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BUCCI, Eugênio. Álbum de família: meu pai, meus irmãos e o tempo.

In: MAMMI,
Lorenzo; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Oito vezes fotografia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008. p. 69-88. ISBN 978-85-359-1226-5.

(ATENÇÃO: ESTA VERSÃO CONTÉM ERROS QUE FORAM CORRIGIDOS


PARA PUBLICAÇÃO NO LIVRO.)

Álbum de família: meu pai, meus irmãos e o tempo 1

Eugênio Bucci

Para Kiko Bucci (1962-1992)

Não será fácil explicar a fixação que me prende a esse antigo slide. Não há nada
de especial ali, a não ser para os meus olhos e para os olhos da minha família. Uma
canoa atracada à beira de um córrego serve de banco para quatro pescadores. São vultos
indefinidos, embaçados. Estão fora de foco. Não se falam, não se olham, apenas
pescam. Dois deles verificam a isca no anzol e os outros dois esperam, atentos, que um
beliscão repuxe a ponta da vara. A canoa se estende da esquerda para a direita,
acompanhando a correnteza do riacho que será engolida pelo Rio Pardo logo em
seguida. Como está amarrada ao barranco, a proa, à esquerda, está mais próxima do
fotógrafo; a outra ponta, à direita, afasta-se para o meio do córrego. Os quatro vultos
dentro dela parecem quietos, ilhados, cercados por três margens. Sim, são três as
margens que se podem divisar na fotografia. A primeira é esta bem aqui, onde se postou
o fotógrafo. A segunda a gente vê poucos metros à esquerda, do lado oposto do córrego,
que por sinal tem nome: “Corgo” do Marmelada. A terceira margem está lá na linha do
horizonte, na outra barranca do rio. Ela é coberta por uma floresta sólida, longínqua
embora bem definida. É nela que está o foco.

Se contarmos da esquerda para a direita, eu sou o quarto sobre a canoa. O


primeiro é o meu irmão Gustavo, depois vem o meu primo Kiko – primo-irmão, na
verdade mais irmão que primo –, aí vem meu pai, de chapéu, e, na ponta, sou eu
mesmo. Daquela posição privilegiada, eu podia lançar a isca nas águas mais volumosas
que vinham do rio, em busca de lambaris mais viajados, vindos de longe, que corressem
com mais vigor depois de morder o anzol. Pescávamos peixes pequenos – nenhum
lambari é maior que a palma da sua mão – mas briguentos. A gente os comia fritos.

Houve uma certa manhã em que pegamos sete quilos de lambari no Marmelada.
Éramos sete naquela manhã: eu, meu pai, meus irmãos Gustavo e Angelo, junto com
nossos primos Julinho, Bafão e Kiko. Usávamos aleluias como isca. A linha, bem fina,
0,20, num tom dourado, ia para a água sem chumbada, para o anzol não afundar. As
aleluias, capturadas na tarde anterior em cupinzeiros que pipocavam pelos pastos,

1
Este ensaio se beneficiou de trechos da minha tese de doutorado, Televisão Objeto – A crítica e suas questões de método,
defendida na ECA-USP, em 2002.
faziam seu vôo derradeiro espetadas no anzol mosquito. Morriam batendo as asas na
flor d’água. Era fatal que seriam mordidas. Vinham lambaris do rabo vermelho e do
rabo amarelo, estes mais redondos. Era um, e outro e mais outro. Era tão fácil pescar
daquele jeito. Sete quilos de lambari numa só manhã!

Antes do meio-dia começamos a limpar a peixada. Eu gostava de fazer isso em


cima de uma pinguela que cruzava o córrego. Largava as barrigadas na correnteza, elas
boiavam, e os lambaris sobreviventes vinham beliscá-las, devorando os restos mortais
dos semelhantes num banquete que se estendia até as águas se perderem da vista.
Naquele dia, voltamos para casa, em Orlândia, carregando nos embornais um
sentimento de vitória meio infantil, meio esportista e meio mítico. Os quarenta
quilômetros de estrada de terra entre o Rancho do Jacá de Gato, onde o Marmelada
desembocava no Rio Pardo, até Orlândia, passando por Morro Agudo, nunca foram tão
leves. Lá íamos nós, exultantes e falantes no meio da poeira, com as varas de bambu
espetadas no vidro de trás do automóvel. A gente se imaginava um pouco mais homens
na nossa alegria de crianças. Para nós, o ingresso no mundo masculino passava pelos
lambaris, pela noite escura que baixava sobre o Rio Pardo, pela figura do pai arrumando
com esmero a linha com que cada um de nós iria aprender a pescar.

A foto de que eu falo aqui data de um período posterior. Foi feita numa ida
temporã ao Rancho do Jacá de Gato, uns bons anos depois daquela manhã gloriosa. Era
o ano de 1979, quando meu pai já dispunha de varas artificiais, japonesas ou coreanas,
sei lá, que se espichavam como antenas de carro e que, encolhidas, cabiam no porta-
malas. Acho que, nessa época, uma parte do caminho até Orlândia já era de estrada
asfaltada. A gente não mais usava pescar como antes, não com a mesma freqüência. Eu,
o mais velho, já morava em São Paulo, e o Gustavo, com 17 anos, acabava de passar um
ano inteiro como intercambiário nos Estados Unidos, de onde trouxera uma ótima
câmera fotográfica, uma Canon AE-1, com lente de 50 mm. Foi com ela que o Angelo,
aos 15 anos, bateu a foto, em diapositivo. Meses depois, ele a transformou numa pintura
a óleo. Um dia eu voltei para Orlândia, naquele mesmo ano, e lá estava o quadro. Meu
irmão, que só pintou dois quadros na vida, adotou dessa vez uma técnica bastante
difundida entre os pintores que transformam fotografias em “óleo sobre tela”: pegou o
projetor de slides, focalizou o cromo na tela em branco, rabiscou os contornos a lápis e,
depois, coloriu. As pinceladas grossas desprezam os detalhes das feições que poderiam
ser vistas no perfil de dois dos pescadores. Onde na foto faltava foco, na tela falta o
detalhe. O quadro está hoje pendurado na sala da casa do Gustavo, que mora em
Ribeirão Preto, conferindo uma nobreza extra àquela fotografia. Desde então, ela ocupa
um posto de destaque no nosso imaginário familiar, ou melhor, no nosso álbum de
família. Ela nunca foi ampliada em papel (talvez eu faça isso agora, para tê-la num
porta-retrato); existe apenas como slide e como um quadro a óleo. Até hoje, quando
penso no tema da fotografia, como linguagem, como arte, como reportagem, como
subjetividade, o que quer que ela possa ser, penso no nosso aprendizado com a Canon,
na descoberta do fotômetro, nos jogos com a velocidade do obturador, na variação de
“ASA”, no preto e branco, na cor – e penso ainda mais nessa foto em que estamos os
quatro dentro da canoa, e o Angelo, fotógrafo, no alto do barranco.

Dizem que, se a fotografia ainda tem algum valor, esse valor é documental, o de
ser o registro de um fragmento do tempo. Já não partilho dessa crença, pelos menos não
desse modo. Creio que ela capture não o tempo, mas uma curva do espaço ou uma curva
do rio. Dizem que a fotografia nos leva a viajar no tempo. Também não é o que sinto,
quero dizer, não quando está em questão essa foto em particular. Eu não sinto que o
tempo retorne quando a vejo ou quando me lembro dela, pois eu não sinto que aquele
tempo já tenha ido embora. Sinto, isto sim, que aquela cena ainda está lá, naquele vazio
temporal em que a gente espera o peixe morder, e que o tempo não se foi, apenas o
espaço se curvou e fez com que a água passasse.

“Muita água vai rolar por debaixo dessa ponte”, diz alguém que quer se referir à
passagem dos dias ou das décadas que estão por vir. As águas correndo indicam o correr
dos anos, dos milênios. São muitas as imagens dessa linha. Newton, quando falou do
tempo, no século XVII, lançou mão de palavras que lembram uma correnteza líquida:
para ele, o tempo é algo que “flui uniformemente sem relação com nada que lhe seja
externo”2. Desde Newton e desde muito antes, talvez desde sempre, a metáfora fluvial é
figura obrigatória. Heráclito, crente na mudança perpétua de todas as coisas, é quem diz:
3
“Não se pode jamais tomar banho duas vezes no mesmo rio.” O rio está lá o tempo
todo (feito o mundo que nos cerca), mas as suas águas mudam a todo instante (como os
tempos, que também mudariam).

Prefiro levar ao pé da letra essa metáfora e imaginar que o tempo é que é a


alegoria da mutabilidade incessante da natureza. Numa beira de rio você entende: não é
o tempo que passa, mas as águas. Chamamos tempo a esse deslocamento ininterrupto da
matéria sobre a matéria. A fotografia da gente naquele barco não congelou o instante,
nem recortou um fragmento de tempo; ela simplesmente guarda um pedaço da matéria
que iria escorrer na curva das águas e, por ter ficado armazenada, não escorreu. Quer
dizer: ela escorreu, mas na forma de luz, através das lentes da Canon e, daí, feriu a
película do filme, moldou-lhe a superfície de um tal modo que, até hoje, olhando através
dele, a gente vê a mesma cena. O slide mantém essa matéria, ou os seus sinais, como
quem conserva uma escama de peixe entre as páginas de um livro. Ou, melhor ainda,
como quem guarda o relevo da escama na deformação que ela causou numa folha de
livro, mesmo depois de a escama ter se perdido. Como quem guarda uma cicatriz.

Fico mesmo tentado a dizer que o tempo, esse fluxo imperturbável, não existe de
verdade – a não ser como constructo, como abstração inventada numa curva qualquer da
história humana. Não obstante, essa idéia, a do fluxo newtoniano, persiste no senso
comum, mesmo depois da Relatividade e da Física Quântica. Não apenas no senso
comum: quase tudo o que conheço de estudos da comunicação, e da fotografia, ainda
opera com os paradigmas newtonianos de tempo. Nós ainda nos vinculamos a ele como
se ele fosse uma linha contínua, um rio abstrato e perfeito que liga uma eternidade a
outra. Pois eu proclamo que esse tempo não existe. Passeando pelas fotografias da
minha memória pessoal e vivida, eu recuso essa concepção. Percebo o meu tempo
íntimo não como fluxo contínuo, mas como permanência impermantente, algo que está
e que é, muito embora em mutação ininterrupta, algo que não passa como passa o
ponteiro de um relógio. Posso declarar que, ao menos no âmbito do meu álbum de
família, predomina uma temporalidade outra. Posso ir mais longe e afirmar que todos os

2
BARBOUR, Julian. The end of Time. London: Weidenfeld & Nicolson, 1999, p. 12. Na época de Newton, tempo e espaço
se afirmavam como referências absolutas, e isoladas uma da outra, a partir das quais todas as outras se organizariam. Também em
Kant, já no século XVIII, a mesma conepção aparece com força Kant: “Com respeito aos fenômenos em geral, não se pode suprimir
o próprio tempo, não obstante se possa do tempo muito bem eliminar os fenômenos. O tempo é um dado a priori, (...) não pode ser
supresso. (...) A representação originária tempo tem, portanto, que ser dada como ilimitada.” (KANT. Crítica da razão pura. São
Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 48-9.)
3
WHITROW, G. J. O Tempo na História, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1993, p. 53.
álbuns de família – chamo de álbum de família o conjunto de fotografias que compõe o
imaginário documentado de um grupo atado por laços de intimidade – encerram essa
temporalidade própria, bem distinta daquele velho rio absoluto que foi abraçado como
verdade pelo senso comum. As imagens da família vivificam o passado e, assim,
expandem o presente. O retrato da mãe que já morreu sobre uma mesinha de canto faz
com que ela, a partir da moldura, esteja presente como sujeito naquele espaço
doméstico. Há uma subjetivação concreta naquela imagem, assim como há
subjetividade na santa cuja estatueta descansa numa quina da parede. É por isso que a
fotografia da canoa no Córrego do Marmelada não me leva a viajar no tempo; ela me
leva, isto sim, a me relacionar com aquele instante que não se foi, pois aqui está, a ponto
de eu poder modificá-lo e de ser modificado por ele: eu o modifico se dele extraio novas
conseqüências, se o reinterpreto e o reinscrevo na minha formação (uma teologia da
memória íntima); ele me modifica se aquela emoção se intensifica em mim. Passado,
futuro, ora, essas coisas não existem. Tudo o que sou e tudo o que vivi está aqui, no
presente.

Passado e futuro nem sempre foram o que pensamos que eles são. Passado e
futuro tiveram de ser inventados, e suas noções se modificam exatamente como todas as
outras criações humanas.4 Só depois de inventados e convencionados na língua é que o
pretérito e o devir ganharam existência. A idéia de tempo, esse ente da razão, é
produzida pela civilização, e também alterada por ela.5 E, se assim é, a temporalidade
não é absoluta e nem é uma coisa só; uma mesma era pode comportar temporalidades
diversas, ainda que, reunidas, elas componham um todo que possa ser pensado e
compreendido. Há uma distinção entre a temporalidade das bolsas de valores e a
temporalidade da agricultura familiar, vinculada às estações do ano. Há distinção entre a
temporalidade das comunidades de pescadores e aquela da pesquisa espacial. E todas
integram um único período histórico. Há, da mesma forma, uma clara distinção entre a
temporalidade adotada pelo senso comum, linear e intangível, e a temporalidade do
álbum de família, que é afetiva e não linear.

Essa segunda temporalidade se manifesta como um presente expandido. Na falta


de uma analogia melhor, digo que ela está próxima da temporalidade de um sonho,
dentro do qual o que se passou há 25 anos continua se passando com a mesma carga de
novidade. Nos sonhos, como todos aprendemos a admitir, não há a cronologia estrita
que começa no passado, atravessa o presente e se projeta para o futuro; todos os atos são
simultâneos, desejos e lembranças se equivalem em vivacidade. É mais ou menos na
mesma medida que o relato que está inscrito no meu álbum de família não se tece de
pretéritos, mas de presentes. Eles constituem a presença que eu sou.

* * *

Vivo, portanto, exposto a pelo menos duas temporalidades distintas: uma é essa
do presente expandido da minha intimidade, essa permanência de presentes; a outra é a
que experimento ao me mover pelas convenções sociais baseadas na velha noção do

4
“A introdução de tempos verbais foi um desenvolvimento relativamente tardio (...), foi somente nas línguas indo-
européias que as distinções entre passado, presente e futuro se desenvolveram plenamente”. (WHITROW, G. J. O Tempo na
História, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1993, p. 26.)
5 “O tempo é um meio elaborado pelos homens para orientar-se. (...) Mas tampouco é uma simples ‘idéia’ que emerja de
repente do nada na cabeça de um indivíduo. É uma instituição social diversa segundo o grau de desenvolvimento das sociedades.”
(ELIAS, Norbert. Sobre El Tiempo, Mexico, DF: Fondo de Cultura Eoconomica, 1997, p. 23.)
tempo que “flui uniformemente sem relação com nada que lhe seja externo”, como
Newton pontificou. Como sujeito, eu me reconheço no útero imaginário do meu álbum
de família, no qual o tempo não passa, e, ao mesmo tempo, não tenho como me
relacionar com o mundo que se situa além dos muros do meu álbum sem a mediação de
uma ferramenta que meça o tempo linear, sem essa máquina chamada relógio. Sei que,
para ser, dependo do relógio.

Mais que medir o fluxo do tempo, o relógio é a prova social de que esse fluxo
desfruta do estatuto de verdadeiro, como se fosse um dado da natureza. A um tal ponto
que nada parece funcionar sem o auxílio da contagem das horas. Nada, nem uma câmera
fotográfica. Ela traz, no seu interior, um cronômetro que esquadrinha o fluxo dos
segundos e retira, dali, o tempo de exposição, ou seja, o pedaço do tempo que será
eternizado na fotografia. A nossa Canon AE 1 tem o seu reloginho interno, o seu
escrutinador mecânico-eletrônico que mede o tempo de exposição. Algumas que já
manuseei conseguem dividir um segundo em quatro mil partes iguais. Há de haver
outras mais precisas e mais potentes. Elas prometem: “Vou te presentear com um oitavo
de segundo desse cenário”. É uma promessa irresistível. A ferramenta do olhar social
que é a câmera fotográfica esquarteja a nossa memória mais onírica a pretexto de
revelá-la aos nossos olhos saudosos – saudosos do presente, não do passado. Ou,
olhando pelo avesso, ela consegue de fato revelar para nós a nossa própria memória,
nem que para isso seja necessário esquartejá-la. A fotografia é o relógio que arranca
fragmentos da vida para armazená-los na posteridade, como um banco de sêmen. A
fotografia é o relógio carnívoro.

Mas o relógio, claro, também ele é uma invenção da História. Não existe desde
sempre, nem terá para sempre a aura de máquina imprescindível. Ele ganha centralidade
como equipamento social no exato momento histórico em que a mercadoria trabalho,
emancipada do corpo do trabalhador, precisa de uma outra forma de medida que não
seja aquela dada pela propriedade do corpo do escravo ou do servo pelo senhor. O
relógio mede a força de trabalho comprada pelo capital e faz muito mais: permite
sincronizar as distâncias, acertar o horário dos transportes, unificar os territórios. Já na
Idade Média, é o projeto da medida universal. Progressivamente, as jornadas de trabalho
são delimitadas pelo movimento dos ponteiros, o que vai se consolidar na revolução
industrial. Símbolo do poder político (que então se confunde com o religioso) e símbolo
do controle das jornadas nas fábricas, o relógio ocupa tanto os locais de produção
industrial quanto os centros urbanos, onde se vê elevado ao ponto mais alto das torres e
dos campanários.6 O controle do tempo e o controle social se mesclam.7 Os relógios, no
alto das edificações, encarnam a ordem política, econômica e religiosa, e pagam por
isso: quando as revoluções eclodem, eles são identificados com a hierarquia a ser
derrubada. Em seu ensaio Sobre o conceito da História, Walter Benjamin conta que eles
foram alvejados pela Revolução de Julho, em Paris: “A Revolução de julho registrou
ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de

6
Ver ORTIZ, Renato. Cultura e Modernidade: A França no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 233 e outras.
7
“As medidas — de tempo e de espaço — são um instrumento de dominação social de excepcional importância. Quem for
seu senhor reforça de modo muito especial o seu poder sobre a sociedade.” (LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente
Medieval, vol. I, Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p. 221.)
combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na
mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres.”8

Se o relógio faz crer no seu poder de disciplinar a sociedade, a câmera, dispondo


do seu timer embutido, anima o fotógrafo a crer em seu poder recortar a passagem do
tempo em chapas (fotogramas) e transformá-las num discurso visual com objetividade
(de “objetiva”). Assim a câmera prolonga ou, mais ainda, realiza a subjetividade do
fotógrafo. A fotografia é um discurso que acredita que o tempo passa por dentro da
máquina, da câmara escura, e dessa ilusão extrai a sua autoridade. Vem daí a crença,
que mencionei páginas atrás, dos que dizem que, se a fotografia ainda tem algum valor,
esse valor é o registro dos instantâneos históricos.

Novamente, vou questionar essa crença. Por duas razões distintas. A primeira
delas é que as fotos que hoje circulam pelo imaginário estão cada vez mais desprovidas
de suas raízes históricas, o que faz delas, muitas vezes, documentos que renegam sua
historicidade, documentos a-históricos ou, como se isso fosse possível, supra-históricos.
O álbum de família é um bom ponto de partida para refletirmos um pouco sobre esse
desenraizamento da imagem documental. Com sua temporalidade que se aproxima da
temporalidade dos sonhos, em que passado e presente se articulam sem seguir
cronologia alguma, o álbum de família convida o seu público particularíssimo –
formado pelos seus próprios personagens – a uma apropriação afetiva do tempo. As
imagens ali expostas, abertas, admitem múltiplas seqüências narrativas; os fatos
passados se expandem e se ligam entre si movidos pela carga afetiva do olhar que
costura as associações possíveis.

Essa temporalidade típica da esfera íntima é incompatível com a linearidade dos


horários dos meios de transporte, dos turnos de trabalho, dos calendários escolares e das
agendas de compromisso. Mais que uma distinção, existe uma fissura entre a
temporalidade do álbum de família e a do ordenamento social. É verdade que, restrita à
microesfera doméstica, essa fissura não representaria ameaça nenhuma para a fotografia
como registro histórico. Ocorre que a mesma fissura alcança, hoje, toda forma de
representação do tempo. A lógica do mundo organizado como espetáculo fabrica e
oferece o mesmo efeito de bolhas de presente expandido na macroesfera social.

O espetáculo, como o álbum de família, convida o olhar a uma apropriação afetiva


do tempo. No domínio do álbum de família, porém, o presente expandido resulta de
uma vivência que funde os espectadores-protagonistas aos fatos do passado, pois as
raízes daquelas imagens encontram-se inscritas no corpo de cada um deles; já na
macroesfera social, ordenada pelo espetáculo, o presente expandido não resulta da
vivência concreta do sujeito, mas o inclui meramente como espectador, agora, o
presente expandido resulta de um simulacro, ele é erigido não pela experiência vivida,
mas por uma barreira que obstrui a experiência, impedindo a relação criativa entre o
sujeito e a sua própria História. No presente expandido do espetáculo, as imagens
trafegam pelos olhos da humanidade sem observar fronteiras de nenhuma espécie e sem
conservar um único vínculo com a sua origem material, com a sua historicidade única –
e nada, a não ser uma fantasia do olhar, pode atá-las a alguma malha de sentido. Assim,
o sujeito olha o mundo como quem cai dentro de um imenso álbum de família – este, no

8
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. Tese 15.
entanto, já não é feito de parentes, mas de celebridades e fatos sensacionais, coisas
muito longínquas e, por serem espetaculares, insuportavelmente próximas. Essas
imagens o engolem, elas o seduzem, mas não lhe pertencem. O sujeito vê o presente
avançar sobre o passado e sobre o futuro, mergulha numa temporalidade que lhe parece
própria da intimidade mas essa superfície que o envolve, estranhamente, não contém sua
vivência, apenas traga o seu desejo.

O mundo do espetáculo pôs o fluxo uniforme daquele fio do tempo newtoniano


em uma suspensão ultrapotente. Não se trata de uma suspensão que congele a História,
mas que lhe desloca o curso para um outro padrão de tempo. Ela deixa de ser
cronologia, por mais que se mostre como uma seqüência temporal on-line, ultra-
acessível e obscenamente revelada em imagens, e se manifesta como reverberação no e
do presente, como se fosse uma História que estivesse acontecendo o tempo todo. O
nosso tempo histórico é o gerúndio – mas esse gerúndio é somente um revestimento,
uma simulação da História. O presente expandido do espetáculo, que elege o gerúndio
como tempo histórico, é apenas a face visível da História cujo corpo foi tragado para os
subterrâneos do espetáculo (e esse corpo se tornou inalcançável para as ferramentas que
confeccionam imagens).

No espetáculo, os fragmentos fotográficos deslocam-se na velocidade da luz pelo


presente em bolha. As fotografias voam por aí não mais como registros factuais, mas
como migalhas de lembranças (agora, lembranças sem raízes), figuras sem paternidade,
que só se articulam em narrativas por força de um olhar afetivo. Ou são vestígios
sentimentais ou não são nada. O valor informativo de uma fotografia está cada vez
menos no que ela traz de sua suposta origem documental, histórica ou jornalística, e
cada vez mais naquilo que lhe é exterior, o olhar que a tem como objeto e que a tomará
como um elo para uma narrativa sentimental.

Dito isso, eu posso tratar da segunda razão que me leva a supor um certo
esvaziamento da função documental da fotografia: o seu suporte material, que era o
filme tangido pela luz, está desaparecendo e, em seu lugar, emerge a tecnologia digital,
que elimina o suporte físico do documento histórico. O suporte material era o marco
inaugural incontestável da imagem com validade para a pesquisa histórica. Se eu volto
ao slide em que eu, meu irmão, meu primo e meu pai nos sentamos naquele barco, nas
águas do Marmelada, tenho nele um suporte material. Foi definido pela luz emanada
diretamente da cena em questão. Esse slide, coisa corpórea, poderá ser a qualquer
momento analisado em laboratório, sua idade poderá ser checada, e suas marcas,
avaliadas. Um exame simples poderá dizer, com boa margem de segurança, se ele é o
cromo original ou uma duplicata. A manipulação das figuras ali registradas dificilmente
poderá se dar sem que isso seja depois percebido por estudiosos. Com a foto digital é
diferente. Ela não se assenta sobre uma base corpórea, não tem um início de existência
inscrito sobre um objeto físico que possa ser datado, pode modificar-se ao longo de
cópias sucessivas e pode modificar-se tanto que será impossível identificar o que em seu
conjunto foi gerado no ato do clique do fotógrafo e o que foi gerado depois pelo uso de
recursos outros, de computador ou não.

Isso não significa que a fotografia convencional não se preste a falsificações – há


inúmeros exemplos de falcatruas em fotos que se fizeram passar por documentos
históricos de alto valor –, mas com a foto digital as pistas desaparecem como palavras
ao vento. Isso também não significa que a fotografia tenha perdido para sempre sua
função de registro histórico, de modo algum. Por certo ainda subsiste a credibilidade de
quem veicula e autoriza a veracidade do retrato (na era digital, um dos divisores de água
entre a boa e a má informação é dado pela credibilidade das fontes e dos veículos, não
sendo muito distinta a confiabilidade de um texto em computador da confiabilidade de
uma imagem eletrônica, uma vez que ambos dependem da credibilidade de quem os põe
em circulação). Inúmeros fotógrafos, com câmeras digitais ou não, ainda serão por um
bom tempo testemunhas oculares confiáveis dos fatos de interesse público. A novidade
agora, a novidade imediata, é que a banalização da imagem digital, com todas as suas
vantagens conhecidas, aprofunda o abismo existente entre a função de registro histórico
da fotografia (que requer o suporte físico, ao menos em princípio) e a simples
reverberação do espetáculo. Não se trata, repito, de pretender que a foto obtida pelo
processo químico tenha o estatuto de índice da verdade (o que nem de longe é o que
afirmo) e que a foto digital seja um artifício a serviço da mentira. Há mentiras e
verdades numa e noutra. A questão é apenas ter presente que o advento da tecnologia
digital traz um novo e gigantesco desafio para a credibilidade da fotografia como
registro documental à medida que ela perde seus suportes materiais verificáveis.9

Repito: as fotos voam por aí não mais como registros, mas como lembranças ou
fantasias – impossível distinguir umas das outras –, como nos sonhos. Fotos de Che
Guevara, fotos do homem na Lua, fotos de mulher pelada, fotos da Copa do Mundo.
Identidades desenraizadas entre o fato e a ficção, entre a História e o espetáculo, e isso
tudo num tal nível que às vezes o repertório imagético do mundo parece só fazer sentido
como um imenso álbum de família. O sujeito movido pelo desejo inconsciente é quem
fica encarregado de construir a narrativa – que só pode ser afetiva, psicologizada – das
imagens que o cercam.

* * *

E lá vou eu de volta às raízes que ainda restam às minhas fotos, lá vou eu de volta
ao Jacá de Gato. A minha história pessoal – como qualquer história pessoal de qualquer
um – é um presente que não se fecha. É vida em aberto. A natureza desse presente
expandido como vivência (e não como barreira), ao qual eu sempre retorno, Walter
Benjamin explica melhor: “A História é objeto de uma construção cujo lugar não é o
tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’.”10 (É bem o caso de
observar aqui, entre parênteses, que o tempo do espetáculo é justamente a simulação de
um tempo homogêneo, uno e transparente, um presente organizado, repleto de ofertas,
que se proclamam “multiculturais” e “diversas”, de gozo ininterrupto, e que essa
simulação congênita do espetáculo encerra nada menos a negação do “tempo saturado
de agoras” a que se refere Benjamin, posto que é a sua falsificação.) Benjamin fala do
que há de vivo na História. Por isso, e por mais nada, pode ser invocado para traduzir o
que há de vivo no universo do álbum de família. As minhas fotos de família estão vivas,
não são cadáveres, mesmo quando levo em conta que alguns de seus personagens já
habitam o Cemitério Municipal de Orlândia.

9
Desenvolvi o tema mais extensamente no ensaio “A História na era de sua reprodutibilidade técnica”, em KEHL, Maria
Rita, e BUCCI, Eugênio, Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004.
10
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da
cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. Tese 14.
Revejo muitas vezes na memória a fotografia que o Angelo bateu aos 15 anos.
Além do foco pouco ortodoxo, ou errado, que borrou as pessoas do primeiro plano para
dar nitidez à margem esquerda do Rio Pardo, lá longe, ela traz outras marcas distintivas
que ainda hoje me comovem. Ela é um contra-plano à contraluz. Nós quatro, sobre a
canoa, estamos quase de costas para o fotógrafo. E estamos um tanto sombreados,
diminuídos, pela intensa luminosidade que queima na superfície do rio, ao fundo. Em
outras chapas daquele mesmo filme, naquele mesmo dia, o Angelo enquadrou vários
outros contra-planos à contraluz. Há uma foto do meu pai, na varanda do rancho,
olhando para o rio (esta o Angelo reproduziu num desenho a lápis); há outra em que
dois de nós, a uns cinqüenta metros do fotógrafo, conversamos sob uma árvore muito
alta e frondosa contra a resplandecência branca da flor d’água, uma luz tão compacta
que deforma a silhueta das nossas duas figuras, dando-lhes contornos de ETs
longilíneos de filme de ficção. O fotógrafo está à sombra, fugindo ao sol, e disso eu
também gosto muito. Essa postura, de evitar os raios abrasivos daquele sol, me lembra a
posição adotada por pintores como Franz Post, um dos primeiros a retratar ao ar livre o
cotidiano dos engenhos pernambucanos, ainda no século XVII. Em muitos quadros, a
gente tem a sensação de que ele estava à sombra. Quantos pintores e fotógrafos, depois
dele, não iriam preferir se proteger do sol na hora de retratar a luz tropical. Como a
gente lá em Orlândia, olhando o dia escaldante da porta de casa, pensando duas vezes
antes de sair à rua. Dava preguiça.

Naqueles antigos slides, o contra-plano à contraluz é o que mais me comove.


Talvez porque esse ângulo reproduza fielmente o nosso jeito de olhar o mundo quando
meninos, tateando a luz antes de mergulhar dentro dela, talvez porque ele desafine da
perspectiva mais habitual do álbum de família, que os personagens de frente. Lá em
casa, ainda hoje, temos pilhas de fotos e de quadros na parede com os parentes todos
encarando a câmera. Nada de contra-planos. Minha mãe, durante a nossa infância, fez
muitas chapas assim com uma Kapsa, que ela segurava bem firme com as duas mãos
contra a barriga, olhando de cima para baixo na hora de fazer o enquadramento. Nós
éramos instados a sorrir: “Olha o passarinho!” Em quase todas as fotos de quase todos
os álbuns de quase todas as famílias, os fotografados encaram o fotógrafo. Esse olhar
tenta invadir o futuro, é um sintoma da expansão do presente de que tanto falei aqui, e
também esconde uma súplica emudecida, dirigida aos que virão depois: “Não me
esqueçam quando eu já não estiver aqui”. Fotos de álbuns de família são inventários das
faces dos mortos tentando adivinhar o próprio reflexo nos olhos de seus descendentes.
Como as fotos três por quatro que a gente vê em algumas lápides, com rostos
esmaecidos nos olhando sem piscar. As fotos antigas são lápides de cemitérios.

Recorro a uma outra passagem, esta muito famosa, do mesmo texto de Benjamin:

“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que
parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse
aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre
ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas
com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de
ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.11

Nas primeiras vezes em que tive contato com esse texto, eu imaginava o “anjo da
História”, esse anjo desenhado por Klee e decifrado por Benjamin, como sendo um
fotógrafo. Depois da experiência de pensar sobre a minha foto de beira de rio, tive de
rever a minha percepção do “anjo da História”: não, ele não é um, mas é o fotógrafo. Ele
é o arquétipo do fotógrafo: olha a cena e se reparte entre agir sobre ela e fotografá-la. É
porque sente a cena que a captura – mas se fosse até o fim em seu sentimento, seria
tomado pela compaixão e abandonaria a câmera. O fotógrafo é um traidor de seu
sentimento, um escravo do olhar. É sempre dividido, repartido entre dar uma esmola ao
mendigo ou fazer-lhe o retrato, entre apartar a briga e emoldurá-la, entre alimentar a
criança que vai morrer de fome e clicar o rosto que será a capa da revista no final da
semana. Todo fotógrafo, aliás, acaba se queixando dessa divisão, mais cedo ou mais
cedo ainda. Trata-se de um lugar-comum de tons dramáticos na fala do fotógrafo, e ele
nada pode fazer, pois uma tempestade que sopra do paraíso – percorrendo o veio
retilínio do tempo linear que uniria uma eternidade à outra, o paraíso primordial ao
paraíso do descanso final, quem sabe – o impele para o futuro e só o que ele consegue é
deixar seu olhar sobre os moribundos que fotografa. Para o futuro, ele só carrega o olhar
que eles devolvem, um olhar que implora pela imortalidade. O fotógrafo, enfim, não é
capaz de um registro organizado da História; ele apenas consegue roubar o olhar dos
que não vêem o que se passa.

No nosso slide às margens do Marmelada, o Angelo, meu irmão, que era novo e
era quase um anjo, e ainda é, preferiu se pôr no plano oposto do Angelus Novus, o “anjo
da História” de Paul Klee. O Angelo foi o Antiangelus Novus, o negativo do anjo
conceituado por Benjamin. O meu irmão não capturou o nosso semblante, nosso olhar
de súplica, nem pretendia isso. Enquadrando o contra-plano, conseguiu ser um contra-
fotógrafo. Sem querer, fotografou, eu acho, o esconderijo do Ângelus Novus. Miro
aquela imagem e quase enxergo, na luminosidade incômoda e amarronzada que vem do
rio, a face camuflada e desapontada do “anjo da História”, que esperava de nós
expressões de pedintes e não as obteve. A gente ali não tinha medo de o tempo passar.
Porque o tempo não passava, e não passou. A gente não queria ser lembrado no futuro, e
continua não querendo. A gente só queria pescar em sossego, estávamos juntos
enquanto as águas corriam sob os nossos corpos, juntos e em silêncio, como ainda
estamos. O resto não importa nada, como nunca importou.

11
BENJAMIN, Tese 9.

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