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DIÁLOGOS URBANOS
Governador
ROBERTO REQUIÃO DE MELLO E SILVA
Vice-Governador
ORLANDO PESSUTI
Membros Efetivos
Membros Consultores
CURITIBOCAS
DIÁLOGOS URBANOS
Governo do Paraná
Secretaria de Estado da Cultura
Curitiba 2008
Diagramação e Editoração de Imagens
Eliseu Tisato
Fotos
Bruna Bazzo
João Varella (capítulo 7)
Capa
Bruna Bazzo e Melisa Martinez
Revisão
Rochele Totta
Segunda edição
Revisão
Cíntia Maria Braga Carneiro
Finalização gráfica
Adriana Salmazo Zavadniak
ISBN 978-85-89696-28-9
Esclarecimento
Todas as entrevistas se deram no segundo trimestre
de 2007 e não refletem necessariamente a opinião dos
autores.
Índice
Capítulo 1
Esterco na bota Ivo Rodrigues
Pág. 09
Capítulo 2
Olha a cobra, aqui tem Borboleta 13
Pág. 31
Capítulo 3
Caminhante Plá
Pág. 47
Capítulo 4
Mas que existem, existem Mila Behrendt
Pág. 65
Capítulo 5
Sem raízes Joba Tridente
Pág. 83
Capítulo 6
Aroma da dor Edilson Viriato
Pág. 103
Capítulo 7
Fundamentalismo futebolístico Suk
Pág. 121
Capítulo 8
Um anjo que luta Efigênia Ramos Rolim
Pág. 139
Capítulo 9
Mudança no hábito Irmã Custódia
Pág. 157
6
Capítulo 10
Leitor da urbe Key Imaguirre
Pág. 175
Capítulo 11
Quem arte quer casa Didonet Thomaz
Pág. 195
Capítulo 12
Um pastel na correria Paulo Cezar Rodrigues
Pág. 213
Capítulo 13
A redenção do pipoqueiro Valdir Novaki
Pág. 231
Capítulo 14
Leão na savana Oilman
Pág. 253
Capítulo 15
Dentro da caixinha Hélio Leites
Pág. 273
Capítulo 16
No outro lado da ponte Murilo Mendonça
Pág. 293
Capítulo 17
Da escolinha do interiorzão Paixão
Pág. 315
Curitibocas | 7
Esterco na bota
G
olpeou suavemente o vidro com sua testa três vezes. O
ônibus que deveria estar do outro lado havia
sumido. Tinha a impressão de ter passado cinco
minutos no banheiro da rodoviária. O velho relógio de pulso
acusava quatro vezes este tempo. Mais um golpe no vidro. Manteve
a cabeça apoiada ali por algum tempo.
Perguntou para um gari se havia visto o ônibus. A resposta
confirmou a suspeita de que havia permanecido fora do veículo
por mais tempo do que deveria. Agradeceu ao servidor público
vestido de laranja pela má notícia.
Dirigiu-se em busca do guichê da Viação Citram. Fechado.
Uma folha A4 posta na frente da janela fechada indicava: “VIAÇÃO
CITRAM Aberto SEG-SEX 7H ÀS 20H / SÁB 7H-23H / DOM
6H-19H”.
Eram 2h31 da manhã. Indagou novamente o gari para
descobrir qual era o dia da semana. Depois de um pequeno debate
sobre quando os dias mudam – concluíram que as datas avançam
no calendário após a meia-noite, e não quando o indivíduo acorda
–, concordaram que eram as primeiras horas de uma terça.
Resolveu sentar em um banco para passar de maneira
cômoda as quatro horas e meia que faltavam para a abertura
do guichê. Apreciou a vista que dava para um estacionamento
e algumas árvores. Leu alguns cartazes que divulgavam as
belezas da cidade. Tratava-se da “Capital Ecológica”, segundo a
publicidade. Era a primeira vez de Darcy em Curitiba.
Curitibocas | 9
Embaixo do banco havia uma revista amassada. Um provável
futuro alvo do gari. A capa estampava um sujeito de turbante
sob um fundo de estrelas. Pouco promissor para os padrões
de Darcy. Começou a folhear a revista de trás para frente. Em
situação normal, os assuntos tratados pela publicação seriam
ignorados. Na presente, até leu alguns parágrafos sobre pedras
com poderes relaxantes, horóscopo, meios para manter uma
alimentação saudável e perguntas que revelam a alma de uma
pessoa. O relógio avançara pouco. Colocou a revista no bolso
da jaqueta.
Só então Darcy se deu conta da situação. Estava sem as
malas. Fechou os olhos com fé e revisou duas vezes cada bolso.
Encontrou chicletes, uma carteira com vinte e três reais, algumas
moedas, camisinhas, lenços aromatizados e um cartão de telefone
público com cinco unidades. Darcy sofreu dois furtos em dois
anos. Acreditava que seus documentos, dinheiro, celular e
canhoto da passagem estivessem mais seguros junto de sua
bagagem de mão.
Com raiva de si, resolveu caminhar. Sem rumo. Adotou o
critério de seguir pelas ruas com nomes iguais aos de sua cidade.
Encontrou um bar cinqüenta minutos depois.
Sentou no balcão. Viu de relance, em uma cadeira atrás, um
cara que parecia saído de algum filme de época. Pele pálida de
quem não vai para praia há um bom tempo, capa negra perfeita
para um velório e uma cartola. Darcy só tinha visto uma cartola
no circo que se instalava na cidade anualmente. O nariz pontudo
e o olhar firme reforçavam o ar aristocrático do ser.
Alguns metros ao lado, uma banda desmontava os aparatos.
Guitarra, violão, baixo e uma micro-bateria. O único que não
portava instrumentos era um cabeludo de risada fácil. Pela voz
grossa e alta que usava para contar piadas, Darcy inferiu que era
o vocalista. Um gurizão se aproximou dele.
- Pô, mas não vão tocar mais um?
- Você me desculpa, mas nós já tocamos três “mais um”. Agora
nós vamos encerrar –, respondeu o barítono, sorrindo.
- Mas eu queria que encerrasse com uma música própria da
banda.
- Você veja, encerramos com “Unchain My Hearth”, do Joe
Cocker. Tentamos acabar com uma música de alto astral, para
cima, para que as pessoas levassem uma boa lembrança, uma
recordação nossa, da alegria nossa de tocar.
- É, mas não pode ser.
10 | Ivo Rodrigues
- Você me desculpe, mas eu vou sentar ali.
O cabeludo veio para a mesa do misterioso homem de negro.
Uma menina meio embriagada se aproximou.
- Por que você não tocou mais um?
- Eu estava explicando ali para o meu amigo, você deve
conhecer ele, a razão.
- Ah, mas não pode. Uma pessoa como você não pode.
- Quer saber uma, comadre? Quem não gosta que vá para a
puta que o pariu.
A menina ficou com os olhos vermelhinhos.
- Você não é a pessoa que eu esperava –, disse enquanto
chorava copiosamente.
- Meu amor, o que eu posso fazer por você? Gostaria tanto
de ser seu amigo...
- Não tem mais o que explicar. Acabou.
A menina foi embora. Darcy segurou o ímpeto de se virar
para a cena. De costas, escutou o diálogo, transcrito abaixo,
entre o misterioso homem de negro e Ivo Rodrigues, vocalista
da banda Blindagem:
Curitibocas | 11
- Porra, morreu o Ivo, pois ele estava mal quando saí de lá.
Foi na igreja e mandou rezar uma missa para mim. Quando
ele me viu, ficou branco. “Porra, pensei que você tinha morrido,
mandei rezar missa para você”.
12 | Ivo Rodrigues
sanatório. Quando gravamos o primeiro disco, todas as músicas
eram minhas. Eu era o único que teria a carteira da Sicam –
Sociedade Independente de Cantores e Autores Musicais. Os
outros pediram para colocar o nome deles numa das músicas
como parceiro para que pudessem ter a carteira da Sicam e
também receber direitos autorais, por todo esse trabalho que
fazíamos juntos. Achei legal. Peguei e botei o nome do Marinho
em uma música minha. Coloquei o nome dele em “Cheiro de
Mato”. Ganhei um bom dinheiro só com essa música. O Marinho
nem sabia desses direitos autorais que ele tinha para receber em
São Paulo. Liguei para a Sicam.
- Quanto tem direito Mario Leite Barros Filho?
- Tem aqui oito mil reais.
- Se eu levar uma procuração dele, vocês me dão esse
dinheiro? Aqui é Ivo Rodrigues, também sou filiado.
- Não tem problema.
Ele me deu a procuração. Fui a São Paulo, peguei os oito pau.
Encontrei ele na rua.
- Marinho, tenho um dinheiro para você. É a última vez que
eu vou fazer alguma coisa por você. Pode muito bem com esse
dinheiro comprar uma bateria, voltar a trabalhar, alugar uma
casinha, comprar uns móveis.
A grana seria uns 20 pau hoje. Ele falou:
- Não Ivo, deixa comigo. Agora eu sei.
- Você não quer fazer o seguinte? Leva quinhentão para você
comprar umas coisas para tua casa e deixa 7.500 na casa da minha
mãe. Quando tiver um negócio bom para comprar uma bateria
usada, a minha mãe vai com você.
Minha mãe gostava muito dele. Aceitou. No outro dia, foi na
casa da minha velha e pegou tudo. Comprou tudo em crack e foi
para zona. Nunca mais ajudei ele. Fiquei sabendo que ele estava
numa decadência tão ruim que não tinha o que comer. Foi pegar
comida no lixo, um rato tinha mijado. Morreu daquela doença
que pega no xixi do rato [leptospirose].
Curitibocas | 13
Então foi para isso aquele show de 25 anos... Foi.
Estava fudido. Precisava de sangue. Foi feito um movimento na
cidade e consegui. Quem vai ser transplantado precisa arrumar
cem litros de sangue para a cirurgia. Sou uma pessoa popular, até
tenho certa facilidade para conseguir isso. Mas eu fico pensando
naqueles caras tudo fudido, vêm lá do interior com a Bíblia
debaixo do braço. O que vai fazer? Não tem um banco de sangue
para assaltar. Cem litros de sangue sai 3.000 reais no mercado
negro. Sabia disso? É um protocolo estranho esse.
14 | Ivo Rodrigues
Como se conheceram? Tinha um amigo, Toninho Martins
Vaz, que eu conhecia muito antes de conhecer o Leminski. Ele foi
o biógrafo dele. Nós fazíamos muita loucura, íamos para a praia
juntos. Coisa da juventude efervescente. Eu tinha um grupo,
chamava-se Som Fúnebre, especializado em cantar em velórios,
enterros e guardamentos. Era o Carlão, que depois viria a ser o
baixista d’A Chave; o baterista era quem estivesse no lugar, e na
guitarra o Rodney, que está fora do Brasil. Nós inventávamos
músicas na hora, era aquele período louco. A platéia toda louca
também. Mas daí nessa época o Martins Vaz me levou na casa do
Leminski. Era lá perto do Atlético. Fomos lá. Foi amor à primeira
vista. Sem sexo, claro. Ficamos muito amigos. Não parei de ir
na casa dele, e ele vinha na minha. Fiquei muito amigo da Alice
[Ruiz] e dos filhos deles.
*****
A conversa é interrompida. Um polaco com as bochechas
rosadas se aproxima.
- Ivo, sempre quis falar contigo. Não estou atrapalhando?
- Como vai você? Eu estou aqui colaborando com uma
entrevista...
- Só quero fazer uma pergunta. Eu tenho 52 anos, só um lance.
Em 1970, fui em um show em Londrina que era com você, mas não
era o Blindagem. Quem era?
- A Chave.
- O Chave, isso.
- Foi a banda que antecedeu o Blindagem.
Curitibocas | 15
- Eu sou daquele tempo, eu vou sempre nos shows do
Blindagem
- Quero lhe pedir desculpa, mas estamos conversando.
Amanhã de noite eu me apresento e aí conversaremos com
calma.
- Claro, claro... nos vemos à noite então, um abraço.
*****
O que foi A Chave? A Chave foi a primeira banda de rock
do sul do Brasil. Acabou em 76. Era o Paulo Teixeira, que toca
no Blindagem, eu e mais dois. Eu compunha muitas músicas
em parceria com o Leminski, mas era estritamente rock’n’roll,
só cacetada. Tinha um monte de outras músicas que eu cantava
desde guri, samba-canção, bolero, tango. Ouvia música 20 anos
antes, tinha uma formação bem diferente da deles, que tinham
conhecido o rock há pouco tempo. Em 1972, comecei a fazer
reggae, que não tinha no Brasil. Eu fiz [canta] “Sou legal, eu sei
/ Agora só falta convencer a lei / Sou real, eu sei Agora só falta
convencer o rei”.
Fiz baladas também. Mas não havia interesse d’A Chave.
E daí um tempo juntos, aquela encheção de saco. Tinham
personalidades muito distintas ali. Um era de família tradicional
de Lisboa, que veio com todo aquele ranço aristocrático europeu.
Aquilo já era chato de agüentar. O Carlão, leonino, o rei da
floresta, era o bom, era ele que falava mais alto. Paulinho, músico
fenomenal, conheço poucos guitarristas como ele. E eu que
cantava, que fazia as músicas.
16 | Ivo Rodrigues
São Paulo, tinham conhecido um cantor jovem, um tal de Celso,
guitarrista do Sá, Rodrigues & Guarabira. Tinha um timbre de
voz parecido com o meu. Trouxeram para Curitiba, ensaiaram
com ele, ficaram boas as músicas. Um dia estava no Bife Sujo,
um boteco das redondezas, e fomos apresentados. Eu não tinha
ficado de mal com ninguém. Ele falou:
- Ivo, preciso de você para aprender como é a tua interpretação
das músicas.
- Não tem problema nenhum.
- Você não quer ir no ensaio amanhã? É lá no centro de
criatividade.
Chego lá, “Vamos passar aquela para o Celso ver como é
[grita] BLÉÉÉÁÁÁAAAAAAAHHH”. Aí o Celso chegou no canto
e confessou:
- Acho que não vai dar. Ivo, eu sou cantor de estúdio. Você é
cantor de banda de rock.
- Está bom, Celso. Pode ficar com a gente mais uma semana
se quiser.
Foi embora. Hoje ele é conhecido como Celso Blues Boy
e é meu grande amigo. Celso Blues Bêbado. Aquilo bebe que
nem um animal... Quando ele está no palco tem um segundo
dele que não aparece, está todo de preto com um balde. Fica ali
esperando. A música não pára. O solo rolando, ele faz um sinal.
Vomita e volta.
Curitibocas | 17
Do padrinho de vocês. Ah, sim. Esse cara nos colocou
no casting da Continental/Chantecler, que, até então, era uma
gravadora especializada em música sertaneja. Ele meio que
mandava lá. Aí eles nos contrataram e quiseram que a gente
levasse mais para esse lado de terra. Não que a gente fosse fazer
música sertaneja. Nosso mote, na época, era a ecologia. Daí
“Marinheiro”, da Continental/Chentecler tocou e chegou em
quarto lugar em São Paulo. Até então, nenhum grupo de música
deles tinha tocado em FM.
18 | Ivo Rodrigues
Curitibocas | 19
escritório?”. Marcamos o horário, chegamos lá, Manoel Poladian
falou para nós:
- Está feito, vocês vão ser meu novo processo.
- É verdade? - digo.
- É verdade. Eu quero preparar vocês para ir no Rio de
Janeiro. Voltem amanhã de manhã, falem com a minha secretária
para ver as passagens e nós já vamos ver um apartamento para
vocês lá e vamos começar a tratar da gravação de um novo LP,
com as músicas que eu vou escolher.
Saímos dali nas estrelas. Só que, claro, apesar do Roberto
Menescal ter ligado, Poladian não era puta nova. Em Curitiba,
a nossa fama sempre foi a mesma: maconheiro, burro e sem-
vergonha. Ligou para o Ovelara Amorim, um empresário que
eu tinha mandado tomar no cu um mês antes. O Manoel foi
nele pedir as referências. No outro dia, chegamos às 10h no
escritório dele.
- O seu Manoel teve que sair. Foi para a Europa.
- Foi para Europa? Ele falou que você ia nos receber, que
íamos acertar tudo para ir para o Rio de Janeiro.
- Não falou nada, não.
- Quando ele volta?
- Não sei, ele tem muitos assuntos.
Saímos dali, cara... Eu saí para um canto, fui para um
restaurante almoçar. Depois liguei para o pessoal para nos
encontrarmos e voltar para Curitiba.
20 | Ivo Rodrigues
essa preocupação. Se todos do Blindagem fossem como eu,
estaríamos todos riquíssimos, com trabalho reconhecido nacional
e internacionalmente. Isso me tirou um pouco o tesão.
Mesmo assim, Blindagem foi a única banda de
Curitiba a alcançar sucesso nacional. É. Não me lembro de
nenhuma outra banda ter aparecido em nível nacional. Ficamos
em São Paulo e Rio durante muitos anos. Ninguém tinha mulher,
filho, não tinha nada. A gente estava à vontade no mundo.
Acredito que isso seja um fator para a gurizada sair daqui e ir
para São Paulo, apesar de ser bem próximo. São Paulo e Rio são
as vitrines do Brasil que você tem que aparecer.
Curitibocas | 21
tinha uma namorada, pobretona como eu, a Suka. Um dia ela
ficou grávida. Eu disse, “Seguinte ó, acho bom você vir morar
comigo”. Eu era filho único e morava na praça Osório, na Vila
Nova. E eu falei para o meu pai:
- Vou trazer minha namorada que ela não tem para onde ir.
- Tudo bem, se virem aí - disse ele.
Ela foi para lá e nunca mais saiu. Meus amigos da banda,
todos eles se separaram, casaram de novo, se separaram,
casaram de novo. Eu que nunca me casei, nunca me separei e
sou apaixonado pela minha mulher. Moro eu, minha mulher e
meus dois filhos na nossa casa.
22 | Ivo Rodrigues
Que idades eles têm? Meu filho tem 24 e a minha filha
tem 26. Meu filho não quer saber mais de estudar, é baterista.
Ele se dedica à música dia e noite. Ele já tocou conosco. Paulinho
Teixeira também tem filho músico, o Gabriel, grande guitarrista
do Black Maria. Os dois filhos do nosso baixista, o Paulo Juk.
Um é um grande vocalista, o outro um guitarrista também
muito bom.
E tua filha? Ela é DJ. Não sei da onde ela tirou essa. Essa é
demais, porque eu não engulo esses troços. Ela diz:
- Pai eu vou tocar em tal lugar.
- Você aprendeu a tocar algum instrumento?
- Não, eu sou DJ. Eu toco os discos lá.
- Porra, mas que merda isso.
É muita cara de pau. Bota os discos e diz que ela toca. E os
caras curtem, é o maior sucesso. É bom até para o cara que é
dono de bar, em vez de gastar uma grana com uma banda, põe
um mané lá pondo disco.
Curitibocas | 23
de coisa, como, por exemplo, a harmonizar vozes. Nessa época,
formei quartetos que só cantavam hinos de louvor ao senhor.
Quarteto Hosana, de Hosanas nas alturas. Era uma loucura. As
harmonizações de vozes que fazíamos, eram tipo Crosby Stills
& Nash. Existiam quatro personagens: baixo, barítono, segundo
tenor e primeiro tenor, acompanhado por um piano.
24 | Ivo Rodrigues
chegamos primeiro, todo mundo de roupa no palco. Falamos
assim: “Agora, vamos fazer o nosso show diferente hoje, para
vocês. Vocês vão ter novidades, aguardem”. Fomos lá para trás,
tiramos tudo e fomos tocar pelados. As meninas ficaram loucas.
Queriam pular no palco, queriam nos agarrar, pegar a guitarra.
E nós tocando sem parar o som. De repente, escutei um apito.
Polícia, tudo entrando. Levaram todo mundo e nós também.
Fomos para a delegacia. Aí ficaram uns 20 dali. Pegaram tudo
chapado, com bagulho no bolso. Nós não tínhamos bolso.
Curitibocas | 25
nuvens negras e ameaçadores. É verdade, também, que o pneu
sobressalente também estava furado. But, despreocupados e
entretidos na companhia um do outro, não estavam a fim que uma
tempestade qualquer viesse estragar aquela noite. Era uma noite.
Mal sabiam eles coitadinhos, que seria uma noite da qual não se
esqueceriam por muitos e muitos anos”. O Brad era o Paulinho,
que aparecia pelado na peça. A Janet era uma das bailarinas. Aí
o pneu do carro estourou. Eles foram em um castelo pedir abrigo.
Vem o mordomo, quem fazia era o Luis Mello, da Globo. Naquela
época ele era nem Mello nem merda nenhuma. Mas sempre um
grande ator. Aí entram no castelo, está lá o mestre, o Vampiro.
Começa a música e todo mundo dançando. Os empregados
do castelo, a babá, que já morreu também, que contracenava
comigo. Eu fazia o Riff Raff, o filho do vampiro que deu errado,
que nasceu num laboratório. Tudo torto. Eu queria comer a babá,
uma gordona. Ela saía com os seios de fora. A platéia se mijava
de rir. Eu pegava nos peitos dela cantando.
26 | Ivo Rodrigues
responder isso aí. Acho que é muita tristeza, a dor, a
melancolia, a indisposição, a falta de prazeres.
Curitibocas | 27
Seu pior defeito? Sincero demais. Pelo fato de eu ser
de peixes, o simbolismo de peixes é um para lá e outro
para lá. Quer dizer, não tenho opinião própria. Peixes é a
base do zodíaco. É a sabedoria em si e ao mesmo tempo
é a burrice, sem ser declarada burrice, entendeu? Burrice
misturada com pureza. É mais para burro que para puro.
A pureza em excesso leva para isso.
28 | Ivo Rodrigues
O feito militar que mais admira? Posso citar dois?
Vietnã e a invasão da Baía dos Porcos, porque os EUA se
foderam. E o terceiro, agora no Oriente Médio.
Curitibocas | 29
Olha a cobra, aqui tem
Borboleta 13
D
arcy permaneceu de costas durante todo o diálogo.
Reconheceu de imediato as últimas 30 perguntas.
Eram as mesmas que havia encontrado na revista
da rodoviária. Enquanto os dois se despediam, Darcy abriu
a amassada revista e releu a matéria. Segundo a publicação,
as questões revelavam as características da alma de quem as
respondia. Antes de formular, haveria de se estabelecer um
“vínculo de empatia e confiança”. A matéria informava que as
perguntas foram elaboradas depois de muita pesquisa.
Curitibocas | 31
Era um privilégio ter escutado a conversa com quem
aparentemente era um ícone da cidade. E que vozeirão. Darcy
gostaria de estar no lugar do homem de preto.
Estava sem sono. Dormiu a maior parte da tarde e metade
da madrugada no ônibus. Pagou a conta – R$ 3,50, um centavo
por mililitro – e seguiu flanando pelas ruas que achava mais
interessante. A caminhada amenizava o frio matutino.
Já que estava em Curitiba, resolveu conhecer a famosa Rua
XV de Novembro, tão propalada nas publicidades turísticas. Os
mapas dos pontos de ônibus serviram de guia.
No caminho, passou por diversas praças. Em uma delas,
encontrou um jornal do dia anterior. Entreteve-se com as fotos
e sorrisos forçados do jet set. Apesar de não freqüentar a alta
sociedade, Darcy tinha uma espécie de prazer sádico ao ver a
elite retratada de maneira tão cafona. Fora isso, chamou-lhe a
atenção uma charge. Ela retratava de maneira bem-humorada a
corrupção dos mandantes do país. Mais uma vingança pessoal.
O resto não interessava. Darcy parou com o vício de informação
há dois anos. Não entende a necessidade da notícia diária,
muito menos do tempo real da internet. Prefere as revistas de
consultório médico e livros.
Teve vergonha de jogar no chão o jornal velho. Curitiba era
a cidade mais limpa que conhecera. Encontrou uma grande lata
de lixo, com quatro bocas de diferentes cores. Quanta burocracia.
Resolveu ir até uma pequena lata que aceitava todos os tipos de
dejetos.
Finalmente, chegou ao famoso Calçadão da XV.
Lamentavelmente, não era época de natal. Sempre quis
conhecer o coral infantil que se apresentava no local. Caminhava
vagarosamente, ao contrário do ritmo da maioria dos transeuntes.
Olhava languidamente as lojas que recém se abriam. Sua
cabeça estava um pouco afetada pela noite mal dormida e pelo
inesquecível diálogo que não teve.
“Olha a cobra, aqui tem”, irrompia uma voz potente e
melodiosa na esquina da XV com Monsenhor Celso, diante de
um banco. A autora estava sentada em uma cadeira de plástico,
com os lábios pintados, chapéu panamá branco e uma camiseta
laranja sem mangas. “Cobra, borboleta e jacaré”, anunciava, em
nova demonstração de seu reverberante jingle.
“Essa já deve estar rica”, comentava um jovem engravatado
para outro, que carregava um bilhete de loteria. “Faz anos que
32 | Borboleta 13
eu compro bilhetes com a Borboleta 13. De bilhete em bilhete,
devo ter dado um prêmio de loteria para ela”.
Da outra esquina, Darcy observava. Era notório o carisma de
Borboleta 13. Conversava com todos que passavam, para dar um
“bom dia” com um grande sorriso. Outra vendedora se esmerava
em atrair clientes com uma cantoria similar. Mas era como um
frágil pardal diante de um poderoso azulão na alvorada.
Darcy aproximou-se de Borboleta. Ofereceu um café.
Borboleta, frente ao inesperado convite, respondeu:
- Só tenho que vender mais estes três aqui. Daqui a pouco
vai chover. Aí a gente conversa, pode ser?
Darcy voltou para onde estava, no outro lado da esquina.
Aguardou, pacientemente, a venda dos três últimos bilhetes de
bilheteria. Levou menos de 15 minutos.
- Vamos a esse lugar que é bom. Gosto dos sucos daí.
Caminharam até um restaurante árabe fast-food. A
convidada pediu um suco de laranja. Cinco minutos depois,
começou uma garoa, que se transformou em chuva e se dissipou
em meia hora.
Curitibocas | 33
rouca. Para cuidar, gosto de usar limão com sal. Às vezes, ponho
limão, sal, vinagre, coloco em um copo com água e gargarejo. O
médico diz que a minha garganta está ótima, a única coisa que eu
tenho problema é das vistas. Tenho que usar óculos para ler.
34 | Borboleta 13
Como foi o começo? Eu comecei ali, de pé, no canto do
Banestado. Sempre naquele canto, toda a vida. Quando eu vim
de Guarapuava, não tinha onde arrumar dinheiro. Aí eu vi uma
mulher com uma placa de bilhete para vender e perguntei para
ela: “Você confia em mim? Me dá dois pedacinhos de bilhete
para me ajudar. Estou com as crianças aqui, eu quero aprender
a vender bilhete”. Aí ela me ajudou. Dividiu a marmita com as
crianças e eu comecei a vender bilhete para ela. Até que aprendi.
Aí fui morar no porão da casa dela. Ela me deu a maior força.
Trabalhei para ela por quinze anos. Hoje, parou de vender bilhete.
Não me esqueço que foi a pessoa que dividiu a marmita com os
meus filhos.
Curitibocas | 35
não é de hoje que eu sou assim. Eu aprendi a ser assim. Sempre
trato bem os clientes. Não gosto de pegar no pé deles. Outras
vendedoras tentam vender na marra. A pessoa compra se está
com boa vontade, não adianta insistir. Eu fico no meu cantinho.
As pessoas vêm em mim. Sempre fui assim.
36 | Borboleta 13
sonhe, consiga que você vai conseguir”. Um mês depois, eu ganhei
o primeiro prêmio da loteria federal. Deu 10 mil cruzeiros. Era
uma casinha de madeira simples.
Curitibocas | 37
Trabalha nos domingos? Não. Nunca trabalhei. Domingo
eu lavo a minha roupa, dou uma ajeitadinha na casa. Gosto de
ver as curiosidades do canal 4 [GPP]. Gosto de ver coisa boa. Se
vejo coisa triste, choro junto. Sou muito emotiva.
38 | Borboleta 13
Curitibocas | 39
complicações pela minha voz. Os fiscais mandavam eu ficar
quieta, algumas pessoas reclamavam. Tive muito atrito, mas isso
passou. Hoje não tenho queixa. Em Curitiba não trabalha quem
não quer, quem não tem vontade de viver. Serviço tem até para
vender papel. Curitiba dá muita chance. Não tem chance quem
não gosta de trabalhar.
40 | Borboleta 13
uma comida gostosa. Domingo vem todo mundo em casa comer
a comida da mama.
Curitibocas | 41
Que profissão eles tem? Um é caminhoneiro, outro é
pedreiro, outro é eletricista da Eletrosul, o outro é conferente
de loja. Dois deles são pedreiros. A menina trabalha de diarista
e está estudando para ser uma profissional. Ela quer entrar em
uma empresa de montagem de computadores. O marido dela já
trabalha lá dentro, na Positivo, em montagem de móveis. Tem
um que está para tirar um curso de segurança, eu vou ajudar.
Ele já tirou, mas tem que fazer reciclagem.
42 | Borboleta 13
Qual é seu personagem histórico favorito? Eu
gostava daquele presidente que congelou tudo, o Sarney.
Se o Brasil congelasse tudo e deixasse só os salários
subirem, as coisas melhorariam 100%.
Curitibocas | 43
Seus poetas favoritos? Não tenho.
44 | Borboleta 13
Curitibocas | 45
Caminhante
Plá
C
om satisfação pela conversa, Darcy não sentia mais os
efeitos do cansaço. Porém, era o suficiente. Chega de
Curitiba, hora de ir à rodoviária buscar seus pertences.
A garoa voltara.
No caminho, achou muito inteligente a idéia de uma grande
ciclovia no meio do que aparentava ser uma avenida importante.
De vez em quando, passavam ônibus compridos, articulados
como sanfonas. Os ciclistas não se incomodavam.
A 500 metros da rodoviária, três senhores com mais de 50
anos estavam sentados em um banco no centro de uma praça.
Reclamavam de tudo. Com especial ênfase no futebol e na
política. E porque não mais um papo antes de ir embora?
Curitibocas | 47
Darcy se aproximou. Colocou a mão no encosto do banco.
Um idoso se inclinou para ver quem se aproximava. Por trás
de grandes óculos marrons, Darcy sentiu que os olhos dele
acusaram, julgaram e condenaram. O movimento foi seguido
pelos outros dois.
Seguiram conversando entre eles como se Darcy fosse um
dos pombos da praça. Dois longos e intermináveis minutos
passaram entre o momento que Darcy apoiou-se no banco, até
que resolveu movimentar-se. Esta resolução se deu depois de
Darcy testemunhar a ousadia dos velhos ao abordar uma jovem
moça de aspecto interiorano. Disseram coisas que fizeram a
jovem apurar o passo e suas bochechas rosarem.
Foi direto até a loja da Citram. Um rapaz de camisa, gravata,
sotaque carregado no “R” e suor abaixo das axilas era o único
funcionário. Outros quatro guichês da empresa estavam vazios.
Darcy entrou na fila, atrás de seis clientes.
Darcy explicou que desceu do ônibus em Curitiba achando
se tratar de pausa para lanche. Suas malas foram com o ônibus
até sua cidade natal.
- Desceu do ônibus em Curitiba, mas não era para descer?
Afirmativo.
- Aí você perdeu as malas?
Sim, era o que acabara de dizer.
- Eu peço que você fique no aguardo um minutinho que eu
vou estar verificando com a central a destinação de sua mala,
ok?
Enquanto ligava, o atendente emitia passagens. Entre um
“ahã”, “certo” e “ok”, ele desligou o telefone. O sistema estava
em manutenção, impossibilitando o rastreamento da bagagem,
porém seguiria tentando com a central. Previsão para a volta
do sistema? Três horas. Darcy pegou um cartão da Citram e
prometeu ligar.
A caminhada estava matando suas pernas. Sem contar a
fome de 18 horas sem comer. Darcy parou em uma barraca de
cachorro-quente perto da rodoviária. Sentou em uma banqueta
de plástico frágil, parecia que a qualquer momento cederia ao
seu peso.
- Vina ou calabresa?
Darcy não sabia o que era “vina”. Optou pela opção mais
conhecida. Depois de matar a fome, quis matar o tempo com um
bate-papo. Darcy se apresentou para um rapaz esguio, boné sujo
48 | Plá
e cordões dos calçados gigantes. “Não tenho dinheiro e estou com
pressa”, respondeu, e o jovem caminhou em outra direção.
Com um pouco de mágoa, voltou para a XV. Percorreu toda
a extensão do calçadão, desde uma universidade com aspecto
tradicional, até uma praça com convidativos bancos. Sentou-se,
o cansaço voltara. Transeuntes apressados passavam com seus
celulares. Darcy sentia-se invisível.
Um sujeito barbudo encostou uma bicicleta ao lado de Darcy.
Vestia andrajos brancos, portava um violão e bolsas. Espalhou
pelo chão panos com mensagens escritas à mão. “Quem planta
flores / colhe flores”, dizia uma. Na bicicleta, armou uma espécie
de balcão com CD’s empilhados.
Após as montagens, foi até uma cafeteria em frente. Violão
ainda nas costas. Darcy sentia que este sujeito de ar messiânico
poderia render um bom papo. Não poderia arriscar perder esse
papo. Lembrou que o misterioso homem de negro fazia uma
pesquisa. Todos os CD’s eram de autoria deste artista que se
apresentava como Plá. O sujeito voltou com um copo plástico de
café. Algumas gotas pingaram em sua vasta barba.
- Você quer um pouco? – pergunta ao perceber o olhar
curioso de Darcy.
Darcy agradeceu como quem declina e, antes de propor uma
conversa, um senhor encasacado e de óculos escuros interpela.
- Lembra de mim? Me dá o último CD. Dez reais, né?
- Isso aí. Obrigado.
- Olha, quero te parabenizar pela tua música e
autenticidade.
- Obrigado, obrigado - respondeu Plá, em tom tímido.
Finalmente, surge a oportunidade para Darcy explicar que
está fazendo uma pesquisa sobre “Cultura de rua”. Plá disse que
não havia problema em ceder uma entrevista. O diálogo se deu
da seguinte maneira.
Curitibocas | 49
um alô para a galera que dormia e dorme ainda. A arte que faço
visa mexer o interior da pessoa, questionar todos esses valores
vigentes dessa sociedade instituída que está praticamente nos
seus finais. A propaganda e a televisão mostram uma decadência
mundial. A humanidade está indo para um caos cada vez
maior.
50 | Plá
pessoas e as coisas foram andando. Agora moro no Cabral, perto
do terminal [de ônibus].
Curitibocas | 51
As composições são todas próprias? Tem músicas
que são de parceria. Mas a maioria é de minha própria autoria,
minha mesmo.
52 | Plá
Como compõe suas músicas? É instável. Mas geralmente
tem um período que brota mais a música. Eu estou sempre
compondo. O comum é geralmente umas três, quatro músicas
em um mês. Por exemplo, de um tempo para cá tenho feito várias
músicas. Só no Psicodália, fiz umas quatro ou cinco músicas em
quatro dias.
Curitibocas | 53
não tenho contato com o pessoal. A maioria não faz um trabalho
na rua, de estar em contato na praça e conversar.
54 | Plá
Curitibocas | 55
E o primeiro, “Raio de Sol”, como foi? Foi de um show
que eu fiz no Teatro Paiol, em 1987. Já tocava na rua há três
anos. Na época, gravei ele numa fita K7. Antes de cair a censura.
Eu tive uma música censurada neste disco. Fiz uma música que
falava como se Curitiba fosse uma mulher, muito fechada, muito
reprimida, como se ela fosse ainda virgem. Eles censuraram a
música. Depois, em 1988, gravei essa música. Aí não parei mais
de compor e criar. Agora estou compondo o 33o CD.
56 | Plá
O que você acha de Curitiba? É uma boa de morar, super
agradável. Sempre gostei daqui e continuo gostando. Apesar
dela ser uma cidade meio formal, grande, ela é tranqüila. Não
tem muita violência, como São Paulo, Rio de Janeiro, onde tem
assalto, briga, guerra, incêndio. Aqui você anda qualquer hora
e dificilmente acontecem coisas desastrosas. Apesar de ser uma
cidade meio formal, meio fechada. É muito agradável para viver,
se desenvolver. Tem várias coisas para aprender, se dedicar.
Sempre gostei e recomendo. Vale a pena. O que tem que melhorar
é a consciência das pessoas. A visão de vida, de mundo. Mas
isso não é só daqui. Todo o mundo tem que melhorar. Carnaval
e futebol são duas manifestações do sistema, que tentam tirar
proveito da ingenuidade do povão. Mostrar justamente um
lado assim que não traz evolução. É uma fantasia, um delírio
das massas pouco esclarecidas. O brasileiro é geralmente pouco
esclarecido, meio ingênuo. É um país novo, vasto, grande,
riquíssimo em natureza, em vida, mas tem essa falta de visão.
Está engatinhando em muita coisa.
Curitibocas | 57
nenhum show são várias. “Não falo inglês”, “Maluco de Cara”,
“Metanóicos”, a galera sempre pede.
58 | Plá
em pouco a pouco sair de tudo isso. Eu estou saindo, já há muito
tempo, fazendo uma caminhada. Lógico que há a possibilidade.
Alguém que está procurando a própria caminhando e mostrando
que há uma luz dentro de si e que vale a pena caminhar.
Curitibocas | 59
Quantos anos você tem? Essa pergunta é difícil de
responder. Eu costumo falar para o pessoal que o tempo que eu
vivo não conto normalmente. Não é como todo mundo, que conta
um ano com 365 dias, que tem feriados e tal. É mais pelo tempo
de vida intensivamente e interiormente. Eu moro em Curitiba
devem fazer mais de 700 anos. Eu me imagino assim, com 900
anos. Até fiz uma música um tempo atrás que eu falo que tenho
900 e tanto giros em torno do sol. Toco aqui na rua faz uns 400
e poucos anos. Quando eu comecei, era um adolescente.
60 | Plá
um outro vagão / Para fora desse mundão / Para fora desse
mundão”.
Então, com essa música, tentei mostrar que as pessoas não
se conectam, abandonam o forte delas. Se ela cuidar da sua
própria condução, do seu corpo, pode influenciar outras pessoas
a se afastar e não fazer parte de uma coisa que não vai dar em
nada.
Qual é o cúmulo da miséria? A ignorância.
Curitibocas | 61
Seu sonho de felicidade? Eu já sou feliz.
62 | Plá
Curitibocas | 63
64
Mila
Behrendt
D
arcy contemplou a performance do artista depois da
conversa. Quando o comércio começava a fechar,
lembrou que deveria ligar para saber de
sua passagem.
- Só um minutinho, que eu vou estar verificando -, respondeu
o atendente da Citram. Darcy passa um Vivaldi tocado à la
despertador do camelô.
O atendente volta desculpando-se pela demora. Diz que é
melhor Darcy arranjar um lugar para dormir, pois o sistema
provavelmente não voltaria naquele dia.
Curitibocas | 65
Darcy esperava isso. Argumenta que está sem dinheiro. O
atendente diz que nesse tipo de situação é possível dormir na
rodoviária. No chão da rodoviária, mais especificamente. Darcy
recusa. Desliga o telefone quatro segundos depois do orelhão
comer mais um crédito do cartão.
Senta-se no meio-fio. Não sabe o que fazer nessa terra
estranha.
- Não dá para querer essa situação. – O resmungo era de um
jovem de moletom que se sentou ao lado - O que querem que eu
faça eu não sei, eu não sei, eu não sei.
Darcy disse que estava numa situação ruim também.
- A vida é um desafio. Você sabe isso?
Darcy se deu conta que não era um diálogo com um potencial
amigo. Era um monólogo e a sua presença fazia pouca diferença.
Darcy apoiou as duas mãos para trás e observou o rapaz, que
seguiu em tom de voz baixo, para depois fazer uma performance
como se estivesse dirigindo um carro. Fez uma baliza perfeita
em uma vaga apertada, mas cometeu um equívoco. Deu-se uma
multa imaginária por ter esquecido de ligar o pisca-pisca. Darcy
ria e aplaudia o rapaz, que parecia, gradativamente, notar a
presença de seu público de uma pessoa só.
Darcy entrou na brincadeira. Os dois jogavam futebol sem
bola e sem regras, em que o objetivo poderia ser fazer gol, cesta,
game, ponto ou o melhor tempo. Dependia do que fosse divertido
para o momento. Jogavam sem perdedor. Só ganhadores.
O jogo terminou quando uma senhora, do alto de seus saltos
altos, aproximou-se. Pegou o rapaz pela mão e disse que era hora
do jantar. Em princípio, as ordens foram obedecidas. Depois
que o rapaz viu Darcy, desatou a protestar. Gritava a plenos
pulmões. Darcy não sabia se dava tchau, se fugia, ou se tomava
o rapaz pela mão.
- O que você está fazendo, caralho?
Darcy explica que estava se divertindo com o rapaz. A senhora
respira fundo. Antes de falar, olha para o jovem que esperneia
em sua mão direita.
- Você sabe que o Bruno é...?
Darcy se desculpa e reforça que achou o rapaz muito
simpático.
- E quem é você?
Darcy faz um resumo de sua situação.
- Meu nome é Andressa. Você pode dormir hoje lá em casa.
Não por muito tempo, porque o apartamento é pequeno.
66 | Mila Behrendt
Darcy agradeceu e seguiu a dupla. Andressa tem um pequeno
apartamento nas imediações da rodoviária. No caminho, Darcy
se distrai com a destreza dela. A calçada, toda feita de petit-
pave, não era obstáculo para a sandália cristal, salto agulha
de 15 centímetros. Aliás, não havia mulher baixa em Curitiba.
Algumas chegavam na altura-padrão feminina, vigente na cidade,
com botinas de solado tipo tijolão, no melhor estilo das bandas
roqueiras dos anos 80. A delicadeza feminina contrastava com o
estrondo causado a cada passo. Algumas chegavam a combinar
com bijuterias barulhentas e maquiagem carregada. Darcy via
essa produção na noite do clube de sua cidade ou nas árvores
de natal.
Chegaram no apartamento de sala-cozinha-quarto-banheiro.
Algumas caixas de papelão fechadas estavam empilhadas em um
canto da sala, ao lado de onde Darcy dormiria. Andressa e Bruno
dormiam no mesmo quarto.
Mesmo com todo o cansaço de um dia de trabalho, Andressa
foi preparar a janta. Desculpou-se pela sopa (deliciosa para
Darcy), mas era a única coisa que tinha em casa. Anunciou que
no dia seguinte iria às compras.
Depois de colocar Bruno para dormir, Andressa foi tomar
um banho. Apesar do corpo de Darcy acusar a falta de sono, não
conseguia pregar os olhos enquanto ouvia o barulho do chuveiro.
Queria uma ducha, mas estava com vergonha. Darcy não gostava
de freqüentar banheiros de estranhos.
Andressa foi até a sala de pijama. Sem maquiagem, a idade
pesava em seu rosto. Porém, ficava mais bela. Seu olhar denotava
muita vivência. Andressa disse que amanhã despertaria cedo.
Aconselhou Darcy a tomar um ônibus que vai à rodoviária e
passava ali próximo. Sem mais a dizer, Andressa deseja boa
noite e Darcy dorme de imediato no colchão entre as caixas, a
televisão, a cadeira e o sofá.
Despertou quase meio-dia. Darcy foi até o local indicado.
Esta parada ainda era dos ônibus pequenos. Darcy desejava
embarcar, um dia, em uma dessas em formato de túnel, feitas
de plástico e metal.
Darcy se deu conta de que a viagem estava tomando mais
tempo do que a pé. Imediatamente, pressionou o botão de
parada. Estava em um bairro residencial. Apesar do dia bonito,
ninguém na rua para dar informação. As casas eram similares às
das pequenas cidades, bem diferente do claustrofóbico Centro.
Este bairro já lhe parecia mais aconchegante. Tinha visto poucos
Curitibocas | 67
jardins em suas andanças em Curitiba. Darcy agachou-se para
afagar um cachorro de uma casa com um belo jardim.
Mal sabia que a dona da casa lhe vigiava da janela . Os
carinhos de Darcy acabaram atraindo outros dois cachorros da
casa e quem o vigiava pela janela. Uma senhora alta e magra,
toda vestida de negro - em contraste com sua pele e cabelos
claros - aproximou-se silenciosamente de Darcy, que não teve
medo. Seguiu brincando com os cães, sem perder o olhar da
imponente senhora.
Não houve ação física. A mulher ofereceu chá e bolinhos
para Darcy, que aceitou e percebeu um sotaque estrangeiro na
fala dela.
Mila Behrendt era o nome da senhora que deixou Darcy na
sala-de-estar enquanto ia à cozinha. A sala-de-estar continha
livros pelas quatro paredes. Dois sofás grandes onde, em alguns
minutos, estariam conversando, e uma série de objetos extraídos
diretamente de algum conto de fadas: miniaturas de maçã
vermelha, bonecas (especialmente bruxas), caldeirões, quebra-
cabeças, chaveiros, ossos, uma roda que cabe na palma da mão
com espelhos. Um ambiente cheio de vida, ao contrário do
apartamento que dormira. Leu o rótulo “aranhas” em uma lata ao
lado de uma boneca. Mila apareceu com uma bandeja prateada e
Darcy, imediatamente, deixou o objeto no lugar. O diálogo entre
as duas pessoas transcorreu da seguinte forma:
68 | Mila Behrendt
Então você é bruxa? Uma vizinha me disse: “Se você
vivesse na Idade Média, você já tinha sido queimada viva”. No
entanto, o que eu faço? Nada de extraordinário. Uma sessãozinha
para espantar as aranhas, um benzimento que me ensinaram
quando era criança, essas coisas que me dão na cabeça.
Você não gosta das fadas? São tão sem graça. Fada pode
ser ambivalente. Quer dizer, tem as duas facetas. Qual é a faceta
da fada? A fada é aquela mimosinha, bem vestida, que a sociedade
aprova, que é correta, que faz tudo que manda o figurino e que
tem uma varinha de condão. A bruxa não. Ela representa aquela
mulher que tem que lutar, que tem que se defender, que tem
que ter garra, como a Baba Yaga. Ela tinha que dar cotovelada e
arranhar para lutar por sua sobrevivência. Não é o que você vê a
maioria das mulheres fazendo, no Brasil principalmente? Tem
de abrir o caminho a cotoveladas e dentadas.
Curitibocas | 69
O que te ajudou? O conhecimento, a leitura, procurar saber,
principalmente, sobre a origem da vida, o porquê de estarmos
aqui e sobre a formação do universo. Tenho um projeto sobre a
evolução da espécie humana. É um livro para crianças, mostrando
como ocorreu, como nos tornamos bípedes e tudo mais. Eu
quero que tenham essa visão. Acredito que isso foi um retraso
da educação de todos nós. Grande parte da incompreensão do
ser humano em relação à natureza é porque ele afastou-se dela.
Ele desconhece sua própria origem.
70 | Mila Behrendt
que eles faziam por diversão. Imagina na cabeça deles poderem
reproduzir a própria mão.
Curitibocas | 71
Como você define um bom conto? Do ponto de vista
da criança, tem que ter começo, meio e fim. Para o adulto, já
muda de figura. Os contos simples também podem ser bons. Por
exemplo, eu estou para publicar um livro chamado “Contos do
Arco-da-Velha” que tem contos pequenos e simples, mas muito
significativos.
72 | Mila Behrendt
Curitibocas | 73
Esse livro te toma muito tempo? Também estou
escrevendo um livro sobre o roubo da Mona Lisa. Faz muitos
anos que meu interesse foi despertado para esse assunto, mas eu
via que muitas coisas historicamente não batiam. Então, estou
fazendo um relato muito interessante de como que foi feito o
roubo dela, como ela foi tirada do meio do Louvre, no meio de
tantas pessoas. O homem passou por guardas, pela multidão e
ninguém se deu conta.
74 | Mila Behrendt
fizemos uma caminhada há dois anos atrás, descemos a estrada
da Graciosa. Fomos até Morretes a pé. Metade do dia foi chuva, e
nós andando. Foi muito interessante, porque é só você entrar em
contato com a natureza e pronto. Lá, você começa a se acalmar,
a ficar centrada, você sente que tem uma percepção maior, que
você está se equilibrando.
Curitibocas | 75
Você acha bom então? Acho. É uma fantasia extraordinária.
Ela nasceu no lugar certo, na hora certa. Teve uma riqueza muito
grande de mitologia, das lendas célticas na infância dela. É como
o Tolkien. Os livros dele são fantásticos.
76 | Mila Behrendt
para trabalhar com o corpo, na saúde. Continuo fazendo exercício
até hoje. E também na parte cultural. Sempre havia um costume
de manter determinadas tradições. Isso foi muito interessante
na minha formação intelectual.
Curitibocas | 77
Você se sente parte do povo curitibano? Sinto-me.
Tanto que sempre defendo quando atacam o curitibano. O
curitibano é empreendedor, batalhador. Penso isso do Brasil.
Quando viajo para o exterior, vejo o quanto a mulher brasileira
é batalhadora. Tem filho e vai para luta. Dá conta de casa, de
educação, de tudo.
78 | Mila Behrendt
Pode contar? Não. Eu o conheci em Valência. Ele estava
estudando e nas horas de folga, ia para o apartamento da minha
filha.
Curitibocas | 79
Qual é seu personagem histórico favorito? Não
é Jesus Cristo com certeza. Nem histórico ele é - não
foi provado nada de Jesus Cristo. Um personagem
histórico favorito é o Gengis Khan, talvez por ele ser um
metrossexual. Personagens históricos geralmente fazem
parte da política e isso não me atrai.
80 | Mila Behrendt
Seus autores favoritos em prosa? Dostoievski,
Flaubert, Vitor Hugo, Saramago.
Curitibocas | 81
Sem raízes
Joba
Tridente
D
arcy pegou o mesmo ônibus em sentido contrário. Para
não correr risco, preferiu descer no mesmo ponto onde
tomara o coletivo. Fez o caminho até a rodoviária a pé.
Lá, a situação parecia uma repetição do dia anterior. Fila e
o mesmo atendente. Desta vez, a fila estava emperrada, pois a
impressora estava quebrada. E a linha de clientes aumentava. O
atendente manipulava o aparato de todas as formas. Mexia da
mesma forma que um primata faria. Alguns macacos usariam o
aparelho para abrir uma fruta. O atendente nem isso conseguia.
Clamava em seu rádio por ajuda.
– Atendimento e relacionamento com clientes para
manutenção de inventário, câmbio. Atendimento e relacionamento
com clientes... Só um minutinho, minha senhora, que vamos estar
fazendo a impressão de sua passagem.
Curitibocas | 83
O dia da Citram foi salvo por um funcionário de macacão
azul engraxado até a barba. Abriu uma gaveta, trocou a bobina
e o problema estava resolvido. Vinte minutos depois, chegou a
vez de Darcy:
– Sua mala, provavelmente, está no setor de achados e
perdidos da rodoviária que você estava indo. Você pode me
passar o canhoto da passagem para que eu possa estar efetuando
o rastreamento?
O canhoto estava dentro da bagagem de mão.
– Então, o que podemos estar fazendo é você comprar outra
passagem até lá e clamar por seus pertences.
Darcy explicou que não tinha dinheiro. Perguntou se o
atendente daria uma passagem com o trecho que faltava.
– Você tem o canhoto? – Darcy repetiu a resposta que recém
havia dado. Então, ficaria impossibilitado. Pode ser que ocorra
reembolso na rodoviária que você vai estar indo.
Darcy explicou que não tinha dinheiro.
- E o canhoto?
Era inútil. O rapaz parecia um robô. Darcy saiu dali a passos
rápidos. Queria chorar. Desde criança, não gostava de chorar
em público. A rua dava pauta para pensar em outros temas.
Mas, volta e meia, suprimia um soluço ou um suspiro triste, que
desatariam em lágrimas caso desse vazão aos sentimentos.
Quando quase se rendeu na batalha interna que levava quase
uma hora, encontrou o lugar perfeito para abrir as comportas
de suas emoções: uma sala de cinema. O espaço ainda tinha um
ar antigo e artístico - sempre convidativo para a nostalgia e a
tristeza. Nem prestou atenção na exposição da ante-sala, com
projetores e cartazes clássicos do cinema paranaense. Quis entrar
logo na escuridão atrás da cortina.
Havia seis espectadores para o filme que iniciaria em oito
minutos. Dois deles, casais. Darcy sentou no fundo e, o mais
disfarçadamente possível, chorou.
Quando se satisfez, o filme estava na metade. A ação da
película era lenta, cheia de papo e com algumas cenas de
nudez desnecessárias. Típico filme “artístico”, como dizem os
intelectuais.
Apenas um outro solitário não desviava a atenção da tela. Era
um careca com óculos. Na saída, Darcy não resistiu, havia algo
instigante no olhar por trás das lentes daquele sujeito. Chutou.
84 | Joba Tridente
Você é escritor? Escrevo em prosa, verso, mas não me
chama de poeta que eu odeio.
Curitibocas | 85
pessoal ficou meio chocado, mas tudo bem. Todo mundo pensa
isso, mas ninguém tem coragem de dizer.
86 | Joba Tridente
trágico, mas tem alguma coisa que você não sabe dizer o que é.
Arte é totalmente individual.
Curitibocas | 87
governo. Isso foi formando Curitiba. É tudo aparência. Depois
veio o [Jaime] Lerner e encheu de gente para cá. É uma grande
farsa. Tem grandes artistas aqui, mas as pessoas demoram para
acontecer. Que grande nome tem aqui além do Dalton Trevisan?
Paulo Leminski, mas não tem a mesma dimensão. O problema
dos artistas locais é que pensam regionalmente. O mundo é para
fora. Exponha-se, expanda-se.
88 | Joba Tridente
falava “Se você não é comunista, não é socialista, que diabo você
é?”. Era apenas eu. Não sou de direita, de esquerda, de centro,
nada. Sempre fui muito pesado no texto. Na época, eu lia muito
Spinoza. Também gostava de Schopenhauer.
Curitibocas | 89
90 | Joba Tridente
Por que saiu de lá? Uma das coisas foi uma matéria. Eu
tinha feito uma entrevista com um cooperado falando o ponto
de vista dele sobre o cooperativismo. Não lembro quantos mil
exemplares foram impressos. Não deixaram sair nenhum. Fiquei
muito puto com isso. Quando eu fui para o Ministério da Cultura,
aconteceu a mesma coisa. Aí o tema era Direito Autoral. Quando
começam a acontecer esses negócios, penso em ir para outro
canto. Você é livre para dizer o que quiser. Talvez eu discorde
do que você falou, mas publico porque acredito no seu direito de
dizer. Naquele tempo, a gente era mais livre...
Curitibocas | 91
Ficou refém do poder? Não. O Wilson Bueno tinha toda
a liberdade para fazer o jornal, mas o Lerner entrou e um pessoal
da Academia Paranaense de Letras acabou com o jornal. Queriam
que refletisse só Curitiba. “Ah, mas tem espaço branco demais”,
eles diziam. Acredita?
92 | Joba Tridente
a contar histórias com bonecos. Comecei na época do Comboio
Cultural.
Curitibocas | 93
pode ler de duas formas: o que está na página par é uma coisa,
o que está na impar é outra. É perfeito para ler na cama, porque
você não precisa ficar indo de um lado para o outro. Cada página
par é referência da página ímpar. Só que se você estiver em uma
e procurar na outra, você não consegue voltar, porque você vai
começar a ler e vai formar outra história. Tem coisas que nem
o Marcos sabe se são verdade ou mentira. Tem gente que leu o
livro e foi pesquisar em busca de mais referências. Eu falo de tal
forma que você acredita que é verdade. Só eu sei o que é ficção e
o que não é. O livro tem um lance que ninguém descobriu ainda.
Não posso contar, alguém tem que descobrir o mistério do livro.
O Marcos virou um personagem meu, eu já lancei vários livrinhos
pequenos sobre ele.
94 | Joba Tridente
90, eu tinha uma câmera de vídeo e aprendi a filmar sozinho. Fiz
um documentário sobre o “Nicolau”. Levou um ano. Agora estou
dirigindo e assinei um roteiro com o Marcos Saboia. É baseado
em dois contos meus. Um é “Cortejo”, um microconto de três
parágrafos de uma mulher solitária que está passando pela rua e
vê um cara em um bar, rodeado de flores, e acha aquilo engraçado,
interessante. O cara percebe e vai atrás dela, dá um arranjo de
flores e começam a se envolver. Acabam fazendo sexo em cima
de um monte de flores – voa flor para tudo quanto é lado. Aí, ela
vai descobrir quem é o cara, e não vai ficar satisfeita. Não posso
falar o final porque todo mundo vai descobrir junto. E o outro se
chama “Palhaçada”, conta a história de um casal de palhaços –
são dois atores de um espetáculo de rua. As pessoas vão descobrir
no decorrer do filme que as gags são uma coisa violenta, dão
tapa. O povo começa a rir como se fosse coisa de palhaço, mas
na verdade estão lavando a roupa suja no espetáculo e partem
para a porrada. São duas histórias curtas que irão se entrelaçar
em um ponto, apesar de se passarem em tempos diferentes. Vai
ser no máximo 15 minutos.
Curitibocas | 95
forma que o primitivo não vai ser acadêmico. Se ele entrar na
escola, ele vai morrer. É diferente.
96 | Joba Tridente
muita televisão, não vejo esses programas de axé, baixaria. Então,
a gente fica sem assunto. Querer uma companhia só para me
acompanhar sem ter assunto? Eu também viajo o tempo todo.
Não sei se dá tempo de cultuar uma amizade.
Curitibocas | 97
cobra. Se você estuda a mitologia de qualquer povo, a cobra tem
o mesmo significado. É um elemento que significa sabedoria,
conhecimento, verdade, poder e amor – um pentagrama. É o
único elemento que serve de ligação entre o homem e o cosmos.
Se você vir na mitologia judaico cristã, na lenda em que Deus teria
dito que a cobra seria pisada pelo calcanhar de uma mulher, se
você vir aqueles santinhos que mostram uma senhora pisando
em uma cobra, tem a Terra, a cobra e a santa – a cobra é o que
liga o homem ao cosmos.
98 | Joba Tridente
Quais foram suas influências na infância? Minha
única referência é um tio que era ator. Lia tudo que tinha em casa.
“As Fábulas de La Fontaine”, um livro com gravuras maravilhosas
de Doré. Eu devorava aquilo. Lia Dante sem saber quem era
Dante. Gostava das ilustrações, aquelas coisas de céu e inferno,
achava um deslumbre. Os pais não deixavam ler gibi porque era
pecado, atrasava na escola. Mesmo assim, eu lia. Já desenhava
no meu caderno de história, do colégio, uns indiozinhos. [Pega
uma foto da família e mostra].
Curitibocas | 99
Seu pintor favorito? Bosch.
Curitibocas | 101
Aroma da dor
Edilson
Viriato
N
o elevador, Darcy se deu conta de que o bloquinho e a
caneta ficaram no bolso. Resolveu fazer uso. A
linguagem escrita não era o forte de Darcy. Colocou
algumas palavras garranchadas e desconexas enquanto
caminhava até o apartamento de Andressa.
Em frente ao pequeno apartamento, estava Bruno
discursando e brincando. Darcy sentou-se na porta, com a
atenção dividida entre Bruno e planos para sair de Curitiba. De
repente, se deu conta de algo que fazia toda a diferença. Bruno
não executava monólogos. Eram diálogos. Quais eram as réplicas
que só Bruno ouvia?
Andressa chega e se surpreende que Darcy ainda esteja na
cidade. Darcy explicou o que aconteceu. Teve vergonha de pedir
mais ajuda para Andressa. Ela pega Bruno com uma mão e com a
outra um celular. “Escute, eu estou aqui com...”, assim Andressa
começou a expor a situação de Darcy para alguém do outro lado
da linha. Quais eram as réplicas que só Andressa ouvia?
- Olha, tem um jeito de você seguir o seu rumo. Veja bem, você
está numa situação fudida. Tenho um amigo dono de uma
empresa que presta serviços no aeroporto. Ele não assina carteira,
mas paga R$1,75 por hora. Acabei de falar com ele. Você pode
começar segunda às 6h.
Curitibocas | 103
Darcy aceitou no ato. Fez a promessa de ajudar com as
despesas da casa. Nesta noite, Darcy ajudou Andressa no jantar,
arrumou a casa, deu os remédios de Bruno e ajeitou seu colchão
na sala. Nas conversas do jantar, Andressa deixou transparecer
seu otimismo sem convicção, ou seja, era quase uma pessimista.
Na escuridão da sala-de-estar, Darcy resolveu ver um pouco de
televisão. Os comerciais locais eram diferentes. Havia um em
especial, com um polaco de tom de voz desagradável, que fez
com que Darcy apagasse a televisão. Prometeu jamais renovar
sua casa naquela loja.
No instante em que Darcy apagou a televisão, Andressa
entrou na sala com uma tela e um cavalete. Ajeitou-se, de costas
para Darcy, no pouco espaço que restava na sala. Darcy gostaria
de fazer umas perguntas para Andressa, mas não queria estragar
a concentração da anfitriã. Andressa percebeu o interesse de
Darcy. Explicou que é orientada pelo artista plástico Edilson
Viriato, no atelier tal, em tal rua. Ela tinha que entregar o quadro
para no dia seguinte, por isso o horário pouco usual. Meia hora
de silenciosa observação depois, Darcy dormiu.
No outro dia, acordou com a televisão. Bruno parecia tentar
assistir a todos os canais ao mesmo tempo. Apertava o controle
remoto freneticamente em um volume ensurdecedor. Darcy
tentou acalmá-lo. Quando insinuou tirar o controle das mãos
dele, levou um empurrão. Darcy achou melhor sair dali.
Deu-se conta de que estava em uma situação nova na cidade.
Tinha que esperar até a segunda para começar a juntar dinheiro.
Estava livre para fazer o que quisesse - dentro da limitada
perspectiva financeira que tinha, claro. Resolveu tentar achar
um camelô para comprar algo para Andressa, em agradecimento
pela hospedagem. Em sua cidade, havia uma praça cheia de
importadores. Como estava em Curitiba, cidade mais próxima
da fonte de produtos alternativos, imaginou que encontraria
um camelódromo gigantesco. Ledo engano. Só algumas
barraquinhas espalhadas pela cidade, com alguns produtos de
indumentária e acessórios de segunda linha. Mochilas falsificadas
de conglomerados educacionais eram o mais comum. Nada
daquele monte de eletrônicos chineses. O mais próximo de um
camelô normal que encontrou foi um rapaz que expunha CD’s
piratas em cima de uma lona. Toda vez que alguém comprava
algo, o rapaz se manifestava:
- Pirataria é crime. O freguês ficava por três segundos
constrangido, quem sabe caindo em uma cilada de programas
Bem eu...Você veio até mim e não sabe nem quem eu sou.
Antes tem que estudar quem eu sou para fazer perguntas. Pega
a minha vida, pega o meu histórico, leia meu livro, pesquisa e
vem. Cara, toda a semana é a mesma coisa. Estou cansado de
mandar jornalista voltar outro dia. Uma menina que pesquisou
me perguntou esses dias: “Você já pensou em matar seus pais?”.
Isso sim é que é pergunta. Se perguntar tudo que é normal, o
que é comum, eu não respondo. Então, que tipo de perguntas
você vai fazer?
Curitibocas | 105
olhar ficava perdido, o tom de voz baixo e um sorriso que lhe
dava um ar ingênuo.
Curitibocas | 107
Você não é humilde? Claro que sou humilde dentro do
que posso ser. Ano passado, decidi que mudava tudo na minha
vida artística ou ia embora do Brasil. Sou mais conhecido fora do
Brasil que aqui. Para quê ficar batendo pé numa coisa, sabendo
que não vai ter retorno?
Curitibocas | 111
AIDS. Mais maravilhoso foi no outro dia, que saí na capa do jornal
norueguês. Quando entrei no Teatro Municipal de Oslo, a platéia
inteira levantou, aplaudiu e gritou: “Brazilian art, Viriato”. Uma
coisa que nunca tive aqui.
Curitibocas | 113
ficou complacente o tempo todo. Se fosse qualquer mãe, iria se
jogar, correr, fazer algo.
Curitibocas | 115
Essas histórias aparecem na tua arte? Meu, foram três
exposições só em cima disso. Todo meu trabalho é vivenciado.
Quando eu fiquei um mês no hospital, em coma, quase morri,
internado com meningite, fiz uma exposição no MAC, com soro
e elementos do hospital. Tudo eu tiro partido.
Curitibocas | 117
Qual é o cúmulo da miséria? [Pausa] Não sei. Acho
que é o não querer.
Curitibocas | 119
Fundamentalismo
futebolístico
Suk
D
arcy perambulou à procura do quadro de Andressa.
Imaginava o que resultaria da personalidade
dela, com a atitude do orientador. Ao lado
de um quadro que retratava uma paisagem de Curitiba, com
borrões à volta, Darcy encontrou um quadro libidinoso, uma cena
erótica retratada em cores quentes e indutivas. Muitos ficariam
chocados. Para Darcy, que conhecia a autora, era triste.
A volúpia de Andressa parecia outrora forte. O quadro
significava uma nova canalização da energia. Andressa era
uma sacerdotiza da beleza. O quadro era dela.
Curitibocas | 121
Onde ela estava? As colegas artistas disseram que toda vez
que tem jogo do Atlético Paranaense ela vai embora cedo.
Darcy não tinha a menor pretensão de ir ao estádio,
que ficava próximo do atelier. Tinha medo da violência nas
arquibancadas. Queria acompanhar o jogo, para ter um assunto
agradável para comentar com Andressa na hora do jantar. Se
bem que a fome forçava que o pensamento se focasse no almoço.
Entrou em um bar com atendentes orientais, comida barata e
uma televisão sintonizada no futebol. Tudo que Darcy queria.
O boteco era próximo do estádio, possibilitava ouvir os gritos
da torcida pela tv e ao vivo.
Comprou um pão de batata recheado de frango com
requeijão (catupiry, em termos marketeiros). Sentou-se junto
ao balcão de vidro engordurado, prestando atenção na televisão.
O Atlético ganhava de três a zero de algum time desconhecido
do interior paranaense. Mesmo com o placar inchado, a partida
estava morrinha, bem típica dos campeonatos regionais. Mesmo
assim, as câmeras de televisão mostravam a festa da torcida:
com fogos, bateria, cânticos e pulos. Os mais animados estavam
tão empolgados que ficavam de costas para o campo. A maior
parte do espetáculo da arquibancada era protagonizada por
torcedores com estampas de “Os Fanáticos”. Cantavam sem
parar. Darcy não conseguia imaginar Andressa nesse meio. De
relance, parecia ter visto um sujeito com uma cartola e capote
preto, similar ao que vira em sua primeira noite em Curitiba.
Fim de jogo. Darcy pediu mais um salgadinho. Seu olhar
ficou perdido em um gato de porcelana com uma pata levantada,
enquanto sua imaginação voava. A sede dos Fanáticos devia
estar próxima.
As praças de Curitiba já pareciam rotina nas andanças de
Darcy. Esta se destacava por ter um posto policial em um canto
da quadra e grades por todo o perímetro. Com isso, a pista de
skate estava bem protegida.
Dentro da jaula, dois jovens portando tábuas com rodinhas
analisavam um buraco cimentado. Darcy se aproximou dos
jovens que, por sua vez, afastaram-se cinco passos. Darcy deu
mais cinco passos, os jovens caminharam oito. Darcy os olhava
e fez um teste. Deu um passo. Os jovens deram dois, sempre
conversando entre si e olhando desconfiados.
Darcy resolveu apelar para uma mulher sentada com
um bebê em um banco de pedra. Ela deu a informação de
uma maneira seca. Darcy anunciou que estudava as torcidas
122 | Suk
organizadas de um ponto de vista da antropologia experimental.
Nem bola. É melhor apresentar a pesquisa antes de qualquer
coisa, pensou.
A sede da Fanáticos estava com sua porta de metal
escancarada. Muitos dos que exibiam sua alegria na televisão
seguiam exultantes no QG. Por não portar as cores rubro-
negras da agremiação, Darcy chamou a atenção das dezenas
de torcedores reunidas. Falou de sua pesquisa sobre a “Arte
coletiva das arquibancadas: uma visão contemporânea da festa
do futebol”, e que precisava falar com os responsáveis pela
torcida. Avisar da pesquisa parece ter acalmado a desconfiança
geral. Suk foi o nome indicado para responder a Darcy.
Um rapaz de touca, barba por fazer e voz grossa veio ao
encontro de Darcy. Disse que adoraria contribuir para tão
importante pesquisa. Sentaram-se em uma mesa afastada da
algazarra. Suk estava com o corpo inclinado em direção a Darcy
e, entre uma saudação e outra de um membro da torcida que
se aproximava, participou do seguinte diálogo.
Curitibocas | 123
precisavam muito da gente ainda. Quando cresceu, esqueceu o
que ajudou ele a chegar nesse ponto.
124 | Suk
Aquela “atirei o pau no Coxa...” é de autoria da
Fanáticos, né? Isso. A letra foi adaptada da música do Pink
Floyd [Another Brick in], The Wall. Foi criada em 1990.
Curitibocas | 125
vinculada à sociedade atual. A gente associa a própria torcida
com alguns torcedores. Porque se você vai em qualquer lugar do
Brasil hoje, você encontra dificuldades de relacionamento, vai
encontrar pessoas de boa e má índole. O que varia é a maneira
que a imprensa explora. As torcidas organizadas chamam muito
a atenção, e ela coloca sempre fatos negativos. Quem dá essa
opinião, que torcida organizada é violenta, é quem não entende
do assunto e não freqüenta o dia-a-dia de uma, para ver como
o trabalho é sério, com objetivo. Também não se pode espelhar
muito nas torcidas organizadas do foco Rio-São Paulo, onde
realmente há grande quantidade de gente com más intenções.
Digamos que lá tem pessoas que não têm boas intenções dentro
de torcida organizada.
126 | Suk
Curitibocas | 127
da manutenção. Assim por diante. A Fanáticos é uma torcida
dinâmica. Você fica aí, tem coisa para fazer.
Tem saudade? Não sei se era porque eu era piá, mas sinto
um pouco de saudade, sim. A gente era feliz e não sabia. Hoje
em dia, dizem que é estádio de primeiro mundo, melhor estádio
da América Latina e tal.
128 | Suk
uma jogada errada. A gente procura reivindicar quando vê que
é hora, não a qualquer momento. Nunca vaiei. Cheguei a xingar
jogadores, o próprio presidente.
Curitibocas | 129
algumas torcidas que a gente é amigo e, conseqüentemente, os
inimigos deles sabem.
130 | Suk
em Atletiba. Fui em todos Atletibas. Às vezes, com co-irmã
nossa eu vou, mas eu não gosto. Não gosto de ver a torcida do
Coritiba.
Curitibocas | 131
Qual é o jogador símbolo atleticano? Caju. Esse é
unanimidade. Tanto que o centro de treinamento do Atlético se
chama CT do Caju.
132 | Suk
a guerra do exame da OAB. Saí um pouco daquela fase de não
levar a sério. No tempo que eu tenho disponível, sempre estou
dando uma lida.
Curitibocas | 133
difícil, pelo seguinte. [Modera o tom] Geralmente, os filhos ficam
do outro time para aqueles pais que torcem para o time da boca
para fora. “Eu sou tal time, mas não tão... eu não freqüento
estádio”. Às vezes, encontra os amigos e fica de outro time. Mas
no caso, como que iria ficar de outro time? Você acaba convivendo
e pegando amor pelo negócio.
134 | Suk
A qualidade que prefere na mulher? Simpatia.
Curitibocas | 135
Qual dom da natureza você gostaria de ter? A
paz.
136 | Suk
Curitibocas | 137
Um anjo que luta
Efigênia
Ramos
Rolim
D
arcy aproveitou um pouco da festa rubro-negra.
Dançou alegremente e recebeu convites para integrar
a torcida. Já noite, rumou ao apartamento. Antes,
perambulou pela cidade, feliz com sua série de conversas.
No caminho, encontrou, em meio ao contexto do bonito e
arrumado centro da cidade, uma ponte enferrujada de uma linha
férrea abandonada. A ponte ligava o nada com coisa alguma. Por
que os tão cuidadosos curitibanos ainda não removeram este
monumento à inutilidade? Ode à oxidação. Segundo uma placa, a
Ponte Preta era patrimônio histórico da cidade. Quanta carência.
Os pichadores deram algum colorido, mas o esforço era em vão.
Quanto que o ferro-velho paga por quilo?
Curitibocas | 139
Poucas quadras adiante, passou por um terminal de ônibus
que destoava em relação aos outros. Envolto por um ambiente de
bares sujos, de onde só pela fachada e cheiro podia inferir drogas,
sinuca e prostituição barata. De dia, funcionava o comércio de
produtos de segunda linha e ônibus que levam às periferias da
cidade. Uma pobre verruga dentro do Centro plástico. Uma igreja
no núcleo do antro dava um ar irônico ao quadro.
Na entrada do prédio, encontrou Andressa, que recém
chegava. Subiram juntos. Ela exalava odor de perfumes caros.
Andressa não cumprimenta o porteiro e dá apenas “oi” e “tchau”
para os vizinhos que compartilham o elevador. Parecia outra vez
cansada. Um não perguntou como foi o dia do outro. Falaram
sobre o tempo louco de Curitiba e o jogo. Andressa não vai ao
estádio. Ela visita um amigo que tem uma mulher ciumenta.
Aproveita que ela, sim, não falta aos jogos do Atlético, no
domingo, para conversar.
No outro dia, pela primeira vez, Darcy acordou mais cedo
que os dois. Colocou a mesa para o café como Andressa e
Bruno gostavam. Faltava um dia para começar o plano de fuga.
Pensou que em breve perderia Curitiba. Ouviu falar tanto na
tal Feirinha do Largo da Ordem que resolveu ir lá em busca de
uma lembrança.
O diminutivo não fazia jus às centenas de barracas
espalhadas pela praça. Todo tipo de produto artesanal (alguns
artesanalmente industriais) era comercializado para um mar de
gente que se exprimia em vielas formadas por barracas de lona
amarela. Comeu um pastel e tomou caldo de cana.
Depois de um tempo, tudo parecia igual – montanha de
cacarecos para juntar pó. A tenda mais curiosa era a de uma
idosa que vestia roupas espalhafatosas feitas de lixo. Ela cantava,
feliz, em meio a obras feitas de material reciclado. Tudo parecia
fugir do conceito vulgar de beleza. A linguagem estética dela era
outra. Nas obras da artesã, o lixo era contorcido para ganhar uma
forma nova - bonecas e animais, principalmente - sem perder a
identidade do objeto de outrora.
“Olha que lindo”, exaltava uma criança com uma mão
segurando a mãe, e a outra com o dedo em riste, apontando para
uma girafa. A mãe arregala os olhos e comenta para a filha, em
volume de voz suficiente para todas as barracas das imediações
ouvirem: “Que coisa horrenda”. De bate pronto, a autora das
obras respondeu:
Curitibocas | 141
conseguiu agradar todo mundo. Agora declamo essa poesia
que você ouviu, a primeira que eu fiz. Nunca li e nunca estudei.
Imagina quanta coisa tem no universo. Imagina quanta coisa está
lá em cima, que Deus quer mandar para o homem. E o homem
passa por baixo, ou pisa por cima, e vai buscar uma coisa grande.
Mas, se busca uma coisa grande, esquece das pequeninas. Então,
a gente quer buscar as coisas grandes e nem faz as pequenas. É
um dródio.
Dródio? Dródio é quem acha bonito, diz que vai fazer e não
faz. Tudo dá trabalho.
Curitibocas | 143
para mostrar. A Magda Modesto viu minhas bonequinhas e falou:
“Ela é louca de lúcida”. Foi o primeiro salto na minha carreira.
Curitibocas | 145
alternativos. Foi uma exposição no Senado individual. O Requião
estava lá em Brasília para ver.
Curitibocas | 149
- Um foguinho apagado. Pareço um borrãozinho de
cigarro.
- O que pega fogo na floresta? Ninguém vai com um faixão
de fogo na floresta. É um borrão de cigarro, que se soprar pega
fogo.
- Sopra-me, Senhor, sopra-me.
Aí, ele me deu um sopro. Recebi um dinheiro bom lá. Mais do
que um homem quando trabalha o mês inteiro. Daí, os monges
franciscanos, da Igreja do Espírito Santo, falaram que podia
ir para lá para comer. Eu fui. Minha menina comeu tanto que
teve disenteria e vômito. Comida muito farta, ela não estava
acostumada.
Desde então você está aqui? Não. Depois, meu filho nos
Curitibocas | 151
alguma coisa”. Não quis brigar. Que culpa o médico tem se deu
errado? Se não deu certo, paciência. Pensava que meu trabalho
ia cair. Tive que reaprender muita coisa. Conforme vira o olho,
não dava para subir escada, por exemplo. Não sabia que dois
olhos na cara são tão importantes. E não é que enxergo pouco.
O outro parece que começou a enxergar muito mais.
Curitibocas | 153
Quem você gostaria de ter sido? Eu gosto de ser eu
mesma.
Irmã
Custódia
N
a volta da Vila Autódromo, Darcy prestou mais
atenção no ônibus biarticulado que tomara. Na
ida, sua concentração estava toda focada
na conversa.
O sistema de voz, com o nome do ponto, quais portas que
se abririam, e um conselho (“cuidado com furtos no interior do
veículo”) era primoroso. Não conseguia entender por que tanta
densidade de passageiros na entrada e saída. Os corredores
poderiam acomodar os espremidos da porta.
O Largo da Ordem pouco parecia com o que presenciara
algumas horas atrás. A única atividade era o halterocopismo
em mesas espalhadas ao ar livre. Não sobrara nem uma
barraquinha. Em frente à igreja, agora, era perceptível o mau
gosto da fonte em forma de cabeça de cavalo por onde a água
era despejada como uma baba incessante. Postes e outros
elementos, somados à ponte enferrujada do dia anterior,
colocavam em dúvida a propalada arquitetura da cidade.
Curitibocas | 157
Darcy resolveu explorar além dos limites da parte histórica
da cidade. Encontrou uma vídeolocadora. Quem sabe, isso
animasse um pouco Andressa e Bruno a se reunirem junto
de Darcy, na sala, por mais de uma hora. Queria um filme
romântico e com ação. Afinal, toda história que não tem tiros
e beijos é enfadonha. Havia um cartaz antigo que parecia se
encaixar no que Darcy buscava: “O Gralha e o Oil-Man - Um
Encontro Explosivo”. Mas o atendente frustrou os planos de
Darcy ao pedir algum documento.
O jeito era caminhar. Darcy seguia, sem maiores
pretensões, uma pós-balzaquiana charmosa, de fino trato,
portando uma grande mala. Um barbudo, mais ou menos da
mesma idade, encostado em um muro, a fitava de longe. Ela
passou diante dele, que, pronunciadamente, acompanhou as
ancas da senhora com o pescoço. Ela parou, deu meia volta e
encarou o barbudo. O homem sorriu com o canto direito da
boca. A mulher pediu para que ele cuidasse da mala, que ela
já voltava. Precisava ir à lanchonete ao lado. Rapidamente,
estava de volta.
- É, tem um hotel ali perto que a gente podia ir.
- Senhor, eu sou religiosa, sou freira, fui telefonar para as
irmãs. A vida não é só o que o senhor pensa, não. A vida tem
outros aspectos, não é só sexo, somos inteligentes. Obrigada
por cuidar minha mala, boa noite e até logo.
Freira?!?! Sem pensar duas vezes, Darcy pediu uma
entrevista para agregar dados na pesquisa “Freiras na urbe
pós-moderna”. Respondeu que gostava de dar entrevistas.
A freira deu a entrevista, depois de largar suas malas na
Congregação que estava a 50 passos. Parte da entrevista foi
respondida por meio dos gestos das mãos de Custódia Maria
Cardoso, mais conhecida como Irmã Custódia. Religião, nas
palavras dela, perde o ar solene e afetado. O alto astral não
se abateu nem nas perguntas que colocaram em xeque os
dogmas da religião.
Curitibocas | 159
Você já usou hábito? Já. Tenho foto e tudo. Quando a
congregação liberou, eu deixei de usar. A nossa Congregação,
“Irmãzinhas da Imaculada Concepção”, é brasileira. É mais fácil
de você conviver e explicitar. As irmãs trabalhavam, por exemplo,
em Mato Grosso ou em Manaus, com 41 graus. Nem a pintura
pára. As irmãs começaram a ir até os índios, porque a Santa
Paulina acreditava que a vida religiosa devia servir a Deus onde
mais o povo precisasse. Então, as nossas freiras trabalhavam
com loucos, aidéticos, na periferia. Aí, as irmãs perceberam que
os hábitos estavam diferenciando muito, distanciando muito.
“Por que estamos usando hábito, que é uma questão de hábito
da Idade Média, em uma congregação brasileira?”, questionou
a Congregação. O hábito das irmãs comuns, compridos, das
mulheres camponesas. Você veja as vicentinas, aquelas de
chapéus enormes, é uma coisa das damas francesas. Então foi
votado e nós fomos aderindo.
O hábito não é uma questão programática da
Igreja? Os fundadores das congregações não exigiam hábito.
São Francisco, por exemplo, usava uma trapeira. Então, como
foi estruturando, a Igreja foi igualando, mas as congregações
ficaram cada uma com sua marca. Nós achamos que o necessário
na vida religiosa é o testemunho, não a roupa. As vicentinas, que
são uma das maiores do mundo, estão liberando. As congregações
brasileiras são mais fáceis mudar. Europeu é mais fechado. A
maioria das irmãs da nossa Congregação não usa hábito. Eu, além
de não usar hábito, ando arrumada. Faz parte da minha família,
de mim. Estou aperfeiçoando a natureza. As irmãs aprovam. As
que não aprovam, não falam. E quando falam, eu rebato.
Curitibocas | 161
Ele foi perseguido. A Igreja da época também. Há 45 anos,
o Papa João XXIII, quando falou: “Precisamos abrir as janelas
da Igreja para entrar o ar lá de fora e ver como está lá fora”. Se
Lutero tivesse permanecido, fazia uma reforma parecida com a
de João XXIII.
Curitibocas | 163
e, depois, “Oração da Tarde”. Meu programa não tem nada
de semelhança com ele. Eu acho que alienar não dá. No meu
programa, você tinha que pôr aquela força e pensar em Jesus.
Meu programa era mais centralizado no evangelho, lendo
bastante a prática da fé e da justiça, ação e contemplação.
Onde era transmitido o programa? Na Rádio Difusora
Apucarana. Depois, produzi e apresentei durante 18 anos a missa
de televisão, o “Onze vai à Missa”. Era transmitido no antigo
SBT, na TV Tibagi de Apucarana. Foi um programa que ganhou
prêmio de melhor programa religioso, superando o Rex Humbert,
um crente que fazia um programa muito bem feito, mas que era
produção americana.
Curitibocas | 167
Sempre tive uma dúvida: para as freiras é mais
difícil conseguir trabalho? Pelo contrário. Temos mais
facilidade. Primeiro, porque na estrutura religiosa sempre tem
trabalho. As irmãs vão vendo as moças conforme as inclinações.
Elas vão indicando para determinado curso. Eu, por exemplo,
sempre gostei de música. Então, eu fiz escola e já cantava,
regia, trabalhava no rádio, falava nos microfones, dirigia festa.
Atualmente, por exemplo, quem quer trabalhar com periferia vai
fazer faculdade de serviço social e já tem uma base e tudo. Quando
você fala que é freira, tem uma porta aberta, porque todo mundo
sabe do nosso espírito de formação de autenticidade. Tem gente
que fura, mas é muito pouco. Uma em cada quinhentas assim.
Curitibocas | 169
da parte social. É uma cidade que eu acho humanitária, mas tem
um grande grupo egoísta.
Curitibocas | 171
mas eu gosto muito do canário que canta.
Key
Imaguirre
C
om satisfação pela entrevista em um lugar sagrado,
Darcy se despediu. Na saída, quase esbarra em um sujeito
com pesada carga intelectual nos braços.
Na manobra para não se chocarem, uma revista em
quadrinhos cai no chão. Darcy recolheu. O dono nem se deu
conta. Ao invés de correr e devolver imediatamente, Darcy se
deixa levar pela curiosidade. Seguiu o homem. Anotou em seu
pouco usado bloco de notas o endereço da casa dele. Devolveria
amanhã, depois do expediente.
Curitibocas | 175
Na volta ao apartamento, Bruno estava encolhido na calçada.
Murmurava sobre a injustiça do trânsito. Dizia que os pedestres
não têm vez em Curitiba, que as faixas deveriam ser respeitadas.
Darcy agarrou-o pela mão. No estreito corredor, o porteiro
discutia com um rapaz sem camiseta. Realmente, fazia um pouco
de calor, não a ponto de estar com o dorso nu, mas “cadum,
cadum”, como dizia o avô de Darcy. O porteiro barrou o jovem e
insistia que era norma do condomínio todos usarem camiseta.
“Na minha casa eu faço o que eu quero”, contra-argumentava o
sujeito de topless, que também agregou ser este um país livre.
Darcy fez de conta que não acontecia nada. Bruno passou fitando
os debatedores.
Darcy dormiu e acordou cedo. Tinha que chegar ao aeroporto
às 6h. Pelas dúvidas, acordou 4h e foi sem tomar café ao novo
emprego temporário.
Chegou até o escritório indicado por Andressa. Na recepção,
a secretária colava um cartaz com axiomas para um bom
empregado. “Sorrir sempre”, “cortesia”, “pontualidade”, entre
outras frases seguidas de carinhas amarelas e sorridentes. Sem
maiores delongas, a secretária pediu que Darcy preenchesse
uma ficha. Depois, lhe deu crachá e uniforme, que deveria ser
devolvido no final do expediente. Sem a devolução, não teria o
pagamento diário.
Naquele dia, teve que lavar carros. Não entendeu muito
bem como funcionava o sistema da empresa, e não perguntou,
apenas fez o que a moça mandou. Uma van deu carona até o pátio,
próximo ao aeroporto, com os automóveis sujos. Concentração na
passagem para longe de Curitiba. Fez hora extra. Só parou para
descansar no almoço e quando passou um carro vendendo doces.
Os lavadores de carro faziam fila para comprar o doce, toda vez
que passava um carro de som com “sonhos bem fresquinhos”.
No meio da tarde, estava com um tremendo cansaço e
com cheiro de produtos de limpeza, mas valeu a pena. Voltou
ao escritório. Sentou em frente a um computador vago para
pesquisar o endereço anotado no bloco de notas. O professor
de arquitetura Key Imaguirre era o dono da casa. Ele também
era o fundador da Gibiteca, o que parecia ser uma biblioteca
de quadrinhos. Darcy acreditava que o destino lhe reservara
outra daquelas conversas. Recebeu o devido salário, no final do
expediente, após uma revista obrigatória. “Normas da empresa”,
desculpava-se o segurança que apalpava Darcy.
Curitibocas | 177
Como você caracterizaria a evolução de Curitiba?
Em grande parte, é um processo normal. Na medida que você
tem mais gente, você pode ofertar coisas diferentes. Tem mais
oferta cultural e serviços, mas tudo pode ser intensificado. A
evolução disso aconteceu, na verdade – aí tem um pouco de eu
ser um produto 100% UFPR –, muito por essa via da cultura. As
circunstâncias da gente ter tido a primeira universidade pública
brasileira, de ter começado a conservação de arquitetura antiga,
instalar equipamento cultural em edificações, você sai criando
ambiente. Quando estudei, já tinha algumas universidades pelo
Brasil afora, mas no Paraná era única. Vinha muita gente de
tudo que é lugar do Paraná, de Santa Catarina e outros estados.
Isso fazia a cidade ser cosmopolita. Tinha muito esse aspecto de
convívio. Um pouco, isso existia pela imigração. Mas isso era
muito presente ainda, até a década de 70.
Curitibocas | 179
Como? O ser humano não deixa de ser animal. Todo animal
necessita de seu território. Então, quando você coloca as pessoas
morando uma em cima da outra, empilhadas, sempre brigam. É
clássica essa história de briga em condomínio.
Curitibocas | 181
tudo isso. Só estou com o bom, que é ser professor. Você não vai
perguntar nada da Gibiteca?
Quero aproveitar mais esse aspecto de educador
para minha pesquisa. Existe um afã das universidades
de se venderem como divertidas e práticas. Que
avaliação o senhor faz sobre isso? É péssimo. A propaganda
diz: “Formamos profissionais para o mercado”. Isso é uma das
piores coisas possíveis, você configura um profissional para uma
determinada situação. Só que o mercado muda rapidamente.
Daqui a dois, três anos, o profissional que se formou para
aquele mercado acabou, está desatualizado, vai ter que fazer
reciclagem. Talvez a mecânica seja essa, porque daí ele volta
para a universidade e vai pagar de novo. É como minha avó
dizia “Aquilo que é fácil, não desenvolve”. Como você desenvolve
músculo? Fazendo força. O cérebro é a mesma coisa. Dizer que
o conhecimento dentro de uma universidade é só prático é
uma mentira. O que é o curso prático? Aprender fazendo, tudo
bem. Mas é o suficiente? Onde fica tudo que a humanidade
desenvolveu na civilização? Não pode estar ali naquela prática.
O conhecimento organizado, que é a teoria, não tem como evitar
em uma universidade. Ou está mentindo e está a teoria, ou está
fazendo uma coisa totalmente superficial.
Curitibocas | 183
Preto, estragou com a cidade inteira. Parece um barracão de
meia-água, é uma coisa que agride. Muito feio, de onde você
enxerga aquilo, você odeia. Pelo fato de toda a cidade brasileira
querer uma obra dele, está tirando a chance de arquitetos novos.
Isso que se pede para o Niemeyer deveria ser concursado, e que
ganhe o melhor projeto. Muita gente está deixando de aparecer,
deixando de ser o Niemeyer do futuro. Já devia ter pego o boné e
fazer o que quiser. E, também, ele está se repetindo. No memorial
da América Latina, de São Paulo, têm várias coisas que são
releituras de obras dele mesmo. O próprio Olho [Museu Oscar
Niemeyer] é uma releitura de um colégio que ele fez em Belo
Horizonte na década de 50.
Curitibocas | 187
e não esteve em Curitiba porque não tinha dinheiro para comprar
a passagem. Tinha gente oferecendo a casa, que podia jantar na
do fulano, não sei o quê. Não acharam passagem para o cara. O
que é isso? Não dá para engolir. É paciência para superar essa
e insistir de novo, eu não tenho. Eu já teria feito um barraco,
chutado o balde e ido embora.
A Gibiteca depende muito da tal da vontade política. Quando
tem um presidente da Fundação Cultural que entende, que acha
válido, a coisa vai bem. Quando tem um que é da área de teatro,
cinema, fotografia, eles prestigiam a área deles e esvaziam as
outras.
Curitibocas | 189
daquele maniqueísmo do super-herói americano. Às vezes, você
tem dois caras que lutam e não são necessariamente um mal e
um bom. Simplesmente, podem ter perspectivas diferentes da
situação. Meu pai, quando chegou em Curitiba, era uma atração.
“Japonês? Nossa, o que é isso?”.
Curitibocas | 191
Qual é o cúmulo da miséria? A burrice.
Curitibocas | 193
Quem arte quer casa
Didonet
Thomaz
N
a volta ao apartamento, Darcy viu o gari que lhe
recepcionara em seu primeiro dia na cidade
caminhando em direção contrária. Preferiu fazer
de conta que não o viu, ou que não lhe reconhecera. Não queria
conversar com mais ninguém. Entrou no velho prédio como
Andressa, evitando todos. Queria estar invisível.
Bruno estava estirado na sala, em cima do colchão de Darcy.
Sem rodeios, Andressa convocou Darcy a dormir no quarto dela.
Bruno despertou no outro dia às 10h32.
Curitibocas | 195
A noite não foi boa para Darcy. Andressa fumava na cama
e roncava. Se não bastasse isso, o celular dela vibrou três vezes
naquela madrugada. O nome “Lindomar Voadera” era exibido
em letras negras no display verde do aparelho. Darcy dormiu
por cima do edredom.
Na manhã seguinte, Darcy chegou ao aeroporto. Bateu seu
cartão e aguardou até às 8h para algum setor acusar a necessidade
da mão-de-obra. Para seu constrangimento, ficou este tempo
na frente da secretária que gritara no dia anterior. Trocaram
poucas palavras.
Desta vez, lhe deram cassetete, boné e colete. Faria a
segurança no aeroporto. Tarefa simples, revistar as pessoas
depois do raio-x, caso este insistisse em acusar que o passageiro
estivesse portando algum metal. Sentiu alívio quando lhe
disseram que não teria que tocar ninguém desta terra cheia de
melindres.
Uns 15 minutos antes de cada vôo partir, formava-se uma
fila na sala de embarque. Meio estúpido, pensava Darcy, já que
os assentos eram numerados. No ônibus que ia da cidade de
Darcy até a capital, sim, era necessária uma fila para disputar
os parcos assentos.
O segurança, que deu o curso intensivo de 20 minutos sobre
as funções de Darcy para aquele dia, explicou que as pessoas
fazem isso para colocar as malas nos compartimentos de mão.
Segundo ele, os viajantes não tinham paciência de esperar por
cinco ou oito minutos a bagagem vir no desembarque, o que fazia
com que todos disputassem o espaço reservado para bolsas de
mão com malas cheias de roupas para dias.
Os passageiros deste aeroporto teriam chiliques se fizessem
a viagem de Curitiba à sua cidade.
No intervalo do almoço, aproveitou-se da estrutura do
escritório. Darcy não tinha por que ter pudores com esta
empresa – em breve estaria longe. Usou um computador livre
para navegar na Internet. Queria ler sobre os assuntos tratados
na última conversa.
Deteve-se lendo sobre a casa Erbo Stenzel. Depois de
cumprido o expediente, com o devido pagamento diário, leu
mais. Segundo os sítios, Erbo Stenzel foi um artista plástico
famoso (absolutamente desconhecido para Darcy). Sua casa
foi transportada para um parque e agora abriga um museu em
homenagem ao artista. Chamou-lhe a atenção um trabalho
enigmático desenvolvido na casa. “Teatro Monótono” era o
Curitibocas | 197
Borges, Los teólogos. Tenho uma postura ética em relação à vida
e ao trabalho desenvolvido nas casas de famílias que me dão a
liberdade de, simplesmente, ver e tocar nos seus pertences, nas
tripas da casa, observar o íntimo, o que guardavam, tudo. Deixo
claro que não estou fazendo o histórico da família.
Deve ter sido duro ver a casa que você tanto estudou
sendo realocada. É, mas o momento mais difícil para mim foi na
casa da Travessa, quando tive que escolher os livros que ficariam
com a família. A casa já estava vazia. Não tinha luz elétrica. As
janelas estavam batidas, com grades. Estava escurecendo. Fiquei
sozinha na tarde do dia 23 de agosto de 1997. Nunca vi alma do
outro mundo, nem lá, nem em lugar nenhum. Então, eu descia
pela escada de acesso entre os pavimentos, levava os livros para
cima. O ambiente estava sinistro. Tinham partes escuras, só
acostumando a vista via a silhueta dos objetos remanescentes.
Fiquei tão maravilhada com tudo o que encontrei, que não me
dei conta do tempo que passou. Num momento, quando estava
indo para a soleira da porta, foi que eu senti como... Não sei se
por que estava sendo determinado que o projeto teria o nome
“Casa Erbo Stenzel”, o nome do artista, e não da família, mas eu
senti a presença dele como sendo o dono daquela casa. Isso não
corresponde à realidade, porque era uma casa de toda família.
Curitibocas | 199
sensibilidade, uma vocação para isso. Uma personagem que
viveu na casa da Travessa, a Sara, irmã de Nestor e de Erbo, foi
chapeleira, plantou flores, fez buquês, criou coelhos... até cada
ofício se esgotar na sociedade. Ela já havia falecido quando
entrei lá.
Curitibocas | 201
são artistas atuantes. Quando comecei a atividade artística, lá por
77, evitava participar dos salões de arte porque tinha júri. Dizia
que não pode ter porta fechada, mas a sociedade toda é formada
assim. Não são todos os intelectuais que são abertos.
Curitibocas | 205
Por que não? Gosto de pular exposição. O que fica é livro,
o impresso. Apesar de que nenhum livro garante a qualidade da
obra de um artista. Prefiro entrar com uma obra no acervo de
um museu, que vai ser mostrado sistematicamente em contextos
diferentes.
Curitibocas | 207
Não. É problemático você julgar projetos de colegas.
Existem projetos que não são relegados, mas diante daquilo
que é apresentado está excluído quase que automaticamente,
como se houvesse uma tendência. É cruel. Tenho coragem e
gosto de trabalhar com arte contemporânea. Tem críticos que
não colocam para perder, porque tem grandes chances de erro.
Eles trabalham mais com mortos ou artistas vivos que foram
muito comentados – aí não tem erro. Tem trabalhos que dão
mais possibilidade de leitura.
Curitibocas | 209
O que você gostaria de ser? Alguém que pudesse
influenciar nas questões do mundo para o bem. Questão
da água, da pobreza, da miséria. Poder amenizar o
sofrimento das pessoas.
Paulo
Cezar dos
Santos
Rodrigues
D
epois das despedidas protocolares, Darcy espera, no
ponto, o ônibus para voltar ao apartamento.
Anoitecia. Um esportista de cabelos
grisalhos despertou-lhe inveja. Ele corria na direção do
apartamento de Darcy. Parecia convidar a todos para que
seguissem seu exemplo e superassem certas distâncias com
os pés. Darcy preferiu aguardar. 25 minutos depois, chegou o
ônibus. Desceu alguns pontos antes para comer algo em uma
lanchonete e caminhar um pouco.
Pediu dois pastéis e um refrigerante “do mais baratinho”.
O atendente trouxe uma “tubaína” – uma bebida de gosto entre
tutti-fruti e guaraná.
Quando Darcy devorava o segundo gorduroso pastel, viu de
longe aquele mesmo atleta de quilômetros atrás se aproximar. A
última mordida desceu rasgando a culpada garganta de Darcy.
Curitibocas | 213
Ele passou pela lanchonete fitando a mesa de Darcy. A camisa
do corredor dizia ACORBA. Darcy anotou em seu pouco usado
bloco de notas. Resolveu vencer os 20 minutos de caminhada
até o apartamento correndo. Levou 30, pois teve que parar para
descansar no meio-fio da calçada.
Em casa, todos estavam dormindo. A cama estava pronta.
Mas Darcy não conseguia dormir. Maldito pastel ou maldita
consciência. Darcy observava pela janela, que deixava passar um
fio de vento frio por uma fresta invisível. Os prédios pareciam
murmurar um com o outro por meio de luzes que se apagam e
se acendem.
Deitou-se ainda sem sono. Olhava o teto que servia de piso
para alguém em cima. Se tudo fosse transparente, perderíamos
privacidade, mas entenderíamos um ao outro. Junto com
Darcy, quantas pessoas estavam sem sono? Quantos estavam
já dormindo? Piscou os olhos. Quantos o fazem exatamente
ao mesmo tempo, e quantas vezes ao dia? Somos muito mais
parecidos do que imaginamos. Um intelectual, um mendigo e
um prefeito comem asa de galinha sem os talheres, do mesmo
jeito. O pensamento de Darcy foi ficando mais e mais abstrato
até que virou sonho.
No dia seguinte, a mesma rotina. Internet, medo de tocar
em todo mundo, pagamento no final do expediente. Mais uma
vez, disfarçou-se de segurança. Alguém disse algo sobre número
mínimo de segurança por lei. Darcy servia para aumentar o
contingente de maneira barata.
“Atenção, passageiros. Vôo. Um. Três. Sete. Sete”, anunciava
a robótica gravação. A moça que gravou o anúncio dos ônibus
deveria ser contratada para refazer as chamadas no aeroporto.
Duas diferenças essenciais no final do expediente. Navegou
na Internet antes de bater o ponto de saída. Ninguém notou.
Ganhou como uma hora trabalhada a mais. Outra, que marcou
por telefone a entrevista sobre seus estudos de “Desportos
urbanos sob a ótica do diálogo”. Apesar da pomposidade do
título, Paulo Cezar dos Santos Rodrigues aceitou receber Darcy
no escritório da Associação dos Corredores de Rua de Curitiba.
No telefone, Rodrigues demonstrou correr também na fala.
O diálogo a seguir se deu no escritório de Paulo Cezar. Nas
paredes, quadros com homenagens, prêmios, uma bandeira
do Brasil e outra dos Estados Unidos. Com as pernas peludas
cruzadas, tênis sem meia e indumentária esportiva, Paulo
estava à vontade para dar respostas para tudo. Falava duro,
Curitibocas | 215
material até determinado nível. Virou um troço desenfreado.
Só ver no jornal a corrupção. A população não pode se espelhar
nos líderes.
Curitibocas | 217
vices na história recente não estão sendo lembrados por serem
bons, mas por acidentes que aconteceram. É o caso do Vanderlei
Cordeiro de Lima. Se perguntar quem ganhou aquela maratona,
você lembra?
Curitibocas | 219
uma associação especificamente desse esporte. Graças a Deus,
tem dado certo. Sentimos falta do incentivo das empresas. Sou
presidente desde a primeira gestão.
Curitibocas | 223
Quando você veio para Curitiba? Em vim em 72. Mas,
desde então, eu fui morar em Porto Velho, Rio Grande do Sul,
Mato Grosso, voltei para o Rio de Janeiro.
Curitibocas | 225
dificuldade no processamento e acumulam a gordura. O negócio
é não acostumar o organismo. O intestino é um elástico. É muito
mais difícil perder essa gordura e reeducar a alimentação.
Curitibocas | 227
Quais obras literárias você prefere? Vou ser bem
sincero: não leio livro. A minha leitura se baseia em
revista e jornal.
Curitibocas | 229
Valdir
Novaki
A
proximadamente às 19h19, resolveu caminhar mais
depressa. Para atravessar a rua, corria. Sempre de olho
no relógio. Com fé religiosa, acreditava que estas
medidas aumentariam seu desempenho físico. As ações foram
abandonadas no dia seguinte.
Darcy volta a ter a sensação que tinha quando recém
chegara em Curitiba. Todas as pessoas são interessantes, bastava
descobrir. Na loja de roupas, uma atendente finge alegria ao ver
o qüinquagésimo cliente sair sem comprar nada. Um homem
confessa que ama a mulher sentada no banco ao lado – a resposta
é um seco “eu não” seguido de lágrimas. Uma jovem caminha
pela calçada evitando pisar nas pedrinhas negras. Transeuntes
esbarrando em outros com agressividade passageira. Tudo de
sumo interesse.
Curitibocas | 231
Mas, nesse dia, uma pessoa chamaria mais a atenção de Darcy
do que qualquer outra da última hora. Na Praça Tiradentes, um
homem de bibico pilotando um carrinho de pipoca comandava
uma fila. Vestia um uniforme branco, como das publicidades de
sabão em pó, com o dia da semana bordado no bolso – no caso,
era quinta-feira. Algumas mulheres retocavam a maquiagem no
vidro do carrinho que expunha vistosos milhos explodidos. Darcy
entrou na aglomeração.
Os risonhos olhos claros do cozinheiro encontraram os
de Darcy. Com um grande sorriso, pegou na mão de Darcy e
perguntou se era a primeira vez que provaria a Pipoca do Valdir.
Com um grande sorriso, o pipoqueiro ofereceu três variedades
de pipoca. Darcy gostou da doce. Levou de graça um pacote
feito na hora. Junto com a pipoca veio o kit-higiene – pequeno
pacote plástico com palito de dente embalado, folder (“Pipoca
do Valdir, Um estouro de sabor”), bala de hortelã e guardanapo.
Darcy não recebia este tratamento nem no restaurante mais caro
de sua cidade.
Ficou em estado de choque. Permaneceu nas proximidades
testemunhando o atendimento especial que o pipoqueiro dava
a todos. Em alguns casos, chamava o freguês pelo primeiro
nome.
O diálogo a seguir ocorreu depois de uma paciente espera
de Darcy, que aguardou o pipoqueiro fechar seu carrinho,
lavar e guardar em um estacionamento próprio. Valdir estava
contente por contribuir com o pujante estudo: “Perspectivas de
crescimentos e casos de empreendedores de rua”. Mesmo quando
explanava temas pessoais, demonstrava felicidade e clareza. O
sorriso não era mero artifício de vendas.
Sempre deixa o carrinho aqui? Pago o estacionamento
por mês, como se fosse um carro. A responsabilidade deles é a
mesma. Se acontecer alguma coisa, têm que pagar.
Curitibocas | 233
70% da minha clientela são pessoas que vêm das cidades vizinhas
procurar suas oportunidades na capital. Mas eu consigo dobrar
os 30% restantes. São meio enjoados, mas... [risos]
Curitibocas | 235
Qual o segredo para ter todo o controle? Tenho uma
planilha eletrônica gerencial de custos que controlo diariamente.
Se vou no supermercado e o óleo de 2,50 passa para 3, sei, no final
da tarde, o quanto alterou na minha linha de produção o custo.
Curitibocas | 237
Qual é o preço? Uma hora de palestra para eles é mil reais.
Se não aprendeu, mais meia hora, é 500. Quando me propus a
ajudar todos de graça, não quiseram. Acharam que o fato de eu
abrir um pacote de pipoca com um pegador de alta pressão era o
cúmulo. Chegaram a falar na praça que eu era o cara mais nojento
de Curitiba. Tinha que abrir o pacote com a mão. Como que eu vou
enfiar minha mão dentro do pacote que outra pessoa vai comer?
Queria ajudar para que melhorassem a própria condição de vida
deles. Não é fácil você ganhar aqueles fregueses assíduos. Muita
gente diz: “Pô, você é folgado, não trabalha sábado e domingo”.
Porque ninguém sabe quantas horas por dia trabalho. Entre sair
da minha casa, na hora que eu saio, até a hora que chego são 16
horas de trabalho por dia, 12 em pé. Só vou sentar na hora que
venho embora de ônibus. Chega final de semana, estou com meus
pulsos doendo. Semana inteira areando panela, empurrando
carrinho, é cansativo.
Curitibocas | 239
Você é formado em administração? Não, Darcy, pelo
seguinte. Só cursei até a quarta série do primário. Não tive a
oportunidade de estudar mais porque sou de uma família muito
pobre. Somos em 12 irmãos, meu pai não dava conta de sustentar
- eu sou o sétimo. Cada um tinha que ir para um lado e se virar
do jeito que podia. Saí da casa da minha mãe com oito anos de
idade. Vivi dos oito anos até os dezenove sozinho, que foi quando
eu casei. Assim, meu pai, minha mãe participaram muito pouco
da minha adolescência. Você imagina, 12 filhos dormindo em
um quarto só. Numa cama. Complicado, né? Hoje, as épocas são
outras, graças a Deus temos um pouquinho mais de conforto, mas
o passado eu prefiro nem lembrar porque foi muito sofrido.
Com oito anos para onde você foi? Saí da casa da minha
mãe, fui trabalhar num abatedouro em São Mateus do Sul onde
matava porco, fazia lingüiça, matava galinha nas sextas-feiras
para abastecer os supermercados da cidade. Eu morava lá. Ia
estudar de manhã, à tarde trabalhava a troco de minha comida e
da cama que eles me davam. Trabalhava sério. Quatro da manhã
já estava levantando e matando as galinhas. Chegava as carretas
de frango. Eram mortos 3.000, 4.000 frangos nas quartas-feiras.
Muitas vezes, ia dormir 22h para, às 4h, estar em pé. Fui até os
14 anos assim. Aí eu cresci, já podia trabalhar na roça, ganhar
um pouco mais. Passei a alugar um quartinho para mim.
Curitibocas | 241
Nem sabia que tinha os bairros, tipo Água Verde, Campo
Comprido... Pensava que Curitiba era que nem cidade pequena.
Vim a pé. Não tinha dinheiro nenhum no bolso.
Curitibocas | 245
Na época da banca de jornal você deu entrada? Isso.
Continuei todo o ano. Você tem que renovar o cadastro. Renova e
renova e renova e nada. Aí um dia, ano passado, eu trabalhando
no estacionamento falei assim para minha mulher: “Olha, estou
trabalhando demais, a mulher está me explorando, eu vou sair de
lá”. Trabalhei 30 dias sozinho, fazendo dois horários. Ela brigou
com um rapaz, mandou embora e eu fiquei sozinho. Tinha que
fazer o meu horário, que era das 7h às 15h, e o horário dele, que
era das 15h às 23h. Só que no dia do pagamento, ela só me deu
os meus 390 reais. Falei para ela:
- Dona Iara, eu fiz dois horários, 16 horas por dia. A senhora
vai me pagar só 390?
- Não, eu perguntei a você se você podia me dar uma força.
Você se prontificou dizendo que podia. Favor não se paga.
- Então está bom. Vamos fazer o seguinte. Estão aqui suas
chaves.
E fui embora. Só que eu não fico brabo. Não deu, não deu.
Curitibocas | 247
com eventos. Estava ruim também. Pagava e, muitas vezes,
o tempo não colaborava. Para não ficar parado, eu fui para o
estacionamento da Iara e, daí, fui direto para o meu ponto. Se eu
ganhava X trabalhando de empregado, hoje eu ganho de oito a
dez X trabalhando para mim. Estou me realizando. O meu sonho
é ter uma casa boa. Amanhã, o meu próximo passo é guardar o
dinheiro para o meu filho fazer uma faculdade.
Curitibocas | 249
Quais obras literárias você prefere? Todas.
Curitibocas | 251
Leão na savana
Oilman
Q
uando chegou ao apartamento de Andressa, já era
madrugada. Três horas dormidas depois, rumou ao
aeroporto. Calculou quanto de dinheiro tinha no bolso.
Com mais sete horas de trabalho, teria o suficiente para comprar
a passagem de volta. A ansiedade superou o sono fazendo com
que Darcy ficasse todo o trajeto até o aeroporto com os olhos
abertos.
Olhava pela janela a chuva e o vento. Ouvia pelas últimas
vezes as conversas paralelas dos curitibanos que discutem
arquitetura e urbanismo como se fosse futebol. O Brasil tem
178 milhões de técnicos de futebol e 2 milhões de arquitetos
em Curitiba.
Curitibocas | 253
As ganas de se arrefecer ao ver as sobrancelhas da secretária
do RH se levantar. Estava surpresa com o aspecto pálido de
Darcy. Julgava que Darcy teve uma noitada. Segundo ela, não
havia nenhum posto de serviço necessitando mão-de-obra. “Pode
ir para casa xxxxxxxar”. Ela disse “descansar” ou “se recuperar”?
Maldita seja.
Darcy arrastou-se até o saguão do aeroporto. Olhava os
passageiros apressados, com computadores que parecem
celulares e celulares que parecem computadores. Tecnologia de
suma importância hoje, absolutamente desnecessária ontem e
obsoleta amanhã.
Um dia, conheceria outro país de maneira bem calma,
prometeu-se. Como paliativo dessa medida, resolveu aproveitar
seus últimos dias de Curitiba em um aglomerado de ruas com
nomes de países. Aproveitou que, depois da chuva, abriu o sol.
Desembarque do ônibus, embarque em uma padaria. Pediu
café e bolinhos de mandioca. O atendente trouxe bolinhos
de aipim. Na frente do semáforo (sinaleiro, em curitibanês),
dois bonitos jovens distribuíam adesivos institucionais da
prefeitura.
Uma das cenas mais inusitadas da visita de Darcy ocorreu
neste cenário. Um sujeito grande, de porte físico avolumado –
meio músculo, meio gordura, com rabo de cavalo e... bem, aí
inicia-se a descrição do inusitado: trajava apenas sunga e tênis,
além de estar besuntado com óleo misterioso. Este só podia ser o
Oilman, que parecia não chamar a atenção dos nativos do bairro.
Vem um dos piás dos adesivos, no personagem:
- Coloque na sua bicicleta.
- Não, não vou colocar nada. Nessa aqui não. Não posso
fazer isso.
- Pode, tem espaço aqui.
- Você tem que entender que eu não posso fazer isso.
O piá insistiu quando o Oilman passou novamente. Na
terceira vez, o jovem falou meio brincando:
- Se não colocar, vou pedir para a prefeitura cancelar teu
patrocínio e a tua licença.
O Oilman riu. Existe alvará para andar pelado em Curitiba?
Resolveu seguir o personagem, depois de pagar a conta.
Marcou a casa que ele entrou. Caminhou por meia hora pelo
bairro. Em frente à casa, escutava o Oilman cantarolando “Love me
tender”. Bateu palmas, meio aplausos. O Oilman veio. Darcy deu
as justificativas de praxe. O Oilman daria a entrevista e mostraria
254 | Oilman
todo o material do personagem pela módica quantia de cem reais
– preço que cobrava para dar entrevistas para a imprensa. Darcy
disse que não tinha dinheiro, seu projeto de “Contextualização
dos esportes não-futebolísticos nas palavras dos próprios atletas”
era feito com poucos recursos. Por se tratar de um projeto não
midiático, Oilman baixou para 50 reais. Darcy balançou a cabeça,
insistindo, delicadamente, que não pagaria.
Alguma coisa fez com que Oilman, conhecido como Nelson
Rebello quando traja roupas civis, cedesse a entrevista a seguir
sem custos. No começo, a expressão corporal e facial de Rebello
intimidaram Darcy. Depois, acostumou-se com o jeito de Nelson
e descobriu um simpático super-herói seboso. Quem tomou a
iniciativa foi o entrevistado:
... Pedi para você o donativo e quero pedir que você faça uma
coisa séria do Oilman. Você tem uma responsabilidade também,
porque eu tenho uma exposição muito grande. Não tenho apoio
de ninguém, tenho que tomar cuidado que investiguem a minha
vida e queiram me avacalhar. Não devo nada para ninguém. Você
pode fazer uma abordagem light, só vendo o Oilman como um
artista, personagem atlético. Dessa forma, dá para você fazer,
ninguém vai colocar defeito.
Curitibocas | 255
A motivação do Oilman é preservar a saúde? Claro.
Geralmente, um cara com a minha idade, com a minha vida, com
a minha renda, já era. É o contrário comigo. Tem a questão da
saúde mental também. Vêm uns loucos, me gritam, me ofendem,
jogam o carro em cima, é um susto atrás do outro. É terrível. A
adrenalina sobe e desce. Você acaba ficando louco, louco mesmo.
Tenho que me defender assim, tratar da minha saúde, evitar tudo
que me moleste e desvie minha atenção na rua.
256 | Oilman
Como foi a transição do basquete ao Oilman? Com o
tempo, fui para a praia fazer exercício aeróbico de baixo impacto.
Caminhada na areia, natação, depois descobri a bicicleta.
Misturei a praia, a sunga, com a bicicleta. O óleo era para proteger
de queimadura. Em 97, eu misturei tudo. Não tenho grana para ir
à praia sempre. Transformei o meu hobby, na cidade, como um
passeio na praia. Um tipo de atleta de fim de semana, empolgado,
muito empolgadíssimo.
Curitibocas | 257
O que houve para você ter engordado? Acho que pela
ansiedade. De não poder mais jogar basquete, não poder ser
mais aquele atleta.
258 | Oilman
vai no parque. É só ciclovia em parque e perto da linha do trem.
O pessoal anda nas canaletas.
Curitibocas | 259
país que esteja mexendo com substâncias radioativas que ele já
pensa em bomba atômica.
260 | Oilman
no começo, não existia uma anormalidade igual a essas como o
Oilman, como pessoas diferentes no comportamento. Foge aos
estereótipos. Tinha uma repórter nova do canal 12 [RPC] que
fez matéria comigo. Tive que parar a reportagem, mandei ela
embora. Ela não entendeu minha visão, veio com uma imagem
muito machista. Pensou que era um louco-gordão. A menina
veio com aquele pensamento machista: “Esse cara é perigoso,
esse cara é um bandido, deve ser um louco”, e começou a me
tratar mal na reportagem. Naquela época, o Oilman tinha uns
dois meses. As reportagens que saíram, até hoje, não alcançam
o público. Tudo errado.
Curitibocas | 261
Tenho ajuda do meu pai que, de certa forma, dependo deles
até hoje. Não tenho gastos. Só com as coisas do Oilman e com
a alimentação. Não tenho o costume de gastar com gibi, DVD,
revista, jornal. A minha vida é simples.
262 | Oilman
Curitibocas | 263
Pensa em constituir família? Por enquanto, não posso
pensar nisso. Imagina um filho, “Pai, o Joãozinho está me
xingando porque viu você na rua só de cueca”.
264 | Oilman
O que um Oilman cover deve ter? Capacidade física. Com
maior capacidade física, maior capacidade mental para assimilar
e ter força para agüentar o que vem. Se um estranho te ofende
agora, você tem que estar preparado.
Curitibocas | 265
Quer ganhar dinheiro com o Oilman? Claro, quem
não quer? Um ícone de marketing, uma imagem pública como o
Oilman, mas ninguém sabe usar. Poderia usar para vender, mas
deixo o meu material guardado porque ele é irrelevante agora.
266 | Oilman
Como você se define? Primeiro, Oilman definindo o
Nelson. É um cara determinado, um cara assim meio frustrado
como cidadão, que tenta buscar uma glória. Acho que todo
cidadão, hoje em dia, não escapa de um destino. Tinha até um
jogador de futebol que falava: “O homem não escapa de sofrer
tentações para se corromper na vida”. A frustração da pequenez
do homem que faz com que ele aspire a glórias. Por isso que
os americanos inventaram o Super-Homem. Você imagina o
cara voando para onde ele quer. Imagina se o Oilman fosse um
milionésimo do Super-Homem?
Curitibocas | 267
ambiente. Isso pode ser considerado positivo. Curitiba tem uma
grande área verde por habitante.
268 | Oilman
A virtude que prefere? Determinismo.
Curitibocas | 269
Qual dom da natureza você gostaria de ter?
Voar.
270 | Oilman
Curitibocas | 271
Dentro da caixinha
Hélio
Leites
E
ram os últimos dias em Curitiba. Mais um dia de
t r a b a l h o n o a e r o p o r t o e j á e s t a r i a vi a j a n d o .
Resolveu voltar em um dos seus locais preferidos
da cidade, a Rua XV.
Darcy tirou a jaqueta. Estava acostumando a sair de casa
com as roupas para o frio, carregar tudo na tarde de céu cor
pança–de-burro e vestir novamente de noite.
Tinha fome e queria algo típico da cidade. Todos falavam do
tal barreado, mas não encontrou nenhum restaurante para comer
tal prato. Chamaram a atenção os restaurantes que serviam
costela 24 horas. Por volta das 15h30, Darcy iniciou a pajelança.
Esta era mais uma das histórias que contaria em sua terra natal.
Pagou menos de dez reais pela farta gordura com pedaços de
carne, arroz e polenta. Se tivesse outra oportunidade, viria no
meio da madrugada.
Curitibocas | 273
Foi rumo à XV fazer a digestão. Darcy sentiu antecipada
nostalgia e saudade do lugar. Sentou-se em um banco perto de
onde encontrara Bruno pela primeira vez. O estômago doía.
No final da tarde, quando já trajava sua jaqueta, passou
um homem de cabelo inusitado. Usava um topete do tamanho
de um sapato. O cabelo cinza parecia servir de matéria-prima
para esponjas de panela. Doze passos depois, ele se agachou
para pegar uma caixa de fósforos que recém um fumante havia
jogado no chão. Sem cerimônias, declamou para que todos na
rua ouvissem:
- Uma caixinha jogada / Guardei ela no meu coração /
Quarenta e cinco palitos / Em média ela se vendia / De tanto
emprestar para os outros / Acabou sozinha e vazia.
O rosto do poeta era conhecido. Darcy o seguiu. Depois,
ele viria a se apresentar como Hélio Leites. Darcy viu Hélio na
Feira do Largo. Ele trabalhava com miniaturas feitas a partir de
material reciclado - caixas de fósforos, principalmente. Volta e
meia ele apresenta o Museu do Botão, o primeiro museu móvel
do mundo, onde Hélio conta uma história para cada caixinha de
fósforo colocada em um colete. Outro invento popular de Hélio é
o Teatro de Boné, onde a aba vira o palco para as miniaturas.
Hélio estava saindo da faculdade. Tomou o ônibus Bracatinga
até o bairro Pilarzinho. Darcy deu duas voltas na quadra, subiu as
inclinações do bairro, e bateu na porta de Hélio. Apresentou-se
e revelou que gostaria de entrevistá-lo para o estudo “Conversas
artísticas”. Darcy se arrependeu segundos depois de proferir
este nome para seu pseudotrabalho. Talvez pelo péssimo título,
Hélio, que trajava um macacão com manchas de tinta, impôs
sua condição:
... Quando faz uma conversa, você está se doando. Podia estar
trabalhando. Claro que a gente não pode ser radical a ponto de
vincular uma coisa à pessoa. E eu gosto de divulgar o trabalho,
de que adianta um trabalho sem divulgar? O Maurício Kubrusli
veio fazer entrevista, ele é uma pessoa super considerada.
Perguntei:
- Quanto você paga?
- Ah não, o Fantástico não paga para ninguém.
- Talvez os outros não precisassem, mas eu preciso. Só faço
isso. Se não cobrar nada, como fica?
- Quanto que é?
- R$ 11.
Curitibocas | 275
Tem contato com essa professora? Um dia, eu consegui
o endereço dela:
- Ó, eu queria conversar muito com a senhora. Eu fui seu
aluno.
- O quê, você foi meu aluno? Você é aquele que distribui
botãozinho? Eu tenho muitos botãozinhos no meu abajur. A
última coisa que eu vejo antes de dormir é o seu botão.
Entrei na vida dela como ela tinha entrado na minha. A
gente tem o Museu do Botão. A Associação Internacional dos
Colecionadores de Botão. Para que serve o botão de roupa?
E o que faz com eles? Os botões vêm para mim. Uma vez
fui fazer uma exposição e um cara me falou que botão não tinha
expressão artística. Pensei em largar tudo isso. Na hora que eu
dei uma cuspida, caiu em cima de um botão. Limpei meu cuspe.
Quando está na boca ele é bom, quando sai fica nojento.
Curitibocas | 277
eu corro?”. Outra vez, sofrendo com o caminho. Cheguei lá, foi
maravilhoso – fora o frio. Fui, contei história, voltei e foi uma
coisa tão bacana que aprendi a não sofrer com o caminho.
Curitibocas | 279
acho que vou acabar sendo pichador. Aqui tinha um bar muito
famoso que tinha uma pichação escrita assim:
“o pauloleminski / é um cachorro louco / que deve ser morto
/ a pau a pedra / a fogo a pique / senão é bem capaz / o filhodaputa
/ de fazer chover / em nosso piquenique”
Ele mesmo que escreveu. Na frente de um vestibular ele
escreveu:
“Quem tem QI / Vai”
Eu acho que é uma forma contemporânea de se comunicar.
São os novos garotos da caverna.
Curitibocas | 283
história dela. A mulher que encontrou e foi salva por um papel
de bala na rua. A Efigênia, no começo, ela tinha uma poesia:
“Eu não sei para onde vou / Ninguém sabe de onde eu vim
/ Mas se Deus me convidou, eu fico até o fim”
Pessoa como a Efigênia tem que ficar de olho. Às vezes,
quando chega um amigo chorando que brigou com a namorada,
mando conversar com a Efigênia. Aí, ela vai com aquela unha, na
Feira, passando no vão das pedras do chão. “A gente é como uma
pedra. Vai se atritando, mas olhe como é. Quando as pedras se
acertam, nascem ramos”. As pessoas falam que ela é louca. Louca
de lúcida. Ela foge de todas as coisas, não tem rédea que segure a
Efigênia. Ela tem isso, ela baixa a cabeça e não perde o rumo.
Curitibocas | 285
/ Que desceu bebeu dois golinhos d‘água e voou apavorado / Eu
aproveitei o seu biquinho ainda molhado / para escrever esse
versinho / só para matar essa minha sede de viver
E para não esquecer da troça / Resolvi chamar o versinho
de poça / O versinho ficou assim
Água parada / Sonhando na poça / Não move moinhos / Em
compensação mata a sede dos...
Bebe? Não bebo, não fumo, não faço nada. Sou Desanimador
de festa. Não tem o DJ? DJ é o desanimador de Dgente.
Chega uma hora que tem que ter um desanimador de festa.
Supersofisticado.
Mora com tua mãe? Casei com a minha mãe. Claro, hoje
em dia, as relações estão tão difíceis. Você tem que ir onde você
é aceito. Não consegui estabelecer uma conexão com outros. Sou
muito individualista.
Curitibocas | 287
pedra carimbando cheque devolvido de pessoas que você não
conhece. Vivo na maior picaretagem. Fiz economia e apliquei na
arte. Economia com arte, dá miniatura. Não tem uma pessoa que
vá para feira com máquina que não queira tirar foto. Eu desanimo
a festa dele e falo que é R$ 1. Se a pessoa quiser mesmo, ela vai
pagar o mesmo por um cartão postal, R$ 1,50. Eu já tenho uma
tabela. Se chama tabela de sobrevivência. Para tirar uma foto é
um real. Para fazer uma entrevista de rádio, é R$ 17. Se for para
televisão, é R$ 18.
Curitibocas | 289
O que você gostaria de ser? Fiscal da Feira de
Artesanato de Curitiba. Claro. Meu sonho é ter um
daqueles uniformes lá. O que você faz com aquele
uniforme? Você ganha um salário e vai olhar o que os
outros não estão fazendo. Então é uma inutilidade.
Curitibocas | 291
292
No outro lado da ponte
Murilo
Mendonça
S
entimentos controversos habitavam Darcy na volta do
Pilarzinho. Sentia que começava a se adaptar e a gostar
da cidade. Não saberia dizer o porquê, por mais que
tenha escutado definições profundas dela, não tinha uma
própria.
Na volta ao lar, encontrou Bruno falando consigo no meio-
fio da calçada. Darcy, mecanicamente, recolheu o amigo. “Oi”
para o porteiro, elevador, apartamento. Andressa não estava
e Bruno, especialmente falastrão, resmungava algo sobre a
demora dos carros para arrancar quando o sinal fica verde.
Curitibocas | 293
Amanhã seria o último dia de Darcy em seu emprego. Queria
levar Bruno para conhecer o aeroporto. Mudar o ambiente pode
fazer bem, pensou.
Andressa relutou um pouco, mas concordou com o passeio.
Deu mais cedo os remédios de Bruno e combinou de passar no
aeroporto para buscá-lo.
Darcy e Bruno acordaram cedo no dia seguinte. Bruno
acordava de bem com a vida. Parecia feliz até entrar no ônibus.
Na estação tubo, não parou de reclamar com as pessoas que não
cumprimentavam nem ele, nem o cobrador. Todos pareciam
incomodados. Darcy se divertia. Adoraria dizer isso e muito
mais.
Passearam no aeroporto por todos os lados. Para não se
sentir fora do ambiente, Darcy ensinou Bruno a usar um celular
Ahã, feito de imaginação e caixa de fósforos vazia. Bruno se
integrou com o ambiente perfeitamente. Falava com a caixinha
que desaparecia entre sua mão e o ouvido. Visto de cima, o
aeroporto parecia freqüentado por um bando de desbussolados
e Bruno era mais um. Estava feliz por isso. Parecia falar através
do Ahã com seu motorista e cobrador de ônibus particular. Uma
hora depois, apareceu Andressa para buscar o filho. Andressa o
observou de longe antes de levá-lo de volta para casa.
A função do dia era preparar café. Às duas da tarde, já teria
dinheiro suficiente para comprar a passagem para sua cidade e
mais um extra para possíveis despesas. Pegou o pagamento, mas
sem avisar que a partir do dia seguinte não voltaria.
Darcy pegou o ônibus e foi direto para a rodoferroviária.
Rapidamente, descartou a idéia de ficar mais uns dias para
voltar de avião. Sabia, já facilmente, como voltar para a casa de
Andressa, mas se atrapalhou para chegar na rodoviária. Depois
de algumas conexões, viu-se dentro de um Interbairros. Acabou
descendo em uma favela às margens do Rio Belém. Buscou
alguém que ensinasse como fazer para ir até ao Centro.
Darcy bateu palmas diante de uma casa de madeira com uma
bandeira do Brasil hasteada na frente – alguém nacionalista não
podia fazer mal.
“Aqui é Boqueirão, passou o rio é Uberaba”, respondeu um
sujeito de óculos e com calvície avançada demais para o aspecto
jovem. Falava com pausas involuntárias e cuidado especial em
cada termo. Explicou onde estava, porque parou ali e deu uma
verdadeira aula de transportes coletivos. Até então, Darcy achava
improvável achar alguém com tal erudição em uma invasão. O
Curitibocas | 295
pessoas que fizeram faculdade, pessoas similares. Em alguns
pontos, minha mãe não aceita que eu queira viver o meu caminho.
Minha mãe não quis conhecer minha mulher, tive que apresentar
de surpresa, sem avisar. Mas, no fim, minha mãe adora minha
mulher, ela vê que estou bem, viu que era preconceito. Não foi
só isso. Na mesma época também, eu tomava uns remédios
psiquiátricos e achei que não precisava mais e parei. Minha mãe
não aceitou também.
Curitibocas | 297
na entrada de segunda a sexta e não funciona de noite. Ou pegar
o Kamir, que passa do outro lado – aí você tem que atravessar
a linha do trem.
Curitibocas | 299
que o cara pode, reboca a casa. Lá, se você olha de cima, é uma
cidade vermelha, pelos tijolos e ruas de terra. No Centro-Oeste,
praticamente, não há casas de madeira.
Qual o seu karma? Não sei. O karma não é uma coisa fixa.
É como se você olhasse para trás na tua estrada. Antes de estudar
isso, não acreditava em nada que dizia na Bíblia ou Jesus. É muito
distorcido. Depois que fui estudar, que entendi que toda a Bíblia
está certa, mas ela precisa ser corretamente interpretada. Jesus
falou: “O que você plantar, colherá”. Esse é o karma.
Curitibocas | 301
das ferrovias é barracão industrial. Hoje, 90% dessas indústrias
foram embora e surgiram favelas miseráveis no lugar. Daí, me
perguntava, tinha que ter uma explicação para toda aquela
destruição. Estava pichado no muro: “Leia Kardec”.
Curitibocas | 305
e Goiânia é outro estilo – misturam São Paulo e Rio, fazem as
letras grandes e redondas. Como Curitiba é fruto de São Paulo
nesse ponto, Joinville é fruto de Curitiba. Em Joinville que
começaram a surgir as gangues.
Curitibocas | 307
Viaja a noite toda, chega lá tem que trabalhar, não come direito.
Acaba não trabalhando de acordo com o figurino. Não pode
inventar pessoa que dá cadeia, mas acabam ocorrendo algumas
imperfeições. Mesmo assim, não são todos que fazem esse tipo
de coisa. A pesquisa pode dar certo, mas, às vezes, é falha na
execução. Há outras questões na sede, em São Paulo. Sobre isso,
melhor não falar muito.
Curitibocas | 309
Tenho uma casa maravilhosa, uma esposa maravilhosa. Agora,
eu estou parando de ouvir rap.
Curitibocas | 311
Quem você gostaria ter sido? Ninguém. Quero ser
eu mesmo.
Qual seria sua pior desgraça? Não sei, você não deve
se fixar nas desgraças.
Curitibocas | 313
Paixão
D
arcy tomou as devidas instruções para chegar na
rodoferroviária nova – que já tem alguns anos.
Lá, encontrou o mesmo atendente da Citram,
com a tradicional fila. A espera não tirou o sorriso de Darcy.
- Em que posso estar lhe ajudando?
Darcy lembrou ao rapaz sobre a sua situação. O vendedor
apertou os olhos e disse estar lembrando de alguma coisa, sim.
Darcy então explicou – com detalhes – tudo que fez em Curitiba.
Enquanto isso, a fila crescia. Ocorreu a Darcy entrevistar o
atendente, que conseguia intervir seu discurso com alguns
“certo”, “ok”, entre outras interjeições. Todos são interessantes
para Darcy. Além do mais, caso voltasse a Curitiba, provavelmente
enfrentaria este mesmo guichê. Um casal entrou no final da fila.
Darcy poderia ampliar seu leque de amigos. Mais um passageiro
encasacado juntou-se à fila que ensaiava fazer uma curva, tudo
visto pelo funcionário que não parava de pensar no trabalho
acumulado. Foi tendo que ir pedindo desculpas para Darcy,
imprimiu a passagem e logo chamou o próximo. Darcy pegou a
passagem e afastou-se rapidamente do guichê. Deu-se conta de
que atrapalhara a vida do solitário empregado da Citram. Longe
dali, percebeu que o atendente esqueceu de cobrar o sacrificado
dinheiro. Melhor assim.
Curitibocas | 315
Para não correr risco de se perder, resolveu ir da maneira
mais segura até o apartamento de Andressa. Em sua caminhada,
passou pela praça Carlos Gomes, onde foi abordado por uma
menina de visual agressivo – furos, agulhas e tatuagens por todo
o corpo. “Você gosta de poesia?”, perguntou a jovem que nem
esperou a resposta, “ajude a poesia a sobreviver comprando este
livro”. Darcy sentiu que o destino da poesia estava em seu bolso.
Comprou o livreto de páginas fotocopiadas.
Sentou no banco da praça. As poesias prometiam falar de
tudo. Entre uma página e outra, olhava para cima e para os
lados, em busca de alguma referência daquilo que era tratado.
Vislumbrou um pombo e tudo passou a ter sentido por um minuto
e vinte segundos.
Notou que passava pela terceira vez um homem de
cavanhaque, óculos marrons e expressão concentrada. Parecia tão
aéreo quanto Darcy em busca do sentido das poesias. A cada cinco
passos, ele olhava uma vez para o relógio. Darcy resolveu segui-
lo em uma volta na quadra. Ele entra em uma garagem larga,
onde, no fundo, se viam máquinas, rolos de papéis e operários.
O andarilho fez um sinal para o guarda permitir a entrada do
seu seguidor silencioso. Subiram por uma estreita escada que
dava em uma sala imensa, cheia de relógios, computadores e
trabalhadores com a mesma cara angustiada.
Passaram ao lado de uma máquina de café e subiram mais
escadas. O prédio conjugava a juventude dos equipamentos e a
velhice da arquitetura. Chegaram a uma sala mais silenciosa,
com monitores mais coloridos. A expressão fechada virou um
sorriso quando o homem sentou diante de uma prancheta. Darcy
observava, por cima do ombro, o desenhista dar pinceladas
rápidas e inconfundíveis. Era Ademir Vigilato Paixão, mais
conhecido somente pelo sobrenome.
Ainda sem conversar com Darcy, Paixão entregou o desenho
para um outro companheiro de trabalho, que permaneceu com
o braço estendido. Ele já esperava que Paixão fosse pedir de
volta o desenho. Levava para a prancheta para dar mais algumas
pinceladas. Fez isso uma vez, duas, três, “me dá isso aqui, Paixão”,
e colocou embaixo de um scanner.
Só então que Darcy apresentou-se e convidou Paixão
a participar do estudo “Traços nos diários paranaenses e a
semiótica de massa”. Foram até uma sala ao lado da primeira
escada, onde passava, de tempo em tempo, algum curioso para
ver pelo vidro quem estava sentado nos sofás da sala.
316 | Paixão
A maneira arrastada de falar, cheia de idas e vindas, com
gesticulação meticulosa, vagarosa e constante faziam de Paixão
um alvo e tanto para uma caricatura.
Curitibocas | 317
A charge tem que estar alinhada com a política do
jornal? Tem. Só que eu criei um tipo de bom senso na minha
charge, justamente pela cara do jornal. O jornal, antes, não
pegava muito pesado, principalmente aqui na política nossa.
Como eu fazia charge dos políticos locais, sentia que o pessoal
ficava cuidando muito. Comecei a reparar que quando fazia
nacional, não tinha aquele “Oh, o que você está fazendo?”.
Comecei a fazer só nacional. Aí, é bem mais complicado para
você fazer, tem um lequezinho bem menor de assuntos. Aqui, nós
temos uns estúpidos... os bons, como o Rafael Greca, já passaram.
Puxa, quantas charges perdi de fazer dele.
318 | Paixão
Foi bem aceito? A Gazeta era muito familiona, as pessoas
trabalhavam juntas há muito tempo. Então, quando sai um e
entra outro, modifica. Os caras me olharam meio torto achando
que eu tinha tomado a vaga do Douglas Mayer, que era o amigão
deles. Ficaram meio desconfiadões. Mas, logo, você acaba
ganhando o respeito das pessoas.
Não tem medo que tirem teu lugar? Quando você está
numa redação, acho que as pessoas têm que estar em harmonia.
De vez em quando, sai aquela faísca ali em cima, que eu vejo, uns
troços que não deveriam acontecer. Quando ajudei que outros
ilustradores entrassem, não estou vendo o lado “Ah, o cara vai
entrar e ficar com a minha vaga”. Se acontecer, aconteceu. Já
estou além do prazo no jornal. O moleque de hoje não acha
engraçado umas coisas que o povo se partia de rir há alguns anos.
Tanto que o próprio tipo de desenho que está saindo, começou
com aquele verdão lá... o do burrinho.
Curitibocas | 319
A charge incomoda os políticos? Hoje, é gostoso
trabalhar no jornal porque é um dos únicos meios que está
incomodando eles. A decadência na política está tão braba que
parece que eles estão todos combinados. “Hoje você rouba,
amanhã eu roubo”. Acho que a corrupção sempre existiu em
qualquer parte do mundo. Só que aqui já está em convulsão, a
febre está em 50 graus. Não sei como que anda esse país.
O que teu pai achava disso? Não entendia muito, era bem
do interior mesmo. Ficava meio brabo que gastava o papel dele.
Depois que eu era moleque, o pessoal pedia, “Desenha fulano”.
Daí começou. Na escola, comecei a me dar bem. A professora
me chamava e eu subia na cadeira e desenhava na escola. Era
aquela escola que tinha gente que vinha de longe, de até cinco
quilômetros para estudar. Escolinha de interiorzão mesmo.
320 | Paixão
desenha bem. Desenha um cavalinho”. Eu tinha preguiça de ficar
copiando matéria. Aí, a pessoa falava:
- Desenha para mim.
- Então copia a matéria.
Era uma coisa que eu queria. Não sabia fazer outra
também.
Curitibocas | 321
sítio singelão. Nós viemos com uma mixaria no bolso. Uns foram
morar numa pensão. Fui parar na [rua] 13 de Maio, no antro da
putaria. Morava numa pensão, tinha muita puta que morava lá.
Aquilo era chocante.
322 | Paixão
para fora, fica acanhado de trabalhar aqui. Vai limpar banheiro
de americano porque lá ninguém conhece ele. Na mesma época
que eu estava na Opta, comecei a fazer caricaturas na Feirinha,
quando a feirinha hippie ainda era hippie, só na pracinha
Garibaldi. Era só coisa de artesanato. Não é aquela doidera que
é hoje. Conheci muito maluco que mexia com durepox, fazia
medalhão, uns negocinhos.
Você era hippie? Gostava dos hippies, mas não era hippão.
Ali, era tudo feito no muque. Hoje, virou um comércio, os caras
levam pronto para vender.
Curitibocas | 323
Olho para pessoa, está mais ou menos naquele gabarito. É muito
treino. Sou artista plástico também. Só que a pintura está restrita
a poucas pessoas.
324 | Paixão
Curitibocas | 325
ria. Veio a diretora e eu não tinha como falar para ele, mudar a
cabecinha dele. Depois dessa vez, nunca mais, evito ao máximo
fazer uma caricatura de um moleque ou de uma menina ali no
meio da criançadinha.
326 | Paixão
procurando mato. Viajei muito de moto, conheci o pessoal da
Boca Maldita, que era tudo motoqueiro na época. Isso nos 80.
A gente viajava muito, ia atrás dos motocross.
Curitibocas | 327
curtindo ficar em casa, não é a mulher que está me forçando.
Esse tipo de coisa me aguçava mais, não tinha a coisa de ficar
em casa. Minha TV é só para notícia. Minha mulher também é
budista e não gosta de televisão. Às vezes, minha filha vai lá, eu
paro meu filme, vou com ela depois. É meio maluco.
328 | Paixão
russo”. Não lembro o que eu fiz de besteira, se eu errei nos dois
“s” ou coloquei um “ç”.
- Está louco rapaz, o que você fez aqui?
- É porque a coisa está preta mesmo.
Curitibocas | 329
Seu sonho de felicidade? Não tenho um sonho. Tudo
que vem é lucro.
330 | Paixão
Curitibocas | 331
Menos um curitiboca
Andressa
D
arcy tinha mais quatro horas de Curitiba. Tempo
suficiente para saudar Andressa e Bruno. Comprou um
jogo de panos kilt, na feira da Osório, para dar de presente
aos seus melhores amigos de Curitiba.
Havia fila para entrar no elevador. Apenas um estava em
funcionamento. Darcy admirou a organização dos curitibanos.
Se fosse na sua cidade, estariam todos perto da porta tentando,
educadamente, subir antes dos que chegaram antes.
332
No apartamento, uma cena típica. Andressa fumando e
pintando - atividade complementar do ato de tragar cigarros.
Bruno dirigia no sofá reclamando da demora dos motoristas em
arrancar no sinal verde.
Abraço em Bruno e um pedido de conversa privada com
Andressa. Como Bruno ocupava a sala, as duas opções restantes
eram o banheiro ou o quarto. Optaram pelo segundo.
Curitibocas | 333