portam diferente do curitibano


na missa? Na periferia não. Temos, aqui nas periferias e nos
bairros, padres excelentes que seguem totalmente o Concílio
Vaticano II, um trabalho de promoção humana fantástico.
Agora, existe um grupo mais fechado. No caso, mesmo o nosso
Arcebispo ficou muito tempo, ele era um cara mais tradicional
e não avançava muito. Dom Pedro Fedalto era um cara de uma
ternura, ele é muito amado, mas não é um cara corajoso, que dá
a palavra e vai junto.

O que acha de Curitiba? É um povo mais tradicional e é


uma cidade ecológica. Só que as periferias mereciam um melhor
cuidado. Olha, é uma cidade que tem um monte de virtudes
conforme o prefeito. Por exemplo, o [Rafael] Greca cuidou muito

Curitibocas | 169
da parte social. É uma cidade que eu acho humanitária, mas tem
um grande grupo egoísta.

Está satisfeita com sua vida? Sim. Não me arrependo, se


eu nascesse outra vez, seria freira. Eu acho que fiz gol em uma vida
religiosa mais feliz, alegre, mais livre e responsável e na maneira
espontânea de levar a vida religiosa. A vida religiosa tolhia um
pouco. Mas eu encontrei pessoas, na minha vida, excelentes.
Lembro de um jesuíta, quando eu fiz o meu primeiro retiro com
21 anos de idade, que falou: “Olha, você vai ser você mesma. Você
vai aperfeiçoar a missão ideal de santidade. Santo é ser eficaz no
que faz. É ser olhos do mundo, coração do mundo”. Isso a gente
seguiu, eu tenho uma santidade diferente. Eu vi muitas moças
vibrantes trabalhando em comunidades que entraram na vida
religiosa e se tornaram apáticas, como se vida religiosa fosse
só obedecer. Lógico, tem que obedecer, porque você pertence
a um grupo e esse grupo exige que você tenha uma marca que
explicita o grupo. Mas eu acho que fiz gol transformando a vida
religiosa.

Estamos perdendo o jogo? Temos que estar sempre


lutando. A minha professora de regência de música falava:
“Quando você está satisfeita com o seu coral, a arte, a fé, o aspecto
social não pára. Ou você vai para frente, ou a correnteza joga
você para trás”.

Qual é o cúmulo da miséria? O sofrimento de quem


ainda não conseguiu viver como gente.

Onde você gostaria de morar? Em qualquer lugar.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Ver todas


as pessoas crescerem e serem felizes.

Para quais erros você tem maior tolerância? O erro


das famílias, dos jovens, um erro mais humano.

Quais obras literárias você prefere? Eu sempre


prefiro obras mais românticas, não que falem do
sofrimento, mas da ascensão das pessoas.

Qual é seu personagem histórico favorito? Juscelino

170 | Irmã Custódia


Kubitchek, Tiradentes, admiro mais os personagens que
lutaram pelo bem comum.

Seu pintor favorito? Pintura mais clássica. Pintura


moderna eu não aprecio.

Seu músico favorito? Händel.

A qualidade que prefere no homem? Eu prefiro


homens corajosos e carinhosos.

A qualidade que prefere na mulher? Que assumam


seu papel na história, que não sejam dondocas.

A virtude que prefere? Caridade e solidariedade.

Sua ocupação favorita? É a que eu faço mesmo.


A música ligada à liturgia, ligada à Igreja, ligada às
pessoas.

Quem você gostaria ter sido? Ninguém. Eu mesma.

O que você mais aprecia nos amigos? A fidelidade,


a amizade.

Seu pior defeito? Eu não acho defeito, mas eu falo o


que eu penso. Depois, assumo as conseqüências.

Seu sonho de felicidade? Já estou na felicidade.

Qual seria sua pior desgraça? Dar continuidade a


essa violência que nós temos no Brasil.

O que você gostaria de ser? Eu mesma.

Sua cor favorita? Cores vibrantes. Vermelho,


amarelo.

A flor que mais gosta? Todas, principalmente as do


campo.

Qual pássaro preferido? Todos os pássaros são legais,

Curitibocas | 171
mas eu gosto muito do canário que canta.

Seus autores favoritos em prosa? Leonardo Boff.

Seus poetas favoritos? Cora Coralina.

Seus heróis na vida real? Jesus Cristo.

Seus nomes favoritos? Nomes brasileiros. Felipe,


Tiago, João. Para as meninas pode ser Rosa, nome de
flor.

O que você detesta? Detesto a falsidade.

O feito militar que mais admira? Nenhum.

Qual dom da natureza você gostaria de ter?


Voar.

Como gostaria de morrer? Fica por conta dos outros.


A gente tem que pensar em viver.

Seu lema? Quem recebeu a graça de enxergar, não pode


se calar.

172 | Irmã Custódia


Curitibocas | 173
Leitor da urbe

Key
Imaguirre

C
om satisfação pela entrevista em um lugar sagrado,
Darcy se despediu. Na saída, quase esbarra em um sujeito
com pesada carga intelectual nos braços.
Na manobra para não se chocarem, uma revista em
quadrinhos cai no chão. Darcy recolheu. O dono nem se deu
conta. Ao invés de correr e devolver imediatamente, Darcy se
deixa levar pela curiosidade. Seguiu o homem. Anotou em seu
pouco usado bloco de notas o endereço da casa dele. Devolveria
amanhã, depois do expediente.

Curitibocas | 175
Na volta ao apartamento, Bruno estava encolhido na calçada.
Murmurava sobre a injustiça do trânsito. Dizia que os pedestres
não têm vez em Curitiba, que as faixas deveriam ser respeitadas.
Darcy agarrou-o pela mão. No estreito corredor, o porteiro
discutia com um rapaz sem camiseta. Realmente, fazia um pouco
de calor, não a ponto de estar com o dorso nu, mas “cadum,
cadum”, como dizia o avô de Darcy. O porteiro barrou o jovem e
insistia que era norma do condomínio todos usarem camiseta.
“Na minha casa eu faço o que eu quero”, contra-argumentava o
sujeito de topless, que também agregou ser este um país livre.
Darcy fez de conta que não acontecia nada. Bruno passou fitando
os debatedores.
Darcy dormiu e acordou cedo. Tinha que chegar ao aeroporto
às 6h. Pelas dúvidas, acordou 4h e foi sem tomar café ao novo
emprego temporário.
Chegou até o escritório indicado por Andressa. Na recepção,
a secretária colava um cartaz com axiomas para um bom
empregado. “Sorrir sempre”, “cortesia”, “pontualidade”, entre
outras frases seguidas de carinhas amarelas e sorridentes. Sem
maiores delongas, a secretária pediu que Darcy preenchesse
uma ficha. Depois, lhe deu crachá e uniforme, que deveria ser
devolvido no final do expediente. Sem a devolução, não teria o
pagamento diário.
Naquele dia, teve que lavar carros. Não entendeu muito
bem como funcionava o sistema da empresa, e não perguntou,
apenas fez o que a moça mandou. Uma van deu carona até o pátio,
próximo ao aeroporto, com os automóveis sujos. Concentração na
passagem para longe de Curitiba. Fez hora extra. Só parou para
descansar no almoço e quando passou um carro vendendo doces.
Os lavadores de carro faziam fila para comprar o doce, toda vez
que passava um carro de som com “sonhos bem fresquinhos”.
No meio da tarde, estava com um tremendo cansaço e
com cheiro de produtos de limpeza, mas valeu a pena. Voltou
ao escritório. Sentou em frente a um computador vago para
pesquisar o endereço anotado no bloco de notas. O professor
de arquitetura Key Imaguirre era o dono da casa. Ele também
era o fundador da Gibiteca, o que parecia ser uma biblioteca
de quadrinhos. Darcy acreditava que o destino lhe reservara
outra daquelas conversas. Recebeu o devido salário, no final do
expediente, após uma revista obrigatória. “Normas da empresa”,
desculpava-se o segurança que apalpava Darcy.

176 | Key Imaguirre


Na saída, tentou saudar a secretária que o recepcionou com
um amigável beijo na bochecha. A secretária foi até o limite da
cadeira, tentando se afastar do ósculo. Quando Darcy encostou
nela, soltou um gemido misto de pavor e nojo. Darcy saiu
rapidamente dali.
Chuva de 15 minutos marcou o trajeto de volta. Todas as
janelas fechadas. Depois da chuva, calor. Nenhuma fresta aberta.
Dois passageiros espirravam freneticamente.
Já quase na hora de descer, Darcy passou os olhos na revista
em quadrinhos do professor. Era em italiano e não tinha nenhum
super-herói. Tampouco parecia engraçada. Filmes sem aventura
e sem romance eram chatos. Quadrinhos então...
Bateu palmas em frente à casa. O professor veio atender.
Agradeceu por ter trazido o gibi. Calvo e com feições orientais,
estava disposto a contribuir com a pesquisa “Formas da cidade
modelo”, com sua fala mansa e profunda atenção às perguntas.

A arquitetura de Curitiba é muito ressaltada. Diria


que não existe uma coisa que possa dizer que é curitibana. O
que existe é que aqui foi o centro do ciclo da madeira. A madeira
era dos planaltos, de araucária, era exportada por Paranaguá e
passava por Curitiba. Madeira aqui era muito barata. Talvez seja
a cidade do Brasil que tenha mais construções em madeira. Mas
isso é mais em decorrência da economia.

E no urbanismo? Urbanismo é aquele tipo de coisa que


não se inventa, tem determinadas tendências. Não existe mais
ninguém criando. Em Curitiba, essa fama é por ter começado
bem nova. Na década de 60, não se colocava muita fé no tal
Plano Diretor e aqui se pôs. Mas isso não é uma característica,
são 42 anos que está se desenvolvendo esse plano. A cidade era
pequena, deu tempo de se firmar. Pega uma cidade como São
Paulo ou Rio de Janeiro, não tem mais volta. Curitiba, na época,
tinha 300 mil habitantes.

Segue dando certo? Toda a cidade pode crescer


proporcionalmente às suas condições, se você gerar emprego e
economia. Tem cidades que você não tem suporte econômico.
Salvador é uma cidade administrativa, feita para ser capital do
Brasil, nunca teve economia própria. Quando deixou de ser
capital, a economia despencou.

Curitibocas | 177
Como você caracterizaria a evolução de Curitiba?
Em grande parte, é um processo normal. Na medida que você
tem mais gente, você pode ofertar coisas diferentes. Tem mais
oferta cultural e serviços, mas tudo pode ser intensificado. A
evolução disso aconteceu, na verdade – aí tem um pouco de eu
ser um produto 100% UFPR –, muito por essa via da cultura. As
circunstâncias da gente ter tido a primeira universidade pública
brasileira, de ter começado a conservação de arquitetura antiga,
instalar equipamento cultural em edificações, você sai criando
ambiente. Quando estudei, já tinha algumas universidades pelo
Brasil afora, mas no Paraná era única. Vinha muita gente de
tudo que é lugar do Paraná, de Santa Catarina e outros estados.
Isso fazia a cidade ser cosmopolita. Tinha muito esse aspecto de
convívio. Um pouco, isso existia pela imigração. Mas isso era
muito presente ainda, até a década de 70.

Jaime Lerner é um bom urbanista? [Suspira] A pergunta


para mim é fácil de responder, mas a coisa tem conotação política
e, aí, já me desagrada um pouco. Acho que, num determinado
momento, ele foi um bom administrador para a cidade, no sentido
que ele acreditou na história do Plano Diretor, fez os governos
militares acreditarem e conseguiu os financiamentos nacionais e
internacionais. Ele tem esse grande mérito como prefeito. Entre
ser um administrador e ser urbanista, a diferença é muito grande.
Quem deu a substância urbanística para ele foi o IPPUC [Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba], que não é
invenção dele. O Plano Diretor não é de autoria dele, é do Jorge
Wilhelm. Ele soube escolher o pessoal para compor o IPPUC e
essa instituição subsidiar a cidade com o que ela necessitava.
Lerner é meu colega na Federal. É o único professor contratado
antes de mim que nunca deu aula. Sempre está num cargo de
alguma coisa que dá direito de estar licenciado. Não sei o que ele
é agora, mas algo ele tem.

Se Key fosse prefeito de Curitiba... Teria evitado essa


explosão da população. A partir da década de 70, teve muita
propaganda sobre a cidade que tinha mais qualidade de vida que
as outras cidades brasileiras. Os curitibanos estão submersos,
estão meio diluídos.

178 | Key Imaguirre


Era propaganda enganosa? Negócio é que era propaganda
política. Não acredito que tenha tanta diferença. É que nem a
história do frio de Curitiba. Cadê?

Dizem que nevou. Isso faz mais de 30 anos. Foi a última


vez que fez frio. Agora pegou carona no aquecimento global.

Que outros mitos a cidade tem? O da cidade de primeiro


mundo. Outro slogan é o de ser a capital ecológica. Um prefeito,
na hora de fazer a plataforma dele, embarcou nessa. Outro mito:
curitibano como cara arisco, anti-social, difícil. Se fosse assim,
não vinha tanta gente. São mitos que não se sustentam.

Por que não consegue alcançar status de primeiro


mundo? Curitiba perde por embarcar em certos processos de
adensamento que priorizam certas coisas como, por exemplo,
os automóveis. Meu filho foi criado jogando bola nessa
rua. Atualmente, não dá nem para atravessar. A indústria
automobilística está despejando milhares de carros em cidades,
não tem solução. São Paulo teve uma época que se encheu de
viadutos. Não resolveu. Aonde você vai, está cheio de gente. Isso
não configura um defeito porque todas as cidades brasileiras
passam por isso. Teria que passar por isso? Não. Um exemplo:
Milão, na Itália. Cidade três vezes maior que Curitiba e totalmente
horizontal. Não teve necessidade de verticalização.

O metrô pode solucionar o problema do transporte?


Eu não tenho sido favorável ao metrô. Primeiro lugar, porque
é um sumidouro de dinheiro, é uma das coisas mais caras que
existem. Depois, não sei se resolve – vide São Paulo. Aqui tem
um agravante: Curitiba é a cabeceira do Rio Iguaçu, que é o
começo da segunda maior bacia hidrográfica do mundo. Para
fazer um metrô, se ele for subterrâneo ou aéreo, tem a questão
dos terrenos próximos de rio ou que foram aluvionados. Eles
suportam uma casa tranqüilamente. Mas uma estrutura de metrô
é muito forte, pesada, sacode. O metrô vai ser muito mais caro
que em qualquer lugar. Eu acho que tinha que desnuclearizar a
cidade, tratar melhor a região metropolitana, valorizar as ligações
com as cidades mais próximas. Não gosto de verticalização, acho
que prejudica muito a qualidade de vida.

Curitibocas | 179
Como? O ser humano não deixa de ser animal. Todo animal
necessita de seu território. Então, quando você coloca as pessoas
morando uma em cima da outra, empilhadas, sempre brigam. É
clássica essa história de briga em condomínio.

Já morou em prédio? Morei. Lá na Praça Zacarias, por


quase dez anos. Mas era diferente. Morava sozinho, era solteiro
e estava muito próximo da Cinelândia. Passava pouco tempo
em casa.

Não teve problema de condomínio? Não, porque


eu não era proprietário. Morava sozinho, usava para dormir,
viajava muito. Mas na hora que começaram a sair os cinemas
de lá, a pressão começou a ficar muito forte. A Praça Zacarias é
complicada agora. Na década de 80, era tranqüilo morar lá. Na
hora que começou a adensar muito, vim para cá [Bairro Mercês,
norte de Curitiba]. Estou aqui há quase 30 anos.

Antes da praça, onde morou? Nasci na casa do lado da


Fundação Cultural de Curitiba, na área histórica de Curitiba,
onde tem o Cavalo Babão. Depois, mudei para uma quadra acima,
meu pai ainda mora lá.

Hoje se fala muito da revitalização do Centro. Você,


na verdade, tem duas questões. Uma que é Centro Histórico, que
tem construções de 100, 150 anos. Mexer com isso não é legal,
você descaracteriza a cidade, é um atrativo da cidade e deve ficar.
Aceito que aquilo ali deve ter um tratamento de baixa densidade,
como bares, restaurantes, cursos, comércio específico. E existe
Centro que é o anel central da cidade. Aí, esse precisa de uma
revitalização diferente. O grande problema do centro é carro.
Você traz gente para morar? Muito bem, mas onde pôr os carros
dessas pessoas? Soluções de subsolo são caríssimas. Tornam
praticamente inviável você ficar trazendo muita gente.

Você tem carro? Não. Sou cheio de manias. Nunca tive


carro, televisão me irrita enormemente, resisti muito à internet,
telefone eu odeio, jamais tive celular. Sou um cara contra tudo,
mas, em compensação, fico na minha.

180 | Key Imaguirre


Por que isso? Não sei. Provavelmente porque eu gosto
muito de ler. A minha realização, depois que eu acabo todas as
tarefas do dia, é pegar livro, gibi, sentar e ler.

Tem algum bairro eminentemente curitibano? Eu


acho que a região que fica aqui entre o setor histórico, ali na Praça
Garibaldi, Praça João Cândido, até o Cemitério Municipal, é a
grande característica de Curitiba. São casas não muito grandes,
todas elas têm um jardim. Muitos descendentes de imigrantes
estão aqui, no norte da cidade.

Você tem alguma obra em Curitiba? Meus projetos


nunca saíram do papel. Fiz uma casa na praia para o meu pai
enquanto era estudante. Sempre estive na universidade e isso
me envolveu muito. Fiz o assobiódromo para o Hélio Leites. Fiz
uma maquete para ele.

O que é o assobiódromo? Um lugar para você assobiar.

Você não pode assobiar na rua? Pode, mas ele queria um


lugar específico para isso. Eu não assobio. O Hélio tem o Fiu-Fiu
Esporte Clube, o clube de assobiadores. Às vezes, você o encontra
na rua XV com quatro, cinco malucos assoviando.

O que acha da política de cotas? Aqui foi uma das


primeiras a implantar. Quando você está no começo do processo,
sempre dá mais polêmica. Sou um democrata. Acho que todo
mundo tem que ter o direito ao acesso igual, mas também acho
que para combater injustiça você cria outra. Quantos estudantes
capazes foram deixados de lado pelo preenchimento das cotas?
Acho que o critério tem que ser a capacidade do cara.

Chegou a dar aula para cotistas? Ah, sim. Na verdade,


não tem muita diferença. O pessoal que entra, entra no espírito
dos outros. Nem sei quem são.

Há preconceito? Ao contrário. No meu curso, o tipo de


aluno é muito solidário. Tenho alunos de muito bom nível –
cultural e intelectual. Não vejo discriminação.

Tem interesse em subir na hierarquia da Federal?


Ser coordenador de curso, por exemplo. Já passei por

Curitibocas | 181
tudo isso. Só estou com o bom, que é ser professor. Você não vai
perguntar nada da Gibiteca?
Quero aproveitar mais esse aspecto de educador
para minha pesquisa. Existe um afã das universidades
de se venderem como divertidas e práticas. Que
avaliação o senhor faz sobre isso? É péssimo. A propaganda
diz: “Formamos profissionais para o mercado”. Isso é uma das
piores coisas possíveis, você configura um profissional para uma
determinada situação. Só que o mercado muda rapidamente.
Daqui a dois, três anos, o profissional que se formou para
aquele mercado acabou, está desatualizado, vai ter que fazer
reciclagem. Talvez a mecânica seja essa, porque daí ele volta
para a universidade e vai pagar de novo. É como minha avó
dizia “Aquilo que é fácil, não desenvolve”. Como você desenvolve
músculo? Fazendo força. O cérebro é a mesma coisa. Dizer que
o conhecimento dentro de uma universidade é só prático é
uma mentira. O que é o curso prático? Aprender fazendo, tudo
bem. Mas é o suficiente? Onde fica tudo que a humanidade
desenvolveu na civilização? Não pode estar ali naquela prática.
O conhecimento organizado, que é a teoria, não tem como evitar
em uma universidade. Ou está mentindo e está a teoria, ou está
fazendo uma coisa totalmente superficial.

É uma tendência brasileira? Universal. Puxada pelos


Estados Unidos e esses MBA’s pela Internet. Na Europa, a coisa
é bem mais séria. Não tem essa preocupação com o fácil. Ao
contrário, acho que a pessoa sai de lá um pouco chata porque
fica racional demais, muito peso na cabeça. Você conversa com
o jovem de lá, ele não tem a agilidade que os nossos têm. Acho
que a gente tem que achar nosso próprio caminho.

Esse ensino afeta a arquitetura? Quando você contrata


um arquiteto, ele vai ser responsável pelo uso do seu dinheiro.
A competência dele vai fazer com que aquilo que você construiu
seja bom ou não. Em princípio, você pega um cara responsável,
alguém realmente confiável. Por outro lado, tem muito
empresário que quer a coisa superficial. Esses prédios novos
cheios de estilo. Prédio neoclássico, prédio disso, daquilo. Isso
tudo é uma farsa, é só para fazer a publicidade depois e dizer que
está dentro de determinado estilo, e não está. Só está enfeitado
dessa maneira. Enfim, só que aí não é culpa do arquiteto, são os
empresários que exigem isso.

182 | Key Imaguirre


Como uma casa conversa com o lugar geográfico?
O entorno tem características geográficas e características
urbanas. É a primeira coisa que um arquiteto pensa. Essa coisa
que se critica nos grandes arquitetos é que eles fazem o projeto
baseado em dados técnicos, em levantamento das curvas de nível,
de relevo, e não vão ver o local. A coisa que a gente mais insiste
com os alunos é que a primeira coisa é conhecer o local. Nada te
mostra tanto como ir lá, por mais que tenha foto, mapa. O que
aconteceu com a Casa Erbo Stenzel, por exemplo. A pessoa que
transportou a casa para lá [para o Parque São Lourenço] pegou a
orientação solar. Ela estava com relação ao sol aqui e levou para
lá. Foi um erro. Em primeiro lugar, porque o construtor não se
preocupou com a questão do sol, pensou na relação da casa em
função da rua - era aqui perto do Cemitério Municipal. Era um
mestre de obras alemão, o sol para ele, aqui, era uma entidade
mítica, não estava preocupado com isso. A casa tinha que ter a
morada, a sala, entrada de serviço direto na cozinha e do outro
lado a sapataria, porque ele era sapateiro. Ele criou um acesso
direto para a sapataria. E, lá, ficou de costas para a rua.

O que caracteriza um bom arquiteto? Boa pergunta.


Será que ainda existe lugar para a boa arquitetura? Atualmente, o
que for pedido para um arquiteto, tem que fazer. Aqui no Paraná
estão se formando uns mil a 1.200 arquitetos por ano. É uma
situação absurda. Não existe mercado para isso, nem o Brasil
inteiro absorveria isso. Então, qualquer coisa que você peça para
um arquiteto, ele tem que fazer. Não sei se tem lugar para uma
arquitetura autêntica.

Quais são as saídas para isso? Uma é você ir para essa


área de materiais alternativos, projetos alternativos. É um lugar
que comporta muita pesquisa, muita experimentação. Outra é o
urbanismo, só que você vira empregado da prefeitura. Não tem
muita liberdade de criação. Quando fui para a arquitetura, em
1966, eu estava entusiasmado com Brasília, pela possibilidade de
criar coisas. Mas só quem tem essa chance é o Niemeyer. Se ele
quiser fazer a casa dele, ele faz e todo mundo acha ótimo.

Você gosta das obras dele? Respeito muito esse


virtuosíssimo plástico dele, mas tenho restrições. É um genial
criador de espaços, de formas. Agora, acho que ele fez algumas
grandes besteiras. Por exemplo, um hotel que ele fez em Ouro

Curitibocas | 183
Preto, estragou com a cidade inteira. Parece um barracão de
meia-água, é uma coisa que agride. Muito feio, de onde você
enxerga aquilo, você odeia. Pelo fato de toda a cidade brasileira
querer uma obra dele, está tirando a chance de arquitetos novos.
Isso que se pede para o Niemeyer deveria ser concursado, e que
ganhe o melhor projeto. Muita gente está deixando de aparecer,
deixando de ser o Niemeyer do futuro. Já devia ter pego o boné e
fazer o que quiser. E, também, ele está se repetindo. No memorial
da América Latina, de São Paulo, têm várias coisas que são
releituras de obras dele mesmo. O próprio Olho [Museu Oscar
Niemeyer] é uma releitura de um colégio que ele fez em Belo
Horizonte na década de 50.

Se te dessem um espaço como o Niemeyer, você


aceitaria? Ah, claro. É o sonho de todo arquiteto. Fazer uma
dessas obras importantes, sei lá, um museu. A Gibiteca.

O que faria para a Gibiteca? Evito um pouco de fechar


minha idéia a esse respeito, porque dependendo do local que
fosse dado, seria o que eu faria. Gostaria de usar um miolo de
quadra do setor histórico. Você tem uma quadra, com as casas,
todos viradas para fora. Dentro da quadra fica vazio. Essa quadra
é usada raramente. Acho que o lugar ideal seria ali, junto com
todo o equipamento cultural da cidade.

E a questão do sol? É o problema de toda a biblioteca. Tem


que ter uma climatização para resolver isso. Mas esses miolos
de quadra não são tão complicados em relação ao sol porque
são construções baixas. Então, você pode usar o miolo, não ser
visto de fora, da rua, só quem entra ali que vê a coisa e não teria
muito problema de sol.

Bom, chegamos na Gibiteca. Como você descobriu os


quadrinhos? Eu fui viciado nisso pelo Domingos Bongestabs. A
gente trabalhava junto no IPPUC. Ele começou a me encaminhar
para esse gibi de qualidade. A feira de artesanato não era essa
coisa enorme que tem lá, era meia dúzia de artesãos que punham
suas coisas e ficavam ali no domingo de manhã vendendo. Como
sempre tive esses amigos artistas, eu fazia historinhas lá e passava
de mão em mão aquele negócio. Hoje, na feirinha, você passa
a manhã inteira e não encontra nenhum conhecido. Naquele
tempo, eram sempre os mesmos freqüentadores. Começaram a

184 | Key Imaguirre


Curitibocas | 185
me procurar como fanático de gibi, na metade da década de 70,
já no embalo de ler revistas italianas e conhecer gente de lá. Sou
da época que tinha um carisma negativo nos quadrinhos. Na
minha casa não entrava, meus pais não deixavam.

Como surgiu a Gibiteca? A década de 70 tinha as revistas


chamadas alternativas, que eram aquelas que o cara fazia meio
escondido, porque geralmente tinha um teor de esquerda.
Conseguia uma gráfica, imprimia aquilo, daí ele e os amigos
saíam vendendo na faculdade e em tudo que é lugar que dava.
Conhecia alguns, desse pessoal, que faziam essas revistas. A gente
fazia e eu emprestava o meu escritório para eles. Isso me levava
a pensar: “Por que não existe um lugar para fazer esse tipo de
reunião?”. Então, começa por aí a idéia da Gibiteca, com essa
função de ajudar quem produz quadrinhos, com oficina, curso,
tendo um acervo. A Fundação Cultural entende a Gibiteca como
um acervo de gibi, que é apenas um apêndice da Gibiteca. Por
um lado, formar autores bons e, por outro lado, educar o público.
Quer dizer, com exposição, com cursos, fazendo lançamentos que
também chamam a atenção sobre aquilo. Colocava essa idéia em
Montreal para as pessoas e eles diziam que não existia.

Havia projeto parecido em outro lugar? Em 1988, fui


júri do Salão da Caricatura de Montreal. Lá, eu conversei com os
maiores figurões da história em quadrinhos e do cartum mundial,
como o Will Eisner. A gente estava no meio de gente conhecedora.
Perguntei para todos eles. Todos diziam que não existia. Existiam
vários museus dos quadrinhos, que é onde se guardam originais,
acervos de determinados autores. A gente pode ter a convicção
relativa que temos a primeira gibiteca do mundo.

A idéia original foi deturpada? A idéia começou em 1976.


Só em 82 ela foi implantada. Aconteceu um grande problema.
O prefeito passou para a Fundação Cultural fazer a Gibiteca.
Colocaram uma professora de primeiro grau. A visão dela era de
um espaço infantil. As mães iam fazer compras na rua XV, que
naquele tempo funcionava como shopping, deixavam a criança
lendo gibi e depois passavam para buscar. Nunca foi essa minha
idéia. Tanto que houve choques terríveis. Deixava a criança e, de
repente, ela estava com um gibi erótico ou de terror. Ela ficou lá
vários anos. Eu me afastei daquilo. Não era a Gibiteca que eu tinha
na cabeça. Acho que isso impediu de ser um fenômeno mundial.

186 | Key Imaguirre


Depois, foi o Edson Bueno que começou a resgatar a idéia original.
Pegava uma coleção do cruzeiro e arrancava o Amigo da Onça e
fazia uma exposição lá. Depois, o Carlos Estevão. Depois, veio a
Marcia Squibba, que para mim salvou a Gibiteca nos anos 90. Além
de entender a idéia original, ela tinha uma capacidade de polarizar
o pessoal. Então, tudo que acontecia em quadrinhos, acontecia na
Gibiteca. Ela conseguiu formar um grupo de freqüentadores da
Gibiteca. Lá surge o Tako X, Marcelo Martins... Começou a crescer.
Fizeram fotonovela, que foi publicada em jornal, fizeram filme,
faziam quadrinhos, colocavam na mídia. Aí, teve uma diretora da
FCC, a Lúcia Camargo, minha amiga, que sentiu isso e resolveu
nos dar um espaço melhor. Para marcar essa mudança, ela trouxe
o Festival do Gibi do Rio em 89. Vieram algumas exposições
reduzidas, mas foi um evento. Ficou cheio de exposições sobre
quadrinhos. Só que, aí, aconteceu um grande problema. No dia em
que ia abrir o Festival do Gibi, todo mundo lá preparado, morreu
o Paulo Leminski. Toda a mídia debandou. Foi um baita azar. A
Gibiteca era na Casa da Baronesa e estava muito bem instalada,
com espaço para oficina, para acervo. Estava fantástico, a melhor
fase da Gibiteca. Grandes autores brasileiros fazendo oficinas,
cursos. Aí, mudou o diretor da Fundação e ele queria o espaço
para fazer um museu de fotografia, porque ele é fotógrafo. Aí,
nos jogou para uma garagem. Funcionar, funciona. Mas é muito
ainda esse embalo, esse carisma que a Gibiteca fez. O espaço
é muito menor. Depois disso, entra essa fase de penúria, essa
grande crise econômica que ninguém quer saber de pôr dinheiro
em coisa nenhuma. Só vale em programa social. Saiu disso, não
tem. Andaram melhorando. Há pouco tempo, estive lá. Os gibis
antigos, as raridades têm armário de aço à prova de fogo. Tem um
funcionamento mínimo, mas tem.

O que poderia ser feito para melhorar? Publicar


experiências, feito pelo pessoal iniciante, estudos, ensaios,
traduzir coisas de alguém que represente alguma coisa no contexto
em um boletim de estudos. É uma coisa que o Brasil nunca teve.
Uma revista sobre quadrinhos que tenha os quadrinhos e a crítica.
Comercialmente, não é viável. Típica coisa que uma instituição
poderia fazer. Publicam tanta porcaria...

Nunca quis coordenar a Gibiteca? Nunca fui e nem


quero. Na universidade, já tenho conflito de todo o tipo porque
tem a burocracia, é o normal. O Neil Gaiman esteve em São Paulo

Curitibocas | 187
e não esteve em Curitiba porque não tinha dinheiro para comprar
a passagem. Tinha gente oferecendo a casa, que podia jantar na
do fulano, não sei o quê. Não acharam passagem para o cara. O
que é isso? Não dá para engolir. É paciência para superar essa
e insistir de novo, eu não tenho. Eu já teria feito um barraco,
chutado o balde e ido embora.
A Gibiteca depende muito da tal da vontade política. Quando
tem um presidente da Fundação Cultural que entende, que acha
válido, a coisa vai bem. Quando tem um que é da área de teatro,
cinema, fotografia, eles prestigiam a área deles e esvaziam as
outras.

O que acha das adaptações dos quadrinhos para o


cinema? São duas mídias diferentes. No quadrinho, você lê na
sua velocidade. No cinema, ele te dá a velocidade de apreensão
da coisa. Depois, tem aquela coisa que, por mais que tenha os
recursos de hoje no cinema, nos quadrinhos você põe o que
quiser. Se você não tem aquela produção fantástica, você está
um pouco limitado. Adaptação perfeita de quadrinhos para
cinema, não conheço nenhuma. Algumas são bem feitas, tipo os
filmes antigos do Super-Homem. Acho que o clima do gibi está
respeitado. Como está em um Batman da década de 70. Ele ficou
clássico porque dele saiu o seriado clássico da televisão, aquele
que dá um soco e aparece o “POW”. Acho que retrata muito bem
esse lado pícaro do Batman, a coisa meio debochada do super-
herói. Ele caiu no mar, o Robin o puxa de helicóptero e vem um
tubarão agarrado na perna, mordendo. O Robin grita: “Batman,
use o Bat-repelente de tubarões do cinto de utilidades”. Ele tira
um sprayzinho e o tubarão cai. É deboche, mas alguns autores
do Batman, os principais, viam um pouco assim a coisa.

Batman está sério agora. É... torturado. Quadrinho


americano, eu tenho muita restrição. Porrada para todo o lado
o tempo todo. Impressionante que tem aquele maniqueísmo,
os bons e os maus. Só no gibi mesmo. A característica essencial
deles é serem invencíveis. Cria, então, esse impasse do quadrinho
americano atual. Tem um cara cheio de poderes. Quem que esse
cara vai combater? Não é ladrão de galinha, tem que ser um baita
criminoso. Aí, você vai aumentando os poderes. Aumenta o do
super-herói, aumenta o do criminoso. Daqui a pouco, você está
usando dois super-heróis e um bando de criminosos. Até chegar
nessa “Crise das Infinitas Terras”, com centenas de heróis de um

188 | Key Imaguirre


lado, centenas de vilões do outro. Tinha que fazer um Marvel
versus DC. Na época que começou os cross-overs, fizeram um
engraçadíssimo com o Super-homem contra o Muhammed Ali.
Parece que deu empate a luta. Vai ver que o Muhammed Ali tinha
kriptonita nas luvas, não me lembro mais da história. Me admiro
de não terem mandado o Super-homem para o Iraque ainda. O
Capitão América foi criado para isso, para brigar com os inimigos
dos EUA. Gosto do quadrinho europeu de aventura.

Dá para usar na arquitetura algo dos quadrinhos?


Conversei com o Will Eisner sobre isso. Ele me confessou que era
um arquiteto frustrado. Foi para os quadrinhos porque não teve
condições de viver de arquitetura na época. Prova é “O Edifício”,
para mim a melhor das graphic novels dele. Quadrinhos sempre
têm o cenário. Quem dá o cenário é a arquitetura. Então, têm
várias opções, o cara usa cenários existentes, outros criam
cenários ficcionais. Para o arquiteto, o quadrinho é muito bom
porque não tem as restrições técnicas da profissão.

Por que os quadrinhos demoraram a serem vistos


como uma mídia respeitada? Na década de 50, aquele
psicólogo americano, o [Fredric] Wertham, escreveu um livro
dizendo que todos os males da sociedade americana eram devido
aos quadrinhos. Isso foi terrível e a recuperação levou uns 20
anos, quando, nos anos 70, o Umberto Eco começou a escrever
sobre quadrinhos, criou-se a semiótica como uma ciência. Saiu
Fellini dizendo que o sonho dele era filmar o “Flash Gordon”.
Começaram a surgir gibis de qualidade. Não era aquele papel
vagabundo, era bom, com boa diagramação. Os italianos que
fizeram o serviço todo.

Quem gosta de quadrinhos ainda é marginalizado?


Na verdade, ainda existe um preconceito. Pesa bastante. As
pessoas dizem que é ocupação de adolescente. É uma arte
afirmada, com clássicos. Os que têm esse preconceito não sabem
o que é.

O que acha dos quadrinhos japoneses? Gosto muito


daqueles de histórias de samurais, por causa, inclusive, da minha
descendência. Tem muita violência, mas a abordagem é diferente.
Quer dizer, o samurai fica preocupado com a honra dele, uma
coisa de fidelidade, uma série de valores que são muito diferentes

Curitibocas | 189
daquele maniqueísmo do super-herói americano. Às vezes, você
tem dois caras que lutam e não são necessariamente um mal e
um bom. Simplesmente, podem ter perspectivas diferentes da
situação. Meu pai, quando chegou em Curitiba, era uma atração.
“Japonês? Nossa, o que é isso?”.

Seu pai era japonês? Era de Santos. Meu avô veio


do Japão. Na idade dos filhos estudarem, ele veio para cá. A
minha avó tinha sete filhas em Florianópolis. Ela pensou: “Para
casar essa mulherada, melhor levar para uma cidade cheia de
estudante”. Veio para cá também. Nasci dessa convergência, me
formei pela UFPR e já comecei a trabalhar como professor.

Em que ano se formou? Me formei em arquitetura em


1972. Tenho mestrado e doutorado em história.

O estudante da Federal é diferente das outras


universidades? Totalmente. Tenho colegas que trabalham
nas universidades privadas e sei o que está acontecendo por
lá. Eu mesmo já fui professor na PUCPR por um tempo. Você
tem muito aquele estudante que a universidade é um colégio de
terceiro grau para ele. O professor tem que dar tudo mastigado,
faz os trabalhos como se fosse um colégio. O estudante da UFPR
sabe que ele tem que ir atrás das coisas, é um aluno melhor de
trabalhar. Nas privadas, quando tem algum problema, chega na
direção, a primeira coisa que eles vão ver é se o carnê está em
dia - primeira coisa é ver se é bom pagador, depois o resto.

Sentiu esse clientelismo na PUC? Você começa com um


clima diferente. O tipo de competição que tem entre os alunos
lá na PUC, eu nunca encontrei na Federal. Competição, antes de
mais nada, de nível social. A melhor roupa, o melhor carro, baú
cheio de jóias, de grifes e coisas assim. Isso é o mais óbvio. Mas
tem um tipo de competição que é desagradável e, naquele tempo,
ela não era tão intensa quanto eu sei que é hoje. Por exemplo: uma
vez eu dei um trabalho para uma turma de 120 alunos e disse:
“Olha, isso está no livro tal que está na biblioteca”. Notei que
saíram alguns alunos. Isso é normal, numa turma volta e meia o
pessoal sai e entra. Depois, me contaram que esses alunos eram
da mesma equipe. Tinha cinco livros na biblioteca, eles tiraram
todos para as outras equipes não terem acesso àquele livro. Esse
tipo de coisa eu nunca vi acontecer na UFPR. Ao contrário. Cedem

190 | Key Imaguirre


livro para os outros. Não tem esse pensamento pequeno. Lecionei
lá por cinco ou seis anos.

Quão freqüentemente você compra quadrinhos?


Na medida que o dinheiro dá, eu compro. Está havendo uma
transformação, do gibi de banca para o gibi de livraria. Então,
a implicação disso é que é caro. O público não é de pessoas que
pagam três, quatro reais em um gibizinho da Mônica, mas de
cara que paga trinta, quarenta, por um gibi de ótima qualidade.
Bom papel, boa impressão, capa dura. Em geral, para justificar
o investimento, o conteúdo é mais cuidado.

Quadrinhos no Brasil é viável? É difícil porque é muito


caro. Eu digo que se você quer uma coisa boa, não pode se limitar
à autofagia. Isso é muito limitador. Tem que ter um panorama
geral do que acontece. Conhecer as revistas européias dá um
material crítico muito bom. Acho indispensável.

Os quadrinhos sofreram algum tipo de censura


na ditadura? Você não podia pôr na grande imprensa. Em
primeiro lugar, porque estava dominada pelo material americano.
Autor americano produz para um sindicato que compra toda
a produção dele e paga um salário fixo. Primeira coisa, o cara
é profissional, ele pode viver só daquilo. O sindicato vai pegar
a produção dele e vai vender para trezentos jornais nos EUA e
mundo afora. Aqui no Brasil não existe isso. O cara, para fazer
uma história em quadrinhos, precisa ser contratado por um
jornal ou revista. Então, ele vai receber um salário pequeno e não
vai se profissionalizar. Tem que fazer um monte de coisa para
sobreviver, para botar feijão na mesa... O que você perguntou
mesmo?

Sobre a ditadura. Ah, então. Você chegar com um material


e querer vender será um preço muito superior ao do sindicato
americano. A relação é um para cem. E, na ditadura, isso fica
mais pesado ainda, porque você começa questionando o material
americano. Se falar mal de americano, você é de esquerda e
subversivo. Falar de problema brasileiro? Você está questionando
o Brasil, aquela coisa maravilhosa, “Ame ou deixe-o”, “É um
país que vai para frente”, essa coisa toda. Então é muito pior. A
ditadura é um peso terrível para carregar.

Curitibocas | 191
Qual é o cúmulo da miséria? A burrice.

Onde você gostaria morar? Por enquanto, é


Curitiba.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Eu gostaria


de ganhar um pouco melhor, me sentir mais à vontade.
Mas não tenho razões para me sentir infeliz.

Para quais erros você tem maior tolerância?


Olha, eu sou bastante intolerante com erro, inclusive os
meus. Todos erros, com exceção da prepotência, dá pra
tolerar.

Quais obras literárias você prefere? As boas.

Qual é seu personagem histórico favorito? Santos


Dummont.

Seu pintor favorito? Tem muitos que eu gosto... Posso


pular essa?

Seu músico favorito? Chico Buarque.

A qualidade que prefere no homem? Inteligência.

A qualidade que prefere na mulher? Inteligência.

A virtude que prefere? Simplicidade.

Sua ocupação favorita? Ler.

Quem você gostaria ter sido? Eu.

O que você mais aprecia nos amigos?


Simplicidade.

Seu pior defeito? Prepotência.

Seu sonho de felicidade? Minha vida normal.

Qual seria sua pior desgraça? Ficar cego.

192 | Key Imaguirre


O que você gostaria de ser? Eu.

Sua cor favorita? Branco.

A flor que mais gosta? Vai uma árvore: araucária.

Qual pássaro preferido? Tico-tico.

Seus autores favoritos em prosa? Atualmente, o José


Saramago. Dos antigos, o Machado de Assis.

Seus poetas favoritos? Pablo Neruda e Carlos


Drummond de Andrade.

Seus heróis na vida real? Acho que não existe.

Seus nomes favoritos? Não me ocorre nada.

O que você detesta? Estupidez.

O feito militar que mais admira? A resistência do


Leônidas nas Termópilas.

Qual dom da natureza você gostaria de ter?


Infatigabilidade.

Como gostaria de morrer? Desastre de avião. É rápido


e rasteiro.

Seu lema? Acho que eu não tenho.

Curitibocas | 193
Quem arte quer casa

Didonet
Thomaz

N
a volta ao apartamento, Darcy viu o gari que lhe
recepcionara em seu primeiro dia na cidade
caminhando em direção contrária. Preferiu fazer
de conta que não o viu, ou que não lhe reconhecera. Não queria
conversar com mais ninguém. Entrou no velho prédio como
Andressa, evitando todos. Queria estar invisível.
Bruno estava estirado na sala, em cima do colchão de Darcy.
Sem rodeios, Andressa convocou Darcy a dormir no quarto dela.
Bruno despertou no outro dia às 10h32.

Curitibocas | 195
A noite não foi boa para Darcy. Andressa fumava na cama
e roncava. Se não bastasse isso, o celular dela vibrou três vezes
naquela madrugada. O nome “Lindomar Voadera” era exibido
em letras negras no display verde do aparelho. Darcy dormiu
por cima do edredom.
Na manhã seguinte, Darcy chegou ao aeroporto. Bateu seu
cartão e aguardou até às 8h para algum setor acusar a necessidade
da mão-de-obra. Para seu constrangimento, ficou este tempo
na frente da secretária que gritara no dia anterior. Trocaram
poucas palavras.
Desta vez, lhe deram cassetete, boné e colete. Faria a
segurança no aeroporto. Tarefa simples, revistar as pessoas
depois do raio-x, caso este insistisse em acusar que o passageiro
estivesse portando algum metal. Sentiu alívio quando lhe
disseram que não teria que tocar ninguém desta terra cheia de
melindres.
Uns 15 minutos antes de cada vôo partir, formava-se uma
fila na sala de embarque. Meio estúpido, pensava Darcy, já que
os assentos eram numerados. No ônibus que ia da cidade de
Darcy até a capital, sim, era necessária uma fila para disputar
os parcos assentos.
O segurança, que deu o curso intensivo de 20 minutos sobre
as funções de Darcy para aquele dia, explicou que as pessoas
fazem isso para colocar as malas nos compartimentos de mão.
Segundo ele, os viajantes não tinham paciência de esperar por
cinco ou oito minutos a bagagem vir no desembarque, o que fazia
com que todos disputassem o espaço reservado para bolsas de
mão com malas cheias de roupas para dias.
Os passageiros deste aeroporto teriam chiliques se fizessem
a viagem de Curitiba à sua cidade.
No intervalo do almoço, aproveitou-se da estrutura do
escritório. Darcy não tinha por que ter pudores com esta
empresa – em breve estaria longe. Usou um computador livre
para navegar na Internet. Queria ler sobre os assuntos tratados
na última conversa.
Deteve-se lendo sobre a casa Erbo Stenzel. Depois de
cumprido o expediente, com o devido pagamento diário, leu
mais. Segundo os sítios, Erbo Stenzel foi um artista plástico
famoso (absolutamente desconhecido para Darcy). Sua casa
foi transportada para um parque e agora abriga um museu em
homenagem ao artista. Chamou-lhe a atenção um trabalho
enigmático desenvolvido na casa. “Teatro Monótono” era o

196 | Didonet Thomaz


nome do projeto de Didonet Thomaz. Pelo que Darcy entendeu,
Didonet se insere nas famílias e extrai trabalhos de artes visuais.
Darcy gostava de ler os panfletos turísticos. Não lembrava-se de
nenhum citando este ponto.
Era o que bastava para Darcy ir até a tal casa. Quando
levantou-se de sua cadeira, percebeu que um outro empregado
também usava um computador. Só que ele ainda não havia
batido o ponto para sair. Parecia injusto, mas Darcy achou a
idéia boa.
O balcão de informações deu as coordenadas e as instruções
para chegar ao parque São Lourenço. Concordou com tudo que o
arquiteto do dia anterior havia dito. Darcy achava que entendia
melhor de arquitetura depois da conversa.
No São Lourenço, Darcy deu-se conta de que já estava
“por aqui” de parques. Verde é lindo, saudável e tudo, mas esse
turismo semi-ecológico com clima bucólico cansava. Descartou os
planos de conhecer o afamado Parque Barigüi e seus jacarés.
Uma mulher de traços europeus de verdade – não como
o europeu abrasileirado da cidade – conversava com outra de
baixa estatura e cabelo curto, que nem Maria Bonita. Máquina
fotográfica para cá, bolsa para lá, sombrinha a tiracolo, diante
da Casa Stenzel. Depois se inteiraria que a equipada era Didonet
Thomaz, a artista plástica do Teatro Monótono. Ver as duas
fazendo anotações deu mais curiosidade. Darcy esqueceu o
bloquinho. Queria rabiscar algo - não sabia o quê. Só queria se
enturmar.
Mais um papo, por que não? Lembrou da experiência difícil
com outro artista plástico e titubeou. Mas, desta vez, havia
pesquisado.
Quando desceu para o térreo, percebeu que as duas se
despediam. A européia se foi. A brasileira parecia estar a ponto
de ir. Lançou olhares em todas as direções da casa, com ternura.
Ela carregava um grosso chumaço de papéis encadernados, cuja
capa dizia: Teatro Monótono. Essa era Didonet.
Superadas as apresentações iniciais, Didonet aceitou
contribuir para o estudo de “Diálogos Urbanos” – Darcy gostou
deste título saído do acaso. Didonet achou surpreendente o fato
de Darcy não fazer anotações nem gravações. Provavelmente,
ficaria com a cosa mentale. A entrevista se deu desta forma:

O que é “Teatro Monótono”? É o nome que dei para


todo o meu trabalho. Provavelmente, tenha pego de um conto do

Curitibocas | 197
Borges, Los teólogos. Tenho uma postura ética em relação à vida
e ao trabalho desenvolvido nas casas de famílias que me dão a
liberdade de, simplesmente, ver e tocar nos seus pertences, nas
tripas da casa, observar o íntimo, o que guardavam, tudo. Deixo
claro que não estou fazendo o histórico da família.

O que é então? É uma questão voltada para as artes visuais


- mesmo que tenha que estudar os dados históricos. Aprendo para
depois esquecer e ficar só com a cosa mentale. O projeto não tem
fins lucrativos. Por exemplo, o Nestor, último sobrevivente de
sua geração Stenzel, tentou suicídio em 93. Isso me interessou.
Por isso, [contrataram] uma governanta. Houve uma ruptura,
não tinha mais a mesma liberdade. Entrou uma pessoa estranha
e eu não podia interferir nisso. Tive que encontrar um meio de
aliviar a tensão. O Nestor viveu na casa da Rua Dr. Trajano Reis,
571, desde antes de 1992 até a sua morte, que ocorreu em 2000.
Também usei esta casa para desenvolver meu mestrado.

Entendo. Em um resumo grosseiro, teu trabalho é


uma série de obras que tomam o ambiente como base.
Esta morte te afetou? Nesse sentido, amadureci muito. Porque
conviver com isso [a morte] significa que algumas coisas passam
a não ter mais sentido.

Como descobriu a Casa Erbo Stenzel? Quando vim


para morar em Curitiba, em 85, fui procurar um antiquário,
que hoje não existe mais, no Largo da Ordem. Fui conhecendo
pessoas que passavam por ali e elas foram me indicando. Fui
levada para uma casa que pertencia à família Stenzel e desenvolvi
o projeto “A Historieta de Truz”. Comecei a fazer publicações
independentes com o material recolhido de 86 até 98, quando
a casa foi realocada da Travessa General Francisco de Lima e
Silva para o Parque São Lourenço. Fui aprendendo com essas
pessoas que são verdadeiras universidades, que vivem no mundo
delas. Fiz em silêncio, trabalhando todos os dias, sem pensar
em aprovação.

Até hoje se envolve com a Casa Erbo Stenzel? Ainda


sou chamada para ver e opinar. Na época, fui pesquisadora
contratada pela Fundação para acompanhar o projeto. Os dados
que não aproveito, eu repasso para que sejam recuperados por
especialistas. Quando a Gerda faleceu, foi tudo distribuído e

198 | Didonet Thomaz


veio uma parte para a casa da Rua Trajano Reis, 571, onde vivia
o Nestor e onde estou trabalhando até agora. Com a morte do
Nestor, fizeram uma nova distribuição e esta casa ficou vazia
também. Em 2004, o projeto “Uma casa em desmancho” acabou
ficando mais abstrato, porque não tinha mais nada lá dentro. É
muito mais fácil trabalhar assim. É verdade que eu ainda devo
dar satisfação para os atuais proprietários, os membros da
família Cubas.

Deve ter sido duro ver a casa que você tanto estudou
sendo realocada. É, mas o momento mais difícil para mim foi na
casa da Travessa, quando tive que escolher os livros que ficariam
com a família. A casa já estava vazia. Não tinha luz elétrica. As
janelas estavam batidas, com grades. Estava escurecendo. Fiquei
sozinha na tarde do dia 23 de agosto de 1997. Nunca vi alma do
outro mundo, nem lá, nem em lugar nenhum. Então, eu descia
pela escada de acesso entre os pavimentos, levava os livros para
cima. O ambiente estava sinistro. Tinham partes escuras, só
acostumando a vista via a silhueta dos objetos remanescentes.
Fiquei tão maravilhada com tudo o que encontrei, que não me
dei conta do tempo que passou. Num momento, quando estava
indo para a soleira da porta, foi que eu senti como... Não sei se
por que estava sendo determinado que o projeto teria o nome
“Casa Erbo Stenzel”, o nome do artista, e não da família, mas eu
senti a presença dele como sendo o dono daquela casa. Isso não
corresponde à realidade, porque era uma casa de toda família.

Quem deu o nome da casa? Foi uma opção oferecida


da curadoria. Inclusive, o arranjo museológico é composto por
xerox e réplicas das esculturas que estão no MON. É uma casa de
madeira, no estilo arquitetônico de 28. Os documentos originais
não poderiam permanecer num local tão suscetível. Uma casa
se deteriora.

O que mudou nas suas impressões da família Stenzel


depois de tanto conviver com eles? Sou amiga de todos
os sobreviventes, inclusive de amigos, parentes e agregados,
até hoje. O João Nestor segue me escrevendo, telefonando.
Essas pessoas me deram uma abertura incrível, mesmo que não
estivessem entendendo exatamente o que eu estava fazendo. Os
Stenzel tinham, no sangue, uma vocação para arte. A família era
composta de artesãos/artistas. Eles tinham teatro doméstico,

Curitibocas | 199
sensibilidade, uma vocação para isso. Uma personagem que
viveu na casa da Travessa, a Sara, irmã de Nestor e de Erbo, foi
chapeleira, plantou flores, fez buquês, criou coelhos... até cada
ofício se esgotar na sociedade. Ela já havia falecido quando
entrei lá.

Em quais casas você trabalhou? O acervo Stenzel, de


86 a 2007, com duas casas: a da Travessa, que foi realocada para
o São Lourenço, e a casa da Trajano Reis. Outro acervo foi o da
família Castro Deus, de 98 a 2007, em uma casa na Roberto
Barrozo, 345.

Qual família foi mais difícil? A família Castro Deus. É


uma família enorme. As filhas cogitaram que eu seria a irmã mais
nova que morreu criança e eu teria ‘incorporado a entidade’. A
família tem um lado místico. O meu orientador, o antropólogo
Etienne Samain, observou que o Romollo Gomes de Castro Deus
fazia três pontinhos junto da assinatura. Era a pontuação dos
maçons. Ele fazia um ritual, era um mestre espírita. A partir dali,
comecei a seguir as pegadas. A família tinha uma Bíblia de 1902 e,
atrás, tinha o nome de todos os filhos dessa geração. Uma pessoa
sem conhecimento colocaria o nome de gêmeos de Romollo
e Remollo? Colocaria o nome de um filho de Anphilophilo,
de uma filha Ximena? O patriarca Ildefonso de Castro Deus
era alquimista. Na medida que a casa foi apodrecendo, foram
retirados os objetos e eu comecei a ver uma mancha atrás. Passo
então a pensar na cor. O desenho passa a não ter mais sentido.
Comecei a fotografar direto.

Você é quem fotografa? Eu mesma. Agora levo um tripé.


Já fotografei só segurando o equipamento com a mão direita,
mas agora está mais difícil por causa da deficiência do meu braço
esquerdo, que acaba desequilibrando o corpo todo.

O que aconteceu com teu braço? Nasci assim, não tenho


saudade do meu braço ser normal. Como uma deficiente física,
só me lembro do braço esquerdo quando preciso dele ou quando
alguém chama atenção.

Você tem algum apoio financeiro para seus projetos?


Nunca tive subsídio de ninguém. Meu projeto é sustentado pela
minha família. Meu trabalho é de longo prazo e varia de técnica

200 | Didonet Thomaz


absurdamente. Imagina o gasto com revelação, fotografia,
cinema, vídeo. É uma loucura. Foi o maior presente que a
minha família me deu. Meu marido não me dá jóias, não quero
sociedade. Ele me dá livros e me deixa trabalhar.

Tem expectativa de retorno financeiro nesse


projeto? Nenhuma.

Qual será a serventia deste trabalho? Para o mestrado


na ECA-USP. Envolve ações poéticas no espaço urbano,
especificamente sobre a casa. Esse projeto, “Uma casa em
desmancho”, está em andamento desde 1992. Vamos dizer que
dentro de um tronco se espalharam ramos. Quando alguns dados
da pesquisa se juntam, formam um projeto. Então, o mestrado
em artes pega essa parte até 2007. Terminado o mestrado, eu
vou continuar trabalhando no mesmo projeto porque ele não
está concluído para mim. 

Como foi a conclusão do trabalho para o mestrado?


Precisei recortar em função do prazo legal para entrega. Antes
do recorte, aconteceram duas coisas importantes: primeiro, uma
viagem a Buenos Aires – nunca tinha ido. Eu estava procurando
algo sobre Borges na Internet, e entrei num site chamado
Temakel, de um filósofo chamado Esteban Ierardo. Perguntei
se ele iria fazer outra Caminata urbana, no período da minha
permanência em Buenos Aires, em outubro de 2006. Ele disse
que ia fazer uma no Parque Chas. E o que é o Parque Chas?
Um labirinto, como o meu projeto. Segundo, nas livrarias de
Buenos Aires encontrei duas obras importantíssimas que não
conhecia: “El Libro de los Pasajes”, de Benjamin, recém-editado.
Esse livro é considerado inacabado, é feito em pedaços, trechos,
fragmentado. Tudo a ver. Uma edição brilhante. Livro grosso,
caro, caríssimo. Entrei em contato também com uma obra do
Roland Barthes: “Como vivir juntos”. Esse livro foi editado em
2003, e passou a valer como tema da 27a Bienal de São Paulo,
no Brasil, em 2006. Olha o atraso. Esse livro também tem muito
a ver com o “Libro de los pasajes”, é por trechos e temas. Meu
projeto é polissêmico. Entra tudo, objeto, instalação, fotografia,
desenho. O que precisar, vou ocupar.

Como a academia lida com essa sua liberdade? Os


formalistas não gostam. Na USP, a maior parte dos professores

Curitibocas | 201
são artistas atuantes. Quando comecei a atividade artística, lá por
77, evitava participar dos salões de arte porque tinha júri. Dizia
que não pode ter porta fechada, mas a sociedade toda é formada
assim. Não são todos os intelectuais que são abertos.

Você acha que a academia trava a arte pensando


dessa maneira tão fechada? Talvez a palavra não seja bem
essa. Quando fiz a especialização na Embap, em História da
Arte, eu apanhei muito por preconceito. A história nem pode
nos salvar... Um fracasso da palavra.

Por que você buscou a academia no teu projeto? Para


tentar canalizar o que eu havia feito de uma maneira séria, sem
levar dinheiro junto. Acumulou muita coisa. Fiquei com medo.
E se eu morrer? Quem vai ligar essas coisas? Isto tudo dentro da
minha cabeça. É um esquema de computador que aponta para
uma rede, um sistema. À primeira vista, devido à complexidade,
não parece ter lógica. Tenho documentos e registro tudo.

Por que você não faz um diário? O meu texto dissertativo


é um diário. Quando eu vou numa casa, não posso dizer tudo que
penso, porque não é o que eu penso que interessa nesse momento.
Muitas coisas não foram ditas e não serão ditas, porque não
podem ser ditas, morrerão comigo. Eu guardo.

O que as pessoas pensam de você? Muita coisa. Tem


pessoas que acham que sou maluca. É inegável a seriedade do
meu projeto. Aceito que cada um pode dizer o que quiser, até que
não gosta do trabalho. O que há de contemporâneo é o diálogo.

Imagino que você não se define como uma maluca.


Sou um ser humano que se expressa. Não sei do futuro. Não sei
se vão aproveitar, se meu trabalho vai ter algum valor.

Sente reconhecimento? Dentre os pesquisadores, sou


respeitada. Tenho uma pesquisa reconhecida, não dá para voltar
atrás. Está bom assim, porque trabalho lentamente. Não agüento
conversa de camelô.

Algum pesquisador começou a partir do teu


trabalho? O Hélio Leites declarou e publicou que o meu trabalho
provocou, que teve uma influência. Ele é uma das poucas pessoas

202 | Didonet Thomaz


Curitibocas | 203
que declarou isso. O Hélio nasceu artista. Ele abotoa todos os
meus projetos, criou um botãozinho para cada um. Adoro o Hélio,
é um símbolo de Curitiba.

Você não nasceu artista? É possível que sim, mas dei


uma volta bem grande para chegar, não me acertava com nada.
Fiz cursinho para arquitetura, letras, psicologia, e nada, nada.
Fiz ciências jurídicas e sociais, comecei a ler sobre direito autoral
no final do curso. Tentei aplicar, mas não era para mim aquela
negociação, quem souber negociar melhor consegue mais. Estou
falando do bom direito, claro. Depois, que eu fui entrar em artes
plásticas.

Quando fez o curso de Jurídicas? Concluí em 75.


Morava em Porto Alegre, mas estudava em São Leopoldo. Foi
marcante, porque antes desse curso eu tinha falhado nos exames
do Instituto de Artes da UFRGS. Tive uma série de insucessos
nos vestibulares. Entrei na Unisinos, que não tinha vestibular
propriamente dito. Era um funil. Tinha um básico obrigatório,
com cinco disciplinas. Sempre desenhei, sempre tive interesse
no cinema e na fotografia. Meu tio era fotojornalista e crítico de
cinema, o Humberto Didonet. Literatura me acompanhou, li
desesperadamente. Depois de viver a morte de um amigo, uma
pessoa não é a mesma, cresce. Certos argumentos já não me
interessam. Posso ler um bom texto, achar que é legal, mas não
é só aquilo que procuro. Tudo é interdisciplinar, não consigo ver
tão claro o que eu quero.

Você falou que na década dos 80 chegou em


Curitiba. Onde morou antes? Meu pai é natural de Ivorá,
Rio Grande do Sul. Ele passou em um concurso e foi trabalhar na
embaixada brasileira em Asunción, no Paraguai. Permanecemos
[lá] de 59 a 61. Lá, aprendi espanhol e um pouco do francês, que
era obrigatório no primário que eu fiz. Quando voltamos para o
Brasil, tive que ser alfabetizada em português novamente, além de
ficar em um grupo mais atrasado. Perdi o miolo. Fui alfabetizada
duas vezes em português.

Que recordação que você tem de Assunção? Gostei


do colégio La Providencia. Usávamos uniformes lindos e
maravilhosos. Meu pai botava a família no carro e íamos passear
na rota da música todos os finais de semana e feriados. Com nove

204 | Didonet Thomaz


anos, era uma outra pessoa. Quanto mais idiomas você conhece,
mais possibilidades tem. Guarani a gente não aprendeu. Só
palavrão. Quando meu pai percebeu, atendíamos ao telefone:
“Hola, Calle España 745, telefono 7414”.

Pelo jeito, foi marcante esse telefone. Foi, era


preto. Antes da viagem, morávamos na Vila Militar de São
Roque. Catecismo, clube, cinema quando dava. Era um mundo
pequenininho. Saíamos para o centro da cidade de Bento
Gonçalves. A casa na qual moramos era de mata-junta. Duas
coisas foram fortes para crianças sensíveis, como no meu caso: se
morresse gente, eu via o enterro passar para o cemitério, perto da
igreja. E tinha aquela coisa de ouvir o sino. Pela dobrada, a minha
avó identificava o morto, se era criança, mulher ou homem. Por
isso que não gosto de cidade pequena. Acho que tenho tendência
para melancolia. Depois de ler [Walter] Benjamin, a melancolia
passou a ter outro sentido, importante para criação. Mas tudo
tem limite. Eu não quero acabar como Benjamin, que acabou
se suicidando. Por enquanto, não. Já tive surtos juvenis. “Vou
acabar com a minha vida”. O jovem parece que é dramático. Já
tive esse lado. Claro que a situação de Benjamim foi dramática.
Então, a melancolia tem esse lado.

Então nada de cidade pequena. Não gosto do ritmo.


Sou metropolitana, da urbe.

Depois de Assunção, para onde foste? Para Porto


Alegre. É uma cidade interessante, minha família mora numa
região histórica, central, bonita. Gosto de tomar café, encontrar
com amigos, conversar. Não sou de festa, de baile, de clube.
A minha juventude foi difícil, não me adaptava com essas
atividades. As moças procuravam namoro, casamento, e eu não
tinha vocação para isso. Era uma perspectiva estranha. Tanto que
casei bem tarde. Fui bandeirante, viajei, fui a acampamento.

Depois veio para Curitiba? Casei em 1983 e viajei para cá.


Meu marido é gaúcho e ficamos viajando pelo Brasil. Ao mesmo
tempo que sabia pouco, não me envolvia e não me envolvo com
os movimentos artísticos. Vi passar todas as bienais, nunca
participei. Residência definitiva, em Curitiba, a partir de 1990.
Morei em Itajaí, fiz poucas exposições, não gosto de expor, mas
tenho um trabalho extenso.

Curitibocas | 205
Por que não? Gosto de pular exposição. O que fica é livro,
o impresso. Apesar de que nenhum livro garante a qualidade da
obra de um artista. Prefiro entrar com uma obra no acervo de
um museu, que vai ser mostrado sistematicamente em contextos
diferentes.

Como é expor em Curitiba? Acho que fica. O curitibano


tem um jeitinho mais fechado, mas encontro pessoas que me
falam de exposição que fiz em 90. Ainda é uma conseqüência.
Minha composição é demorada. O pessoal é mais quieto, não é
expansivo.

Como lida com a crítica? Se um crítico vai e fala mal do


meu trabalho, e daí? É ponto de vista dele. Tenho que tocar.

Nunca teve o afã de querer ser conhecida? Não. Isso


é um critério de valor. Tem pessoas alucinadas por isso, querem
fazer escola de qualquer jeito. Conheço gente que tem uma pasta
para mim. O Key Imaguirre tem uma na biblioteca da casa dele.
Quase caí para trás quando vi. Sou comunicativa, não gosto é
de exibicionismo. Entrevistas para a mídia são conseqüência.
Não nego orientação, não nego diálogo, mas tenho os meus
critérios.

Gosta de ser lida? Aquela coisa que algumas pessoas


precisam do espectador não me entra na cabeça. Estou na
sociedade, tem pessoas e estabeleço diálogos com elas. Sem
frescura. A pessoa quer diálogo, vamos conversar.

Sua família gosta do seu trabalho? Acho que eles


gostam mais de mim do que da minha arte. Eles não interferem,
aceitam. As casas acabam gostando mais. Veja bem, uma pessoa
como o Nestor. Ele vivia só, com 80 e poucos anos, em 92 – sei lá,
que idade ele tinha. Então, chega uma pessoa que escuta e que se
interessa pelo passado dele. O velho é um repositório. O diálogo
ativa a memória. Quando eu saía, ele ficava pensando e lembrava
de coisas incríveis. A Celina, mulher do Romollo, é rara. Ela tem
cerca de 100 anos. Acho que eu era um incômodo para ela. Ela
estava “por aqui” comigo. “Mas que tanto fotografa?”.

206 | Didonet Thomaz


Chegou a tentar explicar para o teu pai e a tua mãe?
Eles ficam seríssimos, me olhando, mas nunca mais tocam no
assunto [risos].

Onde eles moram? Em Porto Alegre. Eles me dão


força. Papai revisava o meu trabalho. Lia, falava e escrevia
brilhantemente em português e espanhol. Mas teve um ponto
que foi muito para cabeça dele. Em 1998, eu estava com outra
revisora, a Antônia Schwinden.

O que aconteceu? Ele desenvolveu carcinoma de glote e


perdeu a traquéia, em 1996. Hoje, ele está falando com microfone.
O som que sai dele parece o de um robô.

Isso mudou a dinâmica da família? A mudez de meu pai


afetou a ordem da casa. Nossa educação foi rigorosa e meu pai
foi metódico. Quando meu pai ficou mudo, a nossa lei balançou.
Perdemos a palavra de ordem, tivemos que nos definir. Até
então, papai segurava. Ele foi um estudioso até idade avançada,
tem uma malinha que é a sua biblioteca ambulante. Ele abria,
em qualquer lugar disponível, um Leonardo da Vinci, Calvino,
Borges. O dia em que ele calou a boca foi uma contingência. Outra
hora difícil transcorreu durante a Revolução de 1964. Meu pai
ficou no quartel muito tempo. Estavam de prontidão.

Teu pai influenciou no teu trabalho? As perguntas que


o meu pai fazia tinham tudo a ver com a pesquisa científica. Meu
avô foi escrivão, anotava tudo. O meu pai sempre foi organizado.
Ele tem a data das viagens que fizemos, os locais, tudo. Eu tenho
isso natural, é da família. Ajuda na vida cotidiana.

Onde, por exemplo? Nos pagamentos. Tínhamos tudo


anotadinho. Na verdade, quem mudou a minha vida foi a
crítica de arte Adalice Araújo. Ela escreveu uma carta sobre o
meu trabalho, o ritmo, a tendência científica. O material, carta
e portfólio foram enviados para a Associação Nacional dos
Pesquisadores em Artes Plásticas, a ANPAP. Com a aprovação,
comecei a publicar em 1997. Convivendo com pessoas que
estudavam nessa área, encontrei um campo para mim. Poderia
ir por essa vertente, não me incomodaria tanto com problemas
financeiros. Você já fez parte de conselho de ‘casa de cultura’?

Curitibocas | 207
Não. É problemático você julgar projetos de colegas.
Existem projetos que não são relegados, mas diante daquilo
que é apresentado está excluído quase que automaticamente,
como se houvesse uma tendência. É cruel. Tenho coragem e
gosto de trabalhar com arte contemporânea. Tem críticos que
não colocam para perder, porque tem grandes chances de erro.
Eles trabalham mais com mortos ou artistas vivos que foram
muito comentados – aí não tem erro. Tem trabalhos que dão
mais possibilidade de leitura.

Tem pesquisador estrela? Muito. Você vai saber que


ele é estrela quando você precisa dele. Ele vai te atender bem
na primeira, na segunda. De repente, ele vai te dar uma cortada
porque acabou o oxigênio. 

E amigos? Tenho grandes amigos aqui e posso dizer que eu


conheci a verdadeira amizade neste lugar. Acredito na amizade
como um patrimônio. Quando uma relação não funciona,
aponta para uma separação, sofro bastante. Não admito maus-
entendidos. Hoje, que temos computador, telefone, celular, não
cabe mais não procurar alguém para esclarecer alguma coisa.
Salvo por uma traição muito grave que não tenha mais volta.

Curitiba tem algum diferencial para fazer amizades?


Adoro Curitiba. É uma cidade ideal para morar. Gosto desse
estranhamento com o povo. Tenho muitos amigos aqui. São
relações que continuam. Encontro, sistematicamente, com
grupos para tomar café, chá. Não trocaria por nenhuma cidade
brasileira. Trocaria por Buenos Aires. Gosto dos argentinos, a
maneira como eles tratam as pessoas. Acho o máximo. Curitiba
deveria se preocupar, do ponto de vista urbano, de cuidar das
construções. Os prédios estão sendo construídos muito próximos.
Tenho problema respiratório e vivo em um apartamento com
orientação solar péssima. Tenho 20 minutos de sol no meu
quarto, em dia de sol. Com relação a ônibus, ando bem. Uma
vida boa.

Qual é o cúmulo da miséria? Pobreza.

Onde você gostaria de morar? Buenos Aires.

208 | Didonet Thomaz


Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Não
tenho.

Para quais erros você tem maior tolerância? A


manifestação da sexualidade.

Quais obras literárias você prefere? Eu gosto das


obras clássicas, como Benjamin, Barthes, Balzac. Sempre
vão acrescentar alguma coisa.

Qual é seu personagem histórico favorito? Não


tenho.

Seu pintor favorito? Van Gogh.

Seu músico favorito? John Cage.

A qualidade que prefere no homem? Franqueza.

A qualidade que prefere na mulher? Como


aglutinadora.

A virtude que prefere? Franqueza.

Sua ocupação favorita? Cultivo pétalas de rosa. Ganho


flores e guardo as pétalas.

Quem você gostaria de ter sido? Nobody, eu


mesma.

O que você mais aprecia nos amigos? A


franqueza.

Seu pior defeito? Tenho tantos. Acho que a franqueza,


por incrível que pareça.

Seu sonho de felicidade? Não tenho.

Qual seria sua pior desgraça? Não conseguir publicar


o meu trabalho, desperdiçar.

Curitibocas | 209
O que você gostaria de ser? Alguém que pudesse
influenciar nas questões do mundo para o bem. Questão
da água, da pobreza, da miséria. Poder amenizar o
sofrimento das pessoas.

Sua cor favorita? Blue.

A flor que mais gosta? Rosa.

Qual pássaro preferido? Colibri.

Seus autores favoritos em prosa? Proust.

Seus poetas favoritos? Edgar Alan Poe, Borges,


Cortázar, Ernesto Sábato. Caetano, brasileiro.

Seus heróis na vida real? Não tenho.

Seus nomes favoritos? Pedro, Maria.

O que você detesta? Quando começo a trabalhar e


alguém começa a martelar. Parece uma combinação.
Desgraça total. Por isso, trabalho mais durante a noite.

O feito militar que mais admira? Nenhum.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? Tocar


de ouvido.

Como gostaria de morrer? Isso é uma coisa que eu


penso. Não sei. Acho que a gente não tem escolha. Não
gostaria de sofrer muito.

Seu lema? Coragem, tocar, fazer as coisas.

210 | Didonet Thomaz


Curitibocas | 211
Um pastel na correria

Paulo
Cezar dos
Santos
Rodrigues

D
epois das despedidas protocolares, Darcy espera, no
ponto, o ônibus para voltar ao apartamento.
Anoitecia. Um esportista de cabelos
grisalhos despertou-lhe inveja. Ele corria na direção do
apartamento de Darcy. Parecia convidar a todos para que
seguissem seu exemplo e superassem certas distâncias com
os pés. Darcy preferiu aguardar. 25 minutos depois, chegou o
ônibus. Desceu alguns pontos antes para comer algo em uma
lanchonete e caminhar um pouco.
Pediu dois pastéis e um refrigerante “do mais baratinho”.
O atendente trouxe uma “tubaína” – uma bebida de gosto entre
tutti-fruti e guaraná.
Quando Darcy devorava o segundo gorduroso pastel, viu de
longe aquele mesmo atleta de quilômetros atrás se aproximar. A
última mordida desceu rasgando a culpada garganta de Darcy.

Curitibocas | 213
Ele passou pela lanchonete fitando a mesa de Darcy. A camisa
do corredor dizia ACORBA. Darcy anotou em seu pouco usado
bloco de notas. Resolveu vencer os 20 minutos de caminhada
até o apartamento correndo. Levou 30, pois teve que parar para
descansar no meio-fio da calçada.
Em casa, todos estavam dormindo. A cama estava pronta.
Mas Darcy não conseguia dormir. Maldito pastel ou maldita
consciência. Darcy observava pela janela, que deixava passar um
fio de vento frio por uma fresta invisível. Os prédios pareciam
murmurar um com o outro por meio de luzes que se apagam e
se acendem.
Deitou-se ainda sem sono. Olhava o teto que servia de piso
para alguém em cima. Se tudo fosse transparente, perderíamos
privacidade, mas entenderíamos um ao outro. Junto com
Darcy, quantas pessoas estavam sem sono? Quantos estavam
já dormindo? Piscou os olhos. Quantos o fazem exatamente
ao mesmo tempo, e quantas vezes ao dia? Somos muito mais
parecidos do que imaginamos. Um intelectual, um mendigo e
um prefeito comem asa de galinha sem os talheres, do mesmo
jeito. O pensamento de Darcy foi ficando mais e mais abstrato
até que virou sonho.
No dia seguinte, a mesma rotina. Internet, medo de tocar
em todo mundo, pagamento no final do expediente. Mais uma
vez, disfarçou-se de segurança. Alguém disse algo sobre número
mínimo de segurança por lei. Darcy servia para aumentar o
contingente de maneira barata.
“Atenção, passageiros. Vôo. Um. Três. Sete. Sete”, anunciava
a robótica gravação. A moça que gravou o anúncio dos ônibus
deveria ser contratada para refazer as chamadas no aeroporto.
Duas diferenças essenciais no final do expediente. Navegou
na Internet antes de bater o ponto de saída. Ninguém notou.
Ganhou como uma hora trabalhada a mais. Outra, que marcou
por telefone a entrevista sobre seus estudos de “Desportos
urbanos sob a ótica do diálogo”. Apesar da pomposidade do
título, Paulo Cezar dos Santos Rodrigues aceitou receber Darcy
no escritório da Associação dos Corredores de Rua de Curitiba.
No telefone, Rodrigues demonstrou correr também na fala.
O diálogo a seguir se deu no escritório de Paulo Cezar. Nas
paredes, quadros com homenagens, prêmios, uma bandeira
do Brasil e outra dos Estados Unidos. Com as pernas peludas
cruzadas, tênis sem meia e indumentária esportiva, Paulo
estava à vontade para dar respostas para tudo. Falava duro,

214 | Paulo Cezar dos Santos Rodrigues


mas de repente abria um sorriso simpático e inesperado, que
abrandava sua maneira direta. A conversa durou o mesmo que
uma maratona e meia de Paulo.

O que te incentiva no esporte? Ganhar dos outros. As


pessoas comentarem. O ego é massageado.

Você é bem competitivo. Treino todo dia. Quem tem


um plano de treinamento, não vai para [maratona] passear. A
competição faz parte do ser humano. Você compete com você
mesmo e contra os adversários. Isso motiva, é um combustível.
Esse espírito só vem com o passar dos anos. O dia em que eu
não puder treinar, não corro mais. Acho louvável quem está
começando pelos outros benefícios, saúde e tudo, mas eu já passei
por essa fase. Não tem mais volta.

Quando começou a correr? Faz 35 anos. Comecei a


competir no quartel, no Rio de Janeiro. Mas, naquela época, era
em pista. Depois, que eu fui para rua. Parei por seis anos - tive
um problema sério de inflamação. De uns 15 anos para cá, que
eu voltei a competir.

Além de correr, o que mais você aprendeu no serviço


militar? Disciplina e hierarquia, coisa que o Brasil perdeu. Falo
isso com muita pena. Não tenho simpatia nem antipatia pelo
regime militar, não tenho nenhum parente militar. Me orgulho
do regime que eles adotam para as pessoas que estão lá. Você
sabe qual é o seu lugar, o lugar do outro, o respeito. As pessoas,
hoje, não se respeitam. Aquela educação se perdeu porque,
infelizmente - digo infelizmente nesse aspecto -, caiu o regime
militar, entrou um civil, com uma suposta ideologia democrática,
mais cafajeste e sem-vergonha. Isso passa uma idéia errada para
a população. Se fizer uma pesquisa na rua sobre a classe que
tem menos credibilidade, os políticos estarão em primeiro, sem
dúvida. Os Estados Unidos estão 50 anos na frente do Brasil.
Se o nordeste brasileiro fosse colonizado pelos holandeses ou
espanhóis, a realidade seria outra. Hoje, o nordestino é tratado
como uma sub-raça. Não tem cultura, não tem educação. Porque
os políticos fizeram que aquela região ficasse na mão deles. Dá
uma cesta básica para um, um saquinho de feijão para outro.
Adquiri com a idade respeitar as pessoas. Talvez você ainda não
tenha, mas daqui a alguns anos vai ter. Tem que valorizar o bem

Curitibocas | 215
material até determinado nível. Virou um troço desenfreado.
Só ver no jornal a corrupção. A população não pode se espelhar
nos líderes.

Qual patente você atingiu no Exército? Cabo. Eu me


arrependo de sair do Exército por um único motivo: poderia ter
chegado num posto maior. Naquela época, não se pensava nisso.
O emprego sobrava, batiam na sua porta para vir trabalhar. O
bom da boca, o top de linha, era o bancário. Muita gente, hoje,
entra no Exército não porque gosta, mas como única esperança
para ter um emprego.

Você serviu durante o período da ditadura militar?


Não cheguei a pegar a ditadura militar. Acompanhando de longe,
a gente tem até medo de falar porque não sabe se está falando
a coisa correta, mas a ditadura militar veio por uma série de
coisas irregulares que aconteceram no governo civil daquela
época. Hoje, também acontecem, piores que há 35 anos. Só
que a coisa está diferente. Quando começa a ficar complicado,
o governo dá 10% de aumento para os militares, aí eles recuam.
Você não vai cuspir na mão que te alimenta. O que valia era
o patriotismo. Tanto é verdade, que nessa época da ditadura,
muita gente foi morta, exilada. Muita gente boa, mas a grande
maioria merecia mesmo. Se viesse uma ditadura militar agora, o
que aconteceria? Primeira coisa, iam fechar portos e aeroportos
e todas as saídas do país. A SNI trabalhava assim. Sabia o que
acontecia daqui até Foz do Iguaçu. Muitos foram injustiçados.
É aquele negócio: dez pessoas, se não tem certeza que as dez
são subversivas, que se prenda todas. Nas esquinas não podiam
fazer rodinha de pessoas. Se reuniam seis, sete pessoas, vinha
a polícia e dispersava. Minha família nunca sofreu repressão.
Nunca deveu nada para o governo.

Acredita que a solução seria um novo golpe? Eu não


sei. Acho que não. Se houvesse, morreria muito mais gente que
em 64, tem muito mais corruptos. São antibrasileiros. Acredito
que a solução seja a educação do povo. Na hora que for no
comício, vai separar as coisas. Quando eu estudava, tinha que
tirar sete. Hoje, com cinco já passa. Aí, um aluno tira quatro
e meio e passam ele para dar lugar para os que vêm atrás. O
governo não gosta de gente que cobra. A imprensa ainda exerce
um papel importante de denunciar. Dentro da denúncia, tem

216 | Paulo Cezar dos Santos Rodrigues


que ver até que ponto tem interesse do veículo. É para vender
mais jornal? Para ser mais simpático com partido tal? De uma
forma geral, a denúncia é importante, mas o povo não lê jornal.
Quando lê, é para ver crime, quem morreu, quem levou facada.
É a cultura do povo.

Como foi a mudança de pista para a rua? Quando


fui correr na rua pela primeira vez, eu sofri bastante. Na pista,
existem competições de 100 metros até 10 quilômetros. Minha
especialidade era 800 metros e meu treinamento era voltado para
essa distância. Esse treinamento serve, em parte, para quando for
correr na rua. O atleta de pista adquire muita velocidade e pouca
resistência. Não adianta correr que nem louco por mil metros
e dali para frente não conseguir fazer mais nada. Sofri para me
adaptar. Naquela época, não tinha categoria, faixa de idade. Era
o campeão e a campeã. Você ganhava ou não.

Nessa época, você ganhava ou não? Levei três anos


para tentar me manter e adquirir ritmo suficiente para poder
competir. Não conseguia chegar nas pessoas que estavam na
frente. Porque, logicamente, já vinham com outra estrutura, um
outro tipo de treinamento. Nós tínhamos um técnico muito bom
na época, e quem patrocinava a equipe era a Xerox e um banco.
Mas, quando a gente fala em patrocínio, não é como hoje que
eles pagam 5.000 ou 7.000 reais para correr. Eles pagavam só o
material para você correr.

O resultado te frustrava? Não, absolutamente. A pessoa


tem que ter noção do limite dela. Tem que saber que pode chegar,
mas esse poder chegar exige um sacrifício muito grande. As
pessoas não têm noção do sacrifício que exige o treinamento
para ganhar uma competição.

Quando você se deu conta que esse era seu esporte?


Sempre gostei de futebol. Na época, eu jogava de ponta direita,
que exige muita velocidade. A gente participava da competição
nacional. Aí, o técnico me convocou para correr. Parecia uma
coisa de retardado. Vai lá e volta cansado. Como eu corria bem,
me classifiquei em três seletivas. Dali, começou o negócio. A
gente sente gosto de ganhar. Sente prazer. Particularmente,
acho que o segundo tem validade, mas nunca vi uma rua ser
inaugurada com o nome de vice. O vice é um segundo plano. Os

Curitibocas | 217
vices na história recente não estão sendo lembrados por serem
bons, mas por acidentes que aconteceram. É o caso do Vanderlei
Cordeiro de Lima. Se perguntar quem ganhou aquela maratona,
você lembra?

Não. Daqui a 50 anos, ninguém vai lembrar. Aquela mulher


na Olimpíada de Munique que chegou sangrando. Quem ganhou?
Fora isso, o primeiro sempre vai ser lembrado. O quartel nosso
chegou a ser segundo em nível de olimpíada. Depois dali, saí do
quartel com 23 anos e segui correndo. Participei de competições
estaduais, regionais.

Como você avalia as corridas de hoje em relação


àquela época? Se você considerar as mudanças de 30 anos
para cá, os atletas de antes poderiam estar entre os melhores
tempos, se tivessem a tecnologia que tem hoje: tênis têm pouca
umidade, pouco calor, não transpiram, suplementos alimentares
impensáveis antes – os atletas viviam com arroz e feijão. Hoje,
têm informações de tudo. Liga a Internet, tem calendário até de
Nova Iorque. Há 35 anos atrás, você sabia que tinha corrida na
hora, quando estava acontecendo.

Era mais romântico? Boa pergunta. As corridas, hoje,


viraram um negócio. As empresas a nível mundial querem ter o
nome aliado a uma atividade boa. Descobriram na corrida que
é interessante relacionar a marca a isso. O esporte é um negócio
a partir do momento que tem todo um ritual para ser seguido.
Ninguém vai entrar nesse negócio só porque ama. Todos querem
entrar por um benefício. Para nós, primeiro o esporte, depois o
negócio. Faço filantropia, mas não faço propaganda disso. Só
dinheiro, que eu não dou. O dinheiro corrompe as pessoas.

Já teve alguma má experiência com dinheiro? Já


aconteceu. Aconteceu em uma ocasião em que nós estávamos
fazendo uma competição que falava de uma enfermidade. Nos
unimos com uma das maiores entidades de Curitiba. Não usamos
o nome deles para captar recursos. A associação sobrevive
independente de usar nome ou não. No caso desta entidade,
estavam sendo investigados desvios de recursos, então nos
prejudicou. Depois, foi comprovado. Em uma ocasião, fui para
a televisão falar daquela enfermidade. Nesse período, saiu a
denúncia no jornal e eu estava engatilhado com o patrocínio de

218 | Paulo Cezar dos Santos Rodrigues


duas empresas. Uma era de um laboratório multinacional que
tinha filial em Curitiba e iria conseguir verba de 12 mil para a
competição. Não foi por má vontade, mas estavam com medo
de ser vinculada com aquela entidade corrupta. Desde então,
eu decidi não ajudar mais ninguém. Uma outra vez, eu tive a
intenção de fazer uma competição que passasse em frente a
algumas entidades assistenciais, uma coisa festiva. O cidadão
responsável por uma dessas entidades me falou em uma reunião:
“Quanto nós vamos ganhar?”. O cidadão era padre, inclusive.
Fechei minha pasta e fui embora.

Imagino que o Vanderlei virou uma espécie de herói


do atletismo. Falei para ele, quando ele veio aqui na Associação:
“Acho que teve muito mais peso você não ter ganhado. Você
está sendo muito mais lembrado”. O que pesou 90% foi que ele
não desistiu da prova – coisa que todo atleta faria. Quem corre
maratona sabe. Ele vinha na frente do segundo, 500 metros. O
segundo sabia que faltavam cinco quilômetros, que não adiantava
atacar o Vanderlei, que iria colocar a posição dele em risco em
relação ao terceiro. O Vanderlei ia ganhar a prova, ninguém tem
dúvida disso. Ser expulso da prova, ver o segundo passar e ainda
ficar com o terceiro, é muita força de vontade.

E não ter se queixado. A humildade dele foi um ponto


crucial. Ganhou uma medalha que o Comitê Olímpico só dá para
os atletas que se destacam. Subir no pódio já é difícil. Primeiro,
é a glória. Ser o segundo, o terceiro do mundo é uma vitória
fantástica. Milhares de atletas nem chegaram a se classificar. Se
juntou ali a nata da nata. Nessa competição estava Paul Tergat,
Paula Radcliffe, Haile Gebrselassie. Foi tão importante quanto
ganhar a medalha de ouro. Financeiramente, a vida dele está
arrumada. Mas ele vai correr mais alguns anos em função do
nome. Ele fez por onde, não conseguiu correndo uma vez por
semana. Corria 300 quilômetros por semana. Só chega lá quem
tem obstinação. Oscar [Schmidt] é outro exemplo. Dormia com
a bola debaixo do travesseiro. Se não tiver força de vontade,
garra e obstinação, não vai. Desafio é todo dia. É eu terminar
meu percurso e baixar meu tempo. Se eu fiz em 38 minutos hoje,
amanhã eu vou tentar fazer 37 e 59.

Como funciona a Associação? Ela nasceu da iniciativa


de alguns atletas e minha. Surgiu porque nós nunca tivemos

Curitibocas | 219
uma associação especificamente desse esporte. Graças a Deus,
tem dado certo. Sentimos falta do incentivo das empresas. Sou
presidente desde a primeira gestão.

Como são as competições que vocês organizam?


Invariavelmente, em vias públicas. Então, para você organizar
uma competição assim, há de se bloquear algumas ruas.
Segurança é o primeiro passo. Hoje, já foi determinado que
você não pode dizer: “Olha, quero fazer uma corrida semana que
vem”. Não vai fazer. Tem que ligar com os órgãos de trânsito de
Curitiba, Secretaria de Meio Ambiente, Secretaria Municipal de
Saúde, Secretaria de Esporte e Lazer. Estamos com um calendário
e levamos esse calendário aos órgãos de trânsito. A partir desse
momento, começa a desencadear todo o processo.

Quantos corredores participam das corridas? Varia


muito por uma série de aspectos. Pode variar de 500 a 2.000.
A competição se divide em três categorias. Tem as pessoas que
vão pelo simples prazer de correr e estar com os amigos, sem
a mínima pretensão de treinar regularmente e ganhar troféu.
Representa em torno de 75% dos atletas. 22% dos atletas vão
para competir, ganhar um troféu, uma medalha ou dinheiro. Tem
3% dos atletas que só vão em competição que tem dinheiro. Eles
vivem disso. Nós, em algumas provas, não damos dinheiro, mas
damos grandes troféus. Aquele corredor que vai só pelo prazer de
participar, se inibe imaginando que as competições são só para
atletas. Aquele cidadão que vai para participar é um possível
competidor que irá continuar a correr e pensar em competição.
É uma cachaça. Começa a gostar do negócio, aí começa a treinar
regularmente, vê os amigos fazendo um minuto melhor, quer
fazer melhor. A gente tem percebido nos últimos quatro ou cinco
anos que Curitiba é a cidade em que mais tem crescido o número
de participantes.

Em qual dos três grupos você se encaixa? Não


pelo dinheiro. A competição é assim: existe a premiação em
dinheiro dos cinco primeiros masculinos e femininos. São os que
ganharam de todos. Aí, tem as premiações por faixa de idade.
Estou nessa categoria. Não tenho como competir com guri de 25
anos. Estou com 57 anos.

220 | Paulo Cezar dos Santos Rodrigues


Curitibocas | 221
Qual é a preparação necessária para uma corrida?
Tem aqueles que fazem academia, que fazem duas voltas no
Barigüi e acham que estão preparados. A gente que treina sofre
em uma competição dessas. Claro que qualquer um pode se
inscrever. Das duas, uma: se dá conta que tem que treinar ou
nunca mais volta para fazer maratona. Fazer 42 quilômetros da
maratona já é um mérito. Andar 42 quilômetros é difícil. A gente
não sabe quantos desistem, mas são muitos. Chega uma hora na
maratona em que dói até o fio do cabelo.

Você vai para outras cidades competir? Vou à


Maratona de Porto Alegre, em maio, vamos levar excursão. A
Maratona de Florianópolis, a Meia Maratona de São Paulo.
E a São Silvestre? É uma das piores provas do Brasil.

Por quê? Tratam mal o atleta, cobram caro. A estrutura


é montada para homenagear e engrandecer 20 atletas que vão
ganhar. São a elite. E os outros é que sustentam a competição.
Para esse pessoal tem pouco atendimento. Para você conhecer
a primeira vez é legal, mas ir todo o ano correr não vale a pena.
Corri 17 anos lá. Agora, só levo o pessoal para correr e fico
assistindo. Se fatura muito em cima dessa prova.

Em qual cidade tem mais competições de rua?


Acredito que seja São Paulo, depois Rio de Janeiro. Daí, Minas
em terceiro. O Paraná tem muita competição também. É que São
Paulo é um estado maior, com mais investimento. Em Curitiba,
é muito difícil sensibilizar o empresário e convencer que o
esporte não é eventual, serve não só no aspecto de saúde, mas
também para unir as pessoas. Estive com o pessoal da Associação
Brasiliense de Corredores. Eles têm facilidade. Eu me espantei
que eles, lá, conseguem 40, 50 mil reais de investimento. Aqui
nem a Maratona de Curitiba consegue isso. É como se lutássemos
com uma faquinha de manteiga contra dez crocodilos.

Como é um dia típico de Paulo Cezar dos Santos


Rodrigues? Acordo às 6h. Fico em casa me enrolando um
pouco, tomo o café, fico vendo notícia na televisão. Aí, pego o
jornal, e venho aqui ler um pouquinho.

Que jornal você lê? Tenho a Gazeta e a Tribuna. A Tribuna,


eu acompanho o esporte, tenho uma ligação muito boa com o

222 | Paulo Cezar dos Santos Rodrigues


pessoal do SBT. Tem uma pessoa que comanda o esporte, o
Nelson Comel, que está há mais de cinqüenta anos lá. Toda a
notícia que eu mando, eles colocam. O que toma tempo aqui é a
rotina antes das competições. O telefone toca direto.

Onde você mora? Perto do terminal do Boqueirão. Mas


eu não gosto de treinar na Marechal. Muito carro, muito ônibus,
muita fumaça.

Quantos quilômetros por dia? Obedece uma variação.


Só correr não resolve. O treinamento não está só relacionado com
a distância. Tem alguns treinamentos específicos de velocidade,
resistência, flexibilidade. Não tenho circuito fixo. Para mim,
desgasta muito. Procuro variar. Você conhece Curitiba?

Alguma coisa. Começo no Colégio Estadual. Saio dali, tomo


banho e troco roupa. Começo a pensar: “Hoje eu vou lá para o
Portão”. Aí, eu corto aqui, saio lá perto do Barigüi. Vou nela até
sair na República Argentina. Aí, desço pela Kennedy, entro pela
Marechal, venho vindo. Tem dia que eu vou para Pedreira, para
o Parque Tingüi, ou que eu fico dando volta no Passeio Público.
Varia.
O que você pensa enquanto corre? Às vezes, é perigoso
desviar a atenção do que está fazendo. Já aconteceu de estar na
canaleta do expresso - procuro andar na contramão do ônibus
- não sei o que aconteceu que eu fui para a calçada. A minha
vista não viu nenhum ônibus, mas vinha vindo como daqui à
porta [quatro metros]. Eu fico preocupado com o tempo que
estou fazendo, quantos quilômetros, mas sempre com um olho
no trânsito.

Esse pessoal que vai ouvindo música... Eu chamo de


alienados do esporte. Põe aquela merda no ouvido, vem um carro
e passa por cima. Se perguntar que tempo fez, não sabe.

Você acompanha algum time de futebol? Fui sócio do


Flamengo por muitos anos. Quando dava Fla-Flu que começava
às 15h, eu ia ao estádio meio-dia, levava lanche e ficava naquele
sol de rachar, na época em que o Maracanã colocava cem mil.
Sou carioca por ter nascido lá. Agora, eu me considero muito
mais paranaense do que carioca.

Curitibocas | 223
Quando você veio para Curitiba? Em vim em 72. Mas,
desde então, eu fui morar em Porto Velho, Rio Grande do Sul,
Mato Grosso, voltei para o Rio de Janeiro.

Por que isso? Empresa. Já trabalhei em empresa


subsidiária alemã, americana. Em Rondônia, fui para substituir
um mês e fiquei um ano. Ninguém achava alguém para ocupar
o meu lugar. Na verdade, de Curitiba tenho 20 anos. Agora, não
saio daqui. E vou morrer aqui. Minha família é daqui, meus
filhos são daqui.

O que Curitiba tem de especial? No Brasil, existem


lugares tão bons quanto Curitiba para se viver. Melhor, não. Sob
todos os aspectos. Não só segurança. Acho Curitiba melhor para
se morar. Gosto do estilo de vida do povo daqui. Eu, apesar da
facilidade que tenho para me comunicar, moro há 18 anos no
mesmo condomínio e não conheço ninguém. Só dou um bom
dia e olhe lá. Não faço a mínima questão. Não que eu queira
ser antipático, mas é meu modo de ser. As pessoas em Curitiba
são assim. Quem vem de fora sente uma enorme dificuldade. O
curitibano demora para fazer amizade, demanda tempo. Por uma
série de fatores – a colonização européia, pela formação do povo.
Hoje está mudando. Há 30 anos, você não encontrava nenhum
preto. A Rua XV parava quando aparecia alguém de cor. Como
eu estou aqui, agora, de bermuda e tênis, não entrava no ônibus.
Hoje, o cara entra de chuteira.

Teus filhos praticam algum esporte? Meu filho joga


futebol. Já viu algum pai dar para o filho um tênis de corrida
ou um dardo? Dá uma bola. Meu filho só torce para o Flamengo
porque eu criei ele. Aqui no Paraná, ele torce para o Coritiba.
Particularmente, tenho simpatia pelo Paraná porque tive muitos
atletas que viraram amigos particulares ali. Mas não tenho
fanatismo. Se der Paraná e Flamengo, eu até torço pelo Paraná,
que representa uma estrutura menor. Hoje, eu, literalmente,
detesto as pessoas que estão envolvidas com o futebol, os
dirigentes. É uma máfia, uma quadrilha que tomou conta. É só
ver no jornal quantas pessoas sofrem processos.

Quando você casou? Em 1974. Vou fazer 27 anos de


casado agora.

224 | Paulo Cezar dos Santos Rodrigues


Ela corre também? Falei para ela começar a caminhar,
mas sabe como é. O esporte não adianta impor para a pessoa,
tem que se descobrir. Ela vai, se sentir prazer naquilo.

Você incentiva os esportistas? Sempre. Acho que sou


muito exigente. Quero, às vezes, que as pessoas sejam que nem
eu, um erro fatal. Sou assim, não vou mudar. Gosto das pessoas
que se dão bem comigo. Quem não gostar como eu sou, paciência.
Tem gente que diz que eu salvei a vida. Tinha um com 172 quilos
e hoje, 90. Era um monstro. Na primeira corrida, ele ficou em
dúvida, meio envergonhado. Fui com tudo nele: “Que história
é essa? Está parecendo mulher, parecendo marica. Vai correr,
sim senhor”. Fui para machucar. Corri junto com ele. Tinha ido
para competir nessa prova, chegamos em último. Até hoje, ele me
agradece e está correndo. Hoje, corre ele, a mulher, a sobrinha.

O que você aconselhou a ele primeiro? A caminhar?


A primeira coisa é procurar um médico. Tem gente que não pode
nem caminhar. Sempre incentivo o atleta a começar e continuar.
Muitas coisas, às vezes, eu falo porque eu sei que tem que fazer,
mas eu, particularmente, não faço. Não faço por preguiça, por
relaxo, não por não saber.

Cuida da alimentação? Eu sou muito relaxado, sabe? Para


você ter uma idéia, eu tenho que emagrecer quatro quilos para
competir bem. Quem corre para competir sente qualquer quilo
a mais. Esses tempos, eu quis emagrecer rápido, tipo brasileiro.
Aí, eu vi uma reportagem num jornal sobre uns produtos que
emagreciam rápido. O farmacêutico falou que era faixa preta
fortíssima. “Droga pura”, disse o cara. Tem um produto natural
lançado pela Ana Hickmann na televisão. Comprei, mas não
resolveu bosta nenhuma.

Qual a sua tentação? Pastel. Adoro pastel. Posso pegar


gordura nova, com massa da melhor qualidade, me dá azia. Só
o da minha casa, feito pela minha mulher, que não dá. Às vezes,
quando eu vejo uma pastelaria no caminho, eu desvio para não
ir lá. Agora, eu cortei lá em casa o refrigerante. Não por causa de
mim. Mas todo mundo tomava. Tem muito açúcar. Como doce
eventualmente, mas tem gente que come compulsivamente e
são secos que nem palito. O metabolismo é muito mais rápido.
A gordura não chega a se acumular. Tem pessoas que têm

Curitibocas | 225
dificuldade no processamento e acumulam a gordura. O negócio
é não acostumar o organismo. O intestino é um elástico. É muito
mais difícil perder essa gordura e reeducar a alimentação.

Você bebe? Não. Bebi muito já. Fumei também. Parei há


20 anos por causa do esporte. Não tem como fazer as duas coisas.
Só parei quando deu problema na perna. O médico falou que
era conseqüência do cigarro. Acumula na corrente sanguínea e,
como eu usava muito as pernas, me deu uma dor nas duas pernas.
Sentei no fio da calçada e não conseguia nem andar. Meia hora
parado. Nesse dia, joguei o cigarro no lixo.

Quando começou? No quartel, eu corria e fumava. Aí,


começou o vício. Quando a gente é novo, acha que não vai
acontecer nada. É uma bomba de efeito retardado. Quando
explode, não adianta mais. Você vai para o médico condenado.

Sentiu diferença quando largou o cigarro? Sem


dúvida. Nesse meio, encontra desde juízes a catadores de lixo
que contam histórias que largaram os vícios através do esporte.
Hoje, se você for entrevistar uma pessoa dessas, elas dirão que
só ganharam. Quando você entra nesse nível de querer competir,
você se sente obrigado a deixar o vício. O esporte evita que as
crianças entrem nas drogas. As crianças precisam só de um
empurrão. O adolescente vai para o meio que puxarem ele. É
muito melhor que puxem para o esporte. Tem que deixar ele
escolher dentro do esporte, ou fora, o que ele gosta.

Tem alguma atividade paralela? Dou aula de matemática


financeira e contabilidade lá em Araucária, na Fundacen. Vou ter
que me desdobrar.

Você é formado em quê? Todo mundo acha que eu sou


formado em Educação Física. Eu sou formado em administração
de empresas, com pós-graduação em administração esportiva.
Nunca tive interesse, por exemplo, em dar treinamento para
atleta. Não é minha vontade. A minha idéia sempre foi estar
dentro das estruturas, dentro das competições. As pessoas
até pedem conselhos, mas eu dirijo aos especialistas. Se me
perguntarem de corrida, eu posso dizer alguma coisa.

226 | Paulo Cezar dos Santos Rodrigues


Quem você admira? Jessé Owens - aquele que desbancou
o Hitler. Foi um cara fantástico. Hitler acreditava que quem
ganharia era a raça superior dele. Quem ganhou foi um negão.
Além disso, foi um excelente corredor. Teve recorde mundial e
tudo.

Segue alguma religião? Eu sou católico. Eu rezo aqui


no escritório todo o dia. Agradeço a saúde que tenho, que é a
coisa mais importante. Não sou frontalmente contra as outras
religiões, até porque a católica pratica coisas que eu não concordo.
O povo quando é carente vê um palito de fósforo e pensa que
vai se salvar. Com uma boa oratória, é fácil convencer o povo
com falsas promessas. Eu dou risada. “Deus é maravilhoso, essa
propriedade é de Deus”. Gente, e precisa fazer propaganda?
O que Ele quer não é isso. Ele quer que você seja uma pessoa
correta, trabalhadora. Não sou santo também. A gente comete
vários erros e vai continuar cometendo. Procuro sempre me
penitenciar. Muitas pessoas não gostam de mim porque pensam
que eu sou um cara intransigente. Não gosto de ver injustiça,
sacanagem com gente que não pode se defender. Compro briga
dos outros. No que eu puder ajudar, eu ajudo. Agora, se pisar
em mim, eu enterro a pessoa de cabeça para baixo. Brigo com
as pessoas que merecem.

Como você se descreve? Um cara chato para cacete. Um


mala, mala, mala. Eu sei que tem pessoas que não gostam de mim.
Não me preocupo com isso. Não me sinto muito especial. Quem
diz se eu estou no caminho certo são os corredores.

Qual é o cúmulo da miséria? As crianças pedindo


comida no meio da rua.

Onde você gostaria de morar? Curitiba.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? A minha


família estar bem, meus amigos e eu também.

Para quais erros você tem maior tolerância?


Qualquer que seja involuntário.

Curitibocas | 227
Quais obras literárias você prefere? Vou ser bem
sincero: não leio livro. A minha leitura se baseia em
revista e jornal.

Qual é seu personagem histórico favorito? Jessé


Owens.

Seu pintor favorito? A gente conhece vários por nomes.


Mas não tenho nenhum específico.

Seu músico favorito? Fundo de Quintal.

A qualidade que prefere no homem? Sinceridade.

A qualidade que prefere na mulher? Sinceridade.

A virtude que prefere? Honestidade.

Sua ocupação favorita? Está dividido. Esporte e dar


aulas.

Quem você gostaria ter sido? Eu mesmo.

O que você mais aprecia nos amigos? A fidelidade.

Seu pior defeito? Falar demais.

Seu sonho de felicidade? É morrer e ver minha família


bem.

Qual seria sua pior desgraça? Algum dos meus filhos


estar envolvido com drogas.

O que você gostaria de ser? Um atleta, estilo


Vanderlei Cordeiro de Lima.

Sua cor favorita? Vermelho e preto.

A flor que mais gosta? Rosa.

Qual pássaro preferido? Sabiá.

228 | Paulo Cezar dos Santos Rodrigues


Seus autores favoritos em prosa? Fabio Campana.

Seus poetas favoritos? Nenhum.

Seus heróis na vida real? Meu pai e minha mãe.

Seus nomes favoritos? Não tenho.

O que você detesta? Falsidade.

O feito militar que mais admira? Pode até ser um


contra-senso, mas é a revolução de 1964.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? Mudar


o passado.

Como gostaria de morrer? Correndo.

Seu lema? Trabalhar, trabalhar, trabalhar.

Curitibocas | 229
Valdir
Novaki

A
proximadamente às 19h19, resolveu caminhar mais
depressa. Para atravessar a rua, corria. Sempre de olho
no relógio. Com fé religiosa, acreditava que estas
medidas aumentariam seu desempenho físico. As ações foram
abandonadas no dia seguinte.
Darcy volta a ter a sensação que tinha quando recém
chegara em Curitiba. Todas as pessoas são interessantes, bastava
descobrir. Na loja de roupas, uma atendente finge alegria ao ver
o qüinquagésimo cliente sair sem comprar nada. Um homem
confessa que ama a mulher sentada no banco ao lado – a resposta
é um seco “eu não” seguido de lágrimas. Uma jovem caminha
pela calçada evitando pisar nas pedrinhas negras. Transeuntes
esbarrando em outros com agressividade passageira. Tudo de
sumo interesse.

Curitibocas | 231
Mas, nesse dia, uma pessoa chamaria mais a atenção de Darcy
do que qualquer outra da última hora. Na Praça Tiradentes, um
homem de bibico pilotando um carrinho de pipoca comandava
uma fila. Vestia um uniforme branco, como das publicidades de
sabão em pó, com o dia da semana bordado no bolso – no caso,
era quinta-feira. Algumas mulheres retocavam a maquiagem no
vidro do carrinho que expunha vistosos milhos explodidos. Darcy
entrou na aglomeração.
Os risonhos olhos claros do cozinheiro encontraram os
de Darcy. Com um grande sorriso, pegou na mão de Darcy e
perguntou se era a primeira vez que provaria a Pipoca do Valdir.
Com um grande sorriso, o pipoqueiro ofereceu três variedades
de pipoca. Darcy gostou da doce. Levou de graça um pacote
feito na hora. Junto com a pipoca veio o kit-higiene – pequeno
pacote plástico com palito de dente embalado, folder (“Pipoca
do Valdir, Um estouro de sabor”), bala de hortelã e guardanapo.
Darcy não recebia este tratamento nem no restaurante mais caro
de sua cidade.
Ficou em estado de choque. Permaneceu nas proximidades
testemunhando o atendimento especial que o pipoqueiro dava
a todos. Em alguns casos, chamava o freguês pelo primeiro
nome.
O diálogo a seguir ocorreu depois de uma paciente espera
de Darcy, que aguardou o pipoqueiro fechar seu carrinho,
lavar e guardar em um estacionamento próprio. Valdir estava
contente por contribuir com o pujante estudo: “Perspectivas de
crescimentos e casos de empreendedores de rua”. Mesmo quando
explanava temas pessoais, demonstrava felicidade e clareza. O
sorriso não era mero artifício de vendas.

Sempre deixa o carrinho aqui? Pago o estacionamento
por mês, como se fosse um carro. A responsabilidade deles é a
mesma. Se acontecer alguma coisa, têm que pagar.

Que horas você virá amanhã retomar o trabalho?


7h30.

E desde essa hora que não deixa de sorrir? O bom


empreendedor é aquele que sorri 24 horas por dia. Problema
todo mundo tem. Mas nunca se deve misturar os problemas
pessoais com o trabalho, que é profissional do dia-a-dia. O
sorriso é a menor distância entre duas pessoas. Muita gente me

232 | Valdir Novaki


pergunta como faço para atender tanta gente da mesma forma,
com a mesma qualidade. Respondo que, se pudesse, trabalhava
24 horas por dia. Pode estar sol de 35 graus que estou no meu
ponto. Uma coisa que eu cumpro é horário. Mesmo não tendo
movimento, dou minha cara para bater. Cliente se chateia se
passar lá e a gente não estiver.

Os clientes estão cada vez mais apressados? Dá tempo


para conversar? Só no jeito da pessoa chegar, se direcionar a
mim, já estou analisando se está com pressa, se está com tempo,
se é de pouca conversa, de muita conversa. Seja mulher, seja
homem, seja criança, eu cumprimento pegando na mão do meu
freguês. Isso é costume que herdei da mãe e do pai, do sítio. Até
os próprios fregueses pegaram o costume de cumprimentar. Uma
coisa importante: eu não tenho cliente. Cliente para mim se for
tudo para concorrência eu agradeço. Cliente quem tem é banco.
Gosto de freguês, porque ele vai comprar pipoca todo dia. O
cliente vai comprar muito esporadicamente, onde esse dinheiro
não vai fazer diferença nenhuma, onde vai somar dois ou quatro
a mais no meu caixa. Eu quero o freguês, aquele que sai do lado
da praça e só compra a Pipoca do Valdir. Sempre falo nas minhas
palestras do valor vitalício de um freguês.

Como assim? Você nem imagina o quanto vale um freguês


para mim ao longo de 15 anos. Olha que passa rápido. Se você
comprar pipoca 20 dias no mês comigo, vai gastar comigo 40
reais. Agora, coloca isso durante 15 anos, 7.200 reais. Quando o
cliente está cruzando a rua, se direcionando à minha nave, vejo
uma faixa na testa dele dizendo 7.200 reais. Ao longo de 15 anos,
se eu tiver mil desses clientes, posso me aposentar. Só que tem
um detalhe: freguês, para ganhar, é difícil. Para perder, basta
piscar os olhos.

Os fregueses pareciam simpáticos, mas tem os


chatos? Graças a Deus, até hoje nunca tive nenhum tipo de
problema. Porque o meu freguês não tem do que reclamar da
minha pipoca. Dou muitas opções para ele. Então, isso acaba
gerando uma afinidade, o teu cliente fica sem saída. Não dou
chance de reclamar de nada.

Como são os curitibanos? Na realidade, o curitibano


mesmo é o povo mais triste que tem para lidar. É o mais exigente.

Curitibocas | 233
70% da minha clientela são pessoas que vêm das cidades vizinhas
procurar suas oportunidades na capital. Mas eu consigo dobrar
os 30% restantes. São meio enjoados, mas... [risos]

Trabalha sozinho? Até às 16h30 eu trabalho sozinho. Aí,


chega minha esposa que me ajuda. Ela vem e eu continuo um
pouco. Quando começa a escurecer mais cedo, acabo ficando até
às 20h. Antes, eu fechava às 19h30. Aí, eu arrumei um cliente que
passava 19h40. Aí, outro cliente que passava 19h50. Conforme vai
aparecendo, eu vou ficando. Se precisar ficar até 22h, eu fico.

Pipoca do Valdir 24 horas no futuro? Quem sabe. Para


mim está complicado tomar conta de tudo sozinho. Às vezes, um
canal de TV me liga para fazer uma entrevista e eu não posso
sair porque estou sozinho. O pessoal da rede Record me ligou
para dar uma entrevista ao vivo no jornal do meio-dia, mas eu
estava trabalhando sozinho, não pude sair porque já estava com
o carrinho no ponto. Tem que ser alguém da família, porque eu
sou muito chato. Até a forma de servir o meu cliente tem que ser
do jeito que eu quero.

Como é? Por exemplo, o kit-higiene é feito para o cliente


ver. A entrega do kit tem que ser com muita maestria. Não tem
nada a ver entregar esse kit, que é bonito, e virar as costas. Dê as
costas, mas continue falando. Está servindo, está falando com o
freguês. O freguês vai sair satisfeito e vai voltar.

Afeta o custo? O kit-higiene, parece brincadeira, mas custa


três centavos. Sugestão do professor Ricardo, que trabalhava
no HSBC.

Esse Ricardo é o teu consultor de marketing? Pode-


se dizer, eu tenho um consultor que foi meu cliente. É um
profissional sem tamanho, tem idéias brilhantes. Conheci ele
em março de 2000. Ele passava por mim todo dia e comprava
um pacote. Fazia pouquinho que eu tinha começado em outro
ponto, na frente da Federal. Um dia, ele falou que tinha uma
empresa de lavar telhado de casa, fachada de prédio. Tinha umas
máquinas de alta potência, água quente, toda aquela coisa. Ele
se propôs a levar o carrinho na casa dele para lavar. Limpamos
e lavamos, mas ele falou que só lavar não ia ficar bom. “Vamos
raspar toda essa tinta e pintar”. Final de semana, eu, ele e a

234 | Valdir Novaki


esposa dele empenhados no carrinho. Dois anos depois, eu perdi
o ponto porque o dono não queria mais alugar. Já tinha feito
uma clientela muito boa, estava sobrevivendo muito bem. Fiquei
sem falar com ele até 2006. Quando saiu esse ponto da Praça
Tiradentes, quem projetou meu carrinho fui eu. Daí, fui para o
Centro fazer uns negócios e encontrei o professor lá na Rua XV.
Tomamos um café numa panificadora. Falei para ele:
- Professor...
- Não me chame de professor, me chame de Ricardo.
- Ricardo, eu tenho uma surpresa para você.
- Olha aqui, agora eu tenho um ponto de pipoca que é meu
- mostrei a minha licença.
Estudamos o fluxo de gente, tipo de pessoas que circulavam
mais por ali.
- Aqui vai ser o canal para você bombar – disse ele.
- Agora eu tenho uma surpresa maior. Vou te levar para
conhecer a minha nave.
Aí, fomos lá na casa do senhor que fabricava o carrinho.
Quando chegamos lá, ele ficou encantado. “Realmente, foi muito
bem feito, muito bem planejado”. Então, nós criamos um logo.
É de uma empresa contratada para fazer o trabalho. No dia que
foram adesivar o carrinho, foram três funcionários. Cada etapa
era um motivo para nos dar mais entusiasmo. Tudo que você
vai fazer, tem que fazer o melhor. Quero tudo do melhor para
que nenhum cliente meu tenha dúvida que está comprando
qualidade. Iniciei o meu trabalho com 4.000 reais. Paguei 3.000
no carrinho. Só para adesivar minha nave, adesivagem da 3M,
de ótima qualidade, foram 600 reais. Precisava fazer os folders,
o site, os convites, os jalecos, mas aí é que a pessoa não pode se
desesperar. Com meu próprio giro, eu tirava todo o mês 30% da
minha receita líquida e reinvestia no meu negócio. Comprei mais
cinco jalecos. Por que seis, se eu trabalho de segunda a sexta?
Porque quando eu for dar palestra, eu tenho que ter um extra,
não vou trabalhar o dia todo aqui e ir para a palestra.

Em linhas gerais, qual o diferencial da Pipoca do


Valdir? A qualidade. Pago o dobro do preço por um litro de
óleo, o dobro em um quilo de bacon e consigo vender a minha
pipoca ao mesmo preço que a dos outros.

Da onde sai o lucro? Na quantidade de clientes.

Curitibocas | 235
Qual o segredo para ter todo o controle? Tenho uma
planilha eletrônica gerencial de custos que controlo diariamente.
Se vou no supermercado e o óleo de 2,50 passa para 3, sei, no final
da tarde, o quanto alterou na minha linha de produção o custo.

Sempre foi assim? A planilha gerencial nós começamos


no dia que a nave aterrissou no ponto. Meu carrinho, eu chamo
de nave. É o apelido carinhoso que eu dei, porque deu tão certo o
meu negócio, que hoje, graças a Deus, através da minha nave, eu
consigo sustentar minha família. Antes de começar a trabalhar,
fui no supermercado e fiz uma lista de preço de tudo. Joguei
na planilha. No custo fixo por pacote está incluída a minha
alimentação, o cafezinho que eu tomo, meu vale transporte, a
limpeza da nave que é feita diariamente. Parece que não, mas
material de limpeza é caro. A cada meia hora, é tudo desinfetado.
Tem que ser com papel toalha que é descartado.

Quando se deu conta da sua vocação de pipoqueiro?


Nunca tinha feito pipoca na minha vida, mas passava pelos
carrinhos de pipoca e achava um barato as pessoas fazendo,
servindo. Principalmente para criança, adoro servir criança.
Pensava: “Um dia eu quero ser um pipoqueiro”. Tenho mais
prazer em servir e fazer do que cobrar. Aconteceu, inúmeras
vezes, de cliente ir embora sem pagar porque eu ficava
conversando, trocando idéia. Ao mesmo tempo que eu estou
trabalhando, consulto o meu freguês. Sempre pergunto no que
posso melhorar, se tem alguma sugestão.

Que sugestões você já recebeu? Várias. Um dia,


perguntei a um senhor e ele respondeu: - Valdir, do jeito que
você trabalha, não tenho sugestão. Eu só vou ficar triste porque
não posso mais comer da tua pipoca.
- Mas, por quê?
- Porque meu nível de colesterol está muito alto. Meu médico
me proibiu.
- Não seja por isso. Eu vou comprar um óleo e um sal especial
para o senhor.
- Você faria isso para mim?
- Com o maior prazer. Vou comprar. Amanhã pode passar
aqui.
Foi aí que eu pensei: “Se é direito de um, tem que ser direito
de todos”. São todos iguais, não tem diferença de idade, de cor. O

236 | Valdir Novaki


mesmo atendimento que dou para uma criança de cinco anos, dou
para uma pessoa de 90. Substituí o óleo de soja pelo de girassol,
que tem 0% de gordura trans. Daí, sal normal para a pessoa que
pode e light para aquele que prefere. Não perdi meu cliente.
Continua comprando comigo até hoje, satisfeito.

Muda o sabor da pipoca? Muda. Fica muito melhor.

Já errou em alguma inovação? Lógico, não dá para


acertar sempre. Um exemplo: a pipoca light. Nas pesquisas
todo mundo queria. Na hora que coloquei, não vendeu.
Automaticamente, já tiramos fora. Foi a única que não deu.

Os outros pipoqueiros têm o mesmo cuidado que


você? Acho que nenhum tem. Devido ao fato de você ver a forma
que eles chegam para trabalhar, já com um monte de pipoca do
dia anterior no carrinho, acho que não devem ter uma higiene
adequada.

Eles estão sentindo a concorrência? Fiz uma pesquisa.


Cheguei à seguinte conclusão: consegui resgatar uns 2% das
pessoas que tinham deixado de comprar pipoca na rua. Devido
à falta de higiene, só compravam no cinema ou no shopping.

Se você tivesse que concorrer com o Valdir, o que


faria? No Brasil, nada se cria, tudo se copia. E mais, teria a
humildade de pedir ajuda. O sol nasceu para todos. Hoje, se
todos os pipoqueiros me copiassem, seria um prazer. Para
você ter uma idéia, Darcy, me propus a dar uma palestra para
os pipoqueiros, de graça - abrir a minha planilha gerencial de
custos para eles verem que o custo final de um pacote de pipoca,
incluindo insumos da melhor qualidade e o quanto estava tendo
de lucro. A resposta que eu obtive do próprio pessoal do sindicato
é que se eu quisesse ser vaiado pelos ambulantes que eu fosse
lá. Para você ver que não adianta ajudar pessoas ignorantes.
Resumindo: eles que vendam o peixe deles como quiserem, que
vendo o meu do meu jeito. Agora, depois de tantas matérias na
TV, eles começaram a vir para o meu lado. Só que, hoje, para
falar comigo tem um custo e eu não vou cobrar barato. Quer
aprender? Tudo tem seu preço.

Curitibocas | 237
Qual é o preço? Uma hora de palestra para eles é mil reais.
Se não aprendeu, mais meia hora, é 500. Quando me propus a
ajudar todos de graça, não quiseram. Acharam que o fato de eu
abrir um pacote de pipoca com um pegador de alta pressão era o
cúmulo. Chegaram a falar na praça que eu era o cara mais nojento
de Curitiba. Tinha que abrir o pacote com a mão. Como que eu vou
enfiar minha mão dentro do pacote que outra pessoa vai comer?
Queria ajudar para que melhorassem a própria condição de vida
deles. Não é fácil você ganhar aqueles fregueses assíduos. Muita
gente diz: “Pô, você é folgado, não trabalha sábado e domingo”.
Porque ninguém sabe quantas horas por dia trabalho. Entre sair
da minha casa, na hora que eu saio, até a hora que chego são 16
horas de trabalho por dia, 12 em pé. Só vou sentar na hora que
venho embora de ônibus. Chega final de semana, estou com meus
pulsos doendo. Semana inteira areando panela, empurrando
carrinho, é cansativo.

O que faz no teu tempo livre? Gosto mesmo é de pescar.


Quando tem um tempinho no final de semana, vou para o pesque
e pague. Vou para o supermercado fazer as compras para semana.
Sou muito caseiro. Também gosto de ler, principalmente revistas
de marketing, como a Venda Mais. Não é porque saiu matéria
comigo, leio porque tem histórias de empreendedores que são
muito bacanas. Procuro repassar as minhas palestras, ver se eu
estou falhando em alguma coisa, se posso melhorar.

Qual o tema das palestras? Quando vou dar palestra


para os universitários, é sobre marketing. O que eles aprendem
na teoria, mostro na prática. Agora recentemente, fui dar uma
palestra na Gasparin, para 250 pessoas – pedreiros, carpinteiros,
encanadores. Esta já era uma palestra de incentivo. Depende o
público. Ano passado, fiz uma palestra para mil empreendedores
do Sebrae em Criciúma, Santa Catarina. Também falando sobre
marketing com eles, empreendedorismo. As pessoas no Sebrae
pensam que estão sabendo tudo, mas só sabem na teoria.

O que dizer para o trabalhador que presta serviços


básicos, que não exigem muita qualificação, tendo em
vista a baixa ascensão social do país? É difícil, porque as
pessoas esperam muito dos governantes. A partir do momento
que não acredita no seu potencial, também não adianta que não
vai chegar em lugar algum. Fiz um monte de coisa até decidir o

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que queria. Sabia que tinha potencial para ser pipoqueiro. Quero
ser primeiro o melhor pipoqueiro para depois fazer outra coisa,
porque nós não podemos ser tudo para todos ao mesmo tempo.
Se você não for otimista, você não chega. Hoje, a maioria das
pessoas fala que eu tenho uma profissão privilegiada. Porque
só agora falam isso para mim? Eu investi tudo que eu tinha.
Deitava e acordava pensando em como e o que tinha que fazer
para melhorar meu negócio. O primeiro passo é a apresentação
perante seu cliente e organização. Veja se tem um pedreiro
que tem um site na Internet hoje. Não tem. Por que não pode
ter um site, que custa uma mixaria? Site não é um custo, é um
investimento. Tem que divulgar o trabalho.

Como você faria? Se fosse pedreiro, cada obra que


eu fizesse ia tirar uma foto e jogar num site. “Aqui está uma
referência do meu trabalho”. Telefone para contato, do cliente,
o meu. Tem uma série de coisas que podem ser feitas, mas eles
acham que tudo é caro. Meu site está há cinco meses no ar. Hoje,
devo ter mais de 130 mil pessoas que acessaram. Quando saiu na
Ana Paula Padrão, no SBT Brasil, em três dias eu recebi 35 mil
e-mails. Manaus, Acre, Miami. Inclusive, eu tive a oportunidade
de conhecer o Jota. O Jota, foi contada a história dele na novela
“América”, pelo Roberto Bomfim. Lembra o motorista de
limusine que mora em Miami? Então, o Jota veio me conhecer
pessoalmente. Estava trabalhando, atendendo um monte de
cliente lá, aí chegou ele e a esposa. Ele hospeda só celebridades:
Hebe Camargo, Claudia Raia... Ele me convidou para ir a Miami
esse ano, que era tudo por conta dele. Através do quê ele me viu?
Pelo site. Internet ajuda muito, só que as pessoas não valorizam.
Ele falou que “A história minha é igual à sua”. Ele se candidatou
a vereador numa cidade que tinha 50 e poucos mil habitantes
do Rio Grande Sul.
- Sabe quantos votos eu peguei?
- Nem idéia.
- 35!

Já pensou em se candidatar para alguma coisa?


Não. Com política não dá para se envolver. Prefiro vender minha
pipoquinha honestamente. Várias pessoas chegaram a conversar
comigo a respeito disso. Recebi até um certificado de honra ao
mérito pelos meus trabalhos, a pedido de vereador.

Curitibocas | 239
Você é formado em administração? Não, Darcy, pelo
seguinte. Só cursei até a quarta série do primário. Não tive a
oportunidade de estudar mais porque sou de uma família muito
pobre. Somos em 12 irmãos, meu pai não dava conta de sustentar
- eu sou o sétimo. Cada um tinha que ir para um lado e se virar
do jeito que podia. Saí da casa da minha mãe com oito anos de
idade. Vivi dos oito anos até os dezenove sozinho, que foi quando
eu casei. Assim, meu pai, minha mãe participaram muito pouco
da minha adolescência. Você imagina, 12 filhos dormindo em
um quarto só. Numa cama. Complicado, né? Hoje, as épocas são
outras, graças a Deus temos um pouquinho mais de conforto, mas
o passado eu prefiro nem lembrar porque foi muito sofrido.

Com oito anos para onde você foi? Saí da casa da minha
mãe, fui trabalhar num abatedouro em São Mateus do Sul onde
matava porco, fazia lingüiça, matava galinha nas sextas-feiras
para abastecer os supermercados da cidade. Eu morava lá. Ia
estudar de manhã, à tarde trabalhava a troco de minha comida e
da cama que eles me davam. Trabalhava sério. Quatro da manhã
já estava levantando e matando as galinhas. Chegava as carretas
de frango. Eram mortos 3.000, 4.000 frangos nas quartas-feiras.
Muitas vezes, ia dormir 22h para, às 4h, estar em pé. Fui até os
14 anos assim. Aí eu cresci, já podia trabalhar na roça, ganhar
um pouco mais. Passei a alugar um quartinho para mim.

Dava tempo de brincar? Não tive a oportunidade de


brincar. Trabalhava para me sustentar, se fosse brincar, eu ia
passar fome. Mas não me arrependo de nada disso. Não culpo
meu pai, não culpo minha mãe, porque é difícil, mas eu não
tive infância. Não ganhava chocolate na páscoa ou um sapato.
Quando ganhava alguma coisa, era quando fazia bico. Sábado e
domingo não trabalhava no abatedouro, tirava para fazer bico.
Me propunha a limpar um jardim a troco de um sapato, de uma
camisa. Não foi só comigo, foi com todos os meus irmãos. Cada
um teve que seguir o seu caminho. Só que graças a Deus, todos
seguiram o caminho certo. Todos são pais de família, têm suas
casas.

Tinha gente que te ajudava? Não, porque era uma cidade


muito pobre. Os que tinham mesmo para ajudar, que eram as
pessoas que trabalhavam na área da Petrobrás, nem saíam para
atender. Batia palma, eles nem saíam.

240 | Valdir Novaki


Hoje, quando você vê esses meninos que pedem
ajuda, como você reage? Atendo, porque eu passei por
isso. Hoje, me dou ao luxo de fazer várias malas de roupa e sair
distribuindo o que meu filho não usa mais, o que minha esposa
não usa. Ajudo porque precisei e ninguém me ajudava.

Então, com 14 anos trabalhou de bóia-fria. Comecei


a trabalhar na roça, trabalhei com sacos de batatas, plantava
batatinhas, na época de carpir arroz, quebrar milho, época de
plantar arroz, época de plantar feijão, broto do fumo. Serviço da
lavoura tem direto. Saía de uma atividade para outra. Trabalhei
no atendimento de uma lanchonete muito pouco tempo. O cara
abriu e fechou em menos de três meses. Nessa época, eu já tinha
um quartinho alugado. Trabalhava uma semana para pagar
o aluguel do quarto e três semanas sobrava para sobreviver.
Sobrava dinheiro até para comprar uma peça de roupa por mês.
Já estava bom. Mas não era aquilo o que eu queria. Nessa época,
não se viajava igual viaja hoje. Qualquer criança pega um ônibus,
com 12 anos já viaja. Meu filho é um que viaja sozinho, com
treze anos, só com a identidade. Naquela época, para pegar um
ônibus precisava da autorização do juiz assinada pelo pai ou a
mãe. Contava nos dedos o dia que eu ia ficar maior para poder
sair. Aquilo não era o meu mundo.

Continuou nesse “mundo” até quando? Foi quando eu


vim para Curitiba com uma muda de roupa. Tinha nada. Tudo o
que eu tenho hoje, eu consegui em Curitiba. Não troco Curitiba
por nada. Se a pessoa souber aproveitar, todo mundo se dá bem
aqui. A gente vê uma cidade pequena, onde não tem luz, não
cresce, não tem emprego, não tem indústria. Vim com 17 anos
para cá, de carona. Meus amigos diziam que ia passar fome.
Eu dizia: “Mas eu prefiro passar fome na cidade grande do que
passar miséria na cidade pequena. Lá, eu tenho oportunidade,
aqui não”. Eu era tão caipira, que eu vim de carona e pedi para
me largar em Curitiba – em qualquer lugar estava bom. Me
largou lá no Pinheirinho. Aí, eu tinha ouvido falar em Praça Rui
Barbosa. Perguntei:
- Onde fica a Praça Rui Barbosa?
- Rapaz, fica lá no Centro.
- Aqui não é Curitiba?
- Mas aqui é Pinheirinho.

Curitibocas | 241
Nem sabia que tinha os bairros, tipo Água Verde, Campo
Comprido... Pensava que Curitiba era que nem cidade pequena.
Vim a pé. Não tinha dinheiro nenhum no bolso.

Desde o Pinheirinho até a Rui Barbosa? Vim pela


BR-116, me informando. Achei o viaduto da Marechal e fui até a
Praça Rui Barbosa. Na época, era cheio de camelô vendendo fruta
e verdura. Cheguei eram umas 18h, 19h. Aí, eu estava com uma
fome e os caras desarmando as barracas, jogando os negócios
no lixo. Pedi para um cara se dava para ele me arrumar uma
maçã que ele estava jogando fora. Ele pegou uma sacola, catou
e me deu, com mais um pouco de banana. “Toda a tarde pode
vir buscar aqui, que eu jogo fora”. Não me dava as frutas boas.
Aí, de manhã cedo, a troco disso, eu descarregava o caminhão de
fruta e verdura. Aí... Olha a caipirice. Olhei para cima, aqueles
prédios bonitos. Fui e me encostei num prédio. Estava admirado
com aquilo, nunca tinha visto. De repente, me deu a impressão
que o prédio estava caindo, fui sair correndo. Corri e um táxi me
bateu e me jogou para cima da calçada.
- Está louco? O que você está fazendo se atirando na rua?
- Não, é que o prédio estava caindo.
- É só impressão, não está caindo não.
Aí, ele já viu que eu não era daqui.

Ficou trabalhando no camelô até quando? No dia


seguinte, ele disse que poderia arranjar emprego no Água Verde,
que lá só morava rico. Precisava limpar um jardim, começar a
fazer alguma coisa. Primeira casa que eu bati foi na rua Brigadeiro
Franco. “Senhora, não está precisando de jardineiro? Me dando
um prato de comida está bom”. Foi lá abrindo a garagem. Limpei
o jardim para ela. Na hora do almoço, chegou o esposo dela. Aí,
ele foi até a garagem. Falou:
- Você é da onde?
- Eu sou de São Mateus do Sul.
- Conhece São João do Triunfo?
- Conheço, bem pertinho de São Mateus.
- É? Quem você conhece em São João do Triunfo?
- Olha, lá eu conheço muita gente.
- Mas das pessoas mais importantes da cidade, quem você
conhece?
- Conheço o seu Demétriu Ogio, seu Airton Céli, que tem
uma oficina de Motoserra.

242 | Valdir Novaki


Curitibocas | 243
- Ah, então você conhece mesmo. O Airton Celi mora nessa
casa do lado.
- Sério?
- Mora aqui. Ó, você vai almoçar, depois vai comigo lá na
transportadora.
Ele era gerente da transportadora Gamper. Nelson Coraiola.
Me levou para a transportadora e me deu emprego. Trabalhava
de auxiliar de motorista. Fazia uma semana que eu tinha chegado
em Curitiba.

Onde você dormia? Na Praça Rui Barbosa, no banco.


Peguei um final de semana, para o meu azar, com um feriado
na segunda-feira. Comecei a trabalhar na transportadora, não
tinha onde morar, mas não queria falar para ele. Quando chegou
a tarde, descarregamos todos os caminhões, aí ele me chamou:
“Vamos embora, Novaki”. Me levou lá na casa do seu Airton.
Ele falou:
- Airton, conhece esse polaco aqui?
- Conheço. Muito trabalhador esse piá. Por ele, boto a mão
no fogo.
- Ele já está na transportadora, levei ele lá.
Aí, começaram a me perguntar.
- E você, onde vai ficar?
- Ah, quando receber, eu alugo um quarto. Por enquanto,
eu vou me virando.
- Então, você vai ficar lá no fundo.
Tinha uma edícula, do tamanho da minha casa.
- Então você vai morar lá.
Acabei saindo dali só quando casei. Arrumei emprego e casa
na mesma hora.

Trabalhou na Gamper por quanto tempo? Quando


eu ia completar 18 anos, o Nelson Coraiola saiu e montou uma
empresa, a Transcaçamba. Estava vendendo salgadinho e doce
nas empresas. Isso o Nelson deixava eu fazer, porque quem fazia
esses doces e salgados era a filha do seu Airton. Eu entrava na
empresa para fazer a coleta, enquanto saía a nota, eu já vendia
o meu bombom, sanduíche natural. Às vezes, demorava cinco
minutos, eu já fazia uma vendinha de dez sanduíches. Era
rapidinho. Quando ele saiu da transportadora, eu saí junto. Aí,
a mulher não queria mais fazer o salgadinho.

244 | Valdir Novaki


Por quê? Queria fazer só o doce, porque ela também
trabalhava no banco. Então, eu fiz o sanduíche natural e o suco.
Eu ia de bicicleta e no outro guidão da bicicleta levava café e
leite. No outro isopor, levava sanduíche natural, cachorro quente,
então fazia de tudo mais os docinhos dela. Ia visitando empresa
por empresa. Chegava o final do mês, ia na cadernetinha. Todo
mundo me pagou a vida inteira, ninguém nunca me caloteou
um salgadinho.

Até quando seguiu com ele, vendendo assim? Na


época que a minha mulher ficou grávida, me obriguei a trabalhar
de empregado. Precisava de uma garantia.

Como conheceu a sua mulher? Conheci ela no Café da


Boca. Ela trabalhava lá de atendente e eu entrava para vender
meus bombons. Aí, a gente começou a namorar. Morava na
Brigadeiro Franco, perto da casa do seu Airton. Fazia dois anos
que a gente estava junto. Tinha 23 anos e já tinha assumido toda
a responsabilidade. Aluguei uma casa, comprei um colchão –
não tinha cama, não tinha nada. Era uma casa na Vila Hauer,
de fundos. Em 13 anos, posso dizer que adquiri um patrimônio
bom, em pouco tempo, ainda sustentando mulher e criando filho.
Agora já está tudo beleza.

Onde trabalhou de empregado? Fui trabalhar de


jornaleiro por seis anos com uma banca na Praça Rui Barbosa.
Quando saí da banca, de empregado passei a ser patrão. Comecei
a banca, que ficava na Avenida Batel, esquina com a Francisco
Rocha, em frente à Drogamed. Estou sempre de antena ligada
em tudo. Quando eu senti que o meu negócio na banca começou
a balançar, imediatamente botei à venda.

Por que começou a balançar? Começou muita assinatura


de jornal. Panificadora, supermercado, posto de gasolina, todos
vendendo jornal. E para acabar com o negócio, a Internet.
Saí da banca na hora certa. Guardei o dinheiro e fui trabalhar
de manobrista. Era pouco o que eu ganhava, mas não estava
mexendo na minha reserva. Trabalhando no estacionamento,
ganhava 390 reais por mês. Estacionamento, eu trabalhei em
três. Mas eu já tinha dado a entrada para pegar meu ponto, já
tinha um projeto quando saísse.

Curitibocas | 245
Na época da banca de jornal você deu entrada? Isso.
Continuei todo o ano. Você tem que renovar o cadastro. Renova e
renova e renova e nada. Aí um dia, ano passado, eu trabalhando
no estacionamento falei assim para minha mulher: “Olha, estou
trabalhando demais, a mulher está me explorando, eu vou sair de
lá”. Trabalhei 30 dias sozinho, fazendo dois horários. Ela brigou
com um rapaz, mandou embora e eu fiquei sozinho. Tinha que
fazer o meu horário, que era das 7h às 15h, e o horário dele, que
era das 15h às 23h. Só que no dia do pagamento, ela só me deu
os meus 390 reais. Falei para ela:
- Dona Iara, eu fiz dois horários, 16 horas por dia. A senhora
vai me pagar só 390?
- Não, eu perguntei a você se você podia me dar uma força.
Você se prontificou dizendo que podia. Favor não se paga.
- Então está bom. Vamos fazer o seguinte. Estão aqui suas
chaves.
E fui embora. Só que eu não fico brabo. Não deu, não deu.

Trabalhar tanto nunca te fez mal? Está vendo essa


cicatriz no olho? Acidente de moto. Foi na época que eu trabalhava
no aeroporto em um feriado no carnaval. Eu trabalhava das sete
da noite às sete da manhã. A pessoa que teria que me substituir,
às sete da manhã, não veio, tinha ido para praia. Trabalhei o
horário dele e o meu do dia seguinte. 36 horas sem descanso.
Quando eu saí para vir embora, dormi em cima da moto. Foi
a viseira do capacete que entrou quando quebrou. Caí logo na
saída do trabalho. Daí, essa cicatriz que eu tenho no braço foi
um arame de uma caixa de batata, que a gente trabalhava na
roça empilhando uma em cima da outra. Aí, foi um arame que
me furou. Essa na perna foi que eu estava levando meu material
para catequese em um saco de arroz. Não é como hoje que as
crianças têm mala, bolsa. A gente levava aqueles pacotinhos de
arroz. Tinha uma gilete no fundo do pacote, que eu usava para
apontar o lápis. Aí, pegou na minha perna e me cortou. Cicatriz
é o que mais tenho.

Quando saiu a tua autorização para trabalhar na


rua? Estou aqui na minha casa pensando: “Poxa, mas eu tenho
um projeto tão bacana para pôr em prática, e esse ponto que
não sai. Vou dar uma olhada”. Cheguei lá com o número do meu
protocolo. Me falaram que quarta ia ter uma comissão e podia

246 | Valdir Novaki


ter um ponto para mim. É uma comissão que julga o processo.
Acabei de almoçar, fiz a oração, agradeci a Deus pela comida e
aí tocou o telefone.
- Por gentileza, o senhor Valdir.
- Sou eu mesmo.
- Pode passar aqui na rua da Cidadania que seu ponto já
está em edital.
Saí daqui numa felicidade de louco. Quando você pega o
crachá na mão, tem 30 dias para montar, então eu já fui fazer o
carrinho. O ponto saiu dia 31 de agosto de 2006. Daí, todo ano
a gente vai lá e renova. Não tem mais risco de perder.

Você escolheu a Praça Tiradentes? Este ponto estava


ocupado por um outro pipoqueiro que estava lá há dez anos. O
meu ponto saiu para doces industrializados, na Rua João Negrão
com a Visconde de Guarapuava. Daí, esse pipoqueiro, devido a
um problema no braço, aposentou e não estava mais conseguindo
trabalhar. Ele me procurou e me propôs a troca de ponto. Ele ficou
com os doces industrializados, tudo embalado, não precisa fazer
nada. Pipoca precisa de habilidade, até para fazer a higienização
do carrinho. Aí, fomos perante a Urbs e fizemos a troca.

Chegou a vender doces? Sim, mas não que eu gostasse


daquilo ali. No momento, era a opção que eu tinha. Entre secar
e pingar, que pingue.

Você mudaria do ponto da praça para uma loja? De


jeito nenhum. Porque se hoje eu atendo cem clientes por dia,
numa loja teria que atender 300 para pagar os encargos. Teria que
abrir uma firma, não tenho condições. Claro que se conseguisse
um ponto de luz seria muito melhor. A prefeitura tinha que
montar quiosques, tudo legal. Ficaria bem bonitinho, oferecendo
para a gente qualidade melhor de trabalho. Hoje não é fácil.

Entre o estacionamento e esse ponto, você tinha


trabalhado na frente da Federal, certo? Em 2001, mas era
um ponto alugado. Saí da banca de jornal para o estacionamento,
do estacionamento para o ponto alugado, com carrinho
alugado. O dono do carrinho pediu o ponto, aí voltei a trabalhar
com estacionamento. Quando saí da pipoca, trabalhava no
estacionamento do aeroporto. Lá, nem chegou a dois anos. Aí,
eu saí do estacionamento, eu comecei a trabalhar só em festa,

Curitibocas | 247
com eventos. Estava ruim também. Pagava e, muitas vezes,
o tempo não colaborava. Para não ficar parado, eu fui para o
estacionamento da Iara e, daí, fui direto para o meu ponto. Se eu
ganhava X trabalhando de empregado, hoje eu ganho de oito a
dez X trabalhando para mim. Estou me realizando. O meu sonho
é ter uma casa boa. Amanhã, o meu próximo passo é guardar o
dinheiro para o meu filho fazer uma faculdade.

Ele já tem alguma preferência? Eu deixei a critério dele.


Deixo ele escolher. Ele tem 13 anos, está na oitava série. Com 22,
ele já vai estar formado. Quero que ele tenha uma boa formação
para que não fique dependendo do que eu vou deixar para ele.
Meu filho tem hora para estudar. Se não tem compromisso, dou
duas horinhas para ele jogar os games dele no final de semana.
Filho tem que estar diante dos meus olhos. Hoje em dia, não é
fácil. Graças ao meu trabalho, consigo realizar um sonho que não
tive condições: vou colocar meu filho em um colégio particular.

Puxou ao pai em alguma coisa? Ele é muito esforçado.


Os kits-higiene ele que faz para mim. É um filho que não me dá
dor de cabeça. Eu e minha mulher saímos cedo de casa, ele chega
do colégio, ele prepara o almoço dele, arruma a cama.

Gosta de futebol? Eu sou paranista. Meu filho é atleticano.


Mas só que eu não discuto futebol, nem religião. Atendo muita
gente que é uns evangélicos, outros não sei o quê, que entregam
aqueles folderzinhos de culto para assistir culto. Eu nunca digo
“não”...

Mas também nunca vai. [Risos] Não tenho como deixar


o meu trabalho. Sou católico. Não abro meu carrinho de pipoca
sem antes entrar na Catedral. Todo o santo dia entro lá, peço uma
proteção, agradeço pelo meu dia de trabalho, aí vou trabalhar.
Meu filho está fazendo catequese. Ele já fez a primeira comunhão,
vai fazer a crisma. Todo o sábado à tarde vamos na missa.

Você foi crismado? Fiz a primeira comunhão, tudo


porque eu mesmo tomei a decisão de ir. Eu me lembro como as
catequeses de antigamente eram só na quarta-feira, das 14h às
17h, duas vezes por mês. Tinha que estudar. Com três anos, fazia
a primeira comunhão.

248 | Valdir Novaki


Há quanto tempo que casou? Não sou casado no papel,
vou casar agora. Minha mulher, ela é índia, sabe? Então tem
que casar lá na reserva com os índios, perante o cacique. Ele
que faz o casamento. Então, você vai ver que o registro do meu
filho é de índio. Meu filho tem toda assistência da Funai, já tem
faculdade garantida, mas eu quero que ele faça uma faculdade
com os meus recursos.

Onde fica a reserva? São Jerônimo da Serra, perto lá de


Londrina. Posso ter muita mordomia se eu quiser. Se eu casar
com a minha mulher hoje, eu posso usufruir dos 4 mil alqueires
que tem lá de reserva. Meu passeio no final do ano é só lá. A gente
fica uns dez dias. É legal, sabe? São pessoas humildes.

Quais os planos para o futuro? Você acredita que eu


nunca saí de Curitiba? Nunca. São Paulo, Rio de Janeiro, não
conheço nada. Mas é fácil. “Quem tem boca vai a Roma”. A gente
não tem estudo, mas não é burro. Eu quero dar uma viajada
atrás de novidades. Tem lugar que faz [pipoca] com queijo, tem
lugar que faz com leite condensado. Por que eu quero saber?
Se um dia eu não precisar mais depender da venda de pipoca
para sobreviver, eu quero abrir um buffet de pipoca. Vou voltar
a estudar. Ano que vem, vou fazer um supletivo, vou concluir o
segundo grau. Depois, vou fazer uma faculdade, até porque eu
ganhei uma bolsa. Fui dar uma palestra no Expert, na Pedro
Ivo, apresentei minhas características, meu grau de estudo e a
diretoria me falou: “Faz o supletivo que você acaba de ganhar
a faculdade”. Para estudar, nunca é tarde. Ainda este ano, vou
ter que achar horário para fazer mais três cursos. Tenho que
fazer memorização de nomes - assim como a gente gosta de ser
chamado pelo nome, imagina quando você chamar todos os teus
clientes pelo nome? Vou fazer um curso de teatro, por causa das
minhas palestras. E oratória que também é fundamental.

Qual é o cúmulo da miséria? O desemprego.

Onde você gostaria de morar? Curitiba.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Família.

Para quais erros você tem maior tolerância? Não


pode ter erros.

Curitibocas | 249
Quais obras literárias você prefere? Todas.

Qual é seu personagem histórico favorito? Fica até


difícil de responder.

Seu pintor favorito? Picasso.

Seu músico favorito? João Paulo & Daniel.

A qualidade que prefere no homem?


Honestidade.

A qualidade que prefere na mulher? Sinceridade.

A virtude que prefere? Sucesso.

Sua ocupação favorita? Pescar.

Quem você gostaria ter sido? Eu mesmo.

O que você mais aprecia nos amigos? Quando eles


vibram com o meu sucesso.

Seu pior defeito? Falar demais.

Seu sonho de felicidade? Eu me formar numa


faculdade.

Qual seria sua pior desgraça? Eu perder meu ponto


de trabalho.

O que você gostaria de ser? Pipoqueiro.

Sua cor favorita? Branco.

A flor que mais gosta? Rosa.

Qual pássaro preferido? Canário-terra.

Seus autores favoritos em prosa? Ah, não sei o nome


de nenhum.

250 | Valdir Novaki


Seus poetas favoritos? Paulo Coelho.

Seus heróis na vida real? Meu filho.

Seus nomes favoritos? Pai e mãe.

O que você detesta? Falsidade.

O feito militar que mais admira? Não lembro de


nenhum.

Qual dom da natureza você gostaria de ter?


Fazer com que as pessoas reflorestassem tudo o que
derrubaram.

Como gostaria de morrer? Sorrindo.

Seu lema? Não tenho nada, nenhum lema.

Curitibocas | 251
Leão na savana

Oilman

Q
uando chegou ao apartamento de Andressa, já era
madrugada. Três horas dormidas depois, rumou ao
aeroporto. Calculou quanto de dinheiro tinha no bolso.
Com mais sete horas de trabalho, teria o suficiente para comprar
a passagem de volta. A ansiedade superou o sono fazendo com
que Darcy ficasse todo o trajeto até o aeroporto com os olhos
abertos.
Olhava pela janela a chuva e o vento. Ouvia pelas últimas
vezes as conversas paralelas dos curitibanos que discutem
arquitetura e urbanismo como se fosse futebol. O Brasil tem
178 milhões de técnicos de futebol e 2 milhões de arquitetos
em Curitiba.

Curitibocas | 253
As ganas de se arrefecer ao ver as sobrancelhas da secretária
do RH se levantar. Estava surpresa com o aspecto pálido de
Darcy. Julgava que Darcy teve uma noitada. Segundo ela, não
havia nenhum posto de serviço necessitando mão-de-obra. “Pode
ir para casa xxxxxxxar”. Ela disse “descansar” ou “se recuperar”?
Maldita seja.
Darcy arrastou-se até o saguão do aeroporto. Olhava os
passageiros apressados, com computadores que parecem
celulares e celulares que parecem computadores. Tecnologia de
suma importância hoje, absolutamente desnecessária ontem e
obsoleta amanhã.
Um dia, conheceria outro país de maneira bem calma,
prometeu-se. Como paliativo dessa medida, resolveu aproveitar
seus últimos dias de Curitiba em um aglomerado de ruas com
nomes de países. Aproveitou que, depois da chuva, abriu o sol.
Desembarque do ônibus, embarque em uma padaria. Pediu
café e bolinhos de mandioca. O atendente trouxe bolinhos
de aipim. Na frente do semáforo (sinaleiro, em curitibanês),
dois bonitos jovens distribuíam adesivos institucionais da
prefeitura.
Uma das cenas mais inusitadas da visita de Darcy ocorreu
neste cenário. Um sujeito grande, de porte físico avolumado –
meio músculo, meio gordura, com rabo de cavalo e... bem, aí
inicia-se a descrição do inusitado: trajava apenas sunga e tênis,
além de estar besuntado com óleo misterioso. Este só podia ser o
Oilman, que parecia não chamar a atenção dos nativos do bairro.
Vem um dos piás dos adesivos, no personagem:
- Coloque na sua bicicleta.
- Não, não vou colocar nada. Nessa aqui não. Não posso
fazer isso.
- Pode, tem espaço aqui.
- Você tem que entender que eu não posso fazer isso.
O piá insistiu quando o Oilman passou novamente. Na
terceira vez, o jovem falou meio brincando:
- Se não colocar, vou pedir para a prefeitura cancelar teu
patrocínio e a tua licença.
O Oilman riu. Existe alvará para andar pelado em Curitiba?
Resolveu seguir o personagem, depois de pagar a conta.
Marcou a casa que ele entrou. Caminhou por meia hora pelo
bairro. Em frente à casa, escutava o Oilman cantarolando “Love me
tender”. Bateu palmas, meio aplausos. O Oilman veio. Darcy deu
as justificativas de praxe. O Oilman daria a entrevista e mostraria

254 | Oilman
todo o material do personagem pela módica quantia de cem reais
– preço que cobrava para dar entrevistas para a imprensa. Darcy
disse que não tinha dinheiro, seu projeto de “Contextualização
dos esportes não-futebolísticos nas palavras dos próprios atletas”
era feito com poucos recursos. Por se tratar de um projeto não
midiático, Oilman baixou para 50 reais. Darcy balançou a cabeça,
insistindo, delicadamente, que não pagaria.
Alguma coisa fez com que Oilman, conhecido como Nelson
Rebello quando traja roupas civis, cedesse a entrevista a seguir
sem custos. No começo, a expressão corporal e facial de Rebello
intimidaram Darcy. Depois, acostumou-se com o jeito de Nelson
e descobriu um simpático super-herói seboso. Quem tomou a
iniciativa foi o entrevistado:
... Pedi para você o donativo e quero pedir que você faça uma
coisa séria do Oilman. Você tem uma responsabilidade também,
porque eu tenho uma exposição muito grande. Não tenho apoio
de ninguém, tenho que tomar cuidado que investiguem a minha
vida e queiram me avacalhar. Não devo nada para ninguém. Você
pode fazer uma abordagem light, só vendo o Oilman como um
artista, personagem atlético. Dessa forma, dá para você fazer,
ninguém vai colocar defeito.

Chamo de Oilman ou de Nelson? Tanto faz.

Como foi o começo? Quando comecei a andar em Curitiba,


você não imagina o que os caras faziam. Enfrentei a briga,
enfrentei o curitibano. Assumi esse negócio. Não faço tipo, não
sei se você está entendendo. Existem muitas pessoas iguais, mas
não tem ninguém igual a mim. Posso ser caracterizado como
um sociopata também. Todo sociopata, geralmente, dura pouco
tempo. Já fui comparado com a Borboleta 13, não tem nada a
ver. O que aparece a olho do público é um homem com 1,89 de
altura, com uma sunguinha daquele tipo. Tem homem que sabe
que só não me pega porque apanha. O Oilman é um mendigo,
praticamente, mas é de verdade, sabe Darcy, não é mentira. Sou
um desempregado, não tenho vínculo com ninguém. O público vê
na rua uma figura real. Quando passa gente do canal 12 [RPC],
sempre tem um que me xinga, ofende e ameaça. O que eu posso
fazer? Tenho que enfrentar e ser eu mesmo. Para mim, não
interessa nada desenvolver uma vida artística. Uma vida atlética
sim, por causa da minha saúde.

Curitibocas | 255
A motivação do Oilman é preservar a saúde? Claro.
Geralmente, um cara com a minha idade, com a minha vida, com
a minha renda, já era. É o contrário comigo. Tem a questão da
saúde mental também. Vêm uns loucos, me gritam, me ofendem,
jogam o carro em cima, é um susto atrás do outro. É terrível. A
adrenalina sobe e desce. Você acaba ficando louco, louco mesmo.
Tenho que me defender assim, tratar da minha saúde, evitar tudo
que me moleste e desvie minha atenção na rua.

Quando surgiu o Oilman? O Oilman nasceu em setembro


de 1997. A minha intenção é ser eu mesmo e viver minha vida.
Então, o Oilman nunca vai se modificar. Tudo que se inventou a
respeito dele é conversa mole.

O que te motivou a criá-lo? Teve um impulso. Eu jogava


basquete e tive uma fratura desleal no meio da quadra. Não tratei,
fiquei com o meu tornozelo, em casa, fraturado, não admitia que
ele tinha quebrado. Eu mesmo curei, eu mesmo enfaixei. Vivia
mancando e passando mal.

Por que não procurou tratamento? Você não entende,


Darcy. Estava num bem tão grande, era conhecido na pracinha
do Bacacheri, Oswaldo Cruz e Seminário. Não admitia que sofri
a fratura. Em 95, eu estava recuperado do tornozelo e fui jogar só
de sunguinha, sempre para o time sem camisa. Os meus colegas
não admitiam: “Você usa muito óleo, mancha a nossa roupa”. Fui
me afastando. Não vou incomodar eles. Além de ser perigoso.
Recuperei o tornozelo depois de três anos mancando.

Jogava bem basquete? Acho que o Oilman incomodava,


era um talento da época. Típico jogador de regular para bom.

Tem contato com esses amigos do basquete? Só


quando eles me encontram na rua. Agora não posso dedicar mais
tempo para grupos de amigos que jogam esporte coletivo.

Sente saudade? Claro. Faz muita falta. Fico relembrando


muito, imaginando jogando novamente. Aquela tensão, aquela
energia toda foi passada para o Oilman. Até mais, acho que com
o Oilman eu desenvolvi melhor.

256 | Oilman
Como foi a transição do basquete ao Oilman? Com o
tempo, fui para a praia fazer exercício aeróbico de baixo impacto.
Caminhada na areia, natação, depois descobri a bicicleta.
Misturei a praia, a sunga, com a bicicleta. O óleo era para proteger
de queimadura. Em 97, eu misturei tudo. Não tenho grana para ir
à praia sempre. Transformei o meu hobby, na cidade, como um
passeio na praia. Um tipo de atleta de fim de semana, empolgado,
muito empolgadíssimo.

Como surgiu o nome Oilman? Eu escolhi o apelido em


1996. Escutei, em Matinhos, um jovem chamar de Oilman, no
tempo que o Mike Tyson era chamado de Ironman.

Você lembra a primeira vez que você andou no


Centro? Tem a torcida contra. No primeiro ano do Oilman,
sempre dava uma passada rápida no Centro. Lembro que no
começo, para fazer subidas, eu tinha muita dificuldade. Cruzar
a Rua XV foi idéia de um repórter do canal 4 [GPP]: “Você tem
que andar na Rua XV para fazer fama”. Só que eu não tinha
coragem. Em novembro de 99, que eu lancei o Oilman na Rua
XV. A primeira vez na Rua XV, fui pedalando. Cheguei a encostar
numa senhora que estava fazendo compras. A polícia veio para
cima reclamar que eu iria atropelar as pessoas. Fiquei brabo na
hora. Não pelo policial, mas pela situação na rua. No começo do
Oilman, sempre muito irritado, muito nervoso. Sempre tinha
medo que os policiais me parassem. Só que a fama era tão grande
da praia, que a gente já me conhecia.

Isso ajudou? Ajudou. Não andava só de sunguinha.


Comecei a andar só de camiseta, regata e bermuda. Depois, só de
calção de futebol com óleo bronzeador. Você imagina o terror. O
Oilman, com o dobro do peso que tenho hoje, só que eu era mais
bem visto naquele tempo.

Você era gordo? Era, ainda tenho resquícios. Tenho


dificuldade de manter o peso por causa de família. No começo,
era terrível. Na fase de transição, com sunga e bola de basquete,
levei cinco anos, desde a minha fratura em 1992. Cinco anos
parado.

Curitibocas | 257
O que houve para você ter engordado? Acho que pela
ansiedade. De não poder mais jogar basquete, não poder ser
mais aquele atleta.

Quanto você pesava? Não era muito mais do que agora.


É uma prova que o Oilman tem mais peso de musculatura e de
ossos agora. A forma física era bem maior. Hoje, eu tenho de
100 a 102 quilos. Naquele tempo, era de 113 a 115. Minha figura
era como o Jô Soares, Fausto Silva, mas eles são vistos como
artistas bonachões.

Pegavam no seu pé por ser gordo? Lembro que até


tinha mais fama com os jovens. Não tinha muito esse negócio
do “psicopata que anda pelado na rua”, era mais o “gordinho
atleta”.

Nunca teve alguém andando com você? Não. Sempre


estive sozinho, de sunga, sem meia, tênis e bicicleta. Tento
manter sempre sungas novas, senão dá impressão de pobreza,
de desleixo. As pessoas reparam. Também não sair sem óleo,
porque a imagem que está sendo fixada pela repetição acaba. Já
fui confundido, à noite, de bicicleta - sem óleo parece um rapaz
normal com o calção puxado para cima. É como os militares que
andam sempre com cabelo aparado, com a roupa arrumadinha,
engomadinha, cabelinho cortadinho, para mostrar disciplina.

Que óleo você usa? Óleo bronzeador comum fator 2, que


é mais barato. Óleo de urucum, óleo de cenoura, óleo de coco da
marca mais barata que tiver. Passo uma vez só.

De que cores são as sungas? O Oilman tem três cores:


preto, azul e vermelho. Tenho umas 15 seminovas nessas cores
e tenho mais um tanto de mais antigas que eu preservei no meu
arquivo. Verde e amarela são cores que eu não uso mais.

Qual a sua bicicleta? Tenho uma de 21 polegadas. As


outras são 17, 18, 19. Nessas, parece um gigante encurvado na
bicicleta. Elas têm 21 e 24 marchas, todas mountain bike, porque
daí posso subir em calçada, em terreno brusco, acidentado.

É bom pedalar em Curitiba? Terrível. Curitiba é uma


cidade para ciclista rico, aquele que não tem nada que fazer e

258 | Oilman
vai no parque. É só ciclovia em parque e perto da linha do trem.
O pessoal anda nas canaletas.

Você anda na canaleta? De jeito nenhum, por medo.


Como eu fico muito tenso na rua, você se distrai, de repente vem
um monstro de um biarticulado. Você não sabe de onde, mas ele
sempre aparece.

Teve algum acidente de bicicleta? Que coisa, Darcy,


você perguntar. Acidente assim, não. Já bati em muito carro
parado por causa do que eu sofro na rua, da adrenalina, da
tensão dos hormônios do pensamento, como acetilcolina.
Excesso de acetilcolina pode causar desequilíbrio. Às vezes, eu
fico pensando no assunto e caio sozinho. Porque quando estou
no meio do movimento, do povo e dos automóveis, mantenho a
minha máxima concentração, e quando relaxo pode acontecer.
Uma semana atrás, eu fiz um trajeto de quase 80 km e quando
cheguei na esquina, na rua deserta, eu caí. Foram quatro horas
e meia sem descer da bicicleta. Normalmente, eu faço uns 30
quilômetros ao dia, no máximo. Tenho que tomar cuidado
com isso. Por exemplo, agora você conhece um pouco melhor o
Oilman, imagina que o Oilman possa cair numa cilada da selva
de pedra. Que situação você pode imaginar? O Oilman sendo
100% cavalheiro, educado e mantendo aquela imagem de atleta,
de artista na rua. Ele está lá, 100% positivo. Existe algum modo
dele cair numa armadilha?

Se vários meliantes com pedras fecharem a rua. Isso.


Existe um monte de coisa. Você já sente o cheiro do malandro.
Eu me preparo, é a única coisa que eu tenho que fazer.

Já foi roubado? Fui assaltado em setembro de 2006.


Levaram minha bicicleta. Cometi vários erros. Pararam na
descida, vi que estava sendo seguido, cheio de bagagem na
bicicleta, meio caracterizado, meio não, sem óleo, uma sunga
antiga que eu tinha. Claro, têm coisas que a gente não pode
saber. Pegaram a número 4, que era a melhor que eu tinha. Mas
depois eu ganhei uma. É uma comprovação que sou um cara
que tem alguns problemas mesmo, porque penso só em coisa
negativa, só nos meus inimigos me agredindo. Como a paranóia
do presidente americano. Ele não pode nem ouvir falar em um

Curitibocas | 259
país que esteja mexendo com substâncias radioativas que ele já
pensa em bomba atômica.

Você quer se vingar? Você não pode pensar em vingança,


resulta em mais problema hormonal. A luta do Oilman é contra
neuro-hormônio também. Neuro–hormônios são hormônios
que lidam com o nosso temperamento. Acetilcolina, adrenalina,
noradrenalina, dopamina, ácido glutânico, cerotonina. O cara
quando mata está com esses hormônios alterados. Tomo cuidado
com isso.

O que você faz para relaxar em casa? Faço como os


atletas que têm uma atividade muito extenuante - relaxamento
com ginástica, alongamento, bebo líquido, café, água, refrigerante
com açúcar e fazer uma concentração.

Além da bicicleta, o que você faz para conservar a


forma física? Faço exercícios de repetição, como saltar que nem
um canguru, apoios de frente no solo, abdominais.

E a alimentação? Cuido pouco. Sou biólogo, sei as


vitaminas, os tipos de alimentos estruturais, reguladores
energéticos. Faço assim por cima.

Você quer dar exemplo para o povo? Não. Isso é coisa


de ator da Globo. Não tenho nada com ninguém e não mereço
nada de ninguém. Não sei se você está entendendo, Darcy. Estou
vivendo a minha vida como se fosse um leão numa savana,
um animal no seu ecossistema. Cada um tem sua função no
ecossistema, cada um tem seu nicho ecológico. Estou só me
defendendo.

Mas tem pessoas que te admiram. Ah, sim. Se você saísse


para a rua como eu, você pode ter mil pessoas que te admirem
na rua, mas quando vier um agressor, só ele marca. Os elogios a
gente esquece, por causa da necessidade de sobrevivência.

Sente reconhecimento? O Oilman nunca foi aceito,


nem nunca vai ser aceito e nunca vai ter nenhum igual. O povão
quer a coisa mais mastigada. É difícil de assimilar alguma coisa
que vá de encontro com a expectativa. O que eu sinto é uma
consciência coletiva agressiva e intolerante. Quando eu saía,

260 | Oilman
no começo, não existia uma anormalidade igual a essas como o
Oilman, como pessoas diferentes no comportamento. Foge aos
estereótipos. Tinha uma repórter nova do canal 12 [RPC] que
fez matéria comigo. Tive que parar a reportagem, mandei ela
embora. Ela não entendeu minha visão, veio com uma imagem
muito machista. Pensou que era um louco-gordão. A menina
veio com aquele pensamento machista: “Esse cara é perigoso,
esse cara é um bandido, deve ser um louco”, e começou a me
tratar mal na reportagem. Naquela época, o Oilman tinha uns
dois meses. As reportagens que saíram, até hoje, não alcançam
o público. Tudo errado.

Chegou a cogitar desistir do Oilman? Uma vez, fui


viajar sozinho até a praia. Arrebentou a bicicleta na estrada.
Pensei que tinha acabado o Oilman. “Só vou até aqui. Não vou
conseguir viajar até outros estados. E grana? Dinheiro para hotel?
Eu posso ir de ônibus? E apoio?”. O Oilman pode melhorar,
depende só dele. Como aconteceu na Oceania. Ornitorrinco
tem o bico de pato, põe ovos. O canguru é marsupial, tem uma
bolsa. O kiwi é uma ave que tem pêlos. Só animais exóticos na
Oceania, pelo isolamento geográfico. Aqui em Curitiba, o Oilman
está na mesma, isolado do mundo. A única coisa que eu sei é que
preciso andar de bicicleta com a minha sunguinha. Falam um
monte de coisa, mas existe só a minha vida na rua. E existe esse
preconceito violento.

Quer mudar esse preconceito? É natural. Gosto de


polêmica também, é a polêmica que denuncia o camarada.
Como dizia um imperador romano: “O que adianta agradar todo
mundo? Eu quero ter mais inimigos, porque os inimigos mostram
o valor que eu tenho”. O pior é quando você sai e o povo não fala
nada, parece que você passa batido pela vida.

Agora há pouco, um menino disse que iria mandar


tirar o teu alvará da prefeitura. Eu nunca tive patrocínio da
prefeitura e ninguém tira alvará para andar de sunga. Pensam
que eu tirei um crachá, uma licença. Não é um crachá que vai
fazer você.

Qual é sua fonte de renda? Todo mundo se bate com


isso. Eu não queria falar. Tenho minha renda, é claro, mas tenho
inimigos poderosos, acho melhor você não mexer nesse assunto.

Curitibocas | 261
Tenho ajuda do meu pai que, de certa forma, dependo deles
até hoje. Não tenho gastos. Só com as coisas do Oilman e com
a alimentação. Não tenho o costume de gastar com gibi, DVD,
revista, jornal. A minha vida é simples.

Esta zona que você vive é bastante comercial. Acho


que essa é a única casa residencial da rua. Eu nasci aqui. Para
mim e para a Oilmãe, a gente acostumou. Claro, minha mãe se
ressente um pouquinho. Os parentes querem que venda a casa
para ir para um lugar onde só haja residências. Nós não estamos
nem um pouco preocupados com isso, me preocupo com a casa.
Está no meu nome e dos meus irmãos. Eles são normais, mas
imagina se meus irmãos fazem alguma besteira e a gente perde
a casa, serei o culpado também. No futuro, vai cair para quem
foi o anormal da família.

Como a Oilmãe recebeu o Oilman? Como uma mãe


normal, ela fica preocupada. Até hoje, não entende bem. Preservo
ela, já que me foi delegado morar e cuidar da saúde dela.

Você é solteiro? Estou solteiro. Tenho um relacionamento,


só que a pessoa mora na casa dela, eu moro na minha. Acho que
o Oilman não tem influência nenhuma, mas eu já tive algumas
namoradas. Sobre isso, o Jô Soares me fez um teste:
- É Oilman, você gosta dessa vida?
- Sim.
- Você gosta dessa vida ao ar livre, é?
- É.
- Você é um artista, você canta.
- É.
- Você não quer ter uma namorada?
- Quero, Jô, poxa.
- Você tem namorada?
- Tenho umas paquerinhas lá em Curitiba.
- E você vai querer que ela ande assim que nem você?
- Se ela quiser, o Oilman é muito democrático.
- Mas, como assim? Com bastante óleo?
- É, pode colocar um bronzeador, se ela quiser.
- Só de biquíni, sem a parte de cima, né?
- Não. Jô, você está brincando comigo. Para começar, nem
de biquíni. Eu não vou querer massacrar minha namorada. Você
conhece Curitiba, Jô Soares?

262 | Oilman
Curitibocas | 263
Pensa em constituir família? Por enquanto, não posso
pensar nisso. Imagina um filho, “Pai, o Joãozinho está me
xingando porque viu você na rua só de cueca”.

As mulheres assediam o Oilman? De forma nenhuma.


É gozado que quanto mais o Oilman anda na rua, mais a mulher
vê e passa batido. No começo não, “Esse cara está aí para mexer,
é um depravado, um amoral”. Minha relação com o público
feminino está melhor. Tem velhinhas que me xingam até hoje.
Você imagine, no começo, tinha gente que achava que o Oilman
estava tendendo seduzir mulheres. “Ele está se insinuando”.

Como foi sua infância? Meus pais estavam sem recursos.


Os outros sempre tinham mais brinquedos. Isso sempre marca.
Eu, por ser atleta, não fazia tanta falta. Desde criança, era
basquete, futebol, vôlei, direto. Correr, saltar...

Já pensou em competições? Tenho medo também, acho


muito arriscado, nunca vou conseguir. Sempre vai ter alguém
mais preparado pela juventude, motivação de família e amigos.
A não ser que meu competidor se sujeite às mesmas condições
que o Oilman esteja sujeito. Aí, pela teoria, eu ganho. Tem um
aluno meu que conseguiu fazer 260 quilômetros em um dia, sem
descer da bicicleta. Tem 26 anos. “Oilman, sou teu fã. Eu subi
só de sunga preta e tênis preto, de Matinhos até Curitiba. Eu fui
confundido com o Oilman, mesmo não tendo o cabelo”. Ele tem
quase a minha altura. O rapaz disse que não agüentou. “Com toda
a minha capacidade física, eu não consigo fazer o que você faz.
A começar pela pressão psicológica do povo”. Isso foi em 2000.
É um ex-aluno meu - eu lecionava uns tempos, mas não queria
falar isso. Vindo de um superatleta, me sinto honrado. Os colegas
dele também o chamam de maluco, têm ciúmes da inteligência,
da formação de família, do físico. Pode não ser um ganhador
de prêmio, mas foi o único grande atleta que se aproximou do
Oilman. Tem outras tentativas de Oilman 2, Oilman 3, 4, 5, 6, 7...
O Oilman 5 é um halterofilista, mais baixinho, que quer andar de
sunga comigo, só que não sabe como fazer. Então, ele tenta ser
orientado. Oilman 2 é um rapaz criado em Manaus que está na
Bahia, anda sem camisa, só de bermuda. Igualzinho ao Oilman,
só que bem mais baixo. O Márcio, meu ex-aluno, considero o
Oilman 3. Grande atleta.

264 | Oilman
O que um Oilman cover deve ter? Capacidade física. Com
maior capacidade física, maior capacidade mental para assimilar
e ter força para agüentar o que vem. Se um estranho te ofende
agora, você tem que estar preparado.

Você é um professor de Oilmans? Professor não,


porque eu faço por prazer. Eu acho interessante, como o seu
Vicente. Não sei se dei o Oilman 5 ou 7 para ele. É empresário,
rico, milionário, só que estava muito obeso. Ele usava calção e
uma mochila. Eu dizia, “Olha, quando eu não estou de Oilman e
vejo você, vejo o Oilman”. Só que aconteceu algo. Ele não anda
mais. Tento sobreviver melhorando a minha capacidade vital
ou, como a gente fala em ciências biológicas, o poder biótico. Ele
[Oilman] chama a atenção. Tem muita coisa positiva. É educado,
é inteligente, mas tem um defeito ali, um defeito biótico, como
se fala em biologia. Não sei se você reparou, esses termos que eu
falo de biologia é porque eu sou formado.

Quando se formou? Entrei na Federal em 1981 e


saí em 1988.

Que parte da biologia você gosta mais? Faço questão


de não escolher nenhuma, para manter a minha formação. Sou
formado geral na matéria. Se você me perguntar sobre genética,
tenho os meus conceitos. Sobre botânica, zoologia... Zoologia
admito que gosto um pouco mais. Zoogeografia. Mas, volta e
meia, você pode me pegar lendo sobre bioquímica. Já falei tanta
coisa para você, acho que falei bastante de zoologia também.
A teoria do leão na savana, nicho ecológico, habitat, tudo com
referência animal.

Você chegou a tentar exercer profissão de biólogo?


Não. Exercer a profissão ganhando dinheiro, praticamente
nunca. Tive outros empregos, eu não queria falar isso com você,
mas era um emprego aqui, outro ali. Fazia vendas de roupas, de
livro, essas coisas.

Você era um bom vendedor? Não. Acho que eu era


muito impaciente.

Curitibocas | 265
Quer ganhar dinheiro com o Oilman? Claro, quem
não quer? Um ícone de marketing, uma imagem pública como o
Oilman, mas ninguém sabe usar. Poderia usar para vender, mas
deixo o meu material guardado porque ele é irrelevante agora.

Quais os planos para o futuro do Oilman? Ah, tenho


vários. Fazer do Oilman um ícone de propaganda, de fazer como
o personagem mesmo de revista em quadrinhos. Participei da
campanha do Festival do Teatro de Curitiba de dois anos atrás.
O produtor queria colocar: “Oilman - herói urbano”. Mandei
modificar para “super-herói”. Tinha muitas idéias, mas não
adianta ficar sonhando muito e esquecer minha prioridade.

Com a música, não quer fazer nada? Ouvi falar que


você tem uma banda. Oil Band está extinta. Além de não ter
o retorno financeiro que eu queria, sentia que eu estava sendo
apresentado como uma atração de circo. Eles vinham nas festas,
se divertiam de vestidinho normal. Sofri coisas terríveis com a Oil
Band, preconceito violentíssimo, atentado. Meus companheiros
não. Eles bebiam, namoravam, faziam amizades. E na hora de
dividir o dinheirinho da bilheteria, era em partes iguais. Até que
um dia, eu comecei a reclamar com o pessoal. A gota d’água foi
em um show com o HSBC. Iriam pagar 1,5 mil livre [de despesa].
Eram cinco na banda, mais o Luciano, nosso produtor. “Eu não
quero o cachê”, disse, como quem diz: “Estou cansado desse
negócio”. Se me quebrarem um dente? Um dente novo custa
1.400 reais. Você vai me dar 250 reais? Até reclamei com meu
produtor.
- Olha, eu vou fazer o show à paisana, normal. Com uma
roupa social, uma calça preta, um colete. Não vou do jeito que
vocês querem, porque desse jeito não está dando certo.
- Não vai dar por isso e por aquilo - disseram os músicos.
Tenho muita atividade esportiva como Oilman. A questão
da música é secundária.

E cinema? Vi um cartaz do “Encontro Explosivo:


Gralha x Oilman”. O orçamento do filme foi de 300 reais, foi
bem básico, sem efeito especial nenhum, bem simplesinho. O
Tako X, o diretor, mostrou que não conhecia o Oilman direito.
Eu também não sabia nada do Gralha na filmagem. Gostei como
documento, uma coisa positiva. Acabou virando um filme infantil
muito fraco.

266 | Oilman
Como você se define? Primeiro, Oilman definindo o
Nelson. É um cara determinado, um cara assim meio frustrado
como cidadão, que tenta buscar uma glória. Acho que todo
cidadão, hoje em dia, não escapa de um destino. Tinha até um
jogador de futebol que falava: “O homem não escapa de sofrer
tentações para se corromper na vida”. A frustração da pequenez
do homem que faz com que ele aspire a glórias. Por isso que
os americanos inventaram o Super-Homem. Você imagina o
cara voando para onde ele quer. Imagina se o Oilman fosse um
milionésimo do Super-Homem?

E como o Nelson definiria o Oilman? O Oilman é


sempre positivo. Ele é atleta, um exemplo de esportista. É um
cara que tenta viver no mundo dele, mas é um tipo de ícone que
pode ser usado pelos outros para um bem comum. Quando o
Oilman fala do Nelson, é como um filho falando do pai. Quando
o Nelson fala do Oilman, é como o pai falando do filho. Na
verdade, tenho alguma coisa parecida com o Oil. Tem gente que
não entende como é que o Nelson fala do Oilman na terceira
pessoa. Meu filho diria assim: “Você busca a glória”. Então, eu
me considero - agora, o Nelson falando dele mesmo - um cara
determinado. Sei do meu limite. Sou simples, um mendigo em
uma ilha deserta cultural. A gente tem cultura. O curitibano
escapa disso. Quando tem uma pessoa que é superinteligente,
sai daqui, ou não usa a capacidade. Isso transforma Curitiba em
uma ilha autofágica. Nada sai daqui, tudo é engolido. Você já
usou esse termo, “ilha cultural”?

Não. Estou usando, porque veja bem: Curitiba o que é? É


como a ilha do Lost. Eles estão perdidos, quando encontram
alguma coisa diferente é tudo na ilha. São outros náufragos, só
que eles dominam e têm segredos. É terrível isso. Você veja como
uma obra de arte pode ser passada para a vida real.

O que te atrai nesta cidade? Poxa, acho que Curitiba é


um tipo de metrópole européia. Tem favela ao redor, mas não é
defeito porque toda cidade tem. Nesse mar de desinformação,
nessa ilha de Curitiba, o Oilman deita e rola. Ninguém quer falar
de nada, ninguém entende nada, só pega o conceito vindo de
fora, quase xenofobia. Muitas coisas passam batidas pelo nosso
povão aqui. Uma coisa que não passou batida é a defesa do meio

Curitibocas | 267
ambiente. Isso pode ser considerado positivo. Curitiba tem uma
grande área verde por habitante.

Oilman é o símbolo de Curitiba? Não pode ser. Para


começar, o nome é Oilman, não é Homem-Óleo. Tem 46 anos,
solteiro, formado em faculdade, pobre que nem um mendigo, de
vez em quando falando inglês. Andando de sunguinha na rua e
sendo cortês com todo mundo. Isso não é, não tem nada a ver.
Claro, aquele vampiro de Curitiba, ele poderia ser, ou o Leminski.
O Oilman nunca foi aceito. E não foi feito para ser aceito. O
Oilman tenta ser ele na rua, tenta ser o caipira que gosta de fazer
esporte. O segredo é o seguinte: o Oilman é um tipo meio caipira
que gosta de praia. Não tem dinheiro, não tem condições sociais
e fica empolgado. E o povão daqui é uma ilha cultural.

Qual é o cúmulo da miséria? É você ter que emprestar


uma lâmina de barbear para fazer a barba.

Onde você gostaria de morar? Fora de Curitiba.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Eu queria


ser um grande atleta.

Para quais erros você tem maior tolerância? Erro


de paixão.

Quais obras literárias você prefere? Eu gosto de


obra de penitenciária, de prisão, sobre prisioneiros. Não
sei por quê.

Qual é seu personagem histórico favorito? O


primeiro César.

Seu pintor favorito? Leonardo da Vinci.

Seu músico favorito? Elvis e Gipsy Kings.

A qualidade que prefere no homem? Tem que ser


sincero, culto, bom caráter.

A qualidade que prefere na mulher? Bonita, culta


e educada.

268 | Oilman
A virtude que prefere? Determinismo.

Sua ocupação favorita? Fazer esporte.

Quem você gostaria ter sido? Eu queria ser o meu pai


para ver que filho eu teria, para me conhecer como criança.
Ou um político, sem ser famoso, nada.

O que você mais aprecia nos amigos? Tolerância, que


é o que ninguém tem comigo. E sinceridade também.

Seu pior defeito? Preguiça.

Seu sonho de felicidade? Comprar um carrão.

Qual seria sua pior desgraça? Ter uma doença grave


e acabar com as minhas aspirações.

O que você gostaria de ser? Um super atleta.

Sua cor favorita? Azul.

A flor que mais gosta? Orquídea.

Qual pássaro preferido? Águia de cabeça branca.

Seus autores favoritos em prosa? José de Alencar.

Seus poetas favoritos? Nenhum.

Seus heróis na vida real? O jeca tatu.

Seus nomes favoritos? Ciro, César, Cláudio, Nelson.

O que você detesta? Infidelidade, mentira.

O feito militar que mais admira? Achei fantástico


quando os americanos invadiram o Afeganistão. Acho
que o Bush fez o certo. Quando chegam na casa da gente
e explodem algo, tem que fazer alguma coisa.

Curitibocas | 269
Qual dom da natureza você gostaria de ter?
Voar.

Como gostaria de morrer? No hospital.

Seu lema? Respeite a natureza, senão já era.

270 | Oilman
Curitibocas | 271
Dentro da caixinha

Hélio
Leites

E
ram os últimos dias em Curitiba. Mais um dia de
t r a b a l h o n o a e r o p o r t o e j á e s t a r i a vi a j a n d o .
Resolveu voltar em um dos seus locais preferidos
da cidade, a Rua XV.
Darcy tirou a jaqueta. Estava acostumando a sair de casa
com as roupas para o frio, carregar tudo na tarde de céu cor
pança–de-burro e vestir novamente de noite.
Tinha fome e queria algo típico da cidade. Todos falavam do
tal barreado, mas não encontrou nenhum restaurante para comer
tal prato. Chamaram a atenção os restaurantes que serviam
costela 24 horas. Por volta das 15h30, Darcy iniciou a pajelança.
Esta era mais uma das histórias que contaria em sua terra natal.
Pagou menos de dez reais pela farta gordura com pedaços de
carne, arroz e polenta. Se tivesse outra oportunidade, viria no
meio da madrugada.

Curitibocas | 273
Foi rumo à XV fazer a digestão. Darcy sentiu antecipada
nostalgia e saudade do lugar. Sentou-se em um banco perto de
onde encontrara Bruno pela primeira vez. O estômago doía.
No final da tarde, quando já trajava sua jaqueta, passou
um homem de cabelo inusitado. Usava um topete do tamanho
de um sapato. O cabelo cinza parecia servir de matéria-prima
para esponjas de panela. Doze passos depois, ele se agachou
para pegar uma caixa de fósforos que recém um fumante havia
jogado no chão. Sem cerimônias, declamou para que todos na
rua ouvissem:
- Uma caixinha jogada / Guardei ela no meu coração /
Quarenta e cinco palitos / Em média ela se vendia / De tanto
emprestar para os outros / Acabou sozinha e vazia.
O rosto do poeta era conhecido. Darcy o seguiu. Depois,
ele viria a se apresentar como Hélio Leites. Darcy viu Hélio na
Feira do Largo. Ele trabalhava com miniaturas feitas a partir de
material reciclado - caixas de fósforos, principalmente. Volta e
meia ele apresenta o Museu do Botão, o primeiro museu móvel
do mundo, onde Hélio conta uma história para cada caixinha de
fósforo colocada em um colete. Outro invento popular de Hélio é
o Teatro de Boné, onde a aba vira o palco para as miniaturas.
Hélio estava saindo da faculdade. Tomou o ônibus Bracatinga
até o bairro Pilarzinho. Darcy deu duas voltas na quadra, subiu as
inclinações do bairro, e bateu na porta de Hélio. Apresentou-se
e revelou que gostaria de entrevistá-lo para o estudo “Conversas
artísticas”. Darcy se arrependeu segundos depois de proferir
este nome para seu pseudotrabalho. Talvez pelo péssimo título,
Hélio, que trajava um macacão com manchas de tinta, impôs
sua condição:

... Quando faz uma conversa, você está se doando. Podia estar
trabalhando. Claro que a gente não pode ser radical a ponto de
vincular uma coisa à pessoa. E eu gosto de divulgar o trabalho,
de que adianta um trabalho sem divulgar? O Maurício Kubrusli
veio fazer entrevista, ele é uma pessoa super considerada.
Perguntei:
- Quanto você paga?
- Ah não, o Fantástico não paga para ninguém.
- Talvez os outros não precisassem, mas eu preciso. Só faço
isso. Se não cobrar nada, como fica?
- Quanto que é?
- R$ 11.

274 | Hélio Leites


Caiu na gargalhada. Tirou dinheiro do bolso. Fiz um recibo
para ele. Aí, todo mundo diz: “Devia cobrar cem”. Não. Se
eu cobrar cem, ele não acha graça, não faz matéria e não te
paga. Se você cobra 11, ele faz a matéria, ele acha graça – que é
fundamental – ele te paga e você ensina ele.

O que vem no recibo? Recebi de fulano de tal a


importância de 11 reais, referente a uma entrevista concedida
para o projeto... Como se chama mesmo?

Diálogos Urbanos. Posso perguntar tudo? Claro.


Contador de história não pode mentir. Ele pode contar mentira,
mas tem que falar com uma verdade tal... Senão as pessoas não
acreditam nele.

Toma aqui R$ 15. O Key Imaguirre falou de um


projeto em conjunto com você. Grande amigo meu, uma
pessoa que me dá muita força. Ele é arquiteto. Esse cara vai lá
para não sei aonde, acha um botãozinho e me manda.

Precisa ter um assobiódromo para assobiar? Onde


estou, eu começo a assobiar. Uma das homenagens mais
maravilhosas foi quando estava em Brasília e fazia dois dias
que tinha morrido o Luiz Gonzaga. Era o Seminário Latino-
Americano de Cultura. Estava lá, caído de pára-quedas. Arena
lotada. Um cara chegou e me perguntou se eu não queria fazer
uma performance. Eu cheguei e disse assim: “Ó, nós temos um
Clube de Assobiadores em Curitiba, eu queria homenagear Luiz
Gonzaga. Eu queria que vocês me ajudassem a assobiar Asa
Branca. Vamos lá”. Nossa, quando chegou no finalzinho, teve
uma hora que eu me perdi. Os caras não estavam entendendo
direito a história. “Clube de Assobiadores de Curitiba? Que
história é essa?”.

Sente muita resistência com tuas propostas? Claro,


batalho desde os sete anos, quando, uma vez, uma professora –
olha a importância que eu dou para as professoras – pegou uma
bola de barro, sem falar nada, começou a tirar o miolo e fez uma
caneca. Essa caneca ficou na minha memória 43 anos. Imagina,
com sete anos você vê uma pessoa com uma bola de barro e dali
a pouco com uma caneca. Ela transtornou. Costumo dizer que
transformar é pouco, o negócio é transtornar.

Curitibocas | 275
Tem contato com essa professora? Um dia, eu consegui
o endereço dela:
- Ó, eu queria conversar muito com a senhora. Eu fui seu
aluno.
- O quê, você foi meu aluno? Você é aquele que distribui
botãozinho? Eu tenho muitos botãozinhos no meu abajur. A
última coisa que eu vejo antes de dormir é o seu botão.
Entrei na vida dela como ela tinha entrado na minha. A
gente tem o Museu do Botão. A Associação Internacional dos
Colecionadores de Botão. Para que serve o botão de roupa?

Para prender? Para juntar uma parte com a outra. Inventei


um botão para juntar as pessoas. Claro, hoje em dia está assim.
Cada um está no seu e-mail e todos em nenhum. No botão, faço
registro de livro, homenagem, registro ecológico, exposição.

E o que faz com eles? Os botões vêm para mim. Uma vez
fui fazer uma exposição e um cara me falou que botão não tinha
expressão artística. Pensei em largar tudo isso. Na hora que eu
dei uma cuspida, caiu em cima de um botão. Limpei meu cuspe.
Quando está na boca ele é bom, quando sai fica nojento.

No final, acabou desistindo? Lá em São Paulo tem um


espaço cultural na rua Vergueiro. Eles não tinham nem um
metro, dos mil que eles dispõe para me emprestar. No outro dia
de manhã, comprei uma roupa e pendurei os botões. Com aquele
museu, expus no lugar que eles não queriam. Vou nos lugares
mais impróprios.

Sempre dá certo? Todo teatro de vanguarda tem problema


técnico. Se o teu teatro não tem, simule um. Na verdade, não
se chama Teatro do Botão. Se chama Teatro MinimÉlista do
Botão.

Por quê? E de Hélio. Se te decodificarem errado na primeira


vez, você está perdido. Você vai ter que arrastar essa decodificação
pelo resto da vida. Não tinha ninguém para me decodificar, então
eu resolvi me decodificar sozinho. Minimalistas são os outros.
Sou a degeneração, já diluiu o sentido, dei outro. Tudo é botão.
Botão de rosa, botão de rádio, botão de costureira. A salvação
da gente é isso: pegar seu trabalho e ser o suporte dele. Por que

276 | Hélio Leites


as artes plásticas estão morrendo? Porque a pessoa diz: “Manda
aí três trabalhos”. Aí você manda, a pessoa acha sempre caro.
Não precisou a pessoa estar junto. Artes plásticas é um mito.
Todo mundo quer ter Picasso, a mãe quer que o filho estude
Belas Artes, mas, aí, não pensaram na pessoa. Isso aqui pensa
no envolvimento da pessoa. A pessoa para ver o meu trabalho,
me desculpe, tem que me chamar. Aí, tem que ter dinheiro da
passagem, isso, aquilo.

Como... De repente você está andando na rua e acha uma


caixinha de fósforo que começa a conversar com você. “Oi, tudo
bom?”. Levei ela para casa e se transformou em um celularzinho
[coloca uma caixa de fósforos no ouvido e começa a falar como se
fosse um celular]. “Ahã, não. Já chegou. É pesquisa. Não, é Darcy.
Sei. Ahã”. Não tem o Vivo, Pronto, Quase, Tudo, Nada? O meu
é o Ahã. “Não, a casa dele está toda bagunçada. Pode vir. Ahã”.
Sabe o que aconteceu? Todas as caixinhas de fósforo de Curitiba
correram para cá. Eu não sabia o que fazer com as caixinhas de
fósforo que estavam por aqui, eu resolvi fazer um teatro.

E o Teatro de Boné? É um jeito de você pôr para fora da


cabeça o que não tem dentro. Às vezes, vêm idéias para mim
tão pequenininhas que outra pessoa não as colocaria de pé.
Sabe por quê? Não dá dinheiro. Eu não. Às vezes, eu pego uma
casquinha de amendoim e faço um chinelinho dela. A caixinha
vem escrita assim: “O sonho inventa o caminho. Às vezes, a gente
fica preocupado com o caminho e esquece do sonho”. A gente tem
que sofrer com o sonho, não é? Comigo mais ou menos foi assim.
Uma vez, chegou um cara que me disse [fala no celular Ahã]:
- Ó, se lembra de uma caixinha que eu comprei de você?
Não, eu estou na Alemanha. Ahã, não? Você quer vir contar
história aqui?
Imagina? Um cara aqui do Pilarzinho indo contar histórias
na Alemanha? Aquele país tão sofisticado. Não, daí eu disse
para ele:
- Não tenho dinheiro nem para ir para a Rodoferroviária -
sofrendo com o caminho.
- Não, nós pagamos.
Aí, acabou meu problema com o caminho. Só que, daí, eu
fiquei noite sem dormir pensando: “Chego na Alemanha e se
o meu amigo mudou de idéia?”. Sofrendo com o caminho. “Se
ele não está no aeroporto, para onde que eu ligo, para onde que

Curitibocas | 277
eu corro?”. Outra vez, sofrendo com o caminho. Cheguei lá, foi
maravilhoso – fora o frio. Fui, contei história, voltei e foi uma
coisa tão bacana que aprendi a não sofrer com o caminho.

Deu tudo certo lá? Imagina. Eu fiquei lá duas semanas.


4.000 reais de passagem para eu chegar lá e falar 20 minutos.
Olha como eles estão sofisticados. Eles já têm tudo, querem a
diferença, a emoção.

E como se comunicava? Sabe alemão? Tinha um


tradutor que morou no Brasil, um cara chamado Tobias. Nunca
conheci um Tobias no Brasil. Fui conhecer na Alemanha. É um
nome bíblico.

Qual cidade era exatamente? Karlsruhe. Lá é tudo


pequenininho, tudo maravilhoso. A lua parece que é de outro
jeito, a lunação é de outro hemisfério. Você fica cuidando esses
negócios e os caras contando histórias. Nossa, o cara tinha uma
casa pequena, eu dormi na sala. Me suportou durante 15 dias.
Imagina o esforço de mandar para Alemanha uma caixinha
de fósforo transfigurada. Precisava fazer? Não. Mas a minha
vaidade, o meu egão, procurou fazer isso. Para mostrar para as
crianças que você pode pegar uma caixinha de fósforo e ficar um
dia brincando com ela.

Produz muito para o ego? Aquelas histórias que você


conhece por baixo, que você não faz nada sem se interessar.
Quando você se interessa, é o seu ego. Aquela coisa de
espiritualidade, desafio. Você chegar num lugar e a pessoa te
dizer:
- Olha, você não está vestido dignamente para a recepção.
Pode me acompanhar?
Já me tiraram de vários lugares assim. Claro, um cara com
um cabelo desses, tem que tirar. Os caras não têm registro
anterior. Fico espantado com a minha resistência de eu continuar
fazendo isso, de eu não ter tirado meu time de campo. O que eles
querem é isso. Por exemplo, por que não tem escola de samba
em Curitiba? Porque a Câmara Municipal, em 1848, emitiu
um decreto proibindo batuque no perímetro urbano da cidade.
Leminski que descobriu isso. Pronto, matou nosso carnaval.

278 | Hélio Leites


Carnaval também não parece combinar com o
estigma do curitibano fechado. Curitiba é uma cidade
feita de imigrantes. Se for olhar a constituição étnica, alemães,
poloneses, de vez em quando pinta um negro, uma coisa assim.
Então, Curitiba tem umas 50 etnias diferentes. A gente não tem
um folclore. Você olha para calça da pessoa e diz que ele é gaúcho.
Você olha para o curitibano e não sabe o que ele é. A gente não
é nada, a gente sente falta disso. Se você pega a Efigênia, ela é
curitibana. O que ela tem? Curitiba começou a se caracterizar
pelas modernidades dela. Ópera de Arame. Vem pessoa do
mundo inteiro ver um teatro transparente. É uma característica
da terra? Não. Foi inventado. Todos os nossos pontos turísticos
foram criados. Aí, você pega um músico chamado Ventania. Já
ouviu falar desse cara?

Não. Ele é um “Maluco da BR”. Sempre com o pé na estrada.


Ele é um músico maravilhoso, que fala que “o Paraná é o corredor,
a varanda fica em Santa Catarina”. Fala da Ilha do Mel, mas não
de Curitiba. A coisa mais tradicional é a nossa polenta frita de
Santa Felicidade.

Isso é bom ou ruim? Isso foi o que deu. Enfie a mão no


bolso de uma pessoa. Se achar um papel enroladinho, esse cara
é de Curitiba. Sabe por quê? A gente não joga papel no chão.
É a reciclagem. Daí você diz assim, Curitiba tem uma figura
curitibana: a Efigênia. Não sei se estou no mesmo encaixe dela.
Não é você achar papelzinho e se fazer de alegre. É pegar ele e
transformar em pão. Quando ela pega uma sacola e transforma
em bonequinho, ela faz ecologia e vende por dez reais. Se todo
mundo fizesse isso, a gente não teria uma baleia encalhada na
Normandia com 500 quilos de sacola plástica no estômago.
A baleia achava que era água viva. A Efigênia, aqui, ajuda as
baleias a não morrerem lá. Você não vai me perguntar dos
pichadores?

O que você tem a dizer sobre o assunto? Perdoei os


pichadores. Sabe por quê? Adélia Prado diz que a alma pede
expressão. Se você não tem uma tela e você quer se expressar,
tem tanta parede dando sopa... vamos pichar mesmo. Os caras
das cavernas pintavam na parede das cavernas porque não tinha
prédio. É uma linguagem também. Pelo andar da carruagem,

Curitibocas | 279
acho que vou acabar sendo pichador. Aqui tinha um bar muito
famoso que tinha uma pichação escrita assim:
“o pauloleminski / é um cachorro louco / que deve ser morto
/ a pau a pedra / a fogo a pique / senão é bem capaz / o filhodaputa
/ de fazer chover / em nosso piquenique”
Ele mesmo que escreveu. Na frente de um vestibular ele
escreveu:
“Quem tem QI / Vai”
Eu acho que é uma forma contemporânea de se comunicar.
São os novos garotos da caverna.

Você sofre muito com a rejeição? Agora, não. Agora,


eles me tratam bem. Todo o ano me chamam no melhor colégio
daqui, o Positivo. Tenho que ir lá porque eles me botaram na
apostila. Só que a apostila do Positivo não fica só aqui. Eles têm
franchising com o Brasil inteiro. Positivo paga muito bem, me
pagaram 1.200 reais. Daí, meu irmão, lá do Mato Grosso, me
liga e diz: “Uma vizinha aqui disse que você está na apostila do
Positivo”. Estou na apostila do Positivo da sexta série, na parte
de Artes Recicladas, parece. Nem sei para onde estou andando.
Dou graças a Deus. Quem faz um trabalho de artes quer divulgar,
quer mudar o mundo. Em umas [peças] é eu tentando consertar
o mundo. Outras, é eu pedindo para o mundo me consertar.
Sexta-feira passada eu fui para Apucarana, cheguei de noite e
saí de noite, porque uma professora disse: “Ai, eu queria tanto
que meus alunos assistissem a uma apresentação sua”.O projeto
chama-se Apostila Viva. Todas elas [com] celularzinho. Faço
campanha contra o celular.

Além da caixinha Ahã, você tem celular? Eu não sei


lidar com máquinas. Vá ver minha máquina de filmar, minha
máquina fotográfica, minha bicicleta. Tudo enferrujando. Isso
tomou conta da minha vida. Você já tem casa própria? Esse
passarinho já tem [mostra miniatura com um pássaro em uma
casa].

João-de-barro? João-de-barro. Precisava fazer isso aqui?


Não. Você aprende com os orientais. A hora que o sol nasce, eles
fecham os olhos e dizem assim:

280 | Hélio Leites


Curitibocas | 281
“Era uma vez
O sol nascente / Me feche os olhos / Até eu virar japonês”
“Meio dia três cores / eu disse a palavra vento / e caíram
todas as flores”
Leminski assim é o meu... Apesar de dizerem que eu plagio.
Ah meu, Leminski tem que ser plagiado. Todo dia você vai olhar
para o joão-de-barro e ele vai te perguntar: “Onde está o tijolinho
de hoje?” Vai virar um negócio tão chato, você vai comprar a casa
própria para se livrar da caixinha. Para chegar na casa própria só
tem um caminho. É degrau a degrau [mostra na caixinha].
“Sem um sonho / no meio da nossa caminhada, / nossa casa
vai dar em nada.”
Escrevo atrás [das obras] as frases para eu não ter que ir
junto. Eu sempre faço uma frase diferente da outra. Outra coisa:
em todas as minhas peças, eu coloco um fio de cabelo branco. Já
vai com o meu DNA, que é para ninguém falsificar. Todas têm,
se não têm, arranco na hora. Tenho uma bolsa cheia de cabelos
[pega uma bolsa plástica].

Tem bastante material aí... Eu pego da escova. Eu fico


puto quando minha mãe pega e me entrega limpinha. “CADÊ
OS CABELOS?”.

É complicado expor tuas peças? Todas são trabalhadas


nas três dimensões, em todos os lados. Deixo na mesa do
artesanato. A pessoa quer pegar.

No museu fica complicado. Aí, não é minha parte. Minha


parte é fazer e convencer a pessoa que é interessante ela ter em
casa uma caixinha de fósforo. Se eu não comover, elas não vão
se interessar. Também não faço questão, meu trabalho é muito
simples. Quero que a pessoa pegue a idéia. Tem gente que me
diz que eu sou muito sofisticado de estar na rua. Eu trabalho
para passar a mensagem para as pessoas. Tem gente que me
pergunta para que serve. Para nada. Você vem aqui expor uma
coisa que não serve para nada? Mas, às vezes, resolve coisa que
nem psicólogo ou médico consegue resolver. 50% das pessoas
no Brasil morrem de médico. O médico está mais doente que o
paciente.

Já pensou em vender teus produtos em uma loja?


Usei duas vezes uma frase: “Como são admiráveis as pessoas

282 | Hélio Leites


que conhecemos pouco”. Estou conhecendo você, você está me
conhecendo. O que eu faço: mostro meu lado bonito para você,
não vou mostrar meu lado feio. Você vai mostrar o lado bonito
de você. Aí, chegou uma mulher:
- Hélio! Eu conheço uma lojinha lá no Rio que, nossa, vai
vender todas as suas coisas. Você não quer que eu leve? Você não
está querendo me dar, né?
Dei cinco caixinhas. “Você me ligue daqui a 40 dias”. Liguei
depois de 63 dias.
- Você lembra de mim? Sou alto, magro, narigudo... Com
topete.
- Lembro de você todo o dia. Sabe que não tive tempo de
levar a caixinha na lojinha.
- Então, eu não quero que você leve na loja. Quero que leve
no Correio e me devolva. Senão, eu pego um ônibus e vou até aí
buscar. Tem uma frase de um amigo meu, o Batchê, que eu achei
que nunca iria usar com uma pessoa e vou ter que usar com você:
“Como são admiráveis as pessoas que conhecemos pouco”.
Sempre usei essa frase com necessidade. As caixinhas vieram
no outro dia.

Qual foi a outra vez? Uma mulher pegou uma fotinho


minha e da Efigênia:
- Não, isso aqui, lá na agência, a gente faz um postal bem
bonito.
Passei na agência. Ela fez um modelo que eu não curti. Queria
uma coisa bem simples, que as pessoas olhassem eu e a Efigênia
juntos e perguntassem: “Quanto é?”. Falei a tal frase para ela.
Dali uma semana, estava pronta. Eu acho um mundo muito
injusto. Se você ficar dando mole para essas coisas erradas, se
quer um mundo reto, seja reto. Não vou brigar, não vou bater.
Só no verbo.

[Aponta para um boneco pendurado] Isso aqui é


da Efigênia. Claro. Uma mulher daquelas tem que ter alguma
coisa. Ela está se acabando. Chega uma hora que vence o prazo.
Tenho uma caixa só com coisas dela. Umas relíquias. Se vir isso,
ela chora.

Ela começou graças a você na Feira do Largo. Não.


Graças a ela. Sabe o que é? Às vezes, a pessoa está precisando
de um susto, um empurrão, um pontapé na bunda. Eu conto a

Curitibocas | 283
história dela. A mulher que encontrou e foi salva por um papel
de bala na rua. A Efigênia, no começo, ela tinha uma poesia:
“Eu não sei para onde vou / Ninguém sabe de onde eu vim
/ Mas se Deus me convidou, eu fico até o fim”
Pessoa como a Efigênia tem que ficar de olho. Às vezes,
quando chega um amigo chorando que brigou com a namorada,
mando conversar com a Efigênia. Aí, ela vai com aquela unha, na
Feira, passando no vão das pedras do chão. “A gente é como uma
pedra. Vai se atritando, mas olhe como é. Quando as pedras se
acertam, nascem ramos”. As pessoas falam que ela é louca. Louca
de lúcida. Ela foge de todas as coisas, não tem rédea que segure a
Efigênia. Ela tem isso, ela baixa a cabeça e não perde o rumo.

Já trabalharam juntos? A gente foi para Brasília, no


Simpósio Nacional de Políticas Públicas para Cultura Popular.
Olha que nome pomposo. O MinC mandou um ônibus. Tinha
45 lugares, mas Paraná só podia mandar 31 pessoas, sabe essas
coisas de burocracia? O cara falou:
- Nesse ônibus a gente não quer que a Efigênia vá.
- Como assim? Eu vou e a Efigênia não pode ir?
- Ah, porque ela vai sofrer muito. São 22 horas de ônibus.
- Ó, vocês me desculpem, mas vocês vão sofrer. Ela não. Ela
dá cambalhota na Feira.
Ela levou uma sacolona com os trabalhos dela. Resultado:
vendeu todas as peças. Ganhou 700 reais. No último dia, só
tinha uma peça. “Hélio, só sobrou uma peça. Vou dar para uma
menina”. E ela deu. Eu sou mais que um advogado da Efigênia,
sou um apaixonado. Ela cantou a música do conta-gota para
você?

Não. Quando ela nasceu, nasceu de sete meses e a mãe dela


tinha que dar no conta-gota. Não podia ser duas, tinha que ser
gota a gota. Passou 70 anos, e eu dei para ela um conta-gota no
meio de um papel de bala. Ela canta uma música assim:
“Peguei meu conta-gota / Comecei a pingar / Pinguei uma
gota na ota”
Um cara uma vez interrompeu e disse:
- Não é da outra?
- É da “ota”, a rima da gota.
Querer mudar a palavra da Efigênia é querer mudar a palavra
do Guimarães Rosa. Não pode. A Efigênia luta pela palavra dela.
A ligação que eu tenho com a Efigênia é de poesia e de estética.

284 | Hélio Leites


Ela tem uma linguagem pessoal tão forte que eu me pergunto da
onde que ela foi buscar isso. Aí, vem o Artur Bispo do Rosário e
o pessoal pergunta:
- Não quer expor junto com ele? No museu?
- Pode? – disse ela.
Imagina, a Efigênia casou no MON com Artur Bispo do
Rosário. Sou o bobo da corte da Rainha do Papel de Bala.

Vocês dois encontraram seu objeto de inspiração


na rua. Eu acho que é assim. Se você conseguir canalizar sua
loucura para arte, você está salvo. Eu chamo da quarta idade. Na
hora que você pega, as pessoas perguntam por que ela faz isso,
a Efigênia responde:
- É o meu segredo como ser humano.
Tem um índio sofisticadíssimo chamado Benki. O Milton
[Nascimento] quando conheceu ele, fez uma música. Eu e a
Efigênia, lá, expondo em Brasília e ele falando. Cada palavra
dele parecia blocos de cristais, sem rachadura. Um do lado do
outro. O cara organizou um banquete dos mestres. Falei para
o organizador: “A mesa de vocês está furada. Está faltando
a Efigênia”. O cara falou: “Aí, vamos dar uma chance para
vocês”.

Eu ouvi você declamar uma poesia na XV... Poesia


para mim é assim:
“Tem gente que faz poesia como quem ejacula / Escreve verso
e pensa que é prosa / Não pode ver um par de coxas que goza
Tem gente que faz poesia como quem menstrua / E quatro
dias por mês fica na sua
Tem gente que faz poesia como quem peida / Não cheira
nem fede
Tem gente que faz poesia como quem arrota / É só você virar
as costas que caga na bota
Tem gente que faz poesia como quem baba / Você termina
de ler e o poema acaba
Poesia para mim é assim / De vez em quando / Para esquecer
esse meu lado de ser humano / Para Deus eu faço um interurbano
/ A cobrar
O último que eu fiz eu estava até feliz / Eu estava no ponto de
ônibus esperando / Do meu lado uma poça d’água me olhando /
Aí só para fazer um troça perguntei para Deus / E aí, qual é a da
poça? / Deus cochichou rapidinho no ouvido de um pardalzinho

Curitibocas | 285
/ Que desceu bebeu dois golinhos d‘água e voou apavorado / Eu
aproveitei o seu biquinho ainda molhado / para escrever esse
versinho / só para matar essa minha sede de viver
E para não esquecer da troça / Resolvi chamar o versinho
de poça / O versinho ficou assim
Água parada / Sonhando na poça / Não move moinhos / Em
compensação mata a sede dos...

Passarinhos”. Imagina. Poema tão grande e você já sabe


o final de cor. Faço esses poemas quando ferve o sangue. Sangue
não ferve toda hora, ferve quando eles matam um tigre. Um
tigre fugiu do circo e a PM deu 118 tiros nele. O tigre veio para
dentro de mim:
“No dia 29 de julho de 1992, mataram o tigre que fugiu do
circo / Agora a cidade dorme tranqüila um sono de chumbo /
Dorme também o tigre, em seu pijama amarelo de listras negras
/ E alguma coisa vermelha pinga na capital ecológica
A manchete dos jornais, já não é a jaula vazia / E o tigre voa
vivo para dentro de todos nós”.
A Adélia Prado, outra de Minas, diz que se você tem um
relógio e não quer que ninguém te roube, ponha ele dentro
de um poema. Ninguém vai conseguir te roubar. Queria que
esse tigre ficasse na nossa memória, pus ele num poema. Você
conhece o João Belo? Ele é da família do botão. Daí, as pessoas
não têm muita consciência. É só um papelzinho, mas, aí, junta
dez deles, tampa um bueiro. Todas essas coisas a gente vai ter
que ir trabalhando.

Sempre trabalhou com reciclagem e miniaturas?


Participei do Primeiro Festival de Artes Plásticas de Apucarana
em 1955. Não conseguia vender. Tentei corrigir a rota.

Que tipo de arte você fazia? Nem eu sabia direito. Eram


umas colagens, umas cidades, umas figuras humanas. Sabe
quando você conhece Picasso? Aí, todo mundo quer ser Picasso.
Você já chega deformado. Comecei a fazer os passarinhos, aí
vendia. Fui JHSL. Meu nome é José Hélio Silveira Leite. Depois,
fiz cabala e mudei para Hélio Leites.
Além da arte, o que você faz? Sem sexo, não há criação,
diria Leminski.

286 | Hélio Leites


Leminski morava no Pilarzinho. Conheceu ele? Fui
na casa dele. Tem gente que chama o Leminski de bêbado de bar.
Eu levanto e digo: “Ó, você está tendo uma visão muito limitada.
Você ficar contra uma pessoa só porque ela bebe. O presidente
bebe. Vai ficar contra ele só por causa disso? Tem que ficar por
causa das idéias dele, pelo que ele faz com as pessoas”.

Você vai a bares? Fui criado dentro de um bar. Na hora


que eu tive consciência...

Bebe? Não bebo, não fumo, não faço nada. Sou Desanimador
de festa. Não tem o DJ? DJ é o desanimador de Dgente.
Chega uma hora que tem que ter um desanimador de festa.
Supersofisticado.

Onde nasceu? Nascido na Lapa. Terra de heróis, berço de


vagabundos. Isso era 1951.

Tem irmãos? Tenho. Cinco do primeiro casamento e dois


do segundo.

Já pensou em ter filhos? Filhos? Que bom tê-los... Mas


onde metê-los?

Mora com tua mãe? Casei com a minha mãe. Claro, hoje
em dia, as relações estão tão difíceis. Você tem que ir onde você
é aceito. Não consegui estabelecer uma conexão com outros. Sou
muito individualista.

E como é a relação com ela? Tem coisas que minha


mãe não entende. “Fazer um assobiódromo? Para que fazer
um assobiódromo municipal?”. Então, assim, para ela, é uma
dificuldade. Me sinto um príncipe. Não lavo roupa, não faço
comida. A única coisa que eu faço é abrir a boca para comer. Se
eu digo: “Ah, que vontade de comer bucho”, minha mãe vai lá
no mercado e compra. Mãe quer satisfazer o filho. Sei que ela
queria que eu fosse médico, mas não dei conta. Sabe por que as
mães adoram que os filhos sejam médicos? Para elas não pagarem
consulta quando chegarem na terceira idade.

Ela preferia que você tivesse um emprego tradicional?


Fui bancário durante 25 anos, até 1996. Às vezes, você carrega

Curitibocas | 287
pedra carimbando cheque devolvido de pessoas que você não
conhece. Vivo na maior picaretagem. Fiz economia e apliquei na
arte. Economia com arte, dá miniatura. Não tem uma pessoa que
vá para feira com máquina que não queira tirar foto. Eu desanimo
a festa dele e falo que é R$ 1. Se a pessoa quiser mesmo, ela vai
pagar o mesmo por um cartão postal, R$ 1,50. Eu já tenho uma
tabela. Se chama tabela de sobrevivência. Para tirar uma foto é
um real. Para fazer uma entrevista de rádio, é R$ 17. Se for para
televisão, é R$ 18.

A Efigênia também cobra. Pode economizar e fazer


a foto com os dois por R$1? Você também faz gracinha.
Pode. A Efigênia cobra e, às vezes, as pessoas não entendem o
que ela fala. Ela fica tão braba. A gente tenta mostrar que não é
absurdo. É o jogo.

Você cobrou R$ 11 do Fantástico... Do Fantástico,


eu cobrei várias vezes. R$ 5 foi o primeiro. Depois, foi R$ 11.
Agora, está em R$ 18. De você, eu cobrei R$ 11 porque já tinha
dado aquele contexto. É para a pessoa compreender isso. É para
ensinar você como a gente faz para sobreviver. Tem poucos
artistas na cidade que trabalham na rua. O mais importante é
se contatar com o público.

Acha que estão atingindo isso? Olha as galerias. Elas


estão vazias. Culpa dos artistas. Eles fazem uma mancha e
escrevem lá: “Sem Título”. Outra faz outra mancha e escreve
“Movimento 1”. Como você vai cativar o público com o
“Movimento 1”? Acho que etiqueta devia contar história. Junto
uma coisa que, às vezes, a pessoa não sabe o que é, aí eu explico
para ela. Coisa mais chata é quando a pessoa sai sem entender
nada.

O que acha do curso de arte? Eles Belas Artes. Eu malas


artes.

Qual é o cúmulo da miséria? A riqueza.

Onde você gostaria de morar? Dentro de uma caixa


de fósforo.

288 | Hélio Leites


Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Felicidade
dos outros.

Para quais erros você tem maior tolerância?


Ignorância.

Quais obras literárias você prefere? As que eu


entenda.

Qual é seu personagem histórico favorito?


Diógenes, o homem que morava dentro de um barril e não
pagava condomínio. O segredo do ser humano é esse. O
cara batalha para ter uma casa própria e quando consegue
não tem dinheiro para pagar condomínio.

Seu pintor favorito? Melo Menezes. Ninguém conhece,


mas é maravilhoso.
Seu músico favorito? Carlos Careca.

A qualidade que prefere no homem? A


cordialidade.

A qualidade que prefere na mulher? A


sinceridade.

A virtude que prefere? Honestidade.

Sua ocupação favorita? Não fazer nada.

Quem você gostaria ter sido? O Chacrinha, que jogava


bacalhau para todo mundo. Bacalhau é R$ 25 o quilo.

O que você mais aprecia nos amigos?


Competência.

Seu pior defeito? Falar muito.

Seu sonho de felicidade? É a felicidade dos outros.


Estou cagando para a minha felicidade.

Qual seria sua pior desgraça? Cada pergunta difícil...


não ter dinheiro para pagar o ônibus.

Curitibocas | 289
O que você gostaria de ser? Fiscal da Feira de
Artesanato de Curitiba. Claro. Meu sonho é ter um
daqueles uniformes lá. O que você faz com aquele
uniforme? Você ganha um salário e vai olhar o que os
outros não estão fazendo. Então é uma inutilidade.

Sua cor favorita? Azul céu.

A flor que mais gosta? Violeta.

Qual pássaro preferido? Pinhé. É um gavião.

Seus autores favoritos em prosa? Adélia Prado.

Seus poetas favoritos? Adélia é uma. Drummond,


Leminski, Efigênia.

Seus heróis na vida real? A Efigênia é uma. Essas


pessoas que sobrevivem criando suas próprias armas.
Você pegar a enxada e ir fazer um roçado, essa arma já
está inventada. Quero ver ganhar a vida com um papel
de bala.

Seus nomes favoritos? Irineu. É o meu padrinho. O


mestre do Santo Daime. Ele até apareceu numa novela.
Ele era um seringueiro, dois metros de altura, negro. Se
agarrou na tradição Inca da Aiuasca. Você imagina uma
floresta como a Amazônia, aí você pega um cipó e uma
folha. Mistura as duas e dá uma terceira coisa que se
chama vinho dos espíritos. Se prepare quando fizer essa
viagem. É uma viagem para dentro de si mesmo.

O que você detesta? A força. Não tem coisa pior que


usar a força. Não admito. A força e a ignorância, não tem
como combater.

O feito militar que mais admira? Eles inventarem


aquelas roupas camufladas que eu acho maravilhoso.
Militar e político eu acho a degradação da civilização. Se
você pegar a civilização e retirá-los, iria ser outra. Eu estou
fazendo uma campanha para eles deixarem seus cargos.

290 | Hélio Leites


Qual dom da natureza você gostaria de ter? Fazer
perfume e espinho ao mesmo tempo.

Como gostaria de morrer? Todo mundo diz que quer


morrer no palco. Eu não tenho uma preferência, porque
eu sou do signo de Tigre no Horóscopo Chinês. O mundo
é meu palco, segundo a primeira frase que descreve o
meu signo. A hora que eu abro o olho de manhã meu
show começa.

Seu lema? Eu não penso. Imagino e faço. É o mesmo do


escultor Jair Fantin.

Curitibocas | 291
292
No outro lado da ponte

Murilo
Mendonça

S
entimentos controversos habitavam Darcy na volta do
Pilarzinho. Sentia que começava a se adaptar e a gostar
da cidade. Não saberia dizer o porquê, por mais que
tenha escutado definições profundas dela, não tinha uma
própria.
Na volta ao lar, encontrou Bruno falando consigo no meio-
fio da calçada. Darcy, mecanicamente, recolheu o amigo. “Oi”
para o porteiro, elevador, apartamento. Andressa não estava
e Bruno, especialmente falastrão, resmungava algo sobre a
demora dos carros para arrancar quando o sinal fica verde.

Curitibocas | 293
Amanhã seria o último dia de Darcy em seu emprego. Queria
levar Bruno para conhecer o aeroporto. Mudar o ambiente pode
fazer bem, pensou.
Andressa relutou um pouco, mas concordou com o passeio.
Deu mais cedo os remédios de Bruno e combinou de passar no
aeroporto para buscá-lo.
Darcy e Bruno acordaram cedo no dia seguinte. Bruno
acordava de bem com a vida. Parecia feliz até entrar no ônibus.
Na estação tubo, não parou de reclamar com as pessoas que não
cumprimentavam nem ele, nem o cobrador. Todos pareciam
incomodados. Darcy se divertia. Adoraria dizer isso e muito
mais.
Passearam no aeroporto por todos os lados. Para não se
sentir fora do ambiente, Darcy ensinou Bruno a usar um celular
Ahã, feito de imaginação e caixa de fósforos vazia. Bruno se
integrou com o ambiente perfeitamente. Falava com a caixinha
que desaparecia entre sua mão e o ouvido. Visto de cima, o
aeroporto parecia freqüentado por um bando de desbussolados
e Bruno era mais um. Estava feliz por isso. Parecia falar através
do Ahã com seu motorista e cobrador de ônibus particular. Uma
hora depois, apareceu Andressa para buscar o filho. Andressa o
observou de longe antes de levá-lo de volta para casa.
A função do dia era preparar café. Às duas da tarde, já teria
dinheiro suficiente para comprar a passagem para sua cidade e
mais um extra para possíveis despesas. Pegou o pagamento, mas
sem avisar que a partir do dia seguinte não voltaria.
Darcy pegou o ônibus e foi direto para a rodoferroviária.
Rapidamente, descartou a idéia de ficar mais uns dias para
voltar de avião. Sabia, já facilmente, como voltar para a casa de
Andressa, mas se atrapalhou para chegar na rodoviária. Depois
de algumas conexões, viu-se dentro de um Interbairros. Acabou
descendo em uma favela às margens do Rio Belém. Buscou
alguém que ensinasse como fazer para ir até ao Centro.
Darcy bateu palmas diante de uma casa de madeira com uma
bandeira do Brasil hasteada na frente – alguém nacionalista não
podia fazer mal.
“Aqui é Boqueirão, passou o rio é Uberaba”, respondeu um
sujeito de óculos e com calvície avançada demais para o aspecto
jovem. Falava com pausas involuntárias e cuidado especial em
cada termo. Explicou onde estava, porque parou ali e deu uma
verdadeira aula de transportes coletivos. Até então, Darcy achava
improvável achar alguém com tal erudição em uma invasão. O

294 | Murilo Mendonça


nome dele era Murilo Mendonça, sujeito de família classe média
alta que vive por opção na favela. Anteriormente, morava no
Cristo Rei, bairro classe alta.
Era a fonte perfeita para o ensaio de “As soluções para o
transporte e periferia na pós-modernidade”. Murilo abriu seu
portão de ferro e aceitou dar a entrevista.

Quanto tempo você está nessa casa? Cinco anos. Vim


para cá, basicamente, porque minha mulher já tinha essa casa.
Mas isso é uma coisa intrínseca minha. De alguma outra forma,
viria para periferia. Não é uma mudança tão radical, fui criado
em Santa Cândida.

Por quantos anos? Passei 11 anos lá - toda a minha


infância e o começo da minha adolescência. É um bairro de
classe média baixa, bairro de periferia. Depois, fui para o Cristo
Rei. Morei nove anos lá. Gosto de lá também, mas é como os
Racionais falam: “O mundo é diferente da ponte para cá”. Gosto
muito mais desse lado.

O que muda? Por exemplo, minha mulher tem um irmão


caminhoneiro. Não tem nenhum caminhoneiro na minha família.
É outro tipo de mentalidade. Não só a classe média, todo mundo
que opta por ir para o consumismo, valoriza a carne, perde o
espírito.

Mas se desse dinheiro para a classe baixa, eles


iriam... Acho que sim. A gente está fazendo hipótese. Uma
coisa é o que seria, outra é o que é. A maioria dos oprimidos,
quando está no poder, fica igual aos opressores. Por isso, não
acredito em revoluções. Um grupo que toma o poder de forma
idealista se torna aquilo que critica. Nada é por acaso também.
Se a gente vive num ambiente mais humilde é para ser mais
humilde também. É mais difícil ser prepotente sem ter os meios
materiais para isso.

O que a sua família achou dessa decisão? Não


gostaram. O sistema martela muito. A época que eu estava para
casar foi a época que mais briguei com a minha mãe. Quando
falei que a minha mulher não tem o primeiro grau, estudou até
a sétima série, não foi fácil para ela entender que era o melhor
para mim. A minha vó tem 15 netos. Todos os outros estão com

Curitibocas | 295
pessoas que fizeram faculdade, pessoas similares. Em alguns
pontos, minha mãe não aceita que eu queira viver o meu caminho.
Minha mãe não quis conhecer minha mulher, tive que apresentar
de surpresa, sem avisar. Mas, no fim, minha mãe adora minha
mulher, ela vê que estou bem, viu que era preconceito. Não foi
só isso. Na mesma época também, eu tomava uns remédios
psiquiátricos e achei que não precisava mais e parei. Minha mãe
não aceitou também.

Por que você tomava? Fui muito tímido, tinha muita


dificuldade em lidar especialmente com as mulheres. Até no
começo, a maioria das meninas que eu ficava elas que chegavam
em mim ou então era alguma amiga do meu irmão. Eu abordar era
difícil. Quando estava vencendo essa barreira, conheci a minha
mulher. Não vivenciei muito essa experiência.

Sente falta dessa experiência? Um pouco sim. Mas, fazer


o quê? O passado não volta. Eu acho que a palavra é o bem mais
precioso de cada pessoa. Não traio a minha mulher.

Chegou a usar drogas? A lei é feita você sabe por quem e


por quais interesses. Então, com certeza usei bastante, o álcool.
Sou alcoólatra, faz oito anos que não bebo. Fumei maconha
também, uma droga leve. Na minha personalidade, na minha
freqüência, não posso colocar nada que interfira. Experimentei
quase todo tipo de droga. Cheirei cocaína, fumei crack, benzina,
cola, esmalte. Nunca fiz uso contínuo delas. As pessoas já falam
que eu sou louco sem usar drogas. Já tenho a visão aberta para
o mundo sem precisar de aditivos. Maconha não me fazia bem
nesse ponto. Ficava três dias deprimido.

A tua mãe sabia? Sempre soube. Sou muito sincero. Falava


para ela.

Tentava te ajudar? Tentava. Isso também não fez muito


bem para ela. Mas a dificuldade é a raiz do progresso. Hoje, foi
uma experiência que tive e, uma vez superada, foi bom. Também
aprendi bastante coisa, vi um outro lado da vida que eu não
conheceria.

Levou muito tempo para se recuperar? A recuperação


é constante. Tem que ver o corpo como um todo. Corpo, mente

296 | Murilo Mendonça


e alma integrados. A evolução só termina quando a nossa alma
estiver tão expandida a ponto de não precisar de matéria, quando
encontrarmos o nirvana. Enquanto a gente está na matéria,
estamos em recuperação. Não utilizo mais essas substâncias, mas
não quer dizer que não use entorpecentes de outra forma. Vejo
muitas coisas na Internet, algumas boas, mas acabo vendo coisas
não tão adequadas. Tudo que distrai a mente é um entorpecente.
Vejo futebol também.

Que time você torce? Paraná, São Paulo e o Gama, porque


é de Brasília.

O que sua mulher acha da sua família? Com a minha


mãe e com o meu irmão, a minha mulher se dá bem. Não tenho
muito contato com a minha família em São Paulo. Água e óleo
não se misturam. Por exemplo, meu primo é chefe de gabinete
do Secretário Geral de Justiça de São Paulo. Outro é juiz em
Santos, um tio é juiz aposentado. São a típica família classe
média burguesa. E paulista, ainda por cima. Eu, minha mãe e
meu irmão fomos os únicos a votar no Lula. Estamos nós três
aqui, afastados deles.

O que te fez votar por Lula? Cara, eu não tenho partido.


Mas voto sempre contra o PSDB e o PFL, que acho que são os
dois piores.

PFL agora é DEM. Para se esconder. Também não sou


cego, acho o PT tão corrupto quanto qualquer outro. O que o
PSDB faz de bom, também reconheço. Por exemplo, eu acho a
administração do Beto Richa de razoável para boa. Vou muito
em periferias e vejo que fazem posto de saúde, escola. Claro, não
é como deveria ser, mas de uma forma ou de outra ainda fazem.
Ele vai fazer um projeto de urbanização da Terra Santa.

Que Terra Santa? Hoje é a favela mais problemática


de Curitiba. Surgiu em 1999. Cresce noite e dia. Já teve duas
expansões. Teve o Cantinho do Céu, de 2002, e a Bela Vista, de
2004. Bela Vista não tem nem luz. As pessoas botam essa luz
caseira para não ficar no breu total. E é morro ainda. Fica no
Tatuquara, quase CIC. Não passa nem ônibus lá. O que passa
mais perto é o Dalagassa, que é um ramal do Pompéia, mas só vai

Curitibocas | 297
na entrada de segunda a sexta e não funciona de noite. Ou pegar
o Kamir, que passa do outro lado – aí você tem que atravessar
a linha do trem.

Falamos da tua família, você não mencionou teu pai.


Onde ele está? Ele está em Alto do Paraíso, Goiás, agora. Creio
que ele já morou em todas as regiões do país. Meu pai é meio
desgarrado, não evoluiu muito. Nunca soube respeitar as outras
pessoas e lidar com a rotina. Chega numa cidade, num emprego,
arranja uma mulher, logo ele se cansa e joga tudo para o alto. É
muito inteligente e pouco sábio. Tenho pouco contato. Vi ele ano
passado e escrevi uma carta no começo desse ano. Se emocionou
e tudo. Não me respondeu. Também não está em condições.

E você consegue lidar com a rotina? Tem que. A gente


tem que buscar o equilíbrio, sempre procurar inovar, ter idéias
novas e procurar ter constância. Constância é a raiz.

Como é a tua rotina? Por exemplo, faz sete anos que eu


conheci minha mulher e, desde então, só fiquei com ela. Uma
coisa que meu pai não consegue. Agora, eu quero mudar de
Curitiba. Primeiro, vou para Brasília tentar concurso em Anvisa,
Vigilância Sanitária.

Por que Brasília? Sou de Brasília, sou candango. Com


três anos, eu vim para cá. Ano passado, construí uma casa no
Uberaba, que eu alugo. É bem perto daqui, quatro quadras.
Vou investir nisso. Quando eu tiver uma renda garantida, aí eu
vou. Tem a filosofia hindu que diz que a primeira metade da sua
vida você sustenta a matéria. Depois, você vai ampliar os teus
conhecimentos. Depois que eu sustentar a matéria, daqui a 20
anos ou menos, eu vou para África.

Por que África? Porque é o retorno às origens. Todas as


leis são as mesmas, só muda as escalas. Primeiro, vou retornar às
origens dessa minha encarnação presente. Depois, vou retomar
as origens da nossa espécie humana que surgiu lá.

Como sua mulher está encarando essa mudança?


Minha mulher não quer. Não posso e não quero forçar ela a morar
num lugar que ela não quer. Ela também não pode me impedir
de fazer o que eu quero e acho que preciso fazer. Amo, respeito

298 | Murilo Mendonça


e devo muito a ela, mas devo seguir meu destino. Se não quiser
ir, não irá. O casamento continua enquanto for bom para os dois.
Eu nasci para ser livre. Ela nasceu no sítio. Depois, mudou para
Siqueira Campos, depois mudou para cá. Então, ela mudou duas
vezes, não pode me negar o direito de mudar uma.

Sentirá saudades de Curitiba? Eu amo Curitiba, conheço


cada vila, todas as favelas, uma por uma, todos os bairros. São
os ciclos. O meu está encerrando. Curitiba é uma cidade boa. Só
que tem muita hipocrisia.

Hipocrisia? Toda a sociedade, todo o povo tem seu mito


formador. O mito de Curitiba é ser uma ilha européia no oceano
americano. Tanto que Curitiba evita ser dividida por zonas, tipo
zona sul, zona leste... Isso é universal. A prefeitura de Curitiba,
desde a época do [Jaime] Lerner, não quer que se adote esse
padrão aqui. O grupo dominante quer dizer que isso não existe,
porque aqui é diferente, aqui é europeu, é branco. Tanto que a
Gazeta [do Povo], que é muito chapa branca, não usa. O Estado
do Paraná e a Tribuna usam. A mentalidade deles é não fazer
analogia com São Paulo. Curitiba tem mais classe E do que todas
as outras cidades de Brasília para baixo. Saiu na Revista Exame de
março de 2003, quando elegeram Curitiba como a melhor cidade
para fazer negócio. Lá, mostra que a classe E é 6,9% da população.
Viu essas propagandas do Big, que coisa lamentável?

Não. Ah, o Big botou “feliz aniversário” em alemão, italiano,


polonês e ucraniano. Nada contra esses povos, pelo contrário,
eles são parte da história de Curitiba. Só que eles não são só
Curitiba. Nos anos 40, 50, eles tinham uma presença muito
maior. Hoje, o norte e oeste do Paraná, paulistas, catarinenses,
sul-mato-grossenses, mato-grossenses, nordestinos, têm uma
importância muito maior do que esses colonos.

Como são as favelas de Brasília? Favelas não são um


privilégio de lá. São simplesmente um sintoma de um crescimento
exagerado que, por sua vez, é sintoma de um desequilíbrio
regional. Se o interior e o Nordeste fossem desenvolvidos, as
cidades seriam menores e mais equilibradas. Brasília foi feita
para ter 500, 600 mil habitantes. Tem 2,5 milhões, quase, só no
Distrito Federal. As favelas em todo o Centro-Oeste têm muitas
casas sem muro e sem acabamento. No Sul e Sudeste, assim

Curitibocas | 299
que o cara pode, reboca a casa. Lá, se você olha de cima, é uma
cidade vermelha, pelos tijolos e ruas de terra. No Centro-Oeste,
praticamente, não há casas de madeira.

Outro entrevistado falou sobre as favelas de Brasília.


Segundo ele, o povo não tem o que fazer e as favelas são
inexplicáveis. Este entrevistado teu não deve conhecer muito
sobre economia. Do funcionalismo público você pode falar que
eles ganham dinheiro sem trabalhar, mas fora disso não. Se eles
estão lá, é porque têm algum meio de sustento. Brasília tem
uma renda muito alta, puxada pelo funcionalismo público, que
impulsiona todo o setor de serviço. Brasília não produz nada
industrialmente, mas o setor de serviços lá é forte. Cada prédio
em construção vão quantos peões?

Você aprova que a capital esteja lá? Sou totalmente a


favor de Brasília. Não tinha condição nenhuma da capital estar
no Rio. Você vê o estado de guerra que está lá, imagina o que os
embaixadores iriam reportar para os seus países?

Isso não é tapar o sol com a peneira? Tem também esse


aspecto, mas se a capital do Brasil fosse no Rio ia ter desandado
mais do que já está.

Brasília parece alheia à pressão social. Pode ser


também. Existem dois tipos de pressão. Se a sociedade se
organizar, a pressão vai para lá. Agora, pressão de tumulto não
leva a lugar nenhum.

Você é comunista? Quando eu tinha 12 anos, eu era. Hoje,


sei que o comunismo não resolve nada. Sou tão anticomunista
quanto anticapitalista. Não sou contra a propriedade privada,
sou contra a concentração muito grande. Não creio em nenhum
sistema. Todos terão um grupo no poder que impõe sua vontade
aos outros. Tem que criar um novo sistema sem opressão.
Também não sou anarquista, porque a desigualdade é natural
do ser humano. O que não pode haver é a exploração.

A realidade atual é justa? Tudo que vem de Deus é


justo por natureza. Creio na reencarnação, explica porque a
gente é desigual. Na verdade, a gente é igual temporariamente e
aparentemente desigual, todos nascem com as mesmas chances,

300 | Murilo Mendonça


no mesmo ponto, e chegarão ao mesmo ponto. Para quem vê só
o micro, é injusto.

Você é religioso? Religião vem de “religação”, não preciso


religar o que não foi desligado. O universo é a materialização
de Deus. A gente é uma célula de Deus, nunca fomos separados
dele. Eu era espírita até o começo desse ano, mas sempre tive
em mente que seria até o momento que passasse a compreender
um pouco mais das religiões orientais. O pouco que compreendi
é suficiente para dizer que creio em Deus.

Você acredita no karma? O karma é nada mais que o


passado, que é raiz do presente. Assim como o presente é a raiz
do futuro. O karma simplesmente é. O que você faz retorna para
você. Ele não é imposto ao acaso.

Qual o seu karma? Não sei. O karma não é uma coisa fixa.
É como se você olhasse para trás na tua estrada. Antes de estudar
isso, não acreditava em nada que dizia na Bíblia ou Jesus. É muito
distorcido. Depois que fui estudar, que entendi que toda a Bíblia
está certa, mas ela precisa ser corretamente interpretada. Jesus
falou: “O que você plantar, colherá”. Esse é o karma.

Por quanto tempo você seguiu com mais afinco o


espiritismo? Uns quatro anos e meio, desde o dia que peguei
o trem e fui para Jundiaí em São Paulo. Naquele dia, decidi que
eu ia ler as obras de [Allan] Kardec.

O que aconteceu nessa viagem? Você conhece os trens


suburbanos lá de São Paulo?

Só de fora. Metade das linhas, o governo já recuperou e


estão boas. Agora, a outra metade está muito ruim. Esse que vai
para Franco da Rocha e, depois, Jundiaí é uma das que estão
bem ruins. Vi um estado caótico de destruição para todos os
lados, pessoas vendendo de tudo, desde revista, cerveja, comida...
As pessoas não se respeitam. O trem abre, como acontece nos
ligeirinhos aqui. Ninguém espera os outros descer. Todo mundo
empurra para dentro. Aquele eixo das ferrovias de São Paulo, que
vai da Barra Funda ao ABC, um século atrás concentrava 90% da
industrialização do Brasil. As indústrias eram perto das ferrovias
para exportar no porto de Santos. Todo aquele eixo em volta

Curitibocas | 301
das ferrovias é barracão industrial. Hoje, 90% dessas indústrias
foram embora e surgiram favelas miseráveis no lugar. Daí, me
perguntava, tinha que ter uma explicação para toda aquela
destruição. Estava pichado no muro: “Leia Kardec”.

Como você compreende aquela situação agora?


Assim como a pessoa, a sociedade colhe o que planta. O progresso
é a lei humana e natural, a gente divide para progredir. Não
pode ocorrer o orgulho. Progredir e ser humilde, esse é o grande
desafio. Curitiba e São Paulo não souberam fazer isso.

Curitiba não soube progredir ou não soube ser


humilde? Não soube ser humilde. Hoje é muito rica. O orgulho
precede a queda, isso é uma lei natural. Acontece com Curitiba
e está acontecendo com os Estados Unidos, com a Europa. É
inevitável.
O sistema de ônibus de São Paulo é melhor que o
daqui? Em São Paulo, inauguraram o fura-fila, que é muito
melhor que o de Curitiba. Aquilo sim é o metrô sobre pneus. Ele
é um ônibus que vai elevado em cima de um viaduto. Ele vai de
Heliópolis até o centro em 15 minutos, só pára em quatro estações
no caminho. E é longe. Heliópolis é divisa com São Caetano. Tem
outra linha que faz exatamente o mesmo trajeto, mas por baixo,
pela rua. Aí, pára a cada 200, 300 metros. Esse aí pára a cada
dois quilômetros, por aí. Um leva 15 minutos, o outro leva 40.
Curitiba tem muita coisa boa, mas tem muita arrogância, muita
pretensão. Qualquer lugar que a raça branca domina fica assim,
infelizmente.

Como assim? Todas as raças têm coisas boas e ruins. A


raça branca também tem coisas boas. Ela tem uma tendência a
desenvolver a tecnologia e a matéria em si, mas não desenvolve
o espírito. A gente está numa cegueira e repetindo que aqui é o
melhor transporte do Brasil. Um dia foi. A gente fez a fama e
deitou na cama.

São Paulo superou Curitiba? Se você considerar que São


Paulo tem 11 milhões de pessoas – é mais que o Paraná inteiro
-, é um sistema muito bom. E, lá, tem metrô, trem. Aqui, esse
Interbairros III que você veio é horrível. É de 20 em 20 minutos.
Se São Paulo tivesse um sistema de metrô como o de Nova Iorque,

302 | Murilo Mendonça


Curitibocas | 303
Londres, Paris ou Tóquio, seria a melhor cidade do mundo. Gosto
muito daquela cidade, mas o trânsito acaba com ela.

Curitiba deveria ter metrô? Deveria. Em todas as cidades


minimamente evoluídas, a base do sistema é ferroviária - os
ônibus são alimentadores do trem e do metrô. Aqui, querem
reinventar a roda. No começo dos 90, inventaram o Papai Noel
verde. O que eles fizeram com o Papai Noel, em uma pequena
escala, querem fazer com o transporte.

Tem quem diga que o solo não comportaria... Isso


é mais uma desculpa. Poderiam fazer de superfície. Daria um
jeito. A Cidade do México é uma das maiores cidades do mundo
e foi feita em cima de um pântano. Já tem em Salvador, Recife e
Fortaleza. Eles fizeram o sistema servir especialmente para isso.
Nas cidades menores, como Teresina, Natal, João Pessoa, eles
pegaram a linha que já existia e fizeram estações. Aqui poderia ser
feito o mesmo, com custo muito baixo. Veja quais são os trajetos
das linhas de trem de Curitiba. Todas saem da Rodoferroviária.
Uma vai para Pinhais/Piraquara e desce para praia. Ali, outra
na divisa de Curitiba com Pinhais, outra desce pelo Cajuru,
Uberaba, passa aqui no Boqueirão, Alto do Boqueirão e Sítio
Cercado, Tatuquara. Só pelos nomes dos bairros você já vê que
são os bairros mais populosos de Curitiba. Sem investir quase
nada, poderia investir em estações de trem por lá. A Ferrovila tem
esse nome justamente porque foi invadida na zona que era uma
linha férrea. Já que essa linha não servia mais para o transporte
ferroviário, por que não para o transporte urbano?

Você disse que o orgulho precede a queda. Quando


acontecerá a queda de Curitiba? Já está acontecendo. Leia a
Tribuna [do Paraná] que você vai ver. Hoje, Curitiba é tão violenta
quanto São Paulo. O trânsito também mudou, a cidade, hoje, é
muito mais poluída. Hoje, tem muito mais cachorro de rua, muito
mais pichada – apesar de que para isso eu contribuí também.

Você pichava? Fui o primeiro de Curitiba que pichou


um viaduto por fora. Via isso lá em São Paulo e trouxe para cá.
Viaduto é diferente de pichar uma parede. Tem que ter uma
técnica, tem que escrever as letras ao contrário. E tem que ter
estilo.

304 | Murilo Mendonça


O que você escreveu? PCR. Pichadores do Cristo Rei.
Quando eu era jovem, nos meus 17 anos, ninguém me conhecia.
Mas se eu falava que era do PCR, muitos já tinham visto meu
trabalho, por assim dizer.

Como funcionava o PCR? Fundei em 1993. Foi um ano


e pouco que eu fiz isso. Em Santa Cândida, eu pichava também.
Era mais amador ainda. Tinha mais uns quatro ou cinco no
PCR - eram satélites, papagaio de pirata. Era muito difícil um
deles pichar sem eu estar junto. Digamos que, nessa freqüência
vibratória, estava mais avançado do que o meu tempo. Hoje não,
todos os moleques são como eu era.

Você tem contato com o pessoal do PCR? Com aquele


pessoal não. Um dos que mais iam pichar comigo, última vez que
eu vi, estava fazendo Direito - até um paradoxo. Uns outros se
viciaram em crack e se perderam.

O que significa a pichação? A matéria sempre reflete


o espírito. A cidade começa a ser pichada quando tem muita
tensão social. É uma coisa característica que tem que ter um certo
ambiente para ela fermentar. A pichação de gangue é também
indignação social, só não-politizada.

Você era indignado? Até hoje sou. Se alguma coisa está


errada, a gente não deve perder a indignação, só que devemos
refiná-la. Na época, a indignação se manifestava em torno de
uma revolta.

Contra o quê? Difícil definir. É uma revolta com a


sociedade misturada com uma crise existencial também. Por que
os caras picham? Porque querem sair do anonimato. A sociedade
massacra. Ela só divulga quem é famoso. Todas as gangues
querem isso, a pichação é só uma faceta de um comportamento.
Fale mal, mas fale de mim. É melhor ser odiado do que ignorado,
para as mentes fracas. O Brasil tem, os Estados Unidos tem muito,
embora, lá, a letra seja diferente.

A letra? É. Você não vê nos filmes que é tudo junto? É como


a do Rio de Janeiro. Bem mais difícil de entender. Cada região
tem um estilo de letra. A daqui tem algumas características
próprias, mas não deixa de ser igual à de São Paulo. Em Brasília

Curitibocas | 305
e Goiânia é outro estilo – misturam São Paulo e Rio, fazem as
letras grandes e redondas. Como Curitiba é fruto de São Paulo
nesse ponto, Joinville é fruto de Curitiba. Em Joinville que
começaram a surgir as gangues.

Você respeitava monumentos históricos? Não. Pelo


contrário. Quanto mais a gente agride a sociedade, melhor.
Filosofia do quanto pior melhor. Estava em São Paulo com meu
primo. Passamos perto da Praça da República, perto do Teatro
Municipal e tinha lá uma estátua pichada. Meu primo comentou:
“Como os caras fazem uma coisa dessas?”

E o que respondeu? É mais um espaço. Tanto faz se é


uma obra de Van Gogh ou se é um muro. Quanto mais ultraje
causar, melhor. Intuitivamente, sabe que aquilo tem valor para
a sociedade. É uma revolta, uma afronta. A sociedade ignorou,
esse é o troco.

Isso serve de justificativa para todo tipo de violência?


A gente vive em uma sociedade violenta. Isso é uma válvula de
escape. Agora é muito mais conseqüência do que causa. Claro, aí
vira um círculo vicioso. Cara, só vão deixar de existir gangues de
todos os tipos quando não existir mais opressão, e só não vai ter
opressão quando deixarmos de ser materialistas. Enquanto tiver
a loja de BMW, vai ter o PCC. Semelhante atrai semelhante.

Tem solução? Com certeza. Estão urbanizando as favelas.


Isso é bom, tem que ser feito. Mas é um paliativo. Lá nos
Estados Unidos tem poucas favelas. Você vai ver nos filmes no
Bronx e são bairros de classe média. No entanto, as gangues
são extremamente violentas. O problema está na cabeça, é o
consumismo. As classes baixas, as gangues que elas formam são
só um bode expiatório, um reflexo. O cara que é da classe alta dá
os golpes dele de outro jeito. É amparado pela lei, num gabinete
com ar condicionado. Dá uma canetada lá, rouba milhões, mas
não acontece nada, tem a mídia a favor dele. Educação é a única
solução. Mas educação não só intelectual, a educação moral.

A educação moral em que sentido? Amar o próximo


como a si mesmo. Não quer dizer que eu aplique isso. Uma coisa
é você aplicar, outra é saber o caminho. Quando a gente aplicar
isso, todos os problemas vão desaparecer.

306 | Murilo Mendonça


Por que você não aplica? Porque não é fácil. Eu tento.
Mais fácil é ficar como está. Praticar o mal, ele momentaneamente
compensa, ele é bom. O bem a longo prazo é muito melhor, mas
é mais difícil você modificar. Para mim, 300 anos é curto prazo
ainda.

Mas, falemos um pouco dos primeiros 30 anos


da sua vida. Chegou a se formar? Primeiro, prestei para
Arquitetura e Urbanismo. Tinha prova discursiva de matemática.
Eu não entendo muito de matemática. Daí, eu prestei para
Jornalismo e me formei na PUC.

Nunca exerceu a profissão? Quis e trabalhei com


isso no começo. Por uma série de fatores, acabou não dando
certo. Trabalhei no Jornal do Batel, Revista Paraná e Cia. As
empresas que trabalhei eram muito instáveis, os donos eram
desorganizados. Talvez volte um dia. Gosto de escrever também,
apesar de que não tenho escrito. Gosto de ser jornalista.

No que você trabalhou fora da área de Jornalismo?


Estava no IBGE, só que aí era dois anos, era temporário. Passei
num concurso da Secretaria de Educação e, aí, larguei o IBGE.
Não agüentei ficar três meses na escola. Trabalhei no Vitor do
Amaral, aqui perto. Era administrativo, mexendo com arquivo,
matrícula, essas coisas. Daí, fui trabalhar no Ibope. Trabalhei
mais cinco meses lá, aí acabou a eleição, parei.

O que acha daquela máxima que ninguém conhece


alguém entrevistado pelo Ibope? Já ouvi muito isso. As
pessoas gostam de reclamar também. O Ibope é estatística, e a
estatística funciona, tanto que o Ibope geralmente acerta. Tem
muita coisa errada lá, não quero defender eles. Do Requião, eles
erraram feio, mas boto fé que houve coisas suspeitas. Acho que
grupos poderosos queriam o Osmar Dias.

Gostava do trabalho lá? A gente ganhava 40 reais de


diária nas viagens. É muito pouco para você pagar hotel e
alimentação. Você tem que ficar em cada hotel que não compensa
nem falar. A gente ganha pouco, a gente avacalha também. O
hotel que eu fiquei em Joinville, por exemplo, uma pensão em
frente à rodoviária. A gente ficou num quarto que a mulher falou
dez vezes: “Não tranque a porta, porque senão a porta não abre”.

Curitibocas | 307
Viaja a noite toda, chega lá tem que trabalhar, não come direito.
Acaba não trabalhando de acordo com o figurino. Não pode
inventar pessoa que dá cadeia, mas acabam ocorrendo algumas
imperfeições. Mesmo assim, não são todos que fazem esse tipo
de coisa. A pesquisa pode dar certo, mas, às vezes, é falha na
execução. Há outras questões na sede, em São Paulo. Sobre isso,
melhor não falar muito.

E o IBGE? Melhor, é mais tranqüilo. Fiz a Pnad. O ritmo


de trabalho é dez vezes menos intenso. Então, uma coisa puxa a
outra. Se a empresa te dá condição de trabalho, você leva mais
a sério.

Gostaria de ter feito outra coisa ao invés de


Jornalismo? Não me arrependo, mas, hoje, eu faria Geografia.
Vou fazer árabe, vou centrar meu estudo nisso. Só depois vou
pensar em outra coisa. Também estudei espanhol.

O Brasil tem bons jornalistas? Deve ter, estou meio


afastado da mídia. A mídia, hoje em dia, tem sido mais parte do
problema que da solução. Tenho procurado me informar mais
pela Internet mesmo.

Por que a mídia faz parte do problema? Democracia


brasileira é jovem, precisava ser cuidada. A mídia vai destruir
ela, só está passando violência e as pessoas estão querendo cada
vez mais soluções drásticas. As pessoas vão clamar por uma
solução autoritária. É uma pena. Eles querem a guerra e vão
conseguir. É o que já vem acontecendo. As condições de hoje
são diferentes. É a era da informação. Um autoritarismo não
vai conseguir ter o controle. Basta você analisar a dificuldade
que era imprimir um panfleto durante a ditadura militar. Hoje,
imprimo em casa, quantos quiser. Hoje, não tem como censurar,
por mais que censure a Internet, as brechas aparecem. A questão
das armas também. Naquela época, conseguir um revólver era
difícil. Hoje, é só ir ao bar da esquina. Garanto que se eu for ali,
até amanhã está na mão. Se voltar o regime autoritário, será
incomparavelmente mais sangrento. Hoje, a situação é muito
mais complexa, incomparavelmente.

O que vem depois de um regime autoritário?


Primeiro, tem que contar os sobreviventes. Espero que não, mas

308 | Murilo Mendonça


se acontecer será drástico. Você tem acompanhado a situação
no Rio. Tem até um sítio, o Rio Body Count que conta todas as
mortes no Rio de Janeiro que são noticiadas pela imprensa. Só
nisso, está na média de 15 a 20 por dia. Fora o que não sai na
imprensa, que não é pouco. No Rio de Janeiro tem, oficialmente,
3.000 desaparecidos por ano. Desses 3.000, pode ter certeza que
2.000 são assassinados também. Se continuar evoluindo como
está, a tendência é ir por esse caminho. O sistema quer que a
gente fique vendo o Big Brother e está conseguindo.

Você critica o Brasil, mas tem uma bandeira na


porta. Significa que ninguém nasce num país por acaso. Eu
amo meu país. Apesar de todos os problemas, outros lugares são
piores ainda. A pátria é como se fosse nossa mãe.

O que caracteriza Murilo Mendonça? Os livros falam


que você pode dividir o cérebro em três partes. A parte de trás
é onde fica o sistema nervoso. É a parte animal, onde ficam os
instintos, são as coisas mais mecânicas. A parte do meio é a
racional, do dia-a-dia. A frente é onde você se liga com o infinito.
Muitas pessoas nem têm desenvolvida essa parte. A maioria das
pessoas que tem essa parte frontal desenvolvida renega a parte
do meio. Tipo, as pessoas que pensam muito no futuro acabam
não pensando muito no dia-a-dia. Isso é uma questão que tenho
até hoje. Cazuza e Renato Russo têm uma sensibilidade muito
grande, uma visão, uma criatividade, mas não agüentam o tranco
da vida – se suicidaram, praticamente. Sofro um pouco dessa
síndrome. Claro, não tenho a genialidade deles, muito longe
disso. Por outro lado, não tenho tanta dificuldade em lidar com
o dia-a-dia como eles tiveram.

Uma coisa compensa a outra. É. Mas o verdadeiro


desenvolvimento é o equilíbrio. Acho que foi por esse ponto que
eu sofri na adolescência - na época, eu não entendia. Tudo era
uma confusão muito grande. Por isso que eu bebia, pichava os
muros e por aí vai.

Você se sente realizado? Com certeza, mas o universo


está o tempo todo progredindo. Por exemplo, minha mãe queria
me dar um remédio para pingar no cabelo. Mas, se a natureza
decidiu dessa forma [a calvície], quem sou eu para contestar?

Curitibocas | 309
Tenho uma casa maravilhosa, uma esposa maravilhosa. Agora,
eu estou parando de ouvir rap.

Por quê? Digamos assim, que o rap e a periferia tenham


casado. Agora, eles estão se separando. O rap de hoje não está
nem aí para periferia. Eu era amigo da noiva, da periferia, não
era amigo do noivo. Agora, ele segue o rumo dele e eu continuo
com ela que tenho a relação.

O que provocou a ruptura? Os rappers se corromperam


pelo sistema. O sistema não gosta de ser contestado. Então, ele
compra todo mundo e a maioria aceita, infelizmente. Isso que eles
chamam nos Estados Unidos de rap não é rap de maneira alguma.
O que vem dos Estados Unidos é só consumismo e sacanagem.
O brasileiro que eu tinha esperança que não fosse pelo mesmo
caminho, foi. Para mim, isso não diz mais nada. Ontem, estava
ouvindo Public Enemy pela última vez.

Já foi aos Estados Unidos? Uma vez, quando tinha 17


anos e outra, 18. Com 17 não foi muito aproveitável - fui para
Disneylândia. Gostei mais dos dois dias que eu passei em Miami,
que os cinco que passei em Orlando. Um ano depois, fui para
Nova York. Essa viagem foi boa para mim. Apesar de que só um
dia e meio que eu tirei para fazer os meus passeios, mas foi bom,
vi bastante coisa. Peguei o metrô, fui nas periferias.

Tem fotos com o Mickey? A degeneração não chegou a


tal ponto.

Qual é o cúmulo da miséria? A miséria é espiritual,


não material. A miséria é querer ter o que não tem. A
miséria está na mente. O Estados Unidos é um país
miserável. Senão, não invadiria o Iraque para roubar.

Onde você gostaria de morar? Difícil definir. Sempre


desse lado da ponte. Primeiro, onde a Maria [a mulher
do Murilo] ficasse comigo e, segundo, onde eu me sentir
bem.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Felicidade


está nas pequenas coisas. Não dá para imaginar um ideal
de felicidade que ele se torna inatingível. Felicidade é

310 | Murilo Mendonça


ouvir uma música que você gosta, uma comida, ver o
pôr-do-sol, conversar com um amigo, vir andando do
Centro a pé e ver um rio – apesar de poluído, como o
Belém -, ouvir o canto dos pássaros. Essa é felicidade, o
resto são os planos.

Para quais erros você tem maior tolerância? Esse


é um dos maiores problemas do ser humano e não fujo
à regra. Como está na Bíblia, a gente não vê a trave no
nosso olho e vê o cisco no olho alheio. Os maiores erros
humanos que a gente deve corrigir. Verdadeira evolução
é quando você é totalmente tolerante com os erros alheios
e intolerante com os seus. Mas, geralmente, a gente faz
o contrário.

Quais obras literárias você prefere? Não sou muito


culto. Leio muitos livros sobre a antimatéria e livros
que falam da situação material também, pode-se dizer
políticos. Literários, não leio muito.

Qual é seu personagem histórico favorito? Vários


que passaram e deixaram exemplos. O que luto é que seja
feriado nacional dia 20 de novembro, dia de Zumbi. Acho
que ele é um dos maiores heróis nacionais. Em outros
estados já é. Um dia, será aqui também. Ghandi, Luther
King... Lutar contra o sistema é dever de todo que é livre.
De preferência, uma luta sem violência.

Seu pintor favorito? O que pintou minha casa. É um


vizinho meu, o Valdecir.

Seu músico favorito? Não sei.

A qualidade que prefere no homem? A palavra é o


bem mais valioso da pessoa.

A qualidade que prefere na mulher? O mesmo.

A virtude que prefere? Busca do autoconhecimento.

Sua ocupação favorita? Estudar, de diversas formas.


Vir a pé do Centro é um estudo.

Curitibocas | 311
Quem você gostaria ter sido? Ninguém. Quero ser
eu mesmo.

O que você mais aprecia nos amigos? Lealdade,


honestidade.

Seu pior defeito? Ser materialista.

Seu sonho de felicidade? Um deles é o fim do


capitalismo. Felicidade tem que ser presente, não o
futuro.

Qual seria sua pior desgraça? Não sei, você não deve
se fixar nas desgraças.

O que você gostaria de ser? Eu mesmo.

Sua cor favorita? Verde, apesar de que no futebol não


bate. Não gosto de nenhum time verde, exceto o Gama.

A flor que mais gosta? Nenhuma. Ainda não atingi


esse ponto de sensibilidade.

Qual pássaro preferido? Mesma coisa.

Seus autores favoritos em prosa? Não sei. Não gosto


muito de classificações.

Seus poetas favoritos? Começando a ter contato com


a poesia agora. Ainda não tenho discernimento.

Seus heróis na vida real? Todos aqueles que combatem


o sistema de forma não-violenta.

Seus nomes favoritos? Indiferente.

O que você detesta? A gente não deve procurar detestar


nada, traz energia negativa. Tive muito ódio dos Estados
Unidos, dos ricos. Não os amo, mas não os odeio mais.

312 | Murilo Mendonça


O feito militar que mais admira? O fato de terem
mantido o Brasil inteiro. Estouraram muitos movimentos
separatistas. Não gosto muito de militares, mas nesse caso
foi um mal necessário. Veja a América Central, já foi um
país só. Hoje, o que é? Tumulto generalizado.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? Nosso


potencial é infinito.

Como gostaria de morrer? Diz uma filosofia que li


que se você morre a todo instante você não sente a morte.
Então, se você se desapegar da matéria, a morte é uma
porta que mais abre do que fecha.

Seu lema? Conheça a verdade e a verdade o fará livre.

Curitibocas | 313
Paixão

D
arcy tomou as devidas instruções para chegar na
rodoferroviária nova – que já tem alguns anos.
Lá, encontrou o mesmo atendente da Citram,
com a tradicional fila. A espera não tirou o sorriso de Darcy.
- Em que posso estar lhe ajudando?
Darcy lembrou ao rapaz sobre a sua situação. O vendedor
apertou os olhos e disse estar lembrando de alguma coisa, sim.
Darcy então explicou – com detalhes – tudo que fez em Curitiba.
Enquanto isso, a fila crescia. Ocorreu a Darcy entrevistar o
atendente, que conseguia intervir seu discurso com alguns
“certo”, “ok”, entre outras interjeições. Todos são interessantes
para Darcy. Além do mais, caso voltasse a Curitiba, provavelmente
enfrentaria este mesmo guichê. Um casal entrou no final da fila.
Darcy poderia ampliar seu leque de amigos. Mais um passageiro
encasacado juntou-se à fila que ensaiava fazer uma curva, tudo
visto pelo funcionário que não parava de pensar no trabalho
acumulado. Foi tendo que ir pedindo desculpas para Darcy,
imprimiu a passagem e logo chamou o próximo. Darcy pegou a
passagem e afastou-se rapidamente do guichê. Deu-se conta de
que atrapalhara a vida do solitário empregado da Citram. Longe
dali, percebeu que o atendente esqueceu de cobrar o sacrificado
dinheiro. Melhor assim.

Curitibocas | 315
Para não correr risco de se perder, resolveu ir da maneira
mais segura até o apartamento de Andressa. Em sua caminhada,
passou pela praça Carlos Gomes, onde foi abordado por uma
menina de visual agressivo – furos, agulhas e tatuagens por todo
o corpo. “Você gosta de poesia?”, perguntou a jovem que nem
esperou a resposta, “ajude a poesia a sobreviver comprando este
livro”. Darcy sentiu que o destino da poesia estava em seu bolso.
Comprou o livreto de páginas fotocopiadas.
Sentou no banco da praça. As poesias prometiam falar de
tudo. Entre uma página e outra, olhava para cima e para os
lados, em busca de alguma referência daquilo que era tratado.
Vislumbrou um pombo e tudo passou a ter sentido por um minuto
e vinte segundos.
Notou que passava pela terceira vez um homem de
cavanhaque, óculos marrons e expressão concentrada. Parecia tão
aéreo quanto Darcy em busca do sentido das poesias. A cada cinco
passos, ele olhava uma vez para o relógio. Darcy resolveu segui-
lo em uma volta na quadra. Ele entra em uma garagem larga,
onde, no fundo, se viam máquinas, rolos de papéis e operários.
O andarilho fez um sinal para o guarda permitir a entrada do
seu seguidor silencioso. Subiram por uma estreita escada que
dava em uma sala imensa, cheia de relógios, computadores e
trabalhadores com a mesma cara angustiada.
Passaram ao lado de uma máquina de café e subiram mais
escadas. O prédio conjugava a juventude dos equipamentos e a
velhice da arquitetura. Chegaram a uma sala mais silenciosa,
com monitores mais coloridos. A expressão fechada virou um
sorriso quando o homem sentou diante de uma prancheta. Darcy
observava, por cima do ombro, o desenhista dar pinceladas
rápidas e inconfundíveis. Era Ademir Vigilato Paixão, mais
conhecido somente pelo sobrenome.
Ainda sem conversar com Darcy, Paixão entregou o desenho
para um outro companheiro de trabalho, que permaneceu com
o braço estendido. Ele já esperava que Paixão fosse pedir de
volta o desenho. Levava para a prancheta para dar mais algumas
pinceladas. Fez isso uma vez, duas, três, “me dá isso aqui, Paixão”,
e colocou embaixo de um scanner.
Só então que Darcy apresentou-se e convidou Paixão
a participar do estudo “Traços nos diários paranaenses e a
semiótica de massa”. Foram até uma sala ao lado da primeira
escada, onde passava, de tempo em tempo, algum curioso para
ver pelo vidro quem estava sentado nos sofás da sala.

316 | Paixão
A maneira arrastada de falar, cheia de idas e vindas, com
gesticulação meticulosa, vagarosa e constante faziam de Paixão
um alvo e tanto para uma caricatura.

Você começa a se mover quando não chega a


inspiração? É. Esse tipo de trabalho pressiona muito a
tua cabeça. Além de reduzir e não usar legenda, tento deixar
engraçada a charge, só que tem dia que ela não fica. Se está
complicado de bolar a charge, tenho que dar voltas em volta
da quadra. É um fato, mas você tem que tirar alguma coisa
divertida - isso é o mais sinistro. Minha charge até uma criança
vai entender, porque faço mais o cotidiano.

Como é o ritmo do trabalho? Tenho o horário para


entregar o meu desenho, às 21h30. Se tiver a idéia pronta na
cabeça, eu posso vir até quase 21h. Trabalho, praticamente, o
dia inteiro – trabalho que eu digo é assim, lendo revista, vendo
jornal. Eles não me cobram horário aqui.

Faz na redação os desenhos? Às vezes aqui, às vezes lá


em casa. Virou como se fosse uma coluna. Posso trazer ela pronta,
posso mandar por e-mail. Gosto dessa coisa de andar na redação,
ver o jornal ali, ter esse contato.

Tem alguma restrição nos temas que escolhe? Não


gosto de pegar morte nem religião. Só não pode fugir do tema
principal. Por exemplo, quando o Papa morreu. Não tinha como
fazer de outro assunto. Tento fugir do óbvio, do cara sempre
subindo com asinhas. Quando o Ray Charles morreu, fiz ele todo
de branco e o teclado do piano como se fosse uma escada, para
pegar o leitor mais no susto.

Você teve formação religiosa? Tive, mas não muita. Se


existe um Deus, ele está ligado com natureza. A grande merda
das religiões é, justamente, valorizar muito a raça humana, é
por isso que o planeta está indo para onde está. As pessoas vêem
a natureza como uma coisa que foi feita para nós. Quando as
pessoas estão fazendo um comentário da Bíblia, começo a viajar
e vejo que tem muito exagero. Chega a ser engraçado como as
pessoas acham que aquilo aconteceu mesmo.

Curitibocas | 317
A charge tem que estar alinhada com a política do
jornal? Tem. Só que eu criei um tipo de bom senso na minha
charge, justamente pela cara do jornal. O jornal, antes, não
pegava muito pesado, principalmente aqui na política nossa.
Como eu fazia charge dos políticos locais, sentia que o pessoal
ficava cuidando muito. Comecei a reparar que quando fazia
nacional, não tinha aquele “Oh, o que você está fazendo?”.
Comecei a fazer só nacional. Aí, é bem mais complicado para
você fazer, tem um lequezinho bem menor de assuntos. Aqui, nós
temos uns estúpidos... os bons, como o Rafael Greca, já passaram.
Puxa, quantas charges perdi de fazer dele.

Você já sofreu pressão por parte de algum político?


Bem pouco no começo. Justamente por não usar bem o bom
senso, não saber direito o que pegar. Não puxo sardinha para
ninguém. A minha charge não é agressiva. Jamais um colunista
ou um chargista vai mudar o rumo da coisa. Está mais provado
ainda que a mídia não influencia nada em eleição nenhuma.

Como desenvolveu o bom senso? Quando entrei na


Gazeta, eu era caricaturista. Fazia caricatura de político, mas não
tinha noção nenhuma de jornalismo, do que vai dar manchete
amanhã. Achava que fazendo caricatura, já podia fazer charge.
Só que tem um caminho longo até criar esse feeling para
charge. Tinha uma pessoa que me ajudou, que era o pauteiro
da Gazeta. Ele fazia as manchetes, sabia das coisas que estavam
acontecendo. Eu não sabia nada, não tinha know-how de jornal.
Perguntei para ele:
- Dá uma dica do que vai sair amanhã.
- Leia jornal, leia jornal – dizia ele.
Levei um susto, porque vi que tinha que fazer as coisas
sozinho. Foi uma das melhores ajudas, ele não me deu pronta a
coisa. Passei a descobrir, comecei a ler o jornal, saber o quê os
caras estavam fazendo.

Como você entrou na Gazeta? Uma vez, eu vim mostrar


minhas charges, os caras nem olharam para mim. Acho que
foi pela persistência. O Douglas Mayer era o chargista oficial
da Gazeta. Deu uma loucura nele de querer vender quadros
nos Estados Unidos, no Central Park. Nessa que ele foi, fiquei
trazendo meus desenhos. Tenho vergonha das primeiras charges
que fiz, não tinha muita malícia.

318 | Paixão
Foi bem aceito? A Gazeta era muito familiona, as pessoas
trabalhavam juntas há muito tempo. Então, quando sai um e
entra outro, modifica. Os caras me olharam meio torto achando
que eu tinha tomado a vaga do Douglas Mayer, que era o amigão
deles. Ficaram meio desconfiadões. Mas, logo, você acaba
ganhando o respeito das pessoas.

Na Gazeta você começou a ficar conhecido? Levei


sorte de entrar na Gazeta, que era o jornal que dominava todo o
estado. E o povo dava muita ênfase no jornal. Pode ver que eles
[os jornais] não têm mais o poder que tinham. O dono do jornal
que me segurou bastante. Eu era sozinho para fazer charge aqui.
Além de charge, tinha que fazer várias ilustrações para o jornal.
Nem a charge ficava boa, nem as ilustrações, justamente porque
tinha muito desenho para fazer. Às vezes, um fulano fazia uma
matéria lá, sobrava espaço e pedia desenho para encher buraco.
Quem vê só uma pessoa fazendo, pensa: “Esse cara é fominha,
não pode ver um buraco que está desenhando”. E é ao contrário,
é complicado para quem está fazendo. O Ricardo Humberto é um
ilustrador de mão cheia. Ele é artista plástico e ilustrador. Ele era
pastapero, colava anúncio. Os trabalhos dele eram muito bons.
Como ele trabalhava aqui, briguei para ele ajudar a ilustrar.

Não tem medo que tirem teu lugar? Quando você está
numa redação, acho que as pessoas têm que estar em harmonia.
De vez em quando, sai aquela faísca ali em cima, que eu vejo, uns
troços que não deveriam acontecer. Quando ajudei que outros
ilustradores entrassem, não estou vendo o lado “Ah, o cara vai
entrar e ficar com a minha vaga”. Se acontecer, aconteceu. Já
estou além do prazo no jornal. O moleque de hoje não acha
engraçado umas coisas que o povo se partia de rir há alguns anos.
Tanto que o próprio tipo de desenho que está saindo, começou
com aquele verdão lá... o do burrinho.

Shrek? É. O Shrek detonou tudo que é tipo de desenho


do Walt Disney, que era meio água com açúcar, passarinho
cantando. É uma linguagem mais atualizada. A charge, com o
tempo, ela vai mudando. Hoje, tem uns moleques ganhando
prêmios, tem muitos salões de humor. Acho que quanto mais
ilustrador tiver, mais valoriza tanto o jornal quanto o trabalho
de quem está fazendo.

Curitibocas | 319
A charge incomoda os políticos? Hoje, é gostoso
trabalhar no jornal porque é um dos únicos meios que está
incomodando eles. A decadência na política está tão braba que
parece que eles estão todos combinados. “Hoje você rouba,
amanhã eu roubo”. Acho que a corrupção sempre existiu em
qualquer parte do mundo. Só que aqui já está em convulsão, a
febre está em 50 graus. Não sei como que anda esse país.

Como despertou o interesse pelo desenho? Saí do sítio


mesmo, de Japira, norte velho do Paraná. Comecei pequenininho.
Fazia brinquedo com barro para mim, meus primos... Lá é barro
mesmo, aqui é argila. Depois, comecei a desenhar diferente dos
outros. Comecei na escola, com 12. Aos 14 anos, pintei umas
igrejas com santos. Eu era o “Moleque Santeiro”. Aí, o pessoal
falava: “Você tem que ir para Curitiba”.

Qual igreja você pintou? Na igreja de Vila Guairá, uma


cidade próxima de Japira. Meus desenhos estão até hoje, não
desbotou nada, mas não tem muita técnica. Não é elaborado
como você vê nesses afrescos que tem nessas igrejas. É da minha
forma.

Japira tem alguma característica em particular?


Nada que fizesse com que se interessasse por outros. Meu pai
tinha aqueles armazéns que vende, por quilo, rolo de arame, lata
de querosene, sal... Eu cuidava da venda do meu pai, trabalhava
na roça, tudo... Lá, o dia dá umas 30 e poucas horas, não é como
aqui que passa muito rápido. Você tem tempo para fazer os
desenhos. Eu desenhava nos papéis de embrulho.

O que teu pai achava disso? Não entendia muito, era bem
do interior mesmo. Ficava meio brabo que gastava o papel dele.
Depois que eu era moleque, o pessoal pedia, “Desenha fulano”.
Daí começou. Na escola, comecei a me dar bem. A professora
me chamava e eu subia na cadeira e desenhava na escola. Era
aquela escola que tinha gente que vinha de longe, de até cinco
quilômetros para estudar. Escolinha de interiorzão mesmo.

Você já percebia que era bom desenhando? Todo dia


estava desenhando. Você passa aqueles que são os bonitinhos,
que as meninas ficam puxando o saco deles. “É feinho, mas

320 | Paixão
desenha bem. Desenha um cavalinho”. Eu tinha preguiça de ficar
copiando matéria. Aí, a pessoa falava:
- Desenha para mim.
- Então copia a matéria.
Era uma coisa que eu queria. Não sabia fazer outra
também.

Brincava? Muito pouco. Tinha que cuidar da venda do meu


pai, ninguém tinha tempo de brincar. Só no domingo você tinha
tempo de ir no campo chutar bola. Molecadinha desse tamanho
já está trabalhando. Acho errada essa lei estúpida que o moleque
tem que ter 16 ou 18 anos para trabalhar. Ficam assistindo
televisãozinha. Trabalhar na roça não é tão pesado como o
pessoal daqui pensa, você acostuma. O menininho lá é raquítico,
magrinho, mas tem uma força danada de tanto trabalhar.

Tem contato com o povo de Japira? Todo mês eu vou


uma vez para lá. Tenho um sítio. Vou lá para descansar mesmo.
Quando está saindo de Curitiba, você desliga esse botão de cidade.
Cheque sem fundo, conta vermelha, cheque que você soltou...
Você vai para lá como se tivesse problema nenhum. Passa a voltar
tudo isso na cabeça quando você está por volta de Campo Largo.
Ali, você começa a pensar que dia é hoje. Agora, até em Japira
estão fazendo uma biblioteca no meu nome.

Que legal. Vou ter que fazer um painel com um desenho


e um mosaico para ficar na frente. Gostei que colocaram nome
nos bairros, nome de poeta, e botaram o meu que estou sempre
em contato com eles lá. Nunca mudei. Não tem essas coisas de
ficar me olhando de longe. Vou para lá, mexo no café, gosto de
mexer na terra. Sou cidadão honorário também. É legal porque
eles estão sempre em contato comigo e eles dão valor para quem
faz o jornal, eles acompanham. O bom da charge é que é um tipo
de arte que as pessoas estão olhando todo dia.

Quando chegou em Curitiba? Estou com 54 anos,


cheguei com 17. Eu não sabia fazer nada, só sabia pintar. Vim
com uns amigos meus da cidade. Largamos em nove. E desses
nove, oito estão ricos. Só eu que continuo duro.

Como foi a mudança de sair do ambiente bucólico


para a cidade agitada? O choque foi grande porque saí de um

Curitibocas | 321
sítio singelão. Nós viemos com uma mixaria no bolso. Uns foram
morar numa pensão. Fui parar na [rua] 13 de Maio, no antro da
putaria. Morava numa pensão, tinha muita puta que morava lá.
Aquilo era chocante.

Não desistiu? Quase voltei. Não peguei serviço no começo.


Então, a grana foi acabando, a sorte que um foi ajudando o outro.
Você corria atrás de serviço, não sabia onde procurar. Ninguém
queria olhar para os meus desenhos. Não tinha informação de
onde estavam as agências e ninguém quer ajudar ninguém.
Quando você começa a ter contato com as pessoas, fica mais
fácil, só que eu me fechei.

Deprimido? Não. Pobre não tem esses negócios de


depressão. Sorte que eu não conhecia droga, não era muito de
beber e acabei não fazendo nada disso. Acho que justamente
porque eu tinha uma formação do interior.

Qual foi teu primeiro trabalho? Daí, nós viemos para cá


e um foi ser guardião. “Pô, que legal, vou ser guardião também”.
Eu não tinha estudo, só sabia desenhar. Depois, fiquei um ano na
Guarda e entrei na Polícia. Para quem é guardião, é fácil entrar
na PM. Eu era da época da rádio patrulha. Aí, comecei a fazer
ilustrações. Tinha a sala de imprensa e eles começaram a usar
desenhos meus em gráficos. Fui saindo da rua e ficando mais no
desenho. Comecei a trabalhar com desenho mecânico, desenho
de ilustrações de peças.

Para quem fazia esse desenho mecânico? Fui ser


ilustrador na Eletropar, que era uma loja muito grande de peça.
Eu fazia os livros de elétrica e mecânica para os vendedores.
Pegava a peça, o código e ilustrava aquilo. Fiquei dois anos lá.
Nesse meio tempo, comecei a conhecer uns ilustradores malucos
de agência de publicidade, peguei muita coisa com eles. Nunca
mais parei de desenhar.

Da Eletropar, para onde foi? Comecei a trabalhar numa


gráfica, a Opta. Comecei junto com o Lim, quando ele montou
uma salinha na Westphalen. Era um cubículo. Ele falou que ia
ficar rico e ficou mesmo. Sempre brinco com as pessoas: se você
quiser ficar rico, não precisa ir para os Estados Unidos. É só não
ter vergonha de trabalhar. A maioria do pessoal que sai e vai

322 | Paixão
para fora, fica acanhado de trabalhar aqui. Vai limpar banheiro
de americano porque lá ninguém conhece ele. Na mesma época
que eu estava na Opta, comecei a fazer caricaturas na Feirinha,
quando a feirinha hippie ainda era hippie, só na pracinha
Garibaldi. Era só coisa de artesanato. Não é aquela doidera que
é hoje. Conheci muito maluco que mexia com durepox, fazia
medalhão, uns negocinhos.

Você era hippie? Gostava dos hippies, mas não era hippão.
Ali, era tudo feito no muque. Hoje, virou um comércio, os caras
levam pronto para vender.

Quanto tempo ficou lá? Fiz ali um ano e pouco. Na época


era uma coisa nova. Era complicado justamente por causa disso.
Ninguém queria fazer.

Quanto custava a tua caricatura? Hoje, seria como


cobrar uns dezão.

Quanto tempo levava para fazer a caricatura? Uns 15


ou 20 minutos. Na época, não tinha muita gente desenhando, as
pessoas ficavam com vergonha de se sentar. Muitas traziam foto.
Na época, desenhava com carvão. Aí, passava uma sprayzada,
fixador e ficava firme. Era gostoso porque você ficava lá em
contato com os malucos.

Hoje, se voltasse, como seria? Ainda faço em evento.


Caricatura é meio maluca. Acho descortesia fazer caricatura de
mulher. Prefiro fazer retrato de mulher. Faço caricatura se sentir
que ela tem uma visão diferente.

Já teve problemas ofendendo uma mulher? Não


é ofender, mas pega bem na característica que a mulher
mais detesta nela. O bom caricaturista pega justamente na
característica que você é diferenciado do outro. Se você fica ali
na XV, não tem uma cara repetida passando. Treinei fazer isso
que nem aqueles juízes que tem em feira agropecuária. “Puxa
aquela vaca para lá, puxa aquela vaca para ali, tira essa para
cá”. Para o leigo é tudo igual. Como é que o cara faz? Ele cria na
cabeça um gabarito. Quando ele coloca a visão em cima, já tem
aquele modelo. Descobri que é isso que eu faço com as pessoas.

Curitibocas | 323
Olho para pessoa, está mais ou menos naquele gabarito. É muito
treino. Sou artista plástico também. Só que a pintura está restrita
a poucas pessoas.

Como foi tua carreira de artista plástico? Andei


pintando, na época em que eu estava na polícia, mas foi muito
pouco. Ganhei bolsa para estudar no Museu do Alfredo Andersen.
Quem foi meu professor foi o Andrade Lima, que tem umas
pinturas na igreja da Ordem. Convivi bastante com ele e me
passou muita coisa de artes plásticas e desenho.

Como conseguiu a bolsa? Por causa dos desenhos que


eu fiz quando era guardião. Passou uma professora. Daí, ela
acabou vendo os meus desenhos e gostou. Ela meio que me
encaminhou.

Como era o curso? Foi no estúdio do Andrade Lima. Eu


e as velhinhas lá, pintando.

O que aprendeu? Eu aprendi muita coisa em cima de


pintura, mas o que eu peguei do desenho é treino. Até o estilo
de pincelada. O jornal foi muito bom para mim porque aprendi
a ser rapidão. Sou muito detalhista.

Fez exposição de tuas pinturas? Fiz, fiz.

Qual era a tua linha? Surrealismo. Não tinha muita grana


para pintar tanto. O cara para virar um artista plástico com
nome aqui, tem que pintar muita coisa. Mas o pessoal gostava
na época.

Por que largou? Não que eu larguei, mas deixei de lado. É


como um livro que estou fazendo há três anos, arrumei patrocínio
e tudo. Não sobra tempo. Coisa tua você vai empurrando com a
barriga. Acaba fazendo uma coisinha aqui, outra ali.

Já pensou em dar aula? Dou duas aulas por mês pelo


Instituto RPC. Uma vez, eu fui dar aula, mas não tinha noção.
No meio de um monte de criançadinha, eu peguei um que tinha
orelhinha de abano e era a característica. Eu não vejo isso como
uma coisa ruim, vejo como uma característica. Fui fazer o desenho
dele. O moleque, depois, não parava de chorar, a criançadinha

324 | Paixão
Curitibocas | 325
ria. Veio a diretora e eu não tinha como falar para ele, mudar a
cabecinha dele. Depois dessa vez, nunca mais, evito ao máximo
fazer uma caricatura de um moleque ou de uma menina ali no
meio da criançadinha.

Quais são os tópicos da tua aula? Não é bem aula, eu


vou bater papo na escola. Gosto de fazer isso. A criançada vê que
é uma coisa simples, que não precisa ser uma pessoa especial.
Sempre digo que talento é você gostar da coisa. Agora, se vai ficar
bom ou não é o quanto você treina. “Ah, mas ele desenha melhor
do que eu”. É, mas ele deve ter treinado mais.

Você tem reconhecimento? Isso eu tenho. Você cria um


prestígio e isso é interessante. Não mostro muito a minha cara,
então é gostoso você chegar num lugar e as pessoas vêm e “Ah,
você que é o Paixão”. Não gosto muito do oba-oba. Gosto de ser
prestigiado, mas fico meio encabulado, acho que justamente
porque vim do sítio lá. Em 2005, ganhei aquele título que dão no
aniversário de Curitiba para as personalidades que se destacam.
Foi o segundo prêmio que eu ganho por causa das charges da
Gazeta. A outra, foi quando o Lerner ainda era prefeito. Não me
lembro o ano que foi, mas foi justamente com Artes Plásticas e
as charges da Gazeta.

Qual era sua expectativa com relação à Curitiba


quando você veio, e como é hoje? Gosto muito de Curitiba.
Mudar daqui é muito difícil. Jamais ficaria no sítio de novo.
Tenho muitos conhecidos. As pessoas confundem essa coisa de
amizade. Quem viveu em tribo, tipo de Harley, dá mais valor
para amizade. Não tenho do que reclamar de Curitiba. Fui
aceito, ganhei dinheiro, gosto de trabalhar no jornal. Não tinha
expectativa porque eu não tinha informação. Sofri muito porque
o povo era mais fechado. Curitiba melhorou muito porque,
justamente, cresceu. Hoje, achar curitibano é muito difícil. E
como é uma cidade fria, as pessoas não têm muito contato com
o vizinho. Fui morar numa rua perto do [parque] Tingüi. Já veio
um maluco que comprou a casa do lado, veio um vizinho e virou
um ponto de encontro lá em casa. Antes, era cada um para si. O
que falta muito é a pessoa começar a chegar na janela.

Ainda está morando lá? Moro lá perto. Morava no Parque


São Lourenço, daí mudei. Estou há quatro anos lá. Estou sempre

326 | Paixão
procurando mato. Viajei muito de moto, conheci o pessoal da
Boca Maldita, que era tudo motoqueiro na época. Isso nos 80.
A gente viajava muito, ia atrás dos motocross.

Você tem moto? Tive Harley por 20 e poucos anos. Vendi


faz uns dois anos. Aqui, virou modinha, virou coisa de magnata.
Tem riquinho que não é motociclista, mas compra uma Harley
para o vizinho ver que tem uma. Elitizou muito. Hoje, nos
encontros, tem uns ridículos no meio. Aí, você fala: “Pô, olha o
que virou a coisa”. Antes era meio tribo.

Fez parte de grupo de Harley? Fazia parte do Pé


Vermelho Londrina, que foi o primeiro grupo do Paraná. Depois,
fiz o Cavaleiro de aço, que não deu certo, tinha uns riquinhos no
meio, o Bode do Velho... o pessoal aqui não leva a sério. Tem
uns que entram por bonito. No nosso grupo, o cara tinha que
andar por um ano para ser aceito. Tinha uma identidade visual.
Eu tinha cabelão. Nunca gostei de ter uma imagem para chocar
as outras pessoas ou ser diferente, mas o harleiro não faz isso
para criar um estilo. É desleixado mesmo. Aqui no Brasil, ficou
muito cheio. A essência da coisa acabou. Não era uma questão
de aparecer.

Para onde já viajou com a moto? Eu fui de Harley, uma


vez, para um encontro em Mendonça, na Argentina. Ficamos
26 dias na estrada. Fomos até Viña Del Mar, Santiago no Chile,
depois região dos lagos até Porto Mont lá. Fomos até Bahia
Blanca, na Argentina e voltamos. Dez mil quilômetros.

Qual modelo de Harley você tinha? Eu tinha uma 58.


Depois, comprei uma 96. Agora, eu tenho uma XLona, mas não
me faz falta a Harley. O que me faz falta é fazer de vez em quando
uma viagem. Fazia umas três viagens bem feitas durante o ano.

Hoje, para onde iria? Eu tenho um filho de 17 e uma


filhinha de cinco anos que eu curto para danar. É difícil ficar
três dias longe. A coisa muda o foco também. Por isso que digo
que a Harley não faz falta. Antes, eu não levava muito a sério.
Casei seis vezes.

Seis vezes? Casei é modo de dizer. Fiquei junto. Eu era


motociclista, viajava bastante. Agora está bom porque estou

Curitibocas | 327
curtindo ficar em casa, não é a mulher que está me forçando.
Esse tipo de coisa me aguçava mais, não tinha a coisa de ficar
em casa. Minha TV é só para notícia. Minha mulher também é
budista e não gosta de televisão. Às vezes, minha filha vai lá, eu
paro meu filme, vou com ela depois. É meio maluco.

Fez como teu pai e botou teu filho para trabalhar


cedo? Aqui não tem jeito. Está mais difícil porque ele tem que
se reeducar para gostar de trabalhar, levantar cedo. Tem que ter
uma força de vontade violenta. Está acostumado a fazer nada e
de uma hora para outra tem que fazer.

Como você faria uma caricatura do Paixão? A gente


não é acostumado a ver a gente mesmo. Sou o mesmo cara
que está no sítio, não fico me policiando para não ser um cara
diferente. Isso eu aprendi com o tempo. Uma época, tentei ser
uma pessoa diferente. Descobri que não ganho nada com isso. É
o que aconteceu com o Lula. Criaram uma coisa para ele. Quando
ele era aquele língua afiada e não estava esquentando muito com
isso, o pessoal gostava mais dele. Mas aí, os marqueteiros criaram
para ele um Lula que fica se policiando. Não é o Lula mais. Em 20
anos de jornal, você acompanha mais ou menos a figura. Quando
envelhece, você desenha ela envelhecendo. O Sarney é mais fácil
de fazer. É um raposão. Nasceu desse jeito e não muda.

Você enrolou e não respondeu como faria uma


autocaricatura. É, né? No meu caso, eu acho que é nariz. É
uma característica da nossa família.

Como profissional, como se define? Acho que desenho


bem. Bem melhor do que quando eu entrei no jornal. O humor
nem tanto, não sou bom humorista. Sei contar piada, mas passar
isso para o papel... Algumas são boas, algumas eu encho lingüiça.
Por isso que eu aliso bastante o desenho para o leitor se sentir
valorizado. Evito um pouco de pôr legenda para ele participar. Se
eu fugir da política, eu não sei fazer piada de outro assunto.

Esporte não renderia boas charges? Ia demorar para


pegar. Esses dias, por exemplo, eu ia fazer o Parreira enfrentado
o Felipão. Mostrei para o Nelson, ele não entendeu. Depois, que
eu descobri que o Parreira nem é mais o técnico. Sorte que eu
acabei não fazendo. Uma vez, eu fiz o Gorbachev. Fiz um “Tá

328 | Paixão
russo”. Não lembro o que eu fiz de besteira, se eu errei nos dois
“s” ou coloquei um “ç”.
- Está louco rapaz, o que você fez aqui?
- É porque a coisa está preta mesmo.

Qual é o cúmulo da miséria? É uma criança mexendo


num latão de lixo.

Onde você gostaria de morar? Curitiba.

Qual é o seu ideal de felicidade na Terra? Eu


sou feliz, não preciso mais. Sempre falo que se a vida
melhorar, estraga.

Para quais erros você tem maior tolerância?


Tem vários. Não tem como não pensar, hoje eu tolero
muito mais.

Quais obras literárias você prefere? Zen,


manutenção de motos.

Qual é seu personagem histórico favorito? Chico


Anysio.

Seu pintor favorito? Salvador Dali.

Seu músico favorito? Chico Buarque.

A qualidade que prefere no homem? Respeito.

A qualidade que prefere na mulher? Respeito.

A virtude que prefere? Ser ele mesmo.

Sua ocupação favorita? Motocicleta.

Quem você gostaria de ter sido? Eu mesmo.

O que você mais aprecia nos amigos? Você pode


contar com o cara qualquer hora.

Seu pior defeito? Não ter estudado muito.

Curitibocas | 329
Seu sonho de felicidade? Não tenho um sonho. Tudo
que vem é lucro.

Qual seria sua pior desgraça? Perder uma pessoa


bem próxima.

O que você gostaria de ser? Nunca pensei.

Sua cor favorita? Cinza.

A flor que mais gosta? Lírio.

Qual pássaro preferido? Muitos, mas favorito é o


canarinho-terra.

Seus autores favoritos em prosa? José Simão é


um.

Seus poetas favoritos? Fernando Pessoa.

Seus heróis na vida real? Guga.

Seus nomes favoritos? Betina, Guilherme. São meus


filhos.

O que você detesta? Prepotência de uma pessoa.

O feito militar que mais admira? Nenhum.

Qual dom da natureza você gostaria de ter? O


dom da resistência.

Como gostaria de morrer? Isso eu não penso.

Seu lema? Sempre em liberdade.

330 | Paixão
Curitibocas | 331
Menos um curitiboca

Andressa

D
arcy tinha mais quatro horas de Curitiba. Tempo
suficiente para saudar Andressa e Bruno. Comprou um
jogo de panos kilt, na feira da Osório, para dar de presente
aos seus melhores amigos de Curitiba.
Havia fila para entrar no elevador. Apenas um estava em
funcionamento. Darcy admirou a organização dos curitibanos.
Se fosse na sua cidade, estariam todos perto da porta tentando,
educadamente, subir antes dos que chegaram antes.

332
No apartamento, uma cena típica. Andressa fumando e
pintando - atividade complementar do ato de tragar cigarros.
Bruno dirigia no sofá reclamando da demora dos motoristas em
arrancar no sinal verde.
Abraço em Bruno e um pedido de conversa privada com
Andressa. Como Bruno ocupava a sala, as duas opções restantes
eram o banheiro ou o quarto. Optaram pelo segundo.

Gostaria de ter uma conversa franca. Fiquei aqui


por tanto tempo e sei tão pouco sobre você. A primeira
pergunta é... Esta noite, pergunte algo que seja respondido no
mundo sem palavras.

No que você trabalha? Onde eu ganho dinheiro não


importa. Sou artista, Darcy. E não me envergonho da fragilidade
que me acompanha. Sou artista inata, vê? Nunca serei nada mais
que artista de todas as formas.

Por que não quer se abrir comigo? Comece a aceitar


as coisas. Tudo tem que ter uma resposta para você? Quantas
coisas passam diante dos nossos olhos que não sabemos o
porquê. Porquês levam a mais porquês. E desse jogo eu já estou
desgastada. Quer uma carona até a rodoviária?

Foram no “fuque” (sic) verde de Andressa até a rodoviária.


Chegaram meia hora antes da partida do ônibus. Conversaram
sobre amenidades pouco pessoais. Darcy tentou falar mais de si
para Andressa, mas esta parecia pouco aberta no momento. Por
telefone, quem sabe?
A despedida não foi de toda fria, pois encostaram os braços
em volta um do outro por cinco segundos. Foi bom.
No ônibus, refletia sobre a jornada em Curitiba. Os
diálogos lhe deram uma visão bastante completa da cidade.
Algumas contradições ainda estavam inconclusas, mas isso não
incomodava.
Passaram alguns quilômetros e deu-se conta do cansaço
físico advindo dessa semana e pouco de Curitiba. Um sentimento
de nostalgia tomou conta. Sempre acontecia isso quando deixava
lugares ou pessoas. No entanto, sentiu-se bem de voltar a casa.
Aquelas ruas, aquela comida, aquelas pessoas...
Deu uma última olhada a Curitiba. Decidiu não pensar mais
na cidade por algumas horas e, lentamente, fechou os olhos.

Curitibocas | 333

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