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FORTALEZA,
AGOSTO DE 2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
CURSO DE MESTRADO
FORTALEZA,
AGOSTO DE 2010
Universidade Federal do Ceará
Centro de Humanidades
Programa de Pós-graduação em Sociologia
Curso de Mestrado
Banca Examinadora
____________________________________
Profª. Drª. Maria Sulamita de Almeida Vieira (Orientadora)
(Universidade Federal do Ceará)
____________________________________
Profª. Drª. Irlys Alencar Firmo Barreira
(Universidade Federal do Ceará)
____________________________________
Profª. Drª. Erotilde Honório Silva
(Universidade de Fortaleza)
A você, Mário – por tudo aquilo que eu não sei explicar.
Meus agradecimentos finais, mas não menos importantes, são para o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cujas atividades criam
e aumentam as possibilidades para estudos em todo o país, e para os proprietários,
funcionários e consumidores dos restaurantes pesquisados, pela presteza e atenção que
fizeram deste trabalho uma realidade.
“O gosto classifica aquele que procede à classificação: os
sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles
operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu
intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses
sujeitos nas classificações objetivas. E, deste modo, a
análise estatística mostra, por exemplo, que oposições de
estruturas semelhantes às que se observam em matéria de
consumo cultural encontram-se, também, em matéria de
consumo alimentar: a antítese entre a quantidade e a
qualidade, a grande comilança e os quitutes, a substância
e a forma ou as formas, encobre a oposição, associada a
distanciamentos desiguais à necessidade, entre o gosto da
necessidade – que, por sua vez, encaminha para os
alimentos, a um só tempo, mais nutritivos e mais
econômicos – e o gosto de liberdade – ou de luxo – que,
por oposição à comezaina popular, tende a deslocar a
ênfase da matéria para a maneira (de apresentar, de
servir, de comer, etc.) por um expediente de estilização
que exige à forma e às formas que operem uma denegação
da função.”
O estudo que esta dissertação apresenta tem como objetivo compreender as estratégias,
práticas e discursivas, de (re)construção de uma imagem regional do alimentar,
utilizadas por proprietários de dois restaurantes temáticos, localizados na região
metropolitana de Fortaleza, Ceará: o Chica Sinhá e o Lá na Roça. Especializados na
chamada “culinária sertaneja”, esses estabelecimentos revelam, nos detalhes de sua
composição, um amplo campo de relações e produções simbólicas, do qual emergem e o
qual ajudam a constituir. Nesse sentido, volto o olhar para a história, como um processo
permeado de permanências e rupturas cognitivas, procurando refletir acerca dos
caminhos de objetivação social da idéia de cozinha regional, adotada e ressignificada
pelos restaurantes citados. Seguindo uma tendência verificada também noutras partes do
Brasil e do mundo, no Ceará, a adoção do turismo pelo poder público (como alavanca
para o desenvolvimento econômico local) e as expressivas mudanças impostas ao
consumo alimentar urbano moderno (impulsionadas pela industrialização e
padronização dos gêneros alimentícios) estão no cerne dos movimentos de concepção e
valorização desse tipo tão peculiar de culinária.
The study of the dissertation presents has as purpose to understand the pratical discourse
and (re)construction of a regional image of food, used by the owner of the two thematic
restaurants, located in the region of Fortaleza, Ceará: Chica Sinhá and Lá na Roça.
Especialized in sertão’s culinary, this firms shows us, in details of their compositions, a
large field of simbolic relactions and productions, from them emerge and which help to
build. This way, I back to look for the history, as a process full of cognitive staying and
cognitive ruptures, searching to reflect about the way of social objetivation of the
regional cusine ideia, adopt and reframe by the mentioned restaurants. Following a
verified trend also in the other places of Brasil and the rest of the world, in Ceará, the
adoption of tourism by the government (as a growing form of aceleration the local
economic devoloping) and the expressions changings imposed to the modern urban food
consumption (driven by industrialization and padronization of the gender food) they are
in the midle of conceptions and padronization movements this type of peculiar cusine.
1
Conforme analisaremos mais adiante, pode-se dizer que este não é um objeto comumente abordado na
história da teoria social.
2
O interesse de Durkheim em estabelecer fronteiras bem definidas para a atuação da Sociologia, como
parte de um esforço de consolidação desta ciência, acabou por excluir a alimentação de seu universo
pesquisável, dado que este era um tema classicamente estudado pela biologia e demais ciências ditas
naturais. De acordo com o autor, “(...) todo indivíduo bebe, dorme, come, raciocina, e a sociedade tem
10
Sociologia.3 Objeto paradoxal, dada sua inquestionável aproximação com aspectos
biológicos (e supostamente universais) da vida humana, as práticas alimentares podem
ser, entretanto, um fértil terreno para o entendimento de inúmeras questões sociais.
todo interesse de que estas funções se exerçam regularmente. Se, portanto, estes fatos fossem sociais, a
sociologia não teria objeto que lhe fosse próprio e seu domínio se confundiria com o da biologia e o da
psicologia” (2003: 33).
3
No Brasil, neste sentido, poderíamos destacar o pioneirismo de Gilberto Freyre. Sua obra Açúcar: uma
sociologia do doce (2005) – editada, pela primeira vez, em 1932 – inaugura um novo campo de
preocupação sociológica brasileira.
11
I. Primeiras impressões
Já na entrada se percebe que o clima é de interior. A cidade vai ficando para trás,
esquecida do outro lado da porteira. O verde das plantas e o passar do vento deixam
uma sensação de tranquilidade, de bem-estar. O tempo desacelera – ao menos por
alguns instantes. No caminho até a parte interna, a rusticidade que impera em todos os
ambientes da casa vai se apresentando ao visitante, permitindo-lhe vivenciar uma
experiência com ar de “história”, de “cultura”, de “tradição”.
É hora do almoço. Os “pratos” do dia são expostos em uma grande mesa. Alguns
são verdadeiras iguarias, preparadas dos modos mais estranhos e com os ingredientes
mais inusitados como a buchada, cozido feito com pedaços de estômago de bode,
costurado e recheado com suas vísceras, e a galinha à cabidela, cujo principal
ingrediente do preparo é o próprio sangue da ave, que dá cor e textura ao molho que
acompanha a carne. Tanto exotismo faz muita gente torcer o nariz: “é preciso ser da
cultura ou ter muita curiosidade para experimentar isso”, ouvi alguém dizer, certa vez.
12
de acordo com alguns, “calórica”, “caprichada em condimentos”, mas nem por isso
pouco apreciada.
∗∗∗
4
LIMA, Maria de Fátima F. As tapioqueiras e a sua arte: mudanças e permanências no “shopping das
tapiocas”. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências Sociais, Centro de
Humanidades. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2007.
13
da culinária cearense: a tapioca – alimento feito de goma, subproduto da mandioca.
Imersa como eu estava no entendimento desse universo da produção e do consumo de
alimentos considerados típicos do estado, conhecer um restaurante como aquele foi a
“descoberta” de um novo horizonte de pesquisa.
Entender como e por que isso acontece foram as minhas primeiras motivações,
como pesquisadora. O que torna um prato típico e outros, não? O que é uma “cozinha
regional”? Como e para que fins ela é formada? Por que, no caso dos restaurantes
temáticos de Fortaleza, são os sabores e os modos de preparo ditos “sertanejos” os mais
representativos dessa cozinha? Estas questões iniciais me levaram ao desenvolvimento
de uma proposta mais ampla de investigação.
14
pelas leituras e discussões realizadas na disciplina de Cultura Brasileira –, o termo
regional já me intrigava, despertando curiosidades e questionamentos. Na monografia,
pesquisando a produção de tapioca no Ceará, percebi que havia uma forte tendência
comercial de valorização dos chamados “produtos regionais” – entre os quais a tapioca
tem sido incluída. Principalmente na área de comercialização alimentar, essa disposição
para o regional era (e ainda é) forte, o que é facilmente verificável num simples passeio
de carro pelas ruas e avenidas de Fortaleza: inúmeros são os bares, cafés e restaurantes
que se dizem especializados nesse tipo de culinária. Além disso, tão vendável têm sido
os “sabores regionais” que já estão sendo, inclusive, incorporados a “pratos”
comumente associados a outras cozinhas, como a pizza e o suchi, por exemplo. O que
tem motivado esse interesse pelo regional? Por que ele vem sendo tão insistentemente
lembrado como artifício publicitário para a comercialização de alimentos?
Ainda que não seja algo absolutamente recente, esse apelo ao regional tem se
intensificado de forma considerável nos últimos anos. Os restaurantes temáticos são,
provavelmente, uma das expressões mais evidentes desse fenômeno. Cada vez mais
numerosos – fato que considero revelador da boa recepção dos produtos regionais no
mercado consumidor –, esses estabelecimentos têm consolidado seu espaço no setor de
alimentação fora de casa5 com um discurso referendado nas particularidades culturais
que a idéia de regional evoca. Tão intenso é o potencial simbólico desse conceito, que
permite, inclusive, a construção de uma imagem alternativa da atividade comercial –
“aqui eu não digo que eu vendo comida; aqui eu trabalho as tradições da arte culinária
do Ceará, do sertão do Ceará”, disse-me um proprietário, certa vez6. Fetichizando sua
mercadoria com os encantos do “típico”, do “tradicional”, e jogando, assim, com a
emoção do cliente, esses proprietários, ainda que, por vezes, de forma involuntária,
favorecem suas empresas e contribuem para a disseminação de uma imagem regional.
Elegendo o sertão como foco desta imagem, esses empresários têm conseguido
convocar a atenção do consumidor, conquistando seu apreço e fidelidade. E isso se
deve, entre outras razões, a uma elaboração simbólica que estereotipa hábitos sertanejos
e os transforma em signos exóticos de uma cultura (regional), a qual os compradores
5
O chamado Setor de Alimentação Fora do Lar (ou fora de casa) é formado por bares, lanchonetes e
restaurantes. Tal expressão vem sendo utilizada, principalmente, pela ABRASEL (Associação Brasileira
de Bares e Restaurantes), que tem estimulado a formação de uma rede integrada entre essas empresas,
como forma de atuação política na defesa dos interesses do setor.
6
Todas as citações de falas de proprietários, aqui transcritas, foram conseguidas através de entrevistas por
mim realizadas, entre os meses de janeiro e abril de 2009.
15
são convidados a reconhecer como sua. Cria-se, assim, verdadeiro paradoxo identitário:
se o consumidor urbano é atraído pelo exotismo da vida rural, é, por outro lado e ao
mesmo tempo, incentivado a enxergar nesse modo de ser a “raiz” de uma história que
lhe é comum. Essa confusa conjunção de sensações, em que ora se é nativo, ora
estrangeiro, é significativa da plasticidade e da dinamicidade do que poderíamos chamar
de uma identidade regional, encontrada nos restaurantes como uma produção
discursiva, de cunho publicitário evidente, mas nem por isso menos reveladora (e
incentivadora) de relações de pertencimento em outras dimensões da vida social.
Situacional e relativa, essa identidade é fruto de um processo incessante de inclusão e
exclusão, ancorada em um sistema complexo de significação que produz,
historicamente, representações que lhe dão sustento e eficácia.
A fim de tentar responder estas questões, dois restaurantes foram escolhidos para
constituir o campo empírico desta investigação social: o Lá na Roça e o Chica Sinhá,
localizados nas margens ou proximidades da rodovia estadual CE 040 – dado cujas
principais implicações serão discutidas mais adiante.7 Recriando o sertão em espaços
citadinos, associando práticas tradicionais a novos contextos históricos, essas casas
temáticas movimentam uma idéia de regional, convidando-nos a pensar também sobre
os caminhos da mudança cultural, que se efetiva por meio de incorporações de
símbolos e de práticas que se misturam no tempo e no espaço (BARREIRA E VIEIRA,
2007).
7
O projeto de pesquisa original incluía, ainda, nas previsões de abordagem, um terceiro restaurante: o
Casa de Farinha. Algumas entrevistas e observações chegaram, inclusive, a ser realizadas no espaço,
mas, na medida do amadurecimento das questões aqui levantadas e da disponibilidade de tempo para a
conclusão do trabalho, optei por concentrar os estudos de campo apenas nos dois restaurantes citados,
selecionados pela proximidade física e ideológica entre eles.
16
Entretanto, antes de se apresentar como um trabalho comparativo, esta pesquisa
visa uma observação analítica das representações de regional que esse gênero de
estabelecimento (re)produz. Considerando a centralidade da alimentação no contexto de
produção (material e simbólica) destas empresas, as práticas alimentares assumem, aqui,
papel de destaque. O estudo das imagens regionais a que me proponho realizar
converge, diretamente, para a análise da formação daquilo que Maciel (2004) chamou
de “cozinha de um povo”.
Era como consumidora que eu chegava aos restaurantes, na maioria das vezes.
Nesta condição, aproveitava para observar a rotina dos mesmos e fazer o registro dos
cenários e dos “pratos” oferecidos, diariamente. Em conversas informais com
funcionários e clientes, aprendia um pouco mais sobre a dinâmica de utilização dos
espaços, sobre as sociabilidades que neles se estabelecem. Foram esses instantes de
conversa que me permitiram, também, amenizar a “solidão” do campo: quando pensei
em transformar restaurantes no lugar de efetivação empírica da pesquisa, não imaginei
que me incomodaria muito o fato de ter que almoçar sozinha durante o período de
observação. Consumir foi, neste caso, a forma mais discreta ou menos “invasiva” que
encontrei de me inserir no campo. Fazendo o que os demais clientes estão lá para fazer,
penso que eu interferia menos na rotina – e conseguia mais facilmente, com isto, a
atenção de funcionários. Todavia, almoçar tantas vezes sozinha foi, para mim, um
sacrifício – o que me faz pensar que, talvez por isso, Simmel (2004) tenha sido tão
enfático ao afirmar que a refeição é um “ente sociológico”. Mas, apesar de incômodos,
esses instantes sozinha foram também muito produtivos; aproveitados para me
concentrar no registro das questões que o campo suscitava e de suas possibilidades de
análise.
17
As entrevistas de cunho mais formal, previamente agendadas e com uso de
gravador, foram realizadas apenas com os proprietários dos estabelecimentos – foco
central deste trabalho. A utilização desta ferramenta metodológica – que se mostrou
extremamente interessante, já que o discurso desses proprietários é a base sobre a qual
esta pesquisa se fundamenta – exigiu atenção especial. Talvez por sua condição de
empresários, esses sujeitos tendem a olhar com certa “desconfiança” o pesquisador e
seu interesse evidente em conhecer, de forma aprofundada, os mecanismos de
funcionamento das empresas em estudo.8 Nesse sentido, cada questão foi pensada e
realizada com muita cautela, de modo a não “violentar” os limites da intimidade
empresarial ou, como sugeriu Bourdieu (2005), para tentar minimizar a violência
simbólica do processo de entrevista. Assim, as perguntas, sempre abertas, foram
formuladas de modo a não intimidar os entrevistados, agindo de maneira indireta no
alcance das informações mais restritas.
Entendendo que o campo de pesquisa funciona como um sinal que nos lembra que
“o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o
essencial das suas propriedades” (idem, ibidem: 27), considero de fundamental
importância a análise do material informativo produzido pela mídia (reportagens,
artigos de opinião, divulgação de eventos, etc.) acerca dos restaurantes estudados ou da
cozinha regional, de forma mais abrangente. Além disso, apresentam relevância, para a
compreensão da realidade estudada, os planos de ação públicos (promovidos por
agências governamentais) e privados (gerenciados pela ABRASEL) que envolvem a
estimulação da prática do turismo gastronômico. Tal prática tem um potencial
considerável de desenvolvimento nos estabelecimentos selecionados, pelo tipo de
culinária oferecida e pelo espaço da cidade onde estão localizados: no trecho
Messejana-Eusébio da CE-040, início da rodovia estadual que liga Fortaleza ao litoral
leste do estado.
8
De um modo geral, essa “desconfiança” por parte do pesquisado me parece algo quase inerente ao tipo
de investigação que fazemos nas ciências sociais. Isto porque, na raiz dessa sensação, está o
desconhecimento advindo da relação entre estranhos. No caso desta pesquisa, penso que essa
desconfiança pode ser ainda mais aguçada dada à natureza da atividade em análise: um comércio ou
negócio. De algum modo, o processo de pesquisa envolve a descoberta dos segredos da produção
empresarial (inclusive os segredos do êxito do empreendimento) e isso pode constituir, de muitas formas,
uma espécie de ameaça na percepção do pesquisado.
18
desenvolvimento do turismo local.9 Atualmente conhecida como a Rota do Sol
Nascente, esta rodovia é, para o tipo de restaurante pesquisado, um local estratégico: ali
não apenas trabalhadores do entorno, mas também turistas se tornam clientes em
potencial. Ansiosos por conhecer e desfrutar “dos encantos do Ceará”, os visitantes que
passam pela rodovia em direção às praias parecem querer também degustar as
especialidades da região – ou são, de várias formas, convidados a fazê-lo. Nesse
sentido, uma reflexão sobre o envolvimento desses espaços temáticos com a dimensão
turística da CE-040 pode fornecer elementos esclarecedores das questões analisadas.
9
De acordo com informações concedidas pelo DERT – Departamento de Trânsito e Rodovia.
19
O turismo desempenha um papel relevante nesse processo de formulação do
típico. Sendo o fundamento de sua prática o desejo de conhecer o diferente, ele
impulsiona um movimento local de construção de “inventários culturais” que servirão
de atrativo. Para Canclini (ibidem: 88), o turista necessita desta simplificação, já que ele
não viaja como com um investigador da realidade. Assim, na medida em que questiona,
por exemplo, que diferencial os cearenses têm a oferecer aos visitantes – o que há no
Ceará que não é possível encontrar em nenhum outro lugar do planeta –, o turismo
proporciona a “descoberta” de certos traços culturais distintivos, que passam a ser
“manipulados” cultural e mercadologicamente.
Alguns autores interpretam esta construção do típico como uma espécie de reação
aos processos de globalização. Para Oliven (2006), por exemplo, o embaralhamento das
fronteiras e a criação de estilos de vida mundializados em vez de fazer o sentimento
regional ou nacional diminuir, o faz crescer. “À medida que o mundo se torna mais
complexo e se internacionaliza, a questão das diferenças se recoloca e há um intenso
processo de construção de identidades”, afirma o autor (ibidem: 208). A sensação de
que vivemos em uma “aldeia global” impulsiona o renascimento e, frequentemente, a
invenção de tradições, que passam a ser manipuladas, ainda segundo Oliven, como
marcos de referência cultural, ou seja, como aspectos “típicos de uma cultura”.
20
Com esta expressão Canclini pretende ressaltar a importância de certos atores sociais,
que “tomam decisões e provocam efeitos”, nos processos de produção cultural (ibidem:
59). O setor empresarial – ou, simplesmente, comercial10 – é representativo desta
posição. Não simplesmente por dispor de meios financeiros para executar suas idéias,
mas por sua visível habilidade na manipulação de imaginários, seu papel na construção
e valorização do típico é, no mínimo, significativo.
10
Termo que julgo mais adequado por ser mais abrangente em sua utilização. O termo empresarial
comumente remete a um tipo específico de comércio, mais moderno, desenvolvido.
11
Com a descoberta das vitaminas, o consumo de verduras e legumes crus tem sido amplamente
incentivado por profissionais da saúde, como médicos e nutricionistas. Essa dietética, cujos alimentos não
passam por nenhuma forma de cozimento, tem sido chamada por estudiosos da alimentação, como
Montanari (2008), de anti-cozinha.
21
a alimentação dos sertanejos consiste principalmente de carnes,
nas suas três refeições, às quais ajuntam a farinha de mandioca
reduzida a uma pasta, ou arroz, que às vezes o substitui. O
feijão, chamado comumente na Inglaterra de favas francesas é a
iguaria favorita. (...) Os vegetais verdes não são conhecidos em
seu uso e ririam à idéia de comer qualquer espécie de salada.
(2008: 201, grifo meu).
12
De acordo com os proprietários, o público consumidor destes restaurantes se enquadra no que eles
chamam de “classes A e B”, que seriam formadas, ainda de acordo com eles, por “executivos,
empresários, funcionários qualificados” que trabalham, principalmente, nas indústrias e empresas no
entorno dos restaurantes. Mas há variações de um restaurante para o outro, verificáveis, até mesmo, pelo
valor cobrado nas refeições – que varia, atualmente, de R$ 26,00 a R$ 35,00 reais, o quilo.
22
A visível heterogeneidade da composição regional é, entretanto, ocultada no
discurso de “pureza” e “originalidade” dos hábitos alimentares ofertados. A noção de
“resgate das tradições”, comumente encontrada no discurso, não apenas dos
proprietários, mas também de funcionários e consumidores, reforça ainda mais esta
imagem de “autenticidade”, já que implica a recuperação de uma prática cultural tal
qual ela teria sido no passado, “sem contaminações”. A questão é que, como bem
sabemos, as manifestações de ordem cultural não são estáticas, com contornos definidos
e, ainda menos, definitivos. Não são assim hoje e não foram assim “no passado” de que
se fala. São processuais, dinâmicas, e o sentido a elas atribuído é, deste modo,
constantemente “arriscado na ação” (SAHLINS, 1990), reavaliado na prática diária da
vida social. Sendo assim, o “resgate” a que se faz referência é parte de uma
performance discursiva que esconde, em sua apresentação estereotipada, um processo
de invenção de tradições (HOBSBAWM, 1997), como bem observou Barreira e Vieira
(2007) – processo este necessário a efetivação de conexões de sentido que dão eficácia a
produção regional, tornando-a “real” e “significativa” no cotidiano das interações
sociais.
23
implica, no entendimento deste trabalho, compreender o uso de símbolos socialmente
produzidos como parte de uma administração do simbólico, vivenciada em um mercado
onde “cultura” e “passado” parecem ser tanto uma moeda como um “conjunto
cartográfico” que aponta o lugar dos significados e os significados do lugar.
24
CAPÍTULO I
Antes, todavia, dos primeiros restaurantes abrirem suas portas, em muitas cidades
européias, outros tipos de estabelecimento já ofereciam alimentos cozidos e prontos
para o consumo. Nas áreas urbanas de Paris, tabernas e estalagens disponibilizavam,
aos forasteiros e à população local, um ambiente “apropriado” para se fazer uma
refeição na rua. No entanto, para além da oferta culinária, o aluguel de quartos era o que
13
No início do século XVIII, Paris tinha um grande número de comerciantes de comida e bebida,
organizados por decretos monarquistas em 25 diferentes guildas, todas regidas por estatutos mutuamente
exclusivos. Desse modo, o direito de comercializar refeições completas (em casa de repasto ou, sob
encomenda, para festas particulares) estava restrito, portanto, apenas aos caterers (traiteurs), mestres
artesãos da gastronomia. Todavia, estes não estavam autorizados a oferecer qualquer tipo de bebida
alcoólica para acompanhamento – muito embora não tenham, por isso, deixado de ofertar,
clandestinamente, vinhos de “qualidade duvidosa”. Tal junção de atividades só foi legalmente possível
nas últimas décadas do século XVIII, quando, como conseqüência da Revolução, as “corporações de
ofício” são desfeitas e os primeiros restaurantes aparecem.
14
Conforme será explicado mais à frente, a adoção de uma postura mais “democrática” e “civilizada”
pelos restaurantes, como estratégias de sobrevivência social e comercial, insere-se num amplo processo
de transformação das idéias políticas e dos costumes europeus, cujo desenrolar possibilitou,
historicamente, uma compreensão positiva e necessária de tais concepções.
25
identificava esses estabelecimentos, sendo eles, mais especificamente, uma espécie
embrionária de pousada15 (ou de pensão, como prefere comparar Spang (2003),
considerando uma certa dimensão de “hostilidade” que caracterizaria esses dois
formatos históricos de guarida pública). Para um viajante do final do século XVII,
alojar-se nessas hospedarias era sua única alternativa – a menos, é claro, que ele levasse
consigo uma extensa carta de recomendação; espécie de passaporte que lhe assegurava
acesso à opulência de alguma casa particular, garantindo-lhe conforto na acomodação e
“boa comida”.
15
SERAFIN. Marco Antônio M. A história da hotelaria no Brasil e no mundo. Disponível em:
http://www.etur.com.br/conteudocompleto.asp?idconteudo=6144 Acesso dia 14 de dezembro de 2009.
26
uma atividade marginalizada socialmente: em parte, devido à simplicidade culinária que
lhe era característica e à fama de seus freqüentadores – acusados de uma
“convivialidade barulhenta, muitas vezes licenciosa e ocasionalmente provocadora de
brigas” (PITTE, 1998: 753) –, mas também porque, de qualquer forma, comer fora de
casa não era, no Antigo Regime, uma prática muito apreciada.
Havia, nessa época, uma intensa valorização do ambiente doméstico, não apenas
como o lugar mais seguro – ou seja, supostamente mais limpo e pacificado (ELIAS,
1992) – para se fazer uma refeição, mas, sobretudo, como referencial distintivo para
aqueles que podiam usufruir o criativo e sofisticado universo gastronômico dos grandes
hôtels ou palais.16 Isto porque, nesses espaços, era possível desfrutar das invenções
culinárias de renomados chefs: cozinheiros profissionais cujos preparos, bastante
elaborados e diversos, não raro eram considerados verdadeiras obras de arte. Mestres na
combinação de sabores e texturas, na estética suntuosa de apresentação dos pratos e nas
práticas cerimoniais à mesa, tais profissionais eram imensamente valorizados e
admirados pela nobreza de corte e pelos reis absolutistas (por Luís XIV e por seu filho,
Luís XV, principalmente), que chegavam a conceder títulos de honra aos que mais se
destacavam (CHAVES e FREIXA, 2008).
16
Eram chamadas de hôtels as casas da mais alta aristocracia de corte francesa, enquanto os palais
constituíam as residências dos príncipes e reis.
27
o dinheiro, mas as honras e os privilégios de sua posição. Por isso mesmo, esta foi um
época que testemunhou intensa elaboração do cerimonial, das posturas, da fala e do
comportamento – tudo originado na corte e apresentado com um propósito: impor a
existência de uma estrutura imutável de poder.
Na medida em que a alimentação era inserida nessa lógica estrutural das cortes, o
surgimento de um profissional capacitado para imprimir à comida toda a pompa e o
requinte da “boa sociedade” logo se fez necessário. Os cozinheiros em atividade nos
palais eram, assim, incentivados a trabalhar no aperfeiçoamento técnico e estético da
produção culinária, no intuito de possibilitar, à alta nobreza de corte, o desfrute das mais
ricas e saborosas iguarias, preparadas com ingredientes exóticos e servidas em um
cerimonial que, mais tarde, tornou-se conhecido por Service à la française.17
Promovendo, frequentemente, grandes jantares festivos (os famosos banquetes), bem
como as refeições reais diárias (que nem por isso deixavam de ser verdadeiros
acontecimentos18), esses profissionais desenvolveram, juntamente com suas equipes, um
“aparato gastronômico”, nos termos de Strong (2004), que se tornou um dos mais
expressivos sinais do luxo e do poder das cortes absolutistas (FRANCO: 2006;
DROUARD, 2009; SPANG, 2003; STRONG, 2004).
17
A respeito deste tipo de serviço, Strong nos explica: “A moda refletia a preocupação de século XVII
com a ordem, o equilíbrio, o bom gosto e a elegância. O número de pratos para cada serviço era calculado
segundo uma relação fixa entre pratos e comensais. Uma refeição de quatro serviços para 25 pessoas, por
exemplo, significava cem pratos. Podia-se multiplicar ou dividir a partir daí. Aumentar o número de
convivas não significava, como hoje em dia, simplesmente produzir uma quantidade maior dos mesmos
pratos. Pelo contrário, exigia mais pratos diferentes. O resultado era que, embora os alimentos grandes e
robustos, como os assados, mantivessem seu lugar, eles tendiam a servir como âncoras numa mesa,
cercados por uma miríade de outras iguarias.” (2004: 198)
18
Au grand couvert, expressão que encerrava o costume do Rei Sol de jantar e cear em público, consistia
em um grande evento diário que mobilizava uma equipe de 55 pessoas, coordenadas por um chef e
distribuídas entre os serviços de cozinha e o cerimonial de apresentação dos “pratos”. Tal costume durou
até a década de 1690, quando o jantar real (nesta época, realizado ao meio-dia) passou a ser realizado
privadamente – e a ser chamado de petit couvert – nas recém-inventadas “salas de jantar” ou em seus
aposentos de gala. Para mais detalhes sobre os rituais alimentares da nobreza durante o Antigo Regime,
ver Strong (2004: 213-220).
28
inserção social. Conscientes de tal situação, os chefs se lançam no mercado editorial
francês, publicando seus cadernos de receita, os quais são vendidos sob o pretexto de
que neles é possível encontrar pratos que “servem-se, presentemente, na mesa dos
Grandes”19. Sendo as cortes francesas – especialmente o castelo de Versalhes, a partir
de 1664 (moradia do rei Luís XIV) – consideradas pólos difusores de moda da época,
berço dos “bons costumes”, tal apelo publicitário se mostra absolutamente adequado e
eficaz em seu objetivo: estas publicações se tornam uma verdadeira “febre” no Antigo
Regime.20 Tão boa foi a recepção destes tratados de culinária que algumas dessas obras
chegaram a ser reeditadas mais de vinte vezes, permanecendo no mercado por cerca de
cinqüenta anos (HYMAN, 1998).
19
Trecho retirado do prefácio do primeiro livro de receitas de La Varenne, Le Cuisinier françois, e citado
por Hyman (1998: 625).
20
A publicação de livros de receita não é uma novidade do Antigo Regime. Desde a Idade Média o
mercado editorial francês investe em obras com orientações de ordem culinárias, todavia, estas possuíam
mais o caráter de receituários médicos ou de manuais para a organização de banquetes, bem diferente do
tipo de leitura gastronômica que surge no século XVII, onde as receitas e as promessas de deleite
gustativo são os grandes destaques dos livros.
21
A redução de tais práticas alimentares tão marcadamente medievais indica uma transformação dietética
significativa e condizente com as necessidades físicas e sociais dos habitantes da corte, que podem
dispensar as reservas nutricionais indispensáveis aos guerreiros medievos, optando por uma dieta “leve” e
moderada, capaz de promover, ao mesmo tempo, satisfação fisiológica e distinção social. Assim, é à base
de aves, peixes e legumes sempre frescos que a alta aristocracia passa a se manter – um luxo concedido a
poucos, já que a maior parte da população continuava comendo carne de porco (mais calórica e barata) e
conservando o que consumia, por questões de ordem financeira e ecológica, através de técnicas que
alteravam consideravelmente o sabor original dos alimentos. Nesse sentido, a diminuição do excesso de
condimentos é expressiva dessa tendência de valorização do alimento fresco, livre do gosto acentuado que
os conservantes (como o sal e algumas especiarias) costumavam infundir.
29
colocando preocupações de ordem fisiológica em segundo plano e elegendo o apetite
como o principal elemento motivador da prática alimentar.
22
Ou da corte, que, para Elias, pode ser entendida como uma extensão da casa (2001).
30
logo, com bastante receio era vista a table d’hôte, “já que nunca se poderia afirmar
quem estava sentado lá”23.
23
Trecho retirado por Spang de um dos escritos do estudioso alemão Joachim C. Nemeitz, intitulado
Séjour de Paris, c’est à dire, Instructions fidèles pour lês voiageurs de condition.
31
segurança –, para aqueles que desconheciam sua história e sua prática, o risco parecia
bem maior e ameaça, mais imediata.
Contudo, conforme nos ensina Spang (2003: 12), “séculos antes de um restaurante
ser um lugar aonde se ia para comer (e até varias décadas depois disso), um restaurant
era algo de comer”. Desde o século XV, o termo indicava um tipo de caldo
24
Mesmo se tratando de um tipo de estabelecimento onde a comida tinha um espaço bastante reduzido,
convém registrar, ainda, a existência dos cafés. Desde 1670, esses espaços se multiplicavam pelas ruas de
Paris, servindo bebidas exóticas à base de café e chocolate, sorvetes e alguns poucos petiscos. Colocando
jornais à disposição dos clientes, os cafés se tornaram centros de informação e discussão de idéias
políticas e literárias. Freqüentados por intelectuais e artistas, eles são quase sempre lembrados como
palcos do desenvolvimento do pensamento iluminista que incitou a Revolução de 1789. Todavia, se os
cafés eram lugares ideais para articulações políticas, não se pode dizer o mesmo acerca de seu potencial
gastronômico: para Pitte (1998: 755), nesses espaços era possível “alimentar o espírito, mas de modo
algum o estômago”.
25
Trechos retirados dos relatos de viagem de Philip Thicknesse e Helen Maria Williams,
respectivamente. Citados por Spang (2003: 19).
32
semimedicinal, comumente utilizado para restaurar as forças dos indivíduos de saúde
fraca. Sua receita costumava incluir uma variedade de carnes – presunto, vitela e
alguma ave (galinha, perdiz ou faisão) – lentamente cozidas, quase sem adição de água,
em uma panela bem tampada ou no “banho-maria”26, até que tivessem alcançado um
alto nível de decomposição, transformando-se em um consomê concentrado, capaz de
fornecer nutrição, conforme a crença em vigor, sem sobrecarregar o debilitado sistema
digestivo de um doente crônico (idem, ibidem). Caldo de pura carne, temperado com
ervas finas e servido com pão torrado, o restaurant era um alimento de luxo,
encontrado, até então, apenas nas mesas mais ricas.27
Foi por volta de 1766 que isso começou a mudar. Na torrente de proliferação
comercial que assolava a calmaria aristocrática parisiense, surgem butiques com um
serviço de alimentação completamente diferenciado das tabernas, estalagens e casas de
pasto. O agito das transformações urbanas em curso, acalorado por lutas políticas e
sociais, clamava por uma instituição nova, capaz de aliar o desejado requinte da cozinha
aristocrática aos ideais democráticos que faziam fervilhar os sonhos de ascensão de
certos grupos enriquecidos pela prática comercial, mas, ainda assim, desprivilegiados
socialmente. Oferecendo, a todos que pudessem pagar, nobres e delicados consomês
fortificantes, servidos em mesas individuais a qualquer hora do dia ou da noite, os
primeiros restaurantes – conhecidos, inicialmente, por Le salon d’ un restaurateur ou
une salle à manger28 – surgiam para atender as expectativas de um público atingido
pelas fadigas da vida moderna e enfeitiçado pelos encantos intangíveis da haute cuisine.
26
O bain marie francês, bem como o que se usa no Brasil, é um procedimento culinário por meio do qual
se coloca a panela que contém o alimento a ser preparado em um recipiente com água no fogo, de modo
que o aquecimento desta promova um cozimento lento e integral de tal alimento.
27
No entanto, também a população mais pobre consumia caldos. Estes, todavia, eram postos à mesa não
apenas dos doentes, mas de todos os que tinham fome. Juntamente com as sopas, eles constituíam
elemento central da alimentação cotidiana das classes pobres, dado seu potencial restaurativo e sua
propriedade de rendimento. Mergulhando legumes, um pouco de manteiga e alguns pedaços de toucinho
– a carne de porco (à exceção do pernil), como vimos, era praticamente a única opção de carne acessível –
em um caldeirão de água, esses caldos, acompanhados de pão preto, alimentavam uma família inteira,
fornecendo sustento e força para o trabalho.
28
Conotando um estabelecimento comercial, o termo restaurante aparece pela primeira vez apenas no ano
de 1835, no Dictionnaire de l’Académie Française (PITTE, 1998; SPANG, 2003).
33
freqüentava as rodas aristocráticas e administrativas da cidade, apresentando projetos
para corrigir a economia francesa que, graças às extravagâncias desmedidas da nobreza,
encontrava-se seriamente debilitada. De origem burguesa, via nos mecanismos de
comércio (a circulação de bens e o estimulo de desejos), há muito estigmatizados,
possíveis canais para o benefício social e o desenvolvimento do país.
Em 1766, na rue des Poulies, nas proximidades do Louvre, ele inaugura sua
primeira salle à manger. De extrema sensibilidade para a prática comercial,
Chantoiseau (também conhecido por Boulanger), percebendo a importância que a saúde
adquiria no âmbito das preocupações da elite parisiense – que sofria, desde 1720, com
pestes e epidemias oriundas dos descompassos do processo de urbanização –, apresenta-
se como o guardião dos segredos para o bem-estar físico e espiritual. Na fachada de seu
estabelecimento, estampa a seguinte paráfrase de um versículo bíblico: Accurite ad me
omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo (“Corram a mim vós todos cujos
estômagos padecem, e eu vos restabelecerei”)29. Proclamando essa atenção com a saúde,
ele se inseria no “imenso mercado do consumismo medicinal do século XVIII”, com a
vantagem de possibilitar a cura das fraquezas do corpo não pela ingestão de purgantes
de gosto insuportável, mas no deleite de caldos saborosos, feitos em panelas
criteriosamente limpas e servidos individualmente, ao gosto do freguês.
29
No original bíblico: “Vinde a mim vós todos que estais cansados e sobrecarregados e eu vos darei
descanso”. (Mateus, 11: 28)
34
vanguardista com impulsos mais conservadores e rústicos. Os
restaurateurs anunciavam que mantinham os consumês
aquecidos em bains-marie, instrumentos normalmente
considerados peças complicadas do equipamento científico, mas
também insistiam que uma extrema “simplicidade” caracterizava
essas mesmas sopas.
35
ambientação e atendimento, o restaurante causava nos visitantes afortunados a
impressão de “estar em casa” ou (em se tratando de comerciantes e empresários bem-
sucedidos) a desejada sensação de “inserção” no mundo da alta aristocracia. Ao mesmo
tempo, tanto num caso quanto no outro, possibilitava uma agradável “quebra da rotina”
que atraia os consumidores, viabilizando sua progressiva inclusão ao conjunto das
opções de lazer da cidade. Além disso, deve-se levar em consideração, ainda, uma
invenção simples e aparentemente insignificante, mas de impacto decisivo na
construção de uma nova percepção acerca da prática de comer fora de casa: o cardápio
impresso.30 Celebrando o culto da individualidade e do gosto pessoal, esse instrumento
concedia ao comensal oportunidade de escolha – regalia inédita na história do comércio
varejista de comida, até então –, permitindo que ele pudesse fazer de sua preferência
tanto uma questão financeira quanto de paladar.
30
Tal invenção teve nos menus apresentados nos banquetes de Luís XV, provavelmente, sua fonte de
inspiração. Estes, entretanto, eram apenas registros dos “pratos” que seriam servidos no decorrer da
refeição, impossibilitando o comensal de qualquer poder de escolha.
31
Convém lembrar que esta situação foi agravada, de 1715 até 1789, por uma grande crise agrícola.
Como a população crescia em ritmo acelerado, a quantidade de alimentos era insuficiente e as geadas
ainda abatiam a produção alimentícia, colocando as classes mais pobres em uma ameaça de fome
constante.
36
– também arcaram com as conseqüências da Revolução; afinal, como nos aponta Spang
(2003: 151), “a poderosa República exortou seus cidadãos a rejeitar o ‘apetite refinado’
caro às almas sensíveis ao Antigo Regime como uma marca do dandismo degenerado e
do egoísmo impatriótico”. Entretanto, o que se observa é algo completamente diferente
e (apenas em parte) inesperado. Desempregados em virtude da fuga ou execução dos
aristocratas para quem trabalhavam, alguns chefs encontraram nos salões dos
restaurateurs oportunidade de trabalho. Outros, no entanto, conseguiram estabelecer-se
por conta própria, abrindo refeitórios elegantes nas ruas centrais de Paris. Aproveitando-
se da decadência das guildas de comércio, provocada pela Revolução, eles sintetizaram
no restaurante um conjunto diferenciado de serviços de alimentação que incluía uma
carta selecionada de vinhos e os mais diversos preparos: não apenas os famosos caldos
restaurativos, mas uma grande variedade de pratos oriundos das “mesas dos reis” –
como o exótico peru com trufas, símbolo maior do poder e do luxo aristocrático. Ao
contrário do que se poderia prever – dado o contexto cultural que abrigava tais
mudanças –, o sucesso do empreendimento foi estrondoso:
37
outro fator significativo: de modo a prestigiar o paladar da nova classe dominante e
tentar amenizar um inevitável estranhamento dos sabores exóticos da haute cuisine,
muitos restaurantes passaram a incorporar “pratos regionais” aos seus cardápios – ou a
estilizar receitas clássicas dessa cozinha por meio do uso de ingredientes até então
conhecidos somente nas províncias. Um novo conceito de alimentação era, aqui,
inaugurado, abrindo caminho para a formação de um tipo inédito de percepção
culinária, representativo de uma vinculação entre comida e território.
32
Como veremos mais à frente, os guias de viagem são de inegável importância para compreensão do
surgimento das cozinhas regionais, uma vez que, atuando, gradualmente, na promoção de uma culinária
atrelada ao território, eles evidenciam transformações materiais e simbólicas que conduziram à construção
de uma percepção positiva acerca da “comida local”.
38
diluía, ao menos metaforicamente, as desigualdades sociais, colocando todos numa
mesma escala valorativa. Em meio a esse processo, as “cozinhas regionais” emergem,
portanto, como sinais distintivos das localidades, transformando-se em um elemento
notável da nação em sua diversidade e representações (CSERGO, 1998) – fato cujas
implicações sociológicas serão tratadas, de forma mais aprofundada, no terceiro capítulo
deste trabalho.
39
cultural do alimentar33, esse tipo de publicação é ainda bastante reduzido e de difícil
acesso – em oposição ao amplo mercado de publicações culinárias que já no século
passado ganha espaço nas prateleiras por todo o país. No que tange ao tema “comer
fora de casa”, as referências são ainda mais raras e fragmentadas, exigindo o seu achado
um esforço de garimpo nos relatos de viajantes, nas entrelinhas da história dos costumes
e no aparente desinteresse da literatura especializada – dada a limitação de páginas
(quando não de parágrafos) comumente destinada a essa modalidade de alimentação.
Guardadas, entretanto, essas dificuldades iniciais de fonte teórica, algumas idéias
podem ser traçadas acerca do desenvolvimento desse tipo particular de consumo.
33
Publicadas, essencialmente, pela editora do SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial),
instituição pioneira no Brasil na formação de cozinheiros e demais profissionais de gastronomia.
40
escravos), associados a um estrutura patriarcal de família e de produção34. Esse sistema
de dominação a um só tempo aristocrático e “democrático” produziu formas de
interação menos rigorosas entre a classe senhoril dominante e os grupos menos
favorecidos da sociedade, incluindo os escravos, que conviviam numa intimidade
inconcebida no Antigo Regime francês. Para alimentar-se, contavam as crianças de
família rica, desde muito pequenas, com a ajuda de escravas negras, que não raro lhes
davam de mamar no próprio peito. Nas cozinhas das casas-grandes de fazenda e dos
sobrados da cidade, também a presença da mulher escrava era uma constante comum e
indispensável, dividindo o espaço e o tempero com a sinhá dona da casa, que não
apenas superintendia o preparo das refeições, como também se lançava no fabrico de
pratos variados – principalmente de doces e bolos, cujas receitas, comumente de origem
portuguesa, eram adaptadas aos ingredientes disponíveis em solo brasileiro (CHAVES e
FREIXA, 2008). Essa proximidade – favorecida e até facilitada, segundo Freyre (1971),
pela estrutura habitacional desenvolvida no Brasil durante o período colonial –, decerto
contribuiu para que os níveis de resistência ao espaço público e à alimentação de rua,
em especial, fossem mais abrandados na elite brasileira, uma vez que esse tipo de
consumo estava, nas formas iniciais de sua prática, profundamente marcado pela figura
familiar da escrava negra.
41
(2004), cozinhar para fora era uma prática bastante comum entre as donas de casa e,
tudo indica, relativamente próspera35, não sendo considerada, entretanto, uma profissão
formal, mas apenas uma extensão dos afazeres domésticos como estratégia para o
aumento da renda familiar. Embora já houvesse regulamentação específica para esse
modo de comercialização36, boa parte das quituteiras atuavam ilegalmente pelas
freguesias urbanas, servindo na informalidade uma clientela híbrida formada por
trabalhadores locais de variados níveis sociais, desde altos funcionários públicos a
escravos forros (idem, ibidem).
35
Essa prosperidade é evidenciada, ainda segundo Bruit e El-Kareh (2004), no grande número de
anúncios requerendo o aluguel de negras “honestas” e “capacitadas” para a venda de doces na rua, bem
como no florescimento de uma indústria de reaproveitamento de embalagens usadas, também verificado
por meio de um considerável volume de anúncios específicos, tais como o da doceira do sobrado da rua
do Cano, nº 41, que anunciava que “na mesma casa compram-se latas servidas de marmelada e goiabada”.
(idem, ibidem: 82)
36
De acordo com Silva (2004), para colocar vendedores ambulantes de alimentos nas ruas, as senhoras –
principais (embora não únicas) praticantes desse tipo de comércio – deveriam solicitar à Câmara
Municipal um pedido formal, onde constava sua própria identificação e endereço, lado a lado com os
dados básicos (como origem, sexo, idade) dos escravos e escravas, forros ou não, colocados ao ganho.
Estes, sob pena de prisão, deveriam portar a chapa de identificação com o número do alvará concedido
durante o trabalho.
37
A esse respeito, convém lembrar a leitura da obra Açúcar, uma sociologia do doce (2007), de Freyre.
Nela o autor passeia pelo contexto colonial brasileiro, mostrando com uma riqueza de detalhes curiosos a
rendição gustativa da população local aos encantos do açúcar e de suas possibilidades culinárias. Através
do registro e do estudo de receitas de bolos e outros doces, que se mantiveram em segredo por muito
tempo, repassadas de mãe para filha através dos séculos pela tradição oral ou em cadernos de receita
particulares, Freyre revela grande sensibilidade sociológica no entendimento do que ele chama de um
“paladar brasileiro histórico”, cultural e ecologicamente condicionado, no qual o gosto pelo doce seria
marcante e distintivo.
38
De acordo com Cascudo (2004: 591), “nem os negros e nem os amerabas faziam doces”. Já os
portugueses, explica o autor, possuíam uma tradição doceira que “já estaria muitas vezes centenária
quando o açúcar apareceu” (idem, ibidem: 299), cuja base era o mel de abelha.
42
inclusive (e principalmente), para a cidade do Rio de Janeiro, transformada, no início do
século XIX, no coração do “Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves”.
43
partir do sucesso de um cozinheiro dessa nacionalidade que executava “refeições
magníficas”, satisfazendo aos hábitos dos europeus que afluíam à capital. Acerca dessas
“casas de comestíveis”, Abdala (2005: 102) apresenta algumas características:
Com a assinatura da carta régia, que permitia a abertura dos portos brasileiros às
nações amigas, e o estabelecimento da liberdade de indústria e comércio, uma grande
variedade de gêneros alimentícios importados passou a rechear, além das mesas da corte
e das famílias ricas, o cardápio das casas de pasto mais sofisticadas – não raro chamadas
de restaurantes por alguns estudiosos da alimentação (ABDALA, 2005; CASCUDO;
2004; SILVA; 2008). Um mundo de sabores desconhecidos, símbolos da superioridade
aristocrática européia, estava agora acessível a quem pudesse pagar por ele. Presuntos,
salames, vinagres, nozes, avelãs, amêndoas, frutas secas: a lista era imensa e o desejo de
inserção nesse universo, maior ainda. Como nos aponta Chaves e Freixa (2008: 183), “a
mesa da elite patriarcal [brasileira] era desprovida de requinte” – ou, mais exatamente,
poderíamos acrescentar, de requinte aos moldes franceses, cuja culinária “de grife”
pressupunha, entre outras coisas, a criatividade inventiva de um chef socialmente
legitimado. Baseavam-se as refeições diárias da classe senhoril na fartura de produtos
da terra, como (feijão preto, mandioca e milho) plantados, colhidos e preparados por
mãos escravas. Os ditames da coroa portuguesa acerca dos limites do “bom gosto”
culinário – aprendidos nas cartilhas de Londres e Paris –, estimulavam a transformação
das expectativas gastronômicas, tornando o ato alimentar uma expressão de gosto e
especialização.
44
A profusão de mudanças proporcionadas pela presença da família real e suas
medidas para “embelezar” e “civilizar” a capital do império39 (ABDALA, 2005: 105),
financiadas pela riqueza advinda da produção cafeeira e referenciadas no modelo
europeu, favoreceu diretamente o aumento e a diversificação da oferta de serviços
culinários. Multiplicou-se pela cidade do Rio de Janeiro – e, depois, por todo o Brasil –
um grande número de estabelecimentos alimentares, expressão de “modos de ser” e das
novas necessidades urbanas e sociais. As vendas, misto de bar e armazém, atraiam
seguimentos diversos da população pobre, que consumia mercadorias básicas e se
divertia com batuques e folguedos. Todavia, gozavam estes freqüentadores, também, da
fama de briguentos: “Além de comprar, estes grupos regados pela ‘aguardente da terra’,
inevitavelmente servida, envolviam-se com brigas, ferimentos e mortes em seu interior”
(FIGUEIREDO e MAGALDI, 1985: 60). Nos botequins, serviam-se petiscos variados,
consumidos como “tira-gosto” nas rodas de bilhar ou gamão. Já os cafés do início do
século XIX foram descritos por estrangeiros, segundo Abdala (2005: 103), “como
lugares de preços moderados, cujas porções eram de qualidade inferior, consistindo de
café com açúcar não refinado, leite aguado, pão com manteiga inglesa, um tanto
rançosa, e limonadas”. As poucas confeitarias da cidade (na maioria, italianas),
freqüentadas pela mais fina elite carioca, inclusive pelas mulheres, serviam “bandejas
de doces para o chá e refrescos nevados, além de estrelinhas, lasanhas, vermicelli,
macarrão, aletria e empadas de peixe para a época da quaresma” (SILVA, 2008: 43).
Aceitavam ainda encomendas de jantares e ceias, serviço muitas vezes utilizado pela
própria corte portuguesa, em seus bailes e banquetes (CASCUDO, 2004).
39
Muitas iniciativas foram tomadas pelo príncipe-regente D. João VI, nesse sentido. Entre elas,
poderíamos citar, por exemplo, o apoio à vinda da chamada Missão Cultural Francesa, em 1816; a
fundação da Academia Nacional de Belas Artes, da Biblioteca Nacional, do Teatro São José; a criação do
Banco do Brasil e da Tipografia Régia; e a construção do Jardim Botânico, com suas palmeiras imperiais
trazidas da Ásia.
45
músicas, danças, serviços de cardápio”. Criou-se neste período, conforme nos conta
Chaves e Freixa (2008: 200), “o hábito de usar a palavra ‘menu’ para os ‘cardápios’ que
eram servidos à mesa dos cerimoniais, assim como escrever em francês o nome dos
pratos, embora boa parte deles fosse de origem portuguesa e brasileira”.40 Assim,
cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, inclusive, ganhavam novos ares
urbanos, num esbanjar de luxo e cosmopolitismo inspirados nas últimas novidades da
belle époque parisiense.
40
Analisando os usos gastronômicos dos espaços doméstico e comercial nos anúncios de jornais da
segunda metade do século XIX, Bruit e El-Kareh (2004) encontraram alguns exemplos curiosos dessa
utilização exagerada do francês, usado inclusive para nomear pratos nativos. Os autores comentam acerca
de um dos anúncio: “o cardápio proposto, em francês, pelo Hôtel de la Providence, ‘Rue de Cima 27 et 29
à S. Domingos’, portanto, no bairro niteroiense preferido das classes mais ricas do Rio de Janeiro pelo seu
clima ameno e seus banhos de mar, dá uma idéia de sua clientela e do que se podia saborear, num dia de
domingo do verão de 1851, depois de um passeio: ‘huîtres fraîches, potage aux huîtres frites, branlade de
morue, et tout ce que l’on peut désirer dans um hotel’, como, por exemplo, o ‘gras-double à la mode de
Caen”, que, apesar da imponência do nome, não passava de uma buchada de boi!” (2004: 84).
41
Como, por exemplo, o famoso chef Paul Bocuse, trazido para assumir o Le Saint-Honoré, do hotel
carioca Le Méridien, e o chef Gaston Lenôtre, que comandou o Pré-Catalan, do Rio Palace Hotel. Em São
Paulo, o La Cuisine du Soleil, do Hotel Macksound Plaza, ficou sob a responsabilidade do prestigiado
chef Roger Vergé.
46
Aos poucos, já no século XX, esse modelo de restaurante deixa o ambiente
hoteleiro, instalando-se de forma independente e se diversificando em preço e tempero.
A partir de 1950, a economia brasileira ganha novos rumos – incorporando padrões de
produção e consumo de países como os Estados Unidos42 –; intensificam-se os fluxos
urbanos e o romantismo característico da belle époque dá lugar à praticidade frenética
das novas relações sociais e de trabalho. Nessa nova configuração, o tempo destinado à
prática alimentar é diminuído pelo acelerado das atividades profissionais e pela
incorporação gradual da mulher no mercado de trabalho. Surgem, então, para dar mais
agilidade aos processos de cozinha e ao ato de comer, propriamente, inúmeros produtos
e serviços. Nos espaçosos supermercados que agora suplantavam as pequenas vendas e
mercearias, uma variedade de comida pronta e semipronta, como congelados e
enlatados, passaram a lotar as prateleiras, embalados com criatividade para chamar a
atenção dos clientes. A alimentação fora de casa ganhava os restaurantes de comida a
quilo e os fast-foods, que imprimiram novo ritmo ao consumo de lanches e refeições,
dominando a cena gastronômica nas grandes cidades, segundo parâmetros diferenciados
de novas conjunturas globais de consumo.
42
Que, após o fim da Segunda Guerra (1939-1945), projetam-se como uma das mais poderosas potências
econômicas mundiais, divulgando o american way of life através das produções cinematográficas de
Hollywood. De acordo com Chaves e Freixa (2008: 221), “Na década de 1950, no Brasil sonhava-se com
a modernidade americana e seu conforto. O maior desejo de consumo das brasileiras era ter fogão a gás e
elétricos, uma geladeira e eletrodomésticos como batedeiras, liquidificadores e torradeiras na cozinha,
além de aspirador de pó, máquina de lavar roupa e enceradeira” – instrumentos que representavam a
diminuição do tempo dedicado aos trabalhos domésticos: uma necessidade real advinda da emancipação
feminina em curso e de sua inserção no mercado de trabalho.
47
dificultosa no Brasil, considerado o fato de que, por aqui, os grupos dominantes “não
quiseram se confundir com a população nativa, preferindo como identidade a origem
européia” (DÓRIA, 2009: 17) – ou, mais recentemente, a americana. Somente no início
do século XX, por meio do movimento modernista de 1922, fomentou-se uma crítica
expressiva à costumeira absorção osmótica de valores e costumes estrangeiros pela elite
brasileira, sugerindo-se uma busca por raízes nacionais, isto é, pelo que haveria de mais
autenticamente brasileiro.43 Em 1928, Oswald de Andrade, um dos expoentes da
Semana de Arte Moderna, lança o Manisfesto Antropofágico, que se tornou símbolo
dessa postura crítica, propondo uma modernidade brasileira que soubesse ingerir e
deglutir criativamente o que vem de fora. Afirma Dória (ibidem: 22) que
Gilberto Freyre foi, nesse sentido, desbravador. Antes dele, as pesquisas sobre
cultura brasileira, como na obra de Silvio Romero, não traziam descrições acerca de
uma “culinária nacional ou regional”. Em 1926, no manifesto produzido pelo I
Congresso Brasileiro de Regionalismo, o autor esboçava um registro do que ele
acreditava ter o Brasil de mais expressivo em matéria de culinária44, propondo a
43
Convém lembrar, entretanto, que ainda no século XIX uma tendência de valorização do que seria mais
“autenticamente” brasileiro aparece nos escritos da escola indianista da nossa literatura, atingindo seu
apogeu nos romances de José de Alencar, nos quais, segundo Oliven (2006: 40), “se valorizavam nossas
raízes nacionais: o índio, a vida rural, etc.”.
44
Apontou o autor: “Três regiões brasileiras destacam-se hoje no Brasil: a baiana, a nordestina e a
mineira. A baiana é decerto a mais poderosamente imperial das três. Mas talvez não seja a mais
importante do ponto de vista sociologicamente brasileiro. Outras tradições culinárias menos importantes,
poderiam ser acrescentadas, com suas cores próprias, ao mapa que se organizasse das variações de mesa,
sobremesa e tabuleiro em nosso país: a região do extremo Norte, com predominância de influência
indígena e dos complexos culinários da tartaruga (...) e da castanha, que se salienta não só na confeitaria
como nas próprias sopas regionais – tudo refrescado com açaí célebre (...); a região fluminense e norte-
paulista, irmã da nordestina em muita coisa pois se apresenta condicionada por idênticas tradições
agrário-patriarcais e mais de uma subregião fluminense, pelo menos uso farto do açúcar; a região gaúcha,
em que a mesa é um tanto rústica, embora mais farta que as outras em boa carne (...). O mais poderia ser
descrito, do ponto de vista culinário, como sertão: áreas caracterizadas por uma cozinha ainda agreste (...)
e nas florestas do centro do país pela utilização da caça e do peixe de rio – tudo ascética e rusticamente
48
valorização desses sabores regionais, populares e tradicionais, que sofriam risco de
abandono e desaparecimento, em função da larga influência do industrialismo
capitalista norte-americano, como um caminho para a construção nacional. “Uma
cozinha em crise”, afirmava o autor no Manifesto Regionalista, “significa uma
civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se”.
49
CAPÍTULO II
50
turística e da tendência globalizada” (idem, ibidem: 404). Nos anos 1980, o relativo
crescimento do fluxo turístico na capital e nos municípios litorâneos, principalmente,
sugere o turismo como uma atividade econômica de grande potencial no Ceará,
consideradas, especialmente, suas condições geográficas e naturais.47 Contudo, é apenas
a partir de meados da década 1990 que o estado desponta como um destino turístico
forte e competitivo, resultado da aplicação de políticas intensivas de desenvolvimento
do setor.
Nesse período, o turismo passa a ser compreendido como a principal alavanca para
o crescimento econômico do estado, constituindo pauta prioritária na fala pública
governamental. A criação da SETUR (Secretaria de Turismo do Ceará) em 1995 é
expressiva dessa nova percepção acerca do turismo e de suas potencialidades, bem
como a publicação, no mesmo ano, do chamado Plano de Desenvolvimento Sustentável
do Ceará (1995-1998), cujo objetivo consistia em tornar as cidades cearenses
competitivas e atrativas para turistas e investidores estrangeiros por meio de uma ampla
política de “reordenamento do espaço”, com o intuito de adequar o estado, com
destaque para Fortaleza, ao novo contexto econômico mundial, caracterizado pela
competição acirrada entre as cidades (MACIEL, 2006). Nesta perspectiva, os programas
que compunham tal plano giravam em torno da criação de um “produto turístico
diversificado”, junto com o qual a oferta de incentivos fiscais, infra-estrutura, belezas
naturais e aspectos histórico-culturais configurassem vantagem comparativa para o
Ceará.
47
De acordo com Maciel (2006), o Ceará está “próximo dos maiores mercados mundiais e das mais
importantes rotas de navegação do Atlântico Norte”. Além disso, dispõe de 573 quilômetros de litoral e
temperatura média de 28 graus o ano inteiro, atrativos naturais bastante valorizados pelo mercado
turístico nacional e internacional.
48
Trata-se de um programa, segundo o site da SETUR (Secretaria de Turismo do Ceará), inserido no
plano federal Brasil em Ação e cujo objetivo consiste na “expansão da atividade turística de forma
planejada e sistêmica, a partir da definição de macro estratégias de atuação previamente definidas na
região da SUDENE, isto é, nos nove estados nordestinos e na região norte do Estado de Minas Gerais (...)
O programa reúne cerca de 500 projetos. Para a sua execução, estão disponíveis recursos totais de US$
800 milhões. Destes, US$ 400 milhões são provenientes do BID - Banco Interamericano de
51
realizadas, então, obras de grande impacto na estrutura urbana do estado como, por
exemplo, o novo Aeroporto Internacional Pinto Martins49 e suas vias de acesso, além
das chamadas “rodovias estruturantes”, que ligam a capital cearense às praias do litoral
leste e oeste.
Através de uma densa campanha publicitária, o estado foi ganhando, então, outras
feições no imaginário social. Numa reviravolta semântica, as antigas lembranças da seca
e da miséria, que durante séculos teriam assolado a população local, representando
“atraso” e causando “vergonha”, tornaram-se parte de um passado (“superado”,
acredita-se) de luta que, supostamente, orgulha e diferencia os cearenses de hoje – numa
lógica de inversão simbólica semelhante àquela encontrada por Barreira (2005: 317) nos
guias turísticos de Berlim, onde as evocações da guerra e do holocausto revelam um
“paradoxo entre as tragédias a não serem esquecidas, porque funcionam como lições
para a humanidade, e a tentativa de redefini-las, com o objetivo de criar novas narrativas
para a cidade”. Dentre as imagens que passaram a preconizar a “nova realidade” do
Ceará e de sua capital estavam, então, a de “Caribe Brasileiro” e “Miami do Nordeste”
(GONDIM, 2004).
Desenvolvimento, sendo o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) seu agente repassador”. Atualmente, o
PRODETUR-NE está em sua segunda fase. No Ceará, os recursos oriundos da primeira foram aplicados
no período de 1995 a 2002.
49
Construído entre 1996 e 1998, a obra do Aeroporto Internacional Pinto Martins contou ainda com
recursos oriundo de um empréstimo feito pelo Governo do Estado ao Banco Interamericano de
Desenvolvimento-BID.
50
Ceará. Governador, 1995-1998 (Tasso Jereissati). Plano de Desenvolvimento Sustentável do Ceará –
1995-1998, Fortaleza: SEPLAN, 1995, p. 79.
52
qual foram promovidas noções positivas do estado, enfatizadas em imagens paradisíacas
de praia e sol –, previa sua divulgação em escala nacional e internacional51, o que vem
de fato ocorrendo, de forma massiva, através de uma série de veículos de comunicação
(entre jornais, revistas, internet e TV) e ações complementadas (como a participação em
eventos especializados). Apenas para citar alguns exemplos da amplitude desse
investimento, poderíamos citar as campanhas publicitárias realizadas em famosos
periódicos internacionais, tais como Newsweek, The Economist, The New York Times e
Wall Street Journal; e a constante participação cearense em eventos de grande porte
como a Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL), a Feira Internacional de Turismo da
América Latina (FIT), a Feira Internacional de Turismo de Madrid (FITUR), a Bolsa
Internacional de Turismo de Berlim (ITB) e a Bolsa Internacional de Turismo de Milão
(BIT).
Nas imagens veiculadas, “o que fica evidente”, para Coriolano e Fernandes (2007:
403), “é a comunicação do Ceará Turístico como um destino rico em atrativos que
51
Nos termos do Plano de Desenvolvimento Sustentável do Ceará (1995-1998), p. 82, “a estratégia de
marketing será apoiada na promoção do produto turístico cearense através de campanhas e de outras
ações complementadas pela realização de workshops e eventos, a participação em eventos e fanturs,
dirigidos fundamentalmente para os mercados da região Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte do País e para
os demais países do Cone Sul, alguns países da Europa, Estados Unidos e Canadá.”
52
“O Ceará conquista melhorias”, Diário do Nordeste, Caderno de Turismo, 9/01/2009. Disponível em:
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=604744 Acesso: 17 de janeiro de 2010.
53
extrapolam as belezas naturais do litoral”, instituindo-o como um lugar de múltiplas
seduções. Numa combinação paradoxal, elementos de modernidade e de tradição são
evocados, variando em grau conforme a finalidade da peça publicitária, de modo a
compor o quadro representativo do estado e de sua principal porta de entrada, a cidade
de Fortaleza. Assim, ao mesmo tempo em que se enfatiza a disponibilidade de uma
moderna infra-estrutura urbana, já adquirida ou em vias de execução53, condizente com
padrões globais, anuncia-se a conservação de certos modos tradicionais de ser e de
fazer, tão “antigos” quanto se possa imaginar. E quando os baús da cultura e da história
passam a ser revirados na busca por aspectos distintivos da região, que funcionem como
atrativos para o turismo, as práticas alimentares não tardam a ser encontradas.
53
Atualmente, por exemplo, estão em andamento as construções dos aeroportos de Aracati (litoral leste) e
Jericoacoara (Litoral Oeste), do Metrô de Fortaleza, do Centro de Feiras e Eventos do Ceará, bem como a
duplicação do trecho Iguape-Beberibe da CE-040.
54
necessárias aos propósitos de sua existência social, são reveladoras, do ponto de vista
sociológico, de certas incoerências sobre as quais parece relevante pensar aqui.
54
Muitos autores sociais dissertaram acerca da dinamicidade das culturas. Para fins deste trabalho, foram
consultados, especialmente, Cuche (2002), Kuper (2002) e Burke (2000).
55
Conforme matéria sobre a autora disponível no endereço virtual: www.historiadaalimentacao.ufpb.br
/gastronomia_vale_o_passeio Acesso: 26 de abril de 2010.
55
interpretadas como típicas ou regionais por uma coletividade, posto que seriam
preparadas e consumidas do mesmo modo há muito tempo, constitui, assim, apenas uma
criação de ordem simbólica, que facilita a percepção do visitante sobre os costumes
alimentares do lugar – atualmente considerados um dos principais critérios utilizados na
definição do destino a ser visitado, segundo pesquisa de Fagliari (2005).
56
Cultura Nordestina, Diário do Nordeste, Negócios, 24/04/2009.
57
Como, por exemplo, o que acontece anualmente no Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de
Messejana (CETARME), sempre na data em que se comemora o “dia do índio” – uma forma de
homenagear o suposto “criador” da tapioca.
56
(com 120m de comprimento e quase 1/2 tonelada) e a rapadura de Pindoretama (cuja
confecção contou com cerca de 15 toneladas de cana-de-açúcar)58.
A valorização dos preparos regionais conta, ainda, com a ação direta de duas
instituições: o Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e a Abrasel
(Associação Brasileira de Bares e Restaurantes). Em parceria com o Ministério do
Turismo (MTUR), desde 2007, tais instituições vêm desenvolvendo de forma conjunta,
em alguns municípios do Ceará, o Programa Gastronomia Competitiva, cujo objetivo
consiste em:
58
A rapadura gigante de Pindoretama ainda permanece em exposição no Engenho Casa Grande,
localizado às margens da CE-040, no mesmo município. Quanto à tapioca e ao queijo de coalho gigantes,
por serem mais perecíveis, foram distribuídos gratuitamente nos eventos onde foram lançados.
59
“Programa incentiva turismo gastronômico”, Diário do Nordeste, Caderno de Turismo, 19/10/2007.
60
“Gastronomia local para turista”, Diário do Nordeste, Caderno de Turismo, 18/04/2008.
61
“Sebrae investe no turismo do CE”, Diário do Nordeste, Caderno de Turismo, 24/09/2009.
57
Como vemos, não apenas elementos culinários passaram a incorporar as marcas
da terra, transformando-se em atrativos. O que podemos testemunhar, nos últimos anos,
é uma profusão de aspectos culturais sendo institucionalmente integrados ao quadro das
singularidades regionais do estado. As produções artesanais, por exemplo, nunca foram
tão estimadas, nesse sentido. Tanto que renomadas grifes cearenses têm apostado “na
tradição e em elementos regionais”, tais como as rendas de bilro e os bordados, na
confecção de suas peças, acreditando que suas produções lembram “outro tempo, que as
pessoas querem valorizar, manter e transmitir para os próprios filhos. É como se fosse
uma herança”62. Do mesmo modo, também uma certa linguagem regional – arraigada
ao bom humor que também tem constituído característica marcante de um “jeito
cearense de ser”63 – vem recebendo atenção particular na última década. Desde o ano
2000, inúmeros dicionários do chamado Cearês ou Cearensês foram publicados no
estado, tais como o Super Dicionário de cearensês, de Carlos Gildemar Pontes; o Orélio
cearense, de Andréia Saraiva e o É o novo!, de Verônica Nicolau. Segundo Lima (2003:
289), “o Ceará teria, então, um ‘dialeto’, numa dimensão folclórica, engraçada, que se
revela através de uma fala marcada pela ‘mangação’ do mundo e também por uma
‘automangação’, características que coincidiriam com o ‘ser cearense’”.
62
“Grifes cearenses apostam na tradição e em elementos regionais”, disponível em:
http://www.sebrae.com.br/integra_noticia?noticia=9383032. Acesso: 16/02/2010.
63
As referências ao estado como “Ceará moleque” ou à Fortaleza como a “Capital da Alegria” são
atualmente encontradas com bastante freqüência em jornais locais e em revistas ou sites especializados
em turismo. Tal inclinação para o humor costuma ser justificada na consagração nacional de muitos
humoristas nascidos no Ceará: “O humor é dos mais reconhecidos produtos culturais do Ceará. O talento
cearense para contar piadas e provocar risos e gargalhadas já deu ao Brasil consagrados comediantes
como Chico Anísio, Renato Aragão, Tom Cavalcante, Paulo Diógenes, Falcão, Zé Modesto, Rossicléia,
Meirinha, Adamastor Pitaco e Tiririca. Novas gerações de artistas de humor continuam surgindo em
Fortaleza.” Revista Fator Brasil, Cultura e Lazer, abril/2008. Disponível em:
http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=4559. Acesso: 11 de abril de 2008.
64
No último semestre de 2008, deu-se início ao projeto Comida Ceará, uma iniciativa do Memorial da
Cultura Cearense. O objetivo de tal projeto consiste no registro das práticas alimentares de todo o estado.
Para tanto, pesquisadores e fotógrafos estão percorrendo os municípios cearenses no intuito de coletar
58
temática regional ganham as ruas de Fortaleza e dos principais municípios turísticos do
estado. Além da “culinária litorânea”, já consagrada à beira-mar, em vários pontos da
capital e no caminho para as praias, muitos estabelecimentos têm se dedicado à oferta
de uma “culinária sertaneja”, cuja boa aceitação tem se mostrado não apenas entre
turistas, mas também, e principalmente, entre os consumidores locais.
materiais (entrevistas, utensílios de cozinha, receitas, etc.) que auxiliem na compreensão do que poder-se-
ia chamar de “cultura alimentar cearense”. Entre os coordenadores do projeto está Raul Lody,
antropólogo baiano, um dos responsáveis pelo registro do Ofício da Baiana do Acarajé no IPHAN.
59
ouve (ou lê) lembranças de um passado não necessariamente vivido, mas, ainda assim,
de muitos modos conhecido e compartilhado. Por isso mesmo, logo somos tentados a
associar o termo à mulher de classe senhoril, esposa de senhor de engenho, dona da
casa-grande (e, depois, também dos sobrados urbanos); figura icônica, cujo recato dos
modos e o talento na cozinha – por séculos considerados “critérios genéricos e
indispensáveis da educação feminina brasileira” (CASCUDO, 2004) – tornaram-se
sinais de uma personagem que foi, gradativamente, nos efeitos criativos e reprodutores
do recontar histórico, galgando espaço permanente e significações múltiplas no
imaginário social.
Todavia, essa imagem da mulher branca e rica que nos salta ao pensamento
quando escutamos a palavra “sinhá” sofre, neste caso, transmutações estética e
semântica, promovidas pela inclusão do apelido “Chica” no nome do restaurante e pela
adoção, como logotipo da empresa, de uma figura feminina negra, gorda e bonachona,
segurando uma colher de pau – segundo o dono do comércio, um tipo social “muito
comum no tempo de antigamente, chamada de mãe preta”. Associados nome e imagem,
o resultado é uma remontagem simbólica que transforma a escrava cozinheira em
senhora da casa, em sinhá-dona. Nessa brincadeira de inversão de papéis, caricaturas
são construídas e postas em oposição, realçando-se uma simpatia despojada e
acolhedora da primeira, na medida em que se desvaloriza o polimento aristocrático,
demasiado frio e indiferente, que caracterizaria o comportamento da segunda.
60
estimulando a imaginação e criando expectativas. Na imagem, algumas casas, entre
sobrados e residências térreas, alinham-se desenhando uma pequena rua ou vila, pela
qual transitam figuras humanas, na maioria, masculinas e de pele escura. A sensação de
passado é imediata, embora também um tanto imprecisa. Em poucos segundos,
vislumbra-se uma série de possibilidades interpretativas, numa ligeira busca de sentido
para o que se vê: um mergulho nos guardados da memória que, mesmo configurando
uma atividade tão íntima, revela uma experiência social, evidenciando analogias
historicamente (re)construídas nas diferentes perspectivas do pertencimento. Nesse
sentido, pareceu-me quase inevitável, por exemplo, não lembrar das lições de história
do Brasil, aprendidas na escola; das leituras de algumas das obras de Gilberto Freyre,
entusiasmadas, umas, na defesa de um “regionalismo nordestino”, outras, na definição
ampla de um “caráter brasileiro”; ou ainda de certa novela global que alcançava altos
índices de audiência no ano de 2006, quando o restaurante foi inaugurado, chamada
Sinhá Moça65 – ficção cuja influência na definição da temática do estabelecimento e,
posteriormente, na sua boa aceitação comercial, não pode ser negligenciada.
65
Atualmente, a novela Sinhá Moça – um remake da versão exibida em 1986, de Benedito Ruy Barbosa –
vem sendo apresentada diariamente no programa Vale a pena ver de novo, da mesma emissora.
61
Contrariando a lógica comercial de incentivo ao consumo rápido e de máximo
aproveitamento do espaço, o Chica Sinhá se distingue por uma política de estímulo ao
relaxamento e pela significativa extensão de todas as suas áreas. Só o estacionamento –
que representa, proporcionalmente, cerca de ¼ do estabelecimento – possui uma área
média de 200m², segundo estimativas da própria gerente. Ali, um feliz impacto com a
generosidade do verde dos gramados e das copas exuberantes de árvores centenárias,
tão escassas às paisagens urbanas, vai, desde já, envolvendo os consumidores em um
clima de sítio ou fazenda: um irresistível convite para esquecer, por hora, o acelerado do
tempo, a pressa rotineira e, muitas vezes, enfadonha das atividades citadinas, e render-se
à calmaria imaginada do campo, no quase silêncio das árvores e do vento.
Chegando, pois, de carro, como a maioria dos clientes – dado que considero
revelador do perfil econômico desses sujeitos –, o acesso mais rápido ao restaurante,
propriamente dito, é pela entrada do estacionamento: uma pequena abertura feita na
“cerca viva” (cerca feita de plantas) que o separa das áreas de consumo. Podada a uma
altura de mais ou menos 60cm, dali é possível visualizar o grande espaço que abrange
parte dessas áreas – considerando que estamos falando de um restaurante, a amplitude
impressiona. Do lado esquerdo, logo na entrada, sob a sombra constante de uma árvore
frondosa, uma casinha de madeira colorida, com balanço e escorregador, oferece
distração às crianças que acompanham seus pais, principalmente nos fins-de-semana.
Por trás dela, uma estrutura semelhante a uma pequena varanda, com bancos de pedra e
cestos de palha, também constitui um espaço para brincadeiras e conversas distraídas.
Em uma das paredes que sustentam tal estrutura, a pintura de uma paisagem rural, com
62
carros de boi e homens negros tangendo gado, ajuda a insuflar ainda mais a imaginação
do consumidor, que desde a fachada já vem sendo visualmente estimulado a enxergar o
espaço do restaurante como um lugar para rememorar um tempo talvez não vivido, mas
projetado no presente como raiz de uma história comum.
63
Dali a trilha irradia para três espaços. O mais próximo e mais ao fundo é uma
pequena casa branca, que abriga os banheiros masculino e feminino, cuja frente se
estende em um alpendre de tamanho médio, alto, coberto de telhas vermelhas e apoiado
em colunas amarelas e arredondadas, comuns também a outros espaços do restaurante –
de acordo com o proprietário, uma marca do estilo colonial de construção que serviu de
modelo à arquitetura do estabelecimento. Cerca de sete mesas de madeira, umas maiores
e outras menores, todas sem toalhas, apenas com um apoio de pano para os pratos,
imprimem certa rusticidade ao local, auxiliadas ainda por outros elementos decorativos,
tais como o chão de cimento queimado e peneiras de palha – originalmente, um
utensílio artesanal imprescindível na cozinha – penduradas na parede frontal da casa,
bem acima da pintura de um grande cavalo.
Ao lado desse alpendre, no muro que cerca por trás o restaurante, uma outra
imagem chama a atenção: trata-se de uma igreja com traços antigos, cujas duas torres e
a abóbada central, moldadas em alvenaria e concreto acima do muro, dão à pintura um
efeito de profundidade que distrai o observador na forte impressão de “realidade”,
instigando-o a encarar tal imagem como algo que de fato existe ou, provavelmente,
existiu. Em um ponto centralizado da figura, um recuo na parede acolhe uma escultura
de N. Sra. de Fátima. O banquinho de concreto posicionado próximo à pintura, na
lateral direita, sugere a utilização daquele diminuto cenário para a prática do
catolicismo, da oração e da reflexão – ou, pelo menos, para fazer lembrar a possível
existência desse tipo de credo e prática no passado que o restaurante recria,
comercialmente.
64
Seguindo, ainda, pelo estreito caminho de pedra e cimento, chega-se a mais uma
área coberta, também em formato de alpendre – todavia, com quase o dobro do tamanho
do primeiro. Contornado por cerca viva, essa estrutura de madeira, com telhado alto e
chão de cimento queimado, dispõe de dez mesas, cada qual com quatro cadeiras. Aqui e
ali, entre uma mesa e outra, redes coloridas de dormir decoram o ambiente e convidam
para o tradicional cochilo após o almoço. Aliás, é preciso que se esclareça: ao contrário
do que poderíamos pensar, inicialmente, os fregueses – de modo especial, os mais
regulares – dificilmente sentem-se intimidados em usar essas redes, se não para
cochilar, pelo menos para descansar o corpo por alguns minutos. Para conseguir uma
delas, vale até o esforço de tentar chegar um pouco antes do horário convencional de
almoço, conforme afirmaram alguns deles. Mas se as redes já estiverem sendo usadas,
resta ainda, como opção de descanso, algumas espreguiçadeiras, colocadas em um
espaço reservado mais ao fundo do alpendre, onde uma televisão, fixada na parede a uns
dois metros de altura (o que permite sua visualização de todas as mesas daquela área),
evoca a “modernidade urbana” e entretém os que preferem não dormir.
Ao lado desse alpendre e à frente das demais áreas de consumo e lazer, até agora
descritas, encontra-se o prédio central do restaurante, onde são feitos e servidos os
“pratos do dia”. O avarandado integral da fachada, as colunas cilíndricas, destacadas de
amarelo, e o tamanho exagerado das portas e janelas chamam de imediato a atenção.
Segundo o proprietário, são marcas do estilo colonial de arquitetura que refletem um
tipo de moradia “muito comum nos sertões de antigamente”: a casa-grande de engenho
ou de fazenda. Sua área interna abrange três compartimentos: a cozinha, uma pequena
65
sala com duas mesas (espécie de recepção do restaurante) e um amplo salão, claro e
arejado, que abriga algumas mesas e toda a composição necessária à prática comercial
do self-service. Todavia, o equipamento convencional onde são apresentados e mantidos
aquecidos os pratos, encontra-se, aqui, sob o disfarce de uma estrutura em alvenaria que
lembra um fogão a lenha – atualmente, revestida de cerâmica, de acordo com o gerente,
por “questões de higiene”.
66
Trecho retirado de uma placa em frente ao restaurante.
66
frutas, puros ou misturados, oferecidos nas mesas em pequenas porções, sobre a bandeja
das garçonetes.
67
2.2.2. Lá na Roça
68
apenas de algumas modificações para a instalação do restaurante; ideais, portanto, para
o que se propunha. Depois, naquela época, estava às margens da rodovia estadual CE-
040 (hoje Rua Eusébio), o que significava um possível fluxo de turistas pela região –
um público em potencial para o tipo de restaurante que se desejava abrir.67
67
Posteriormente, entretanto, como parte de políticas para o desenvolvimento do turismo, a CE-040 foi
remodelada para passar por fora do centro do município de Eusébio. Como se pode prever, a
movimentação de carros também acompanhou as novas rotas da rodovia. Contudo, nem por isso o
restaurante experimentou dias ruins de faturamento. Ao contrário, conforme acreditam os proprietários,
isso imprimiu certo “fetiche” à casa, contribuindo para que o espaço se tornasse ainda mais expressivo da
temática que o inspira. Longe do ruído dos motores e do esganiçado das buzinas dos carros, o Lá na roça
conservaria, assim, um “clima de interior” que, conforme foi dito, constitui um de seus principais
atrativos.
69
ao quadro das manifestações ditas típicas da região. Antes, entretanto, eles foram
juntando artefatos, utensílios decorativos ou de cozinha, garimpados em cidades do
interior ou em outros lugares por onde transitavam. Ao mesmo tempo, iam tecendo
idéias de investimento, analisando formas de publicidade e de organização do capital,
bem como traçando as linhas gerais do desenho arquitetônico do estabelecimento. Dessa
racionalização cuidadosa dos meios viáveis de efetivação do restaurante, acrescida de
uma quase missão de recriar aquilo que é percebido como singularidade sertaneja,
resultou um espaço comercial alimentar cuja ambientação produz, nos termos de um dos
donos, “um efeito psicológico” nos consumidores que, lá chegando, “cortam o vínculo
com o urbano e entram na roça”.
70
site oficial da empresa, é ele quem faz as apresentações – um anfitrião um tanto
incomum, poder-se-ia imaginar, para um restaurante cujo público consumidor abrange,
principalmente, as classes médias e altas de Fortaleza. Vestido em calças remendadas,
falando “Cearês” e segurando uma galinha, ele cativa pelo exotismo e pelo bom humor.
71
de vida referenciado na tradição, cujos saberes e práticas romperiam imutáveis as
barreiras do tempo e do espaço. Combinados, estes artefatos transformam o restaurante
em um “espaço cultural”, por meio do qual é possível ver e sentir o sertão de que se
fala. Apresentado de forma nostálgica e idealizada, o universo rural ali construído vai,
assim, envolvendo o consumidor urbano, cativando-o com aquilo que parece faltar na
cidade, como certa calmaria e amplidão, acrescidas ainda de uma aprazível simplicidade
dos gostos e costumes.
68
Convém atentar para o fato de que a utilização do termo “casa” no diminutivo exprime não apenas a
dimensão do imóvel imaginado, mas também o nível social dos possíveis moradores. Obviamente, longe
de indicar uma opinião pejorativa, o termo expressa certo romantismo acerca das carências econômicas
do sertão, supostamente compensadas, na visão dos proprietários, pelo “contato com a natureza” e pela
“vida tranqüila, longe do estresse e do barulho da cidade”.
72
De um modo geral, o desconforto promovido pela rusticidade do espaço não
parece incomodar os visitantes que, ao contrário, mostram-se costumeiramente bastante
satisfeitos sentando em tamboretes de couro, não raro tirando fotos para recordação de
tal feito. Ouvi de um deles, certa vez: “isso é coisa antiga demais, difícil de ver hoje em
dia; coisa dos nossos antepassados, das nossas raízes”. A emoção de “reviver” no
restaurante uma época entendida como mais pura e em harmonia com a natureza
costuma agradar ao consumidor urbano da atualidade, fadigado pela rotina acelerada e
multifacetada de seu próprio tempo. Nessa perspectiva, passam-se quase despercebidas
certas “incoerências” espaços-temporais, amenizadas pela impressão de reencontro com
práticas de um passado romantizado e compreendido como “nosso”. Assim, igualmente
como acontece no Chica Sinhá, no Lá na roça, comer deitado em uma das redes que
decoram o ambiente ou tirar nelas um cochilo após o almoço não constitui nenhuma
gafe e a mesa mais disputada encontra-se embaixo da árvore anteriormente citada69,
mesmo conhecidos os riscos de se fazer uma refeição ali.
69
Tamanho é o valor dado à “mesa da árvore” que foi preciso fazer algumas adaptações no espaço para
que ela pudesse ser utilizada também nos meses chuvosos. Conta um dos proprietários: “quando eu
comprei as mesas pro restaurante, sobrou uma que não coube na varanda que, na época, logo no início,
era menor que essa [atual]. Eu não tinha aonde botar, aí eu botei ali debaixo da mangueira. Fiz um piso lá
perto e coloquei. Aí eu comecei a observar que era onde o cliente mais queria ir era pra debaixo da
mangueira. Só que no inverno eu perdia minha mesa embaixo da mangueira. Aí eu foi que eu fiz? Mandei
cobrir uma parte, só que deixando ainda a árvore visível. Pronto, é o ano todinho agora aquela mesa
cheia. O nosso cliente gosta demais.”
73
couro, barris de madeira para cachaça, farinha, lambedores caseiros70, vassouras e
cestos de palha, etc. Nos últimos anos, entretanto, uma reestruturação da logística do
estabelecimento manteve o espaço apenas como anexo da área de consumo, com
algumas poucas mesas disponíveis. Principalmente aos fins-de-semana, o cenário
também atrai muitas pessoas como plano de fundo para fotografias – por certo, uma
lembrança não apenas do restaurante, mas também do lugar social ali retratado, bastante
incomum nos dias de hoje.
70
Tipo de preparo para fins medicinais cuja base é, quase sempre, o mel de abelha, adicionado de ervas e
raízes variadas, conforme a finalidade fitoterápica do mesmo.
74
Figura 09 – Espaço Otacilândia, Lá na roça.
Além dos pratos salgados disponíveis – na visão dos proprietários, uma seleção de
comidas genuinamente sertanejas, limitadas ao que eles chamam de “ingredientes do
75
sertão” –, saladas cruas e frutas fatiadas, marcas dos modelos dietéticos
contemporâneos, também compõem a oferta culinária do restaurante como uma forma
de balancear o teor calórico e o sabor acentuado da culinária oferecida, cuja fama de
“pesada” e “indigesta” não parece influenciar a preferência dos mais de 4500 clientes
atendidos por mês no Lá na roça. Após a refeição, saborear uma das muitas opções de
doce de compota oferecidas parece irresistível. São cerca de 20 sabores, todos
preparados artesanalmente pela mãe da proprietária – que ficou conhecida entre os
clientes por Vovó Zil.
71
Enfática, ela me comunicou por telefone, certa vez: “eu fecho na sexta-feira da Paixão porque eu não
vou mudar o meu cardápio pra vender peixe só porque é sexta-feira da Paixão”.
72
Como foi dito em seção anterior deste trabalho, atualmente é cobrado o valor de R$ 27,80 (quilo),
durante a semana, e de R$ 31,50 (quilo) nos fins de semana. A diferença de preço é justificada pelo
aumento da variedade de pratos.
76
CAPÍTULO III
CONSTRUÇÕES REGIONAIS DA ALIMENTAÇÃO: HISTÓRIA,
IMAGINÁRIO E MEMÓRIA SOCIAL
77
fetichizam-nas, configurando um meio eficaz e politicamente reconhecido – não apenas
no Brasil, mas em inúmeros países do mundo – de promoção do desenvolvimento local.
Como uma forma de linguagem, nos termos de Lévi-Strauss (2006), as cozinhas
regionais comunicam as impressões de uma sociedade sobre si mesma; expressam
memórias e imaginários tecidos num longo processo histórico de mediação entre
inevitáveis trocas culturais e a elaboração necessária de uma auto-representação, tão
real quanto idealizada.
78
refinamento dos pratos regionais sugere o reconhecimento de uma necessária adaptação
daquilo que se entende por “receitas originais” ao contexto atual. Noutras, observa-se
uma maior rigidez na utilização do conceito, que implica uma efetiva recuperação do
“patrimônio culinário” de determinada época através de uma reprodução fiel de suas
receitas, tal qual eram realizados no tempo que se evoca. Quando perguntado a respeito
do que não poderia faltar em um restaurante de cozinha regional, um dos proprietários
respondeu:
79
racionalidade mercantil. Autodenominados sertanejos, eles afirmam sentirem-se na
obrigação de “preservar as tradições da culinária do sertão, antes que elas desapareçam
para sempre”. O depoimento do mentor do Chica Sinhá é expressivo desse desejo de
salvaguardar o que Poulain (2004) intitula de “paraíso culinário perdido”. Enquanto
explicava as razões que o levaram a optar pelo estilo rústico da decoração do
restaurante, ele afirmou:
Poulain (ibidem: 26) nos faz lembrar que, na segunda metade da década 1990, “um
mundo de tecnologias cada vez mais sofisticadas nas mãos de aprendizes de feiticeiro,
73
CALS, Jorge. “Sabor Nordestino”, Jornal O Povo, Boa Mesa, 07 de julho de 2007.
80
prestes a transgredir as ‘regras da natureza,’” salta aos olhos dos telespectadores
urbanos, diariamente, em horário nobre, nos noticiários de TV, exibindo as intervenções
(ora benéficas, ora anômalas) dos conhecimentos industrial e genético nos produtos
alimentares. Da vaca louca à vaca canibal74, passando pela proliferação de transgênicos
e pelo uso ameaçador de agrotóxicos, as desventuras dos industriais e produtores do
ramo alimentício vão sendo expostas à ansiedade cada vez mais exacerbada dos
consumidores, que vêem esvaírem-se suas certezas acerca do que comem. Ainda
segundo o autor, “um sentimento de crise se instala de modo durável; sentimento que a
multiplicação de colóquios e conferências sobre ‘segurança alimentar’ amplia mais do
que diminui”.
74
A expressão foi título de uma matéria, veiculada em um jornal francês, citado por Poulain (2004), que
fazia referência ao surto europeu de Encefalopatia Espongiforme Bovina (a doença da vaca louca) e à
conseqüente descoberta do que poderia ser sua principal causa: um tipo de ração consumida pelo gado
feita com carcaças de outros animais, inclusive de bois e vacas.
81
com La mal bouffe75. As dietas ou normativas médicas para um “estilo de vida
saudável” impõem-se, de um modo geral, como restrições aos prazeres da mesa.76
Conforme sugere Montanari (2008), baseada na análise química mais que na observação
física77, a ciência dietética começa a falar uma língua diferente, usando categorias
estranhas ao universo alimentar. Transformada em fórmulas e palavras sem qualquer
ligação com a experiência sensorial – “quem conhece o sabor dos carboidratos ou o
gosto das vitaminas?”, questiona o autor –, a comida é desmistificada, deslocada de sua
função de regozijo, esgotando-se, praticamente, em seu aspecto nutricional. Uma vez
mais, o conceito é posto em xeque, incitando reavaliações acerca do que seria ou não
“verdadeira comida”. Ainda que, hoje assim como ontem, os ditames da dietética
incidam de forma profunda sobre os modos de aproximação da mesa, é preciso
reconhecer também que a nova ciência nutricional, em contraponto, destoa o equilíbrio
anteriormente estabelecido entre saúde e prazer gastronômico, incitando nos
consumidores angústia e nostalgia de tempos em que essa preocupação ou não existia,
ou tinha importância menor. Por conseguinte, as definições acerca do que seria uma
“verdadeira” ou uma “falsa” comida são perpassadas por esses sentimentos. Na
concepção de Rial (2006: 202),
75
O termo – criado nos 1970 para designar uma alimentação excessivamente calórica, processada, e
promover uma “alimentação sadia” – tem sido comumente utilizado na França e alguns países europeus
em referência ao consumo de guloseimas consideradas sem valor nutritivo. Em alguns dicionários de
língua francesa, ele aparece, de modo muito sugestivo, como umas das acepções para a palavra porcaria.
76
Ao que parece, um aspecto moderno da relação prazer-saúde. Em culturas pré-modernas, tal relação
não era imaginada de forma conflitante, mas como um nexo inseparável, no qual os dois elementos
(prazer e saúde) se reforçariam mutuamente (MONTANARI, 2008; SORCINELLI, 1998). Para
Montanari (ibidem: 90), “a idéia de que o prazer seja saudável, que ‘o que agrada faz bem’ é uma idéia-
base da dietética antiga e medieval. E as ‘regras de saúde’ são, antes de mais nada, regras alimentares,
entendidas não no sentido da restrição (como parece sugerir atualmente a idéia de ‘dieta’, hoje prevalente
na linguagem comum), mas da construção de uma cultura gastronômica”.
77
Convém lembrar que a dietética pré-moderna seguia as orientações da chamada “medicina galênica”,
assim intitulada em homenagem ao médico romano Galeno (século I d. C.) (SORCINELLI, 1998). Tal
medicina se baseava no principio fundamental de que cada ser humano possui uma combinação de quatro
fatores (quente/frio e seco/úmido), dos quais derivam uma combinação de quatro elementos (fogo, água,
terra e ar) que constituem o universo. A boa saúde estaria associada ao equilíbrio desses vários elementos.
Se um deles prevalece sobre o outro, constituiria providência indispensável recuperar o equilíbrio através
da ingestão de alimentos adequados, de natureza semelhante ao do elemento em baixa no organismo.
82
consumidores adultos mostram-se bem conservadores, no Brasil,
na França e em outros países.
De uso bastante comum, não apenas no espaço dos restaurantes analisados, mas no
Ceará, como um todo – especialmente no interior –, a palavra sustança também se
insere nesse contexto de “reação” aos padrões dietéticos em voga, atualmente,
sinalizando uma valorização dos pratos ditos sertanejos, aos quais é habitualmente
associada, apesar da fama de “indigestos” e “calóricos” dos mesmos. Com uma boa
dose de sutileza, o termo liberta esses preparos das classificações negativas que pesam
sobre eles, transformando-os em “comidas fortes”, que de fato alimentam, ao contrário
de um “cardápio saudável ideal”, divulgado em programas de TV e revistas de saúde,
cuja base se constituiria de frutas e verduras: alimentos considerados excessivamente
“leves”, que “podem até enganar o estômago, mas não matam a fome de ninguém”,
conforme a percepção de um dos mentores do Lá na roça – e ainda ligada à definição
para a palavra em Raimundo Girão (2000[1967]: sf. Resistência, vigor, robusteza,
fortaleza, corrutela de substância).
83
lo como um marca de distinção social. Nesse processo, o tema da simplicidade
sertaneja ganha realce.
É claro que uma tentativa de explicação mais esmiuçada poderia levar em conta a
opinião direta dos consumidores a esse respeito. Entretanto, conforme esclarecido ainda
nas páginas iniciais deste trabalho, a pesquisa que lhe serve de base priorizou como foco
de análise o discurso de proprietários e funcionários dos restaurantes selecionados, por
84
razões de ordem essencialmente prática.78 Contudo, penso que nem só pela fala é
possível acessar o universo simbólico que orienta as escolhas dos consumidores.
Considerando o gosto, tal qual Montanari (2008), não apenas como sabor, mas,
prioritariamente, como um saber, adquirido e reproduzido no convívio social, acredito
que, com base nas observações que realizei e no discurso dos sujeitos pesquisados,
algumas idéias podem ser elaboradas acerca dos motivos que conduzem à valorização
da chamada simplicidade sertaneja, tanto pelos consumidores (que regularmente optam
por fazer suas refeições nesses espaços, o que me parece um dado de considerável
relevância, nesse sentido, especialmente se levada em conta a disponibilidade de outros
tipos de restaurante na mesma área), quanto pelos mentores dos restaurantes (que
também costumam almoçar diariamente em seus estabelecimentos).
78
Durante as primeiras investidas no campo, algumas tentativas foram realizadas no intuito de coletar a
opinião dos freqüentadores dos restaurantes. Entretanto, no decorrer da pesquisa, optei por focalizar o
estudo nos funcionários e proprietários dos mesmos, considerando, de modo particular, as dificuldades
encontradas em campo para a execução de uma pesquisa paralela com os consumidores (como a
resistência dos proprietários em permitir uma abordagem dos freqüentadores para tal finalidade, uma vez
que isso poderia gerar algum tipo de incômodo indesejável) e o curto tempo disponibilizado para a
conclusão deste trabalho. Ainda assim, por meio da observação e de conversas casuais com
consumidores, pude compreender um pouco a dinâmica de utilização dos espaços analisados e os sentidos
a ela intrínsecos.
85
modo, as mais legítimas expressões nacionais ou regionais, devendo, portanto, ser
preservadas do “mau cosmopolitismo e do falso modernismo”. Para Oliven (2006: 47),
Ainda de acordo com Ortiz (ibidem), em meados do século XX, outra corrente de
discussão do “nacional-popular”, mais politizada, aparece na cena histórica. Múltipla
em seus matizes ideológicos79, ela propunha o rompimento com a perspectiva
tradicionalista e conservadora que percebia a “cultura popular” unicamente do ponto de
vista folclórico, transformando-a em um caminho para levar as classes populares a uma
“consciência crítica” dos problemas sociais e, consequentemente, da nação que se
desejava construir. Todavia, a antiga concepção de popular não desaparece. Ao
contrário, e diferente do que se costuma imaginar, ganha novo impulso com o avento da
Indústria Cultural, uma vez que esta se apropria dos valores locais como estratégia de
implantação. Se considerarmos a expansão do alcance da televisão, tomando como
exemplo o caso da Rede Globo, percebemos que a criação de um “sistema regional”, por
meio do qual era adicionado à programação dos estados ou regiões um toque local à
79
Segundo Ortiz (2001: 162), “reformista para o ISEB, marxista para os Centros Populares de Cultura,
católica de esquerda para o movimento de alfabetização e o Movimento de Cultura Popular no Nordeste.”
86
massa de informações transmitidas, foi de importância fundamental em sua
consolidação nacional. Conforme o artigo Mercado Global, citado por Ortiz (ibidem:
166), “a implantação da Rede Regional de Televisão foi uma forma de impedir que o
homem do campo ficasse alienado do meio em que vive, produzindo-se localmente
programas que abordassem temas sobre a vida da comunidade-pólo”. Nesse contexto, a
fabricação e reprodução de imagens regionais são inevitavelmente realizadas,
considerando-se, de modo muito particular, as peculiaridades folclóricas, que dão um
“colorido” especial à programação local.
87
absorvido nesse jogo de identificação – até mesmo porque, como vimos, a própria
definição de “cultura popular” é transitória e imprecisa, sendo constantemente
reavaliada, conforme as novas situações e interesses históricos. Porém, grosso modo,
apropriam-se, comumente, como aspecto compositório dos quadros regionais, apenas
“manifestações populares” referendadas na tradição (seja ela uma invenção recente ou
não). Nessa perspectiva, os costumes rurais são os mais requisitados, posto que
expressivos de um espaço social originário, onde se encontrariam nossas raízes
culturais.
80
“Verão esquenta economia da cultura em Fortaleza”, Revista Fator Brasil, Cultura e Lazer. Disponível
em http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=4559 Acesso em 11 de abril de 2008.
88
É emblemático, portanto, que a figura do matuto tenha sido adotada como logotipo
do Lá na roça. Quase sinônimo de habitante pobre do interior ou do sertão, o termo
tinha originalmente um uso pejorativo, apontando o indivíduo “deslocado” das regras de
civilidade que regem o comportamento urbano. No início do século XX, em um de seus
escritos intitulado Outrora, no Ceará, João Brígido (2008) conta uma história jocosa
que ilustra de forma divertida o que se entendia por matuto, ao mesmo tempo em que
revela certo embaraço, como um modo de “preconceito”, diante das peripécias de tais
sujeitos:
(...)
Matutos havia que, não se sabe por que, embirravam até com o
nome!
Um, vimos nós, há cinqüenta anos, que, indo a uma mesa de
vila, mui prevenido e receoso de fraudes, para lhe meterem no
bandulho algum café, não quis participar de uma torta; porque,
com muita franqueza e desembaraço, declarou à dona de casa:
Ela o queria enganar... aquilo era café!...
Um sujeito que, há largos anos, tinha ido à Bahia, falava com
acento de admiração e ainda deslumbrado de um baile de
militares, a que tinha tido a subida honra de assistir. Contava
que ali tinha aparecido um vinho tão bom e tão grosso, que se
trinchava a faca e garfo!...
Que diabos lhe disseram ou lhe deram de comer, não se pode
adivinhar.
Não há sessenta anos, F..., na vila de Pajeú, precisando sair pela
manhã, mandou que, na sua ausência, servissem almoço a
alguns jurados, que lhe tinham ido meter em casa. Posta a mesa,
os matutos consultaram entre si, como começariam a servir-se
do café, do açúcar, do pão e da manteiga, que estavam à vista...
Resolveram comer primeiro o pão e, em seguida, o açúcar, para
finalmente beberem o café.
Mas o que fazer da manteiga?
Um deles disse que aquilo era uma papa; outro que coisa de se
comer com farinha, e um terceiro se propôs a pedí-la.
Um derradeiro, porém, mais avisado em etiquetas e cerimônias
de vila, opôs-se dizendo: Você está doido? Já viu pedir-se
farinha na casa alheia?... Então, assentaram todos de comer
aquilo, como estava; meteram-lhe as colheres, e foi um dia...
manteiga.
Não podemos prosseguir...
Está-nos aí o leitor a fazer sinais de dúvida!
89
visitante virtual pelo universo do restaurante, apresentando-lhe a história do
estabelecimento, seu cardápio e suas instalações. Mas se os matutos encontrados por
Brígido esforçavam-se no intuito de se adequar aos padrões comportamentais dos rituais
urbanos, não se verifica o mesmo esforço no matuto imaginário do Lá na roça. “Mal
vestido e falando errado”, conforme a descrição de um dos garçons do restaurante, ele
encanta os consumidores por sua espontaneidade e simpatia. Encarado o personagem
como o estereótipo de um jeito leve e divertido de levar a vida, é compreensível,
portanto, que ele já não apresente qualquer sinal de “vergonha” por não partilhar do
código comportamental citadino; afinal, é justamente o exotismo de seus modos sua
maior atração.
90
próprio alimento, conduz ao que Morin (apud POULAIN, 2003) intitulou de
“mentalidade neo-arcaica”. Segundo o autor, tal mentalidade produz,
Essa íntima conexão entre uma “cozinha afetiva” e a mulher, como característica
do que vem sendo chamado de “Utopia da ruralidade feliz” (POULAIN, 2003), é
encontrada de forma bastante clara nos restaurantes. No caso do Lá na roça, por
81
Que a personagem Dona Benta, de Monteiro Lobato, ajudou a inspirar.
91
exemplo, todas as iguarias oferecidas no cardápio seguem, conforme informações da
proprietária, as orientações do caderno de receita ou dos livros centenários de culinária
da mãe da mesma, a Vovó Zil. Espécie de guardiã desse conhecimento, ela teria
repassado boa parte de sua experiência culinária aos futuros cozinheiros do restaurante
antes de ele ser aberto. No que diz respeito à doçaria, entretanto, apenas ela permanece
com pleno domínio das receitas. O ritual do preparo, repleto de detalhes e
“segredinhos”, desde o modo de lavar a panela até a forma de movimentar o tacho,
exigem um “jeito de lidar” e um “carinho pela cozinha” que se sobrepõe à técnica. A
esse respeito, disse-me a proprietária do Lá na roça:
Eu lhe dou qualquer receita de doce aqui e você num acerta fazer.
Porque doce, por exemplo, de banana: é égua, banana e açúcar.
Não tem outro ingrediente. Agora, o que minha mãe faz pra ele
ficar vermelho, aí é cheio de coisinha, cheio de “nove hora”...
Doce de leite cremoso. Pra ele ficar bem lisinho? Menina, até o
jeito de lavar o tacho de cobre faz diferença! Vou te contar uma
história recente. A mamãe contratou uma moça nova pra ajudar lá
em casa agora, mas a moça, claro, não sabia desse negócio da
lavagem. Aí a mãe fez o doce e tá lá na geladeira. Não prestou.
Ele adquiriu outra textura e outro sabor. Tudo porque ela não fez
um determinado procedimento antes de botar o leite dentro; antes
de ascender o fogo. Então, é cheio de detalhes, pequenos e
aparentemente insignificantes detalhes, mas que fazem enorme
diferença no resultado final do doce. Inclusive, muita gente não
leva a sério, mas até o seu humor influência, sabia? To falando
sério. Num é nem no sentido assim mais místico, assim, não. É
que é preciso concentração, mesmo, e gosto, carinho pelo que
você ta fazendo pra que aquilo saia bem feito, saboroso.
92
figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o
menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou berço,
que lhe ensinava as primeiras palavras de português errado, o
primeiro “padre-nosso”, a primeira “ave-maria”, o primeiro
“vôte” ou “oxente”, que lhe dava na boca o primeiro pirão de
carne e molho de ferrugem, ela própria amolengando a comida.
82
Cada vez menos utilizadas, as cozinhas foram ocupando um lugar cada vez menor na arquitetura de
casas e apartamentos modernos, possibilitando o aumento ou a criação de espaços de lazer e descanso,
como sala de estar, os quartos e sala de jogos. (POULAIN, 2003)
93
enfeitar o prato, disfarçar a fisionomia de cada espécie deglutível
com a ciência nefasta dos corantes, das mistificações sugestivas,
da incaracterização gustativa. (...) O signo da velocidade anula e
desmoraliza as demoradas preparações que orgulhavam os
antigos gourmets. A industrialização dos alimentos reduz a
cozinha a um armário de latas. A técnica essencial limita-se a
saber abrir uma lata sem ferir os dedinhos. Um jantar egresso de
latas é ato de comer, mas não no nível de uma refeição.
94
minha avó fazia assim. Porque o tamanho da cebola que minha
avó cortava é o tamanho da cebola que eu corto até hoje.
Tradição é isso.
95
localizamos e somos localizados geograficamente.83 Representando, assim, uma cultura
de território, elas exprimem as “raízes” históricas de uma região, de um povo.
Entretanto, esse lugar-comum consolidado, segundo o qual a “comida da terra” expressa
um passado “perdido na memória”, que sobrevive intacto aos novos contextos, esconde
alguns equívocos sobre os quais é oportuno refletir.
Não havia, portanto, uma vontade de “comer geográfico” (PITTE, 1998), isto é, de
conhecer uma localidade por meio de seus sabores, ou mesmo de se incluir em uma
“cultura de território” através da alimentação. Os produtos locais não constituíam
83
É neste sentido que Maciel (2004) propõe uma adaptação à conhecida frase de Brillat-Savarin (“Dize-
me o que comes e te direi quem és”), modificando-a para “dize-me o que comes e te direi de onde vens”.
96
nenhum vínculo memorial com o espaço. Embora estivessem estritamente vinculados
aos recursos e às tradições da região, não eram compreendidos e utilizados como uma
marca identificadora de culturas diversas. Eram, apenas, mais uma opção alimentar (a
mais acessível, deve-se dizer) em um “modelo de cozinha potencialmente universal”
(MONTANARI, 2008: 138).
Uma inversão desta tendência só começa a ser percebida a partir do final do século
XVIII, primeiramente na França. O movimento de construção nacional promovido pelas
novas lideranças políticas, após a Revolução Francesa, impulsionou uma reorganização
do território e de suas representações, como vimos no capítulo I deste trabalho. De
acordo com Csergo (1998), o desenvolvimento do absolutismo e do centralismo tinha
favorecido em Paris, até então, o surgimento de uma “grande cozinha”, elevada à
“glória do Rei”, de ares essencialmente cosmopolitas. A emergência de uma
84
Em revistas de culinária ou em matérias de jornais, esse aspecto “moderno” e “sofisticado” da cozinha
internacional é quase sempre ressaltado. Justifica-se esta suposta “modernidade” da prática de misturar
produtos de origens diversas, em um mesmo prato, na facilidade de acesso aos alimentos de várias partes
do mundo promovida pelos processos de globalização, de integração mercantil.
85
Sobre estes banquetes, ver Alexandre-Bidon, 1998; Franco, 2006; Montanari, 2003; Strong, 2003.
86
Citado por Montanari (2008: 43).
97
personalidade culinária francesa, reivindicada na década revolucionária como parte de
um processo mais amplo de elaboração e afirmação de uma “cultura nacional”,
proporcionou uma constante desvalorização deste tipo de culinária. Em contraponto,
incentivou a ostentação das produções regionais, das tradições alimentares ancoradas às
“novas geografias da França”.
98
cozinheiros profissionais ou donas de casa: em 1789 é editado
em Genebra La Cuisinière de Genève; em 1811, em alemão, em
Mulhouse, La Cuisinière du Haut-Rhin; em 1830 e 1835, são
publicados em Nîmes e Avignon, respectivamente, duas
coletâneas de receitas meridionais, Le Cuisiner Durand e Le
Cuisinier méridional d’après la méthode provençale et
languedocienne. (ibidem: 812)
99
da nostalgia de um “outrora” anterior à revolução industrial e à
urbanização. (idem, ibidem: 814)
Desde o século XIX, são produzidos guias que trazem conselhos aos viajantes,
informações geográficas e históricas, mapas e itinerários. A primeira edição dos Guides
Joanne, um dos pioneiros, remonta a 1840, na França. Entretanto, de acordo com
Csergo (1998), só algumas décadas depois – em 1877, exatamente – é que alguns
gêneros alimentícios começam a ser mencionados, e apenas de forma muito rápida e
pontual, na perspectiva de enfatizar um aspecto econômico: “comércio bastante ativo de
aves de Bresse”88. A autora explica que isso se devia ao crescente desenvolvimento do
comércio e dos transportes na França, nesse período, que tornava os recursos locais,
antes de tudo, uma riqueza industrial e comercial.
88
Trecho dos Guides Joanne, citado por Csergo (1998: 818).
100
turística”. De acordo com Pitte (1998: 761), “para tornar atraente a longa viagem na
rodovia nacional 7, entre Paris e Cote d’Azur, os parisienses afortunados acostumaram-
se a fazer etapas de descoberta e prazer gastronômico”. Os guias de viagem passaram,
então, a incorporar sugestões de “alimentos característicos do local” e endereços nos
quais se poderiam experimentar essas iguarias. O Guide bleu Savoie, no início da
década de 1920, inaugura uma seção intitulada “Pratos Locais” (CSERGO, 1998: 819).
Assim, codificando novas modalidades de percepção do território, os guias contribuíam
para a agregação de valores à alimentação, enfatizando-a como símbolo cultural de um
povo.
101
produtos do mundo inteiro a preços relativamente mais acessíveis. Esta “revolução” da
distribuição em grande escala permite uma intensa transformação nas estruturas sociais.
A passagem de uma “sociedade da fome” à “sociedade da abundância” modifica um
valor relacionado ao consumo alimentar que havia sido de fundamental importância em
épocas passadas, ou seja, o uso da comida como instrumento de distinção social
(MONTANARI, 2003).
89
É neste sentido que Abdala, ao estudar o que ela chamou de “mito da mineiridade”, salientou o fato de
que a cozinha regional mineira “reúne pratos partilhados por ricos e pobres, assumindo, pois, importância,
porque, no plano simbólico, eles apagam diferenças e despertam verossimilhança, identificando um grupo
amplo, o dos mineiros, frente a outras regiões” (ABDALA, 1997:154).
102
ação uma logística extremamente elaborada. (FISCHLER,
1998: 846)
90
O movimento Slow food baseia-se no que tem sido chamado de “ecogastronomia”. De acordo com o
site oficial do movimento no Brasil (www.slowfoodbrasil.com), sua filosofia consiste no “direito ao
prazer da alimentação, utilizando produtos artesanais de qualidade especial, produzidos de forma que
respeite tanto o meio ambiente quanto as pessoas responsáveis pela produção, os produtores”. Acredita-se
103
Parece claro que não se pode negligenciar, todavia, o aspecto político e ideológico
que se esconde nestes episódios. Bem nos lembra Fischler que as mesmas críticas
formuladas contra o hambúrguer norte-americano – e a Macdonald’s, em particular –
não se dirigem com igual veemência a todas as formas de fast-food. De fato, se
pensarmos, por exemplo, no caso da pizza, também difundida no mundo inteiro por
meio de empresas multinacionais, especializadas em seu preparo rápido, percebemos
que ela parece ter escapado (pelo menos, relativamente) à maioria das críticas dirigidas
à massificação alimentar. Isto se deve, entre outras razões, a uma questão simbólica
importante: o hambúrguer e a MacDonald’s encarnam, superlativamente, o
“imperialismo americano” que, segundo o autor, constitui uma ameaça para a grande
maioria dos europeus às tradições culinárias as quais eles teriam se apegado
historicamente. Logo, o hambúrguer “é responsabilizado por toda espécie de defeitos,
de ordem nutricional ou simbólica, quer se trate de gorduras saturadas ou de perda da
identidade”. (idem, ibidem: 853)
O Ceará, como vimos, atravessa processos semelhantes, ainda que seja válido
reconhecer sua singularidade. Discutimos, antes, a emergência dessa culinária regional
como parte de interesses turísticos. Mais especificamente: como parte de um interesse
efetivo em criar pólos positivos no contexto dos símbolos que demarcam a “localidade”
que a alimentação pode ser melhorada, consumindo-se produtos mais “naturais”; preparando-os e
saboreando-os com prazer e sem pressa. “O Slow Food”, ainda segundo o site, “opõe-se à tendência de
padronização do alimento no mundo e defende a necessidade de que os consumidores estejam bem
informados, se tornando co-produtores”. Neste sentido, o movimento luta também contra o que eles
entendem como o “desaparecimento das tradições culinárias regionais”.
104
cearense no plano da produção de um “comer fora de casa” diferenciado. Sabemos,
portanto, que as vinculações entre localidade, memória e imaginários, se portam como
negociações tanto racionalizadas quanto dotadas de identificações parcialmente claras
ou conscientes. É possível ainda ensaiar, sempre nos limitando aos objetos investigados,
mas pensando também um pouco além deles, que a teia móvel dessas disposições
culturais transforma não apenas objetos em fetiches mercantilizados, em ferramentas
dotadas de sentido emocional-comercial: ela está permeadas por manifestações de
identificação territorial, por tentativas de construção de mapas de memória. Mapas estes
também políticos, ainda que inseridos no curioso e rápido jogo econômico da
gastronomia regional.
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concordando com Bourdieu (2005), acredito que isso se deve, entre outros fatores,
ao costumeiro privilégio dado nas pesquisas sociológicas ao conhecimento da
“realidade” em relação ao conhecimento dos instrumentos de conhecimento, tanto da
ciência, quanto do mundo social, de forma generalizada. E, nesse sentido, uma saída
alternativa para o entendimento de um objeto tão peculiar quanto as cozinhas regionais
se constituiria na realização do que poderíamos chamar de uma “história social” desta
categoria de classificação alimentar. É o que tento realizar, aqui: a leitura dos processos
de objetivação de categorias. Inserindo-as num jogo particular de “luta das
classificações”, isto é, lutas pelo monopólio “de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer
e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por
esse meio, de fazer e desfazer grupos” (idem, ibidem: 113), volto o olhar para a história
106
como um processo permeado de permanências e rupturas cognitivas, por meio do qual
são selados e rompidos acordos acerca das formas de perceber e classificar a comida.
107
definição do cardápio do Chica Sinhá, por exemplo, o proprietário afirmou
prontamente: “Foi uma coisa natural. Você sabe que eu sou do Icó, sou do sertão, passei
a maior parte da minha infância lá, então, quando eu pensei em vender comida regional,
naturalmente me veio em mente a paçoca, o baião-de-dois, a carne de sol, enfim, foi
algo espontâneo.”
108
de julho de 2003, 91 e o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) se encarregou da
criação do selo de garantia de autenticidade ISSO-Tchê, espécie de paródia com o ISO-
9000 e outros congêneres (MARCIEL, 2005). O Ceará segue a mesma tendência,
ficando o Comida Ceará encarregado, por meio de pesquisa em toda a extensão
territorial do estado, de fazer o registro dos “hábitos alimentares cearenses”, de modo a
cogitar a possibilidade, com base no relatório final das atividades do projeto, de abrir
um processo de tombamento da receita de baião-de-dois como patrimônio cultural do
estado, registrado em lei.
Entendendo, tal qual Bourdieu (2005: 115), esse contexto de elaboração regional
apenas como um estado da luta das classificações, isto é, da histórica da “relação de
forças materiais ou simbólicas entre os que têm interesse num ou noutro modo de
classificação”, penso que a visão (e, em certo sentido, a divisão) do universo alimentar
partilhada pelas autoridades públicas e pelos proprietários analisados é, em grande
parte, produto de um estado anterior de relação de forças no campo de luta pela
delimitação legítima das fronteiras alimentares. Quero dizer que esses sujeitos, assim
como os profissionais envolvidos no projeto Comida Ceará, sedimentam suas propostas
de interpretação regional com base em determinações advindas de configurações sociais
precedentes que tornam tais interpretações “aceitáveis” ao mundo social, ou seja,
reconhecidas como válidas e, deste modo, passíveis de existência real e indiscutida –
“assemelhando-se a construção de um mito”, lembra-nos Dória (2009: 27), uma cozinha
regional somente se torna efetiva “pelas adesões com que conta”. A boa recepção do
que se deseja impor como tradição e, agora também, como lei, não depende unicamente
do reconhecimento consentido àqueles que o detêm;
91
Poderíamos citar ainda, como exemplo de alimentos que foram oficializados, por meio de lei estadual,
como típicos da região, o pão de queijo de Minas, o acarajé da Bahia e o bolo de rolo pernambucano. O
modo de preparo de todos eles foi também tombado pelo IPHAN como patrimônio cultural imaterial do
Brasil.
109
Isso quer dizer, grosso modo, que a formação de uma ordem simbólica não se dá
de forma totalmente livre. Ela deve tomar sua matéria, de acordo com Castoriadis
(1982), no que “já existe”; apoiar-se no que “aí se encontra”. A formulação de uma
categoria simbólica não pode privar-se em seu teor de toda referência ao “real”. E por
“real” entenda-se, conforme já sugerido, também as representações do real ou, mais
exatamente, “a luta das representações, no sentido de imagens mentais e também de
manifestações sociais destinadas a manipular as imagens mentais” (BOURDIEU, 2005:
113).
110
Ceará, volta-se, quase que exclusivamente, para a chamada culinária “tradicional
popular”92, interiorana (mesmo na capital), dispensando os consumos industrializados
ou mesmo o cardápio cotidiano dos sucos, salgados e sanduíches que parecem ser tão
característicos da alimentação fortalezense e de outras tantas cidades do interior do
estado. As fronteiras que delimitam a “cozinha do lugar” encerram-se nas idéias de
ruralidade, de caseiro e de tradicional. O industrializado e o massivo, ou mesmo o
“popular” (aqui, no sentido de mais consumido), incorporariam as impurezas de uma
modernidade demasiado miscigenada, globalizada, “sem identidade” – o que, talvez,
tenha levado Bourdieu (2005:128) a afirmar que o regionalismo constitui “uma forma
doce e larvada de racismo”.
A esse respeito, Dória (2009) nos faz pensar que, atualmente, estamos consumindo
não apenas os produtos alimentares, mas “também as relações de produção que o trazem
ao mundo”. Os alimentos regionais são compreendidos como síntese das necessidades
modernas de reverter os males que estariam no cerne dessa “modernidade alimentar”,
cuja industrialização e a grande distribuição, que lhe seriam características, incorporam,
além do risco da padronização, referências de um capitalismo desenfreado e sem
princípios, promotor das desigualdades sociais e símbolo de exploração do trabalho. As
preparações regionais, supostamente na contramão desse processo, são idealizadas
como produtos singulares e naturais, frutos de relações de produção tradicionais,
familiares e, portanto, mais justas – como parece supor o movimento político-
gastronômico slow food. Tanto que o atual conceito de terroir dificilmente se aplica à
grande produção, sendo geralmente utilizado para expressar a produção em pequena
escala, que costuma resumir as qualidades mobilizadas pelas estratégias de
“desenvolvimento sustentável”. Logo, “ao comermos produtos de terroir, nos
perfilamos, simbolicamente, numa linha de resistência”.
92
Conforme é possível perceber na matéria: “Patrimônio cultural”, Diário do Nordeste, Caderno 3,
Comer e Beber. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=638401 Acesso:
16/02/2010.
111
raridade. Ainda no século XII, segundo Montanari (2008: 112), a respeito do feijão,
Isidoro de Servilha afirmava: “tudo o que abunda é vil”. Assim, enquanto os produtos
importados eram caros e de difícil acesso, na França, assim como no Brasil, conforme
foi dito, eles eram operados como sinais do poder que desfrutavam as elites. Quando as
transformações da indústria alimentícia permitem a produção em massa e a distribuição
em escala mundial, muitos produtos estrangeiros passam a ser encontrados em
abundância nas prateleiras dos supermercados, a preços relativamente acessíveis,
tornando-os inviáveis como demarcadores de privilégio social. Paradoxalmente, as
comidas “da terra” passam a constituir uma alternativa, nesse sentido. A lógica de
seleção permanece a mesma: os produtos regionais se tornam cada dia mais caros e
exclusivos, o que é justificado pelo sistema artesanal de produção e pela escassez de
certos ingredientes. No Lá na roça, por exemplo, a proprietária explica o alto preço do
self-service dando o exemplo da chamada “galinha caipira”:
A frase final da citação, porém, nos situa diante de uma das muitas encruzilhadas
simbólicas que o tema evoca. A contradição aparente entre o sertão como um espaço
social de escassez e simplicidade e o alto custo de sua recriação como produto
comercial – e sua redefinição como consumo não-popular – permite compreender um
pouco mais os elos entre atribuições simbólicas e universo material. Essa compreensão
nos leva a entender a apropriação de um habitus muito preciso: uma leva de disposições
voltadas tanto para a produção de meios de produção do diferente como articuladas em
torno da construção de novos capitais de importação simbólica. A economia dos
112
restaurantes regionais, parte de um mercado muito maior de necessidades e ofertas,
sintetiza, nos sujeitos envolvidos em sua criação e reprodução, um quadro de
transferências da memória, gerando um produto comercial que extrai valor não somente
de sua dificuldade de oferta material ou de sua singularidade simbólica, mas também (e
talvez sobretudo) da referência constante ao preço das rupturas fundamentais para sua
manutenção como empreendimento. Em outras palavras: os restaurantes produzem seus
discursos como forma de se construir, tomando as separações históricas entre urbano e
sertanejo, memória e passado, simplicidade e distinção como alicerces culturais.
Marcam a identificação com o regional como uma orientação de trabalho e como
registro de legitimação de seus capitais simbólicos. Por fim, o sabor, o saber
incorporado de seu uso e abuso, retorna a cena trajado de cores e lugares – sugestões
práticas para quem o vivencia. O vivido das técnicas ligadas à produção dos alimentos
regionais não pode existir sem esse espírito de cultura. Esta é a sua forma de se
refinanciar: angariando mais e mais recursos e valor dentro de uma esfera pública ou
comercial que transforma a cultura em mercadoria especializada, que só pode ser
concluída como fruto de trabalho-memorial, emocionalmente legitimado e defendido. É
o sabor dessas regras, deste jogo de produção e venda, do familiar ou do pretensamente
familiar, que precisa ser continuamente experimentado, a fim de que possamos, cedo ou
tarde, revelar um pouco mais os territórios de seu preparo.
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