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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA


CURSO DE MESTRADO

IMAGENS REGIONAIS E RESTAURANTES TEMÁTICOS –


COMIDA, CULTURA E LUGAR

MARIA DE FÁTIMA FARIAS DE LIMA

ORIENTADORA: PROFª. DRª. SULAMITA VIEIRA

FORTALEZA,
AGOSTO DE 2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
CURSO DE MESTRADO

IMAGENS REGIONAIS E RESTAURANTES TEMÁTICOS –


COMIDA, CULTURA E LUGAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Ceará, como parte dos pré-requisitos para a obtenção
do título de Mestre em Sociologia.

MARIA DE FÁTIMA FARIAS DE LIMA

ORIENTADORA: PROFª. DRª. SULAMITA VIEIRA

FORTALEZA,
AGOSTO DE 2010
Universidade Federal do Ceará
Centro de Humanidades
Programa de Pós-graduação em Sociologia
Curso de Mestrado

Título: Imagens regionais e restaurantes temáticos – comida, cultura e


lugar.

Autor: Maria de Fátima Farias de Lima

Defesa em: 16 de agosto de 2010.

Banca Examinadora

____________________________________
Profª. Drª. Maria Sulamita de Almeida Vieira (Orientadora)
(Universidade Federal do Ceará)

____________________________________
Profª. Drª. Irlys Alencar Firmo Barreira
(Universidade Federal do Ceará)

____________________________________
Profª. Drª. Erotilde Honório Silva
(Universidade de Fortaleza)
A você, Mário – por tudo aquilo que eu não sei explicar.

Aos Meus Pais, pelos sacrifícios todos.


AGRADECIMENTOS

Empreender um estudo sociológico acerca das chamadas cozinhas regionais foi


um prazer indescritível, dada minha evidente predileção pelos assuntos concernentes ao
ato alimentar e tudo que possa estar a ele associado. Quer na descoberta de novas e boas
leituras sobre a temática, quer nas conversas curiosas com donos de restaurante, a
pesquisa subjacente a este trabalho constituiu um exercício agradável. Contudo,
mostrou-se também como um grande desafio, tanto pela escassez de literatura
especializada, quanto pela impressão comum de que a culinária regional não é um “tema
sério”, digno, portanto, de uma abordagem sociológica. Na busca pela superação dessas
dificuldades específicas – bem como de outras, mais objetivas e rotineiras – alguns
apoios foram fundamentais e eu não poderia deixar de agradecê-los, aqui, ainda que
rapidamente.
Começo, então, agradecendo à orientação cuidadosa da professora Sulamita Viera,
que com muito entusiasmo e respeito acolheu meu projeto de pesquisa. Indicando
possíveis caminhos de análise, auxiliando na realização das atividades de campo e
incentivando o meu desenvolvimento reflexivo, sua contribuição foi indispensável não
apenas na produção deste trabalho, mas também no amadurecimento das minhas
habilidades como pesquisadora. Partilhar, nesses anos de mestrado (e também durante a
graduação), um pouco de sua experiência profissional e de sua amizade foram, para
mim, presentes inestimáveis; aprendizados para toda a vida.
Agradeço também aos demais professores do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da UFC, que tanto colaboraram para minha formação, e ao professor Gilmar
de Carvalho, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da mesma
universidade, cujas dicas oferecidas no exame de qualificação e os muitos incentivos
(permitindo meu acesso, inclusive, a um raro material de pesquisa por ele coletado)
foram de inquestionável valor para a elaboração deste trabalho. No mesmo caminho,
agradeço também à professora Irlys Barreira pelas preciosas sugestões disponibilizadas
no exame de qualificação, que me permitiram avanços importantes na compreensão da
temática analisada, bem como por sua gentileza em aceitar compor a Banca
Examinadora. À professora Erotilde Honório Silva, da Universidade de Fortaleza,
agradeço, imensamente, esta mesma gentileza.
Não posso deixar de agradecer, ainda, aos amigos, participantes formais e
informais, diretos ou indiretos do processo de estudo e pesquisa. Aos eternos
“silvicolas”, meu muito obrigada pela torcida de sempre. Mesmo longe, eles estão
sempre por perto, incentivando essa minha paixão desmedida pelo estudo das práticas
alimentares. De modo particular, agradeço à Gerciane Oliveira, amiga de todas as horas
e parceira fiel nas aventuras (e desventuras) do fazer sociológico. Também à Aline
Matos, amiga querida e dedicada de mestrado, faço um agradecimento especial.
Aos amigos Roberto, Alex, Alexandre, Karol, Mirtila, Douglas e Isaias, do
município de Beberibe (meu refúgio preferido), agradeço pela força e compreensão
nesses tempos difíceis de escrita. No mesmo sentido, agradeço à Alana, à Tati, à
Janaína, à Carol e ao Tiago, companheiros do “farragarantida”, pela energia boa e pelos
incentivos carinhosos. A amizade e o apoio de todos vocês foram importantes demais na
superação das dificuldades enfrentadas durante todo o processo de pesquisa.
Ao Mário, meu amor mais apaixonado e interlocutor favorito, agradeço por tudo:
pelos comentários certeiros, pela paciência, pelos sorrisos de todo dia; por me fazer
mais forte e mais feliz. Seu carinho e seu amor tornaram mais leve meu cotidiano
angustiado de trabalho.
Preciso muito agradecer, também, aos meus pais, pelo amor tão certo, tão seguro
de sempre. Não fossem os inúmeros sacrifícios diários que eles fizeram por mim, este
estudo não teria sido possível. Desde assistir TV quase no mudo, depois de um dia de
trabalho puxado, para não me atrapalhar, aos apoios financeiros que me ajudaram a
manter o carro que me permitia acesso rápido aos restaurantes estudados, eles foram
incansáveis na luta pela superação de todos os obstáculos enfrentados nos últimos anos.
Um agradecimento especial também aos meus irmãos, meus tios, meus avós, meus
primos e a toda minha família, grande e complicada, mas ainda assim unida e forte,
pelas orações, pela torcida certa e confiante.

Meus agradecimentos finais, mas não menos importantes, são para o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cujas atividades criam
e aumentam as possibilidades para estudos em todo o país, e para os proprietários,
funcionários e consumidores dos restaurantes pesquisados, pela presteza e atenção que
fizeram deste trabalho uma realidade.
“O gosto classifica aquele que procede à classificação: os
sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles
operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu
intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses
sujeitos nas classificações objetivas. E, deste modo, a
análise estatística mostra, por exemplo, que oposições de
estruturas semelhantes às que se observam em matéria de
consumo cultural encontram-se, também, em matéria de
consumo alimentar: a antítese entre a quantidade e a
qualidade, a grande comilança e os quitutes, a substância
e a forma ou as formas, encobre a oposição, associada a
distanciamentos desiguais à necessidade, entre o gosto da
necessidade – que, por sua vez, encaminha para os
alimentos, a um só tempo, mais nutritivos e mais
econômicos – e o gosto de liberdade – ou de luxo – que,
por oposição à comezaina popular, tende a deslocar a
ênfase da matéria para a maneira (de apresentar, de
servir, de comer, etc.) por um expediente de estilização
que exige à forma e às formas que operem uma denegação
da função.”

- Pierre Bourdieu, A distinção: crítica social do


julgamento.
RESUMO

O estudo que esta dissertação apresenta tem como objetivo compreender as estratégias,
práticas e discursivas, de (re)construção de uma imagem regional do alimentar,
utilizadas por proprietários de dois restaurantes temáticos, localizados na região
metropolitana de Fortaleza, Ceará: o Chica Sinhá e o Lá na Roça. Especializados na
chamada “culinária sertaneja”, esses estabelecimentos revelam, nos detalhes de sua
composição, um amplo campo de relações e produções simbólicas, do qual emergem e o
qual ajudam a constituir. Nesse sentido, volto o olhar para a história, como um processo
permeado de permanências e rupturas cognitivas, procurando refletir acerca dos
caminhos de objetivação social da idéia de cozinha regional, adotada e ressignificada
pelos restaurantes citados. Seguindo uma tendência verificada também noutras partes do
Brasil e do mundo, no Ceará, a adoção do turismo pelo poder público (como alavanca
para o desenvolvimento econômico local) e as expressivas mudanças impostas ao
consumo alimentar urbano moderno (impulsionadas pela industrialização e
padronização dos gêneros alimentícios) estão no cerne dos movimentos de concepção e
valorização desse tipo tão peculiar de culinária.

Palavras-chave: culinária regional, história da alimentação, sociologia das práticas


alimentares.
ABSTRACT

The study of the dissertation presents has as purpose to understand the pratical discourse
and (re)construction of a regional image of food, used by the owner of the two thematic
restaurants, located in the region of Fortaleza, Ceará: Chica Sinhá and Lá na Roça.
Especialized in sertão’s culinary, this firms shows us, in details of their compositions, a
large field of simbolic relactions and productions, from them emerge and which help to
build. This way, I back to look for the history, as a process full of cognitive staying and
cognitive ruptures, searching to reflect about the way of social objetivation of the
regional cusine ideia, adopt and reframe by the mentioned restaurants. Following a
verified trend also in the other places of Brasil and the rest of the world, in Ceará, the
adoption of tourism by the government (as a growing form of aceleration the local
economic devoloping) and the expressions changings imposed to the modern urban food
consumption (driven by industrialization and padronization of the gender food) they are
in the midle of conceptions and padronization movements this type of peculiar cusine.

Key-words: regional cusine, history of food, sociology of pratical feed.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10 

CAPÍTULO I – RESTAURANDO OS SABORES E OS COSTUMES: NOTAS


SOBRE O CONSUMO ALIMENTAR FORA DE CASA ...................................................... 25 

1.1. Introdução: das origens européias .................................................................................... 25 


1.2. Da dinâmica alimentar no Brasil ....................................................................................... 39 

CAPÍTULO II – O CEARÁ E A EMERGÊNCIA DE UMA COZINHA REGIONAL.......... 50 

2.1. Notas sobre as políticas de incentivo ao turismo no Ceará. .............................................. 50 


2.2. “O de comer tá botado” ..................................................................................................... 54 

2.2.1. Chica Sinhá .............................................................................................................. 59 


2.2.2. Lá na Roça ............................................................................................................... 68 

CAPÍTULO III – CONSTRUÇÕES REGIONAIS DA ALIMENTAÇÃO: HISTÓRIA,


IMAGINÁRIO E MEMÓRIA SOCIAL .................................................................................. 77 

3.1. Fabricações culturais: entre passados, encantamentos e práticas. ..................................... 78 

3.1.1. O “resgate” das tradições culinárias sertanejas. ...................................................... 78 


3.1.2. Elogio à “simplicidade” .......................................................................................... 84
3.1.3. O prazer da cozinha caseira..................................................................................... 90 

3.2. Comida e território: pedaços de uma longa história. ......................................................... 95 

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 106 

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 114 


INTRODUÇÃO

Este trabalho é o resultado de um exercício de investigação social cujo objeto é


um tanto inusitado1: o restaurante. Tão comum nos centros urbanos, no cotidiano
agitado das grandes cidades, ele figura, muitas vezes, despercebido pelas ruas e
avenidas, escondido na trivialidade de sua função. Produzindo e comercializando
refeições, o restaurante oferece um serviço de status doméstico atualizado em
mercadoria (BELL, 2005) que supre uma necessidade da vida moderna – marcada pela
inserção da mulher no mercado de trabalho e pelo crescente volume de atividades
diárias, executadas em ritmo acelerado pelos indivíduos. Assim, comer fora de casa é,
atualmente, não apenas uma opção de lazer, mas uma experiência com sabor de rotina
para muitas pessoas.

Sendo o restaurante um espaço tão imbricado ao cotidiano urbano, não é estranho


que seja ele tão revelador de modos de vida, de costumes e crenças – lugar relevante
para a observação do comportamento, dos acordos e conflitos sociais, das nuances da
cultura, da formação de imaginários e de processos de identificação. Ambiente de
socialização evidente, o restaurante é escola de boas maneiras, onde normas de conduta
e convivência são constantemente produzidas e reproduzidas. É, portanto, sinal de
história, do movimento transformador das idéias, dos ideais. Alarde da memória social,
é, também, expressão de tradições – sempre dinâmicas e permanentes – e de
conhecimento construído e acumulado ao longo dos tempos: tecnologias do culinário,
saberes do comestível.

Transformar o restaurante em lugar de observação sociológica é, assim, mergulhar


num infinito de possibilidades de análise (ou de recorte) que instigam o pesquisador
pela complexidade de sua natureza social e pelo prazer da temática que imediatamente
se sobrepõe: a alimentação. Classicamente estudado pelas ciências ditas “naturais” ou
da saúde, o ato alimentar vem adquirindo estatuto de fato social – em contraposição ao
pensamento durkheiminiano2 – e se configurando em um novo campo de estudos para a

1
Conforme analisaremos mais adiante, pode-se dizer que este não é um objeto comumente abordado na
história da teoria social.
2
O interesse de Durkheim em estabelecer fronteiras bem definidas para a atuação da Sociologia, como
parte de um esforço de consolidação desta ciência, acabou por excluir a alimentação de seu universo
pesquisável, dado que este era um tema classicamente estudado pela biologia e demais ciências ditas
naturais. De acordo com o autor, “(...) todo indivíduo bebe, dorme, come, raciocina, e a sociedade tem

10
Sociologia.3 Objeto paradoxal, dada sua inquestionável aproximação com aspectos
biológicos (e supostamente universais) da vida humana, as práticas alimentares podem
ser, entretanto, um fértil terreno para o entendimento de inúmeras questões sociais.

O presente estudo é, portanto, um convite para a tentativa de compreensão de


algumas dessas questões. É curioso observar como particularismos culturais – nos quais
as práticas alimentares podem ser incluídas – mudam de status social e tornam-se
“sinais diacríticos” (nos termos antropológicos), expressões que demarcam a
especificidade de um grupo e que lhe conferem uma certa identidade, uma sensação de
pertencimento. Como e por que isso acontece? De que forma estudar restaurantes
poderia ajudar a compreender esse fenômeno de ressignificação?

Os restaurantes contribuíram de modo significativo na instituição das conhecidas


“cozinhas regionais”, na França do final do século XVIII (CSERGO, 1998),
impulsionadas por um movimento de construção da nação que passou a valorizar as
riquezas naturais e os costumes particulares, circunscritos a um território ou impostos
pela história. Expressão das especialidades culinárias locais, as cozinhas regionais são,
assim, interpretadas como espécies de marcadores culturais que estimulam sentimentos
de pertença a uma determinada coletividade. Tornando-se uma referência identitária,
elas se transformam também em uma via de entrada da cultura, um meio pelo qual é
possível conhecer e experimentar – literalmente – um modo Outro de ser. Parte
integrante desse processo de transformação das práticas alimentares em símbolos de
uma região ou nação, o restaurante aparece como um lugar inspirador da produção de
imaginários sociais que ajudam a configurar os caminhos dessa mudança, ao mesmo
tempo em que é, ele próprio, inspirado por representações de outros tempos e espaços.

Diante disso, proponho, aqui, uma reflexão sobre as estratégias, práticas e


discursivas, de (re)construção de uma imagem regional do alimentar, utilizadas por
proprietários de restaurantes temáticos localizados na região metropolitana de Fortaleza,
no Ceará. Especializados na “cozinha regional”, esses estabelecimentos se diferenciam
dos demais pela ambientação dos espaços, projetada para conduzir os consumidores a
uma viagem simbólica pelos diversos mundos do sertão nordestino.

todo interesse de que estas funções se exerçam regularmente. Se, portanto, estes fatos fossem sociais, a
sociologia não teria objeto que lhe fosse próprio e seu domínio se confundiria com o da biologia e o da
psicologia” (2003: 33).
3
No Brasil, neste sentido, poderíamos destacar o pioneirismo de Gilberto Freyre. Sua obra Açúcar: uma
sociologia do doce (2005) – editada, pela primeira vez, em 1932 – inaugura um novo campo de
preocupação sociológica brasileira.

11
I. Primeiras impressões

Já na entrada se percebe que o clima é de interior. A cidade vai ficando para trás,
esquecida do outro lado da porteira. O verde das plantas e o passar do vento deixam
uma sensação de tranquilidade, de bem-estar. O tempo desacelera – ao menos por
alguns instantes. No caminho até a parte interna, a rusticidade que impera em todos os
ambientes da casa vai se apresentando ao visitante, permitindo-lhe vivenciar uma
experiência com ar de “história”, de “cultura”, de “tradição”.

Lá dentro, a impressão é de estar lá fora. O estilo avarandado possibilita que a


paisagem natural externa invada o interior, tornando o espaço arejado, bucólico. A
decoração, simples na forma e na idéia, marca a memória de quem vê: mesas de
madeira, tamboretes de couro, paredes de tijolo aparente, colunas feitas de tronco,
cobertura de telha vermelha, cercas de varas e estacas, adereços de palha, luminárias de
cipó, bonecas de pano, frigideiras e pratos velhos pregados nas paredes, penicos de
metal pendurados próximo aos banheiros, redes de dormir armadas entre as mesas.

Tanta simplicidade, todavia, não é razão para constrangimento do dono (e


tampouco do visitante). Ao contrário, é ela a grande atração: artigo de valor
imensurável, orgulho de um jeito de ser, de fazer. Ninguém se incomoda se as mesas
não têm toalhas e se os bancos são de madeira, meio improvisados e um tanto
desconfortáveis. Há algo mais, ali, que mesas sem toalhas e bancos rústicos. Alguma
coisa meio mágica, até, capaz de produzir sentimentos e imprimir sensações.

É hora do almoço. Os “pratos” do dia são expostos em uma grande mesa. Alguns
são verdadeiras iguarias, preparadas dos modos mais estranhos e com os ingredientes
mais inusitados como a buchada, cozido feito com pedaços de estômago de bode,
costurado e recheado com suas vísceras, e a galinha à cabidela, cujo principal
ingrediente do preparo é o próprio sangue da ave, que dá cor e textura ao molho que
acompanha a carne. Tanto exotismo faz muita gente torcer o nariz: “é preciso ser da
cultura ou ter muita curiosidade para experimentar isso”, ouvi alguém dizer, certa vez.

A mesa, contudo, é farta e variada. Além dos “pratos excêntricos”, uma


quantidade considerável de opções é servida. Tem baião-de-dois, arroz branco, paçoca,
escondidinho de carne de sol, farofa de cuscuz, carne assada na brasa, pirão, galinha
cozida, assado de panela, feijão verde, pernil de porco e outras tantas. “Comida pesada”,

12
de acordo com alguns, “calórica”, “caprichada em condimentos”, mas nem por isso
pouco apreciada.

Decidir o que comer em meio à variedade disposta na mesa é que é um grande


desafio – para alguns, verdadeira tortura. Assim, cada qual é convidado a servir seu
próprio prato, combinando os alimentos da forma que lhe for mais satisfatória ou
conveniente no momento. Em seguida, é só se acomodar e se fartar ao som das canções,
de Luiz Gonzaga ou de outros artistas nordestinos, que ecoam pelo ambiente.

Terminada a refeição, nada como um doce, de sobremesa. São várias as opções em


compota: de mamão, de goiaba, de banana, de coco, de caju, de leite, etc. Preparados
com técnicas culinárias artesanais, eles conquistam muitos paladares pela doçura
“caseira” e “tradicional” de seus sabores. E se, depois de tanto comer, bater aquela
preguiça, a rede de dormir ao lado das mesas não é enfeite, não! Sua função é prática e
absolutamente convidativa: um cochilo, para descansar o corpo e redobrar as energias
depois do almoço, parece tentador. Para revigorar o ânimo e voltar às atividades do dia
com toda força, basta tomar um cafezinho (“pegando fogo”) ao despertar.

Em seguida, uma conversa, um acerto e pronto. É preciso se despedir. Já é hora de


“voltar para a cidade”.

∗∗∗

Quando, pela primeira vez, visitei um “restaurante temático” de cozinha regional,


foram essas as minhas primeiras percepções: excetuando-se a perspectiva comercial, o
que fica é a impressão de se estar visitando uma fazenda ou um sítio no interior do
estado – a despeito da forma estilizada da decoração, a arquitetura e os objetos
espalhados por todos os espaços conduzem o cliente a um outro lugar, distante da
cidade. Era o final do ano de 2005. Nesta época eu dava os primeiros passos na
pesquisa que, mais tarde, tornou-se minha monografia de conclusão do curso de
Ciências Sociais.4 O estudo era sobre o processo de formação de um conhecido símbolo

4
LIMA, Maria de Fátima F. As tapioqueiras e a sua arte: mudanças e permanências no “shopping das
tapiocas”. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências Sociais, Centro de
Humanidades. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2007.

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da culinária cearense: a tapioca – alimento feito de goma, subproduto da mandioca.
Imersa como eu estava no entendimento desse universo da produção e do consumo de
alimentos considerados típicos do estado, conhecer um restaurante como aquele foi a
“descoberta” de um novo horizonte de pesquisa.

Há cerca de dez anos esse tipo de restaurante vem se multiplicando no cenário


gastronômico de Fortaleza, disseminando um novo discurso acerca da “cozinha
regional” e conquistando o paladar de um número cada vez maior de pessoas.
Espalhados por toda a cidade, eles atraem os consumidores com uma ambientação
ricamente ornamentada com objetos, cores e sons expressivos do universo simbólico
que orientou o tema do cardápio: o regional. São, por isso mesmo, comumente
classificados de temáticos. Além disso, quase sempre conseguem agregar, ao mesmo
tempo, as funções específicas de restaurante e outras atividades complementares, como
museus, lojinhas, criação de animais, casas de show e até pequenos parques aquáticos.

Como consumidora, visitei a maioria desses restaurantes, em Fortaleza, atraída


pela novidade de comer em um ambiente que me fizesse “recordar” o sertão que eu só
conhecia através da literatura e do cinema. Em meio àquela cenografia, cuidadosamente
preparada para despertar lembranças (de coisas vividas ou apenas imaginadas), pude
sentir que minha estadia ali dava à refeição um outro sabor. O todo simbólico, formado
pelo conjunto dos elementos selecionados para a decoração, produz um efeito de sentido
que aguça a percepção, transformando o significado da experiência gustativa. Assim, a
paçoca de carne de sol e baião-de-dois, por exemplo, saem da ordinariedade de seu
consumo e incorporam o papel de iguaria típica, agregando valor comercial e
conquistando os paladares mais “sofisticados”.

Entender como e por que isso acontece foram as minhas primeiras motivações,
como pesquisadora. O que torna um prato típico e outros, não? O que é uma “cozinha
regional”? Como e para que fins ela é formada? Por que, no caso dos restaurantes
temáticos de Fortaleza, são os sabores e os modos de preparo ditos “sertanejos” os mais
representativos dessa cozinha? Estas questões iniciais me levaram ao desenvolvimento
de uma proposta mais ampla de investigação.

Desde as minhas primeiras investidas no estudo da produção de símbolos culturais


– temática pela qual desenvolvi um interesse especial ainda na graduação, estimulada

14
pelas leituras e discussões realizadas na disciplina de Cultura Brasileira –, o termo
regional já me intrigava, despertando curiosidades e questionamentos. Na monografia,
pesquisando a produção de tapioca no Ceará, percebi que havia uma forte tendência
comercial de valorização dos chamados “produtos regionais” – entre os quais a tapioca
tem sido incluída. Principalmente na área de comercialização alimentar, essa disposição
para o regional era (e ainda é) forte, o que é facilmente verificável num simples passeio
de carro pelas ruas e avenidas de Fortaleza: inúmeros são os bares, cafés e restaurantes
que se dizem especializados nesse tipo de culinária. Além disso, tão vendável têm sido
os “sabores regionais” que já estão sendo, inclusive, incorporados a “pratos”
comumente associados a outras cozinhas, como a pizza e o suchi, por exemplo. O que
tem motivado esse interesse pelo regional? Por que ele vem sendo tão insistentemente
lembrado como artifício publicitário para a comercialização de alimentos?

Ainda que não seja algo absolutamente recente, esse apelo ao regional tem se
intensificado de forma considerável nos últimos anos. Os restaurantes temáticos são,
provavelmente, uma das expressões mais evidentes desse fenômeno. Cada vez mais
numerosos – fato que considero revelador da boa recepção dos produtos regionais no
mercado consumidor –, esses estabelecimentos têm consolidado seu espaço no setor de
alimentação fora de casa5 com um discurso referendado nas particularidades culturais
que a idéia de regional evoca. Tão intenso é o potencial simbólico desse conceito, que
permite, inclusive, a construção de uma imagem alternativa da atividade comercial –
“aqui eu não digo que eu vendo comida; aqui eu trabalho as tradições da arte culinária
do Ceará, do sertão do Ceará”, disse-me um proprietário, certa vez6. Fetichizando sua
mercadoria com os encantos do “típico”, do “tradicional”, e jogando, assim, com a
emoção do cliente, esses proprietários, ainda que, por vezes, de forma involuntária,
favorecem suas empresas e contribuem para a disseminação de uma imagem regional.

Elegendo o sertão como foco desta imagem, esses empresários têm conseguido
convocar a atenção do consumidor, conquistando seu apreço e fidelidade. E isso se
deve, entre outras razões, a uma elaboração simbólica que estereotipa hábitos sertanejos
e os transforma em signos exóticos de uma cultura (regional), a qual os compradores

5
O chamado Setor de Alimentação Fora do Lar (ou fora de casa) é formado por bares, lanchonetes e
restaurantes. Tal expressão vem sendo utilizada, principalmente, pela ABRASEL (Associação Brasileira
de Bares e Restaurantes), que tem estimulado a formação de uma rede integrada entre essas empresas,
como forma de atuação política na defesa dos interesses do setor.
6
Todas as citações de falas de proprietários, aqui transcritas, foram conseguidas através de entrevistas por
mim realizadas, entre os meses de janeiro e abril de 2009.

15
são convidados a reconhecer como sua. Cria-se, assim, verdadeiro paradoxo identitário:
se o consumidor urbano é atraído pelo exotismo da vida rural, é, por outro lado e ao
mesmo tempo, incentivado a enxergar nesse modo de ser a “raiz” de uma história que
lhe é comum. Essa confusa conjunção de sensações, em que ora se é nativo, ora
estrangeiro, é significativa da plasticidade e da dinamicidade do que poderíamos chamar
de uma identidade regional, encontrada nos restaurantes como uma produção
discursiva, de cunho publicitário evidente, mas nem por isso menos reveladora (e
incentivadora) de relações de pertencimento em outras dimensões da vida social.
Situacional e relativa, essa identidade é fruto de um processo incessante de inclusão e
exclusão, ancorada em um sistema complexo de significação que produz,
historicamente, representações que lhe dão sustento e eficácia.

Considerando, então, a importância que a idéia de regional desempenha na


atividade comercial – e, porque não dizer, cultural – dos restaurantes temáticos aqui
analisados, institui-se o objetivo principal deste estudo compreender como esse conceito
é utilizado no contexto desses espaços de consumo alimentar. Partindo desse interesse
central, outros questionamentos surgem e são problematizados, delineando os objetivos
complementares desta pesquisa: o que tem favorecido a valorização da questão regional
no setor de alimentação fora de casa? Como esse regional tem sido representado? Que
influências têm contribuído para a formação dessas representações? Qual o seu papel na
constituição de uma “cultura brasileira”?

A fim de tentar responder estas questões, dois restaurantes foram escolhidos para
constituir o campo empírico desta investigação social: o Lá na Roça e o Chica Sinhá,
localizados nas margens ou proximidades da rodovia estadual CE 040 – dado cujas
principais implicações serão discutidas mais adiante.7 Recriando o sertão em espaços
citadinos, associando práticas tradicionais a novos contextos históricos, essas casas
temáticas movimentam uma idéia de regional, convidando-nos a pensar também sobre
os caminhos da mudança cultural, que se efetiva por meio de incorporações de
símbolos e de práticas que se misturam no tempo e no espaço (BARREIRA E VIEIRA,
2007).

7
O projeto de pesquisa original incluía, ainda, nas previsões de abordagem, um terceiro restaurante: o
Casa de Farinha. Algumas entrevistas e observações chegaram, inclusive, a ser realizadas no espaço,
mas, na medida do amadurecimento das questões aqui levantadas e da disponibilidade de tempo para a
conclusão do trabalho, optei por concentrar os estudos de campo apenas nos dois restaurantes citados,
selecionados pela proximidade física e ideológica entre eles.

16
Entretanto, antes de se apresentar como um trabalho comparativo, esta pesquisa
visa uma observação analítica das representações de regional que esse gênero de
estabelecimento (re)produz. Considerando a centralidade da alimentação no contexto de
produção (material e simbólica) destas empresas, as práticas alimentares assumem, aqui,
papel de destaque. O estudo das imagens regionais a que me proponho realizar
converge, diretamente, para a análise da formação daquilo que Maciel (2004) chamou
de “cozinha de um povo”.

II. Caminhos teórico-metodológicos

A pesquisa de campo foi iniciada de forma concomitante nos dois restaurantes


selecionados. Através de visitas periódicas – realizadas em cada estabelecimento, pelo
menos uma vez por semana, alternando dias e horários, conforme o funcionamento de
cada um –, busquei conhecer um pouco mais o cotidiano dessas empresas, utilizando,
principalmente, as técnicas de observação e entrevista.

Era como consumidora que eu chegava aos restaurantes, na maioria das vezes.
Nesta condição, aproveitava para observar a rotina dos mesmos e fazer o registro dos
cenários e dos “pratos” oferecidos, diariamente. Em conversas informais com
funcionários e clientes, aprendia um pouco mais sobre a dinâmica de utilização dos
espaços, sobre as sociabilidades que neles se estabelecem. Foram esses instantes de
conversa que me permitiram, também, amenizar a “solidão” do campo: quando pensei
em transformar restaurantes no lugar de efetivação empírica da pesquisa, não imaginei
que me incomodaria muito o fato de ter que almoçar sozinha durante o período de
observação. Consumir foi, neste caso, a forma mais discreta ou menos “invasiva” que
encontrei de me inserir no campo. Fazendo o que os demais clientes estão lá para fazer,
penso que eu interferia menos na rotina – e conseguia mais facilmente, com isto, a
atenção de funcionários. Todavia, almoçar tantas vezes sozinha foi, para mim, um
sacrifício – o que me faz pensar que, talvez por isso, Simmel (2004) tenha sido tão
enfático ao afirmar que a refeição é um “ente sociológico”. Mas, apesar de incômodos,
esses instantes sozinha foram também muito produtivos; aproveitados para me
concentrar no registro das questões que o campo suscitava e de suas possibilidades de
análise.

17
As entrevistas de cunho mais formal, previamente agendadas e com uso de
gravador, foram realizadas apenas com os proprietários dos estabelecimentos – foco
central deste trabalho. A utilização desta ferramenta metodológica – que se mostrou
extremamente interessante, já que o discurso desses proprietários é a base sobre a qual
esta pesquisa se fundamenta – exigiu atenção especial. Talvez por sua condição de
empresários, esses sujeitos tendem a olhar com certa “desconfiança” o pesquisador e
seu interesse evidente em conhecer, de forma aprofundada, os mecanismos de
funcionamento das empresas em estudo.8 Nesse sentido, cada questão foi pensada e
realizada com muita cautela, de modo a não “violentar” os limites da intimidade
empresarial ou, como sugeriu Bourdieu (2005), para tentar minimizar a violência
simbólica do processo de entrevista. Assim, as perguntas, sempre abertas, foram
formuladas de modo a não intimidar os entrevistados, agindo de maneira indireta no
alcance das informações mais restritas.

Entendendo que o campo de pesquisa funciona como um sinal que nos lembra que
“o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o
essencial das suas propriedades” (idem, ibidem: 27), considero de fundamental
importância a análise do material informativo produzido pela mídia (reportagens,
artigos de opinião, divulgação de eventos, etc.) acerca dos restaurantes estudados ou da
cozinha regional, de forma mais abrangente. Além disso, apresentam relevância, para a
compreensão da realidade estudada, os planos de ação públicos (promovidos por
agências governamentais) e privados (gerenciados pela ABRASEL) que envolvem a
estimulação da prática do turismo gastronômico. Tal prática tem um potencial
considerável de desenvolvimento nos estabelecimentos selecionados, pelo tipo de
culinária oferecida e pelo espaço da cidade onde estão localizados: no trecho
Messejana-Eusébio da CE-040, início da rodovia estadual que liga Fortaleza ao litoral
leste do estado.

Desde o final da década de 1990, a CE-040 vem passado por “modernizações” –


reconstrução e duplicação de alguns trechos – como parte de programas voltados para o

8
De um modo geral, essa “desconfiança” por parte do pesquisado me parece algo quase inerente ao tipo
de investigação que fazemos nas ciências sociais. Isto porque, na raiz dessa sensação, está o
desconhecimento advindo da relação entre estranhos. No caso desta pesquisa, penso que essa
desconfiança pode ser ainda mais aguçada dada à natureza da atividade em análise: um comércio ou
negócio. De algum modo, o processo de pesquisa envolve a descoberta dos segredos da produção
empresarial (inclusive os segredos do êxito do empreendimento) e isso pode constituir, de muitas formas,
uma espécie de ameaça na percepção do pesquisado.

18
desenvolvimento do turismo local.9 Atualmente conhecida como a Rota do Sol
Nascente, esta rodovia é, para o tipo de restaurante pesquisado, um local estratégico: ali
não apenas trabalhadores do entorno, mas também turistas se tornam clientes em
potencial. Ansiosos por conhecer e desfrutar “dos encantos do Ceará”, os visitantes que
passam pela rodovia em direção às praias parecem querer também degustar as
especialidades da região – ou são, de várias formas, convidados a fazê-lo. Nesse
sentido, uma reflexão sobre o envolvimento desses espaços temáticos com a dimensão
turística da CE-040 pode fornecer elementos esclarecedores das questões analisadas.

A partir disso, alguns conceitos podem ser “antecipados”. O “discurso


regionalista”, produzido nesses restaurantes, tem sua base de apoio no conceito de
típico. Materializado em práticas e objetos, ele é quase sempre apresentado como um
dado inquestionável, uma marca cultural evidente, representativa de uma coletividade.
Bem nos lembra Canclini (1983: 87), todavia, que “o típico é o resultado da abolição
das diferenças, da subordinação a um tipo comum dos traços específicos de cada
comunidade”. Fruto de negociações sociais, historicamente configuradas, tal formulação
é, assim, antes o produto da marcação da diferença e da exclusão que símbolo de
unidade. O processo de significação que transforma certos hábitos alimentares em
típicos se dá, portanto, de forma relacional, por meio de um exercício de distinção que
vai excluindo certas práticas de modo a ressaltar o potencial “característico” de outras
na definição de uma região – demarcada por vezes em termos geográficos, noutras por
aspectos culturais. É opondo práticas sertanejas e litorâneas, por exemplo, que o típico
ganha contornos mais profundos no contexto das casas temáticas em análise.

(...) a gente descobriu que do Rio Grande do Sul até o Acre


existe o mesmo tipo de peixada, o mesmo tipo de moqueca, o
mesmo tipo de peixe frito, o mesmo tipo de camarão, de
caranguejo. Muda o peixe. Mas o preparo é o mesmo. E a gente
percebeu que não era bem o típico do Ceará, o peixe. Porque o
peixe é de uma cultura litorânea. (...) a gente acha que a comida
verdadeiramente típica, que só tem aqui no Ceará é o baião-de-
dois, é a paçoca de pilão de madeira, é a buchada, é a panelada,
é o sarrabulho. Essas coisas são realmente daqui. É a culinária
do sertão. Essas dificilmente você encontra em qualquer outro
lugar. Você pode até encontrar, mas em algumas outras cidades
do Nordeste.

9
De acordo com informações concedidas pelo DERT – Departamento de Trânsito e Rodovia.

19
O turismo desempenha um papel relevante nesse processo de formulação do
típico. Sendo o fundamento de sua prática o desejo de conhecer o diferente, ele
impulsiona um movimento local de construção de “inventários culturais” que servirão
de atrativo. Para Canclini (ibidem: 88), o turista necessita desta simplificação, já que ele
não viaja como com um investigador da realidade. Assim, na medida em que questiona,
por exemplo, que diferencial os cearenses têm a oferecer aos visitantes – o que há no
Ceará que não é possível encontrar em nenhum outro lugar do planeta –, o turismo
proporciona a “descoberta” de certos traços culturais distintivos, que passam a ser
“manipulados” cultural e mercadologicamente.

Todavia, se, por um lado, o turismo exerce influência na produção do típico,


encontrado nos restaurantes estudados, por outro, não é possível afirmar que sejam os
turistas o principal público destes estabelecimentos. Ao contrário, a sustentação
comercial dessas empresas tem no consumidor local seu maior aliado. Segundo os
proprietários, o turista aparece ocasionalmente, apenas nos fins-de-semana e feriados ou
nos períodos de “alta estação”. Na maior parte do ano, são mesmo os residentes de
Fortaleza e região metropolitana que garantem o faturamento. O que favorece essa
valorização (e, conseqüente, construção) local do típico?

Alguns autores interpretam esta construção do típico como uma espécie de reação
aos processos de globalização. Para Oliven (2006), por exemplo, o embaralhamento das
fronteiras e a criação de estilos de vida mundializados em vez de fazer o sentimento
regional ou nacional diminuir, o faz crescer. “À medida que o mundo se torna mais
complexo e se internacionaliza, a questão das diferenças se recoloca e há um intenso
processo de construção de identidades”, afirma o autor (ibidem: 208). A sensação de
que vivemos em uma “aldeia global” impulsiona o renascimento e, frequentemente, a
invenção de tradições, que passam a ser manipuladas, ainda segundo Oliven, como
marcos de referência cultural, ou seja, como aspectos “típicos de uma cultura”.

Canclini explica, citando uma frase de Lechner, que isso se dá porque a


globalização “é vivida como uma invasão extraterrestre” (2007: 21). Mesmo implicando
melhoras no crescimento econômico e em outros índices macrossociais, em países como
o Chile, por exemplo, a modernização e a abertura do país são acompanhadas por “um
vago mal-estar que se manifesta como medo do outro, da exclusão e da falta de sentido”
(idem, ibidem). Neste contexto, o típico encontra um terreno fecundo para sua
constituição, especialmente como resultado do que autor chama de lobby empresarial.

20
Com esta expressão Canclini pretende ressaltar a importância de certos atores sociais,
que “tomam decisões e provocam efeitos”, nos processos de produção cultural (ibidem:
59). O setor empresarial – ou, simplesmente, comercial10 – é representativo desta
posição. Não simplesmente por dispor de meios financeiros para executar suas idéias,
mas por sua visível habilidade na manipulação de imaginários, seu papel na construção
e valorização do típico é, no mínimo, significativo.

De fato, conforme foi dito, as cozinhas regionais são, enquanto discurso e


representação, “invenções” do comércio de alimentos (CSERGO, 1998). Interpretando
(e divulgando) ingredientes e modos de preparo como típicos ou tradicionais da região
– conceitos que se confundem com muita freqüência –, esses estabelecimentos
contribuíam com a formação de imagens da alimentação local, operando-as como
referenciais identitários. Não se pode esquecer, entretanto, que os comerciantes,
“mentores” dessa idéia, são indivíduos configurados social e historicamente (ELIAS,
1994). Deste modo, são influenciados em sua produção criativa por representações
imaginárias de outros tempos e espaços. A definição do que é típico ou tradicional não
é, portanto, feita de forma aleatória, por uma decisão individual. Ela é fruto de uma
confluência de condições e acontecimentos, marcados naquilo que Halbawchs (1990)
denominou de memória coletiva, e processualmente ressignificados por ela, conforme
os estímulos do social.

No caso dos restaurantes estudados, isso é bastante perceptível. A “cultura


sertaneja” é, conforme foi dito, a inspiração para a formação regional encontrada nesses
espaços. Embora uma reivindicação de “autenticidade” dos produtos oferecidos seja
bastante comum no discurso dos proprietários, o que se verifica, entretanto, é uma
mistura de costumes alimentares rurais e urbanos. A presença marcante das saladas
cruas, característica dos novos modelos alimentares urbanos – influenciados pela moda
da anti-cozinha11 –, é um dado interessante para pensarmos a respeito do hibridismo que
permeia essa culinária regional (CANCLINI, 2003). De acordo com Koster,

10
Termo que julgo mais adequado por ser mais abrangente em sua utilização. O termo empresarial
comumente remete a um tipo específico de comércio, mais moderno, desenvolvido.
11
Com a descoberta das vitaminas, o consumo de verduras e legumes crus tem sido amplamente
incentivado por profissionais da saúde, como médicos e nutricionistas. Essa dietética, cujos alimentos não
passam por nenhuma forma de cozimento, tem sido chamada por estudiosos da alimentação, como
Montanari (2008), de anti-cozinha.

21
a alimentação dos sertanejos consiste principalmente de carnes,
nas suas três refeições, às quais ajuntam a farinha de mandioca
reduzida a uma pasta, ou arroz, que às vezes o substitui. O
feijão, chamado comumente na Inglaterra de favas francesas é a
iguaria favorita. (...) Os vegetais verdes não são conhecidos em
seu uso e ririam à idéia de comer qualquer espécie de salada.
(2008: 201, grifo meu).

Como forma de adaptação ao contexto urbano e às modernas regras sanitárias e


dietéticas, novos ingredientes e modos de preparo são inseridos na produção dos
alimentos regionais – conhecidos por seu alto teor calórico e gosto acentuado. As
saladas passam, assim, a compor o conjunto do regional oferecido de modo a “suavizar”
ou “equilibrar” o cardápio. Sua presença pode ser interpretada também como uma
espécie de “sofisticação” dos pratos sertanejos para atender a um público habituado a
outros sabores.

Nos restaurantes, são os alimentos (e os costumes) por vezes considerados


“atrasados” ou “símbolos de pobreza” os mais representativos do sertão que se deseja
expressivo de uma “cultura regional”. Todavia, o perfil do consumidor dessas casas
temáticas é de indivíduos residentes em áreas urbanas e com alto poder aquisitivo12.
Para adequar essa “gastronomia” – oriunda na “necessidade de encher a barriga para
afastar o fantasma da fome e garantir a sobrevivência diária” (MONTANARI, 2008: 67)
– aos patamares de tolerância gustativa desse tipo de consumidor, técnicas de
refinamento são aplicadas na composição dos “pratos”, de modo a torná-los “aceitáveis”
a esse padrão. Na prática, isso é perceptível na inserção de ingredientes outros nos
preparos (como o creme de leite, o requeijão, a margarina, etc.), nas combinações
possíveis (como baião-de-dois e filé à parmegiana) e até na escolha da qualidade dos
produtos ditos “sertanejos” (como a opção pelo uso da farinha de mandioca refinada na
produção da paçoca de carne de sol).

12
De acordo com os proprietários, o público consumidor destes restaurantes se enquadra no que eles
chamam de “classes A e B”, que seriam formadas, ainda de acordo com eles, por “executivos,
empresários, funcionários qualificados” que trabalham, principalmente, nas indústrias e empresas no
entorno dos restaurantes. Mas há variações de um restaurante para o outro, verificáveis, até mesmo, pelo
valor cobrado nas refeições – que varia, atualmente, de R$ 26,00 a R$ 35,00 reais, o quilo.

22
A visível heterogeneidade da composição regional é, entretanto, ocultada no
discurso de “pureza” e “originalidade” dos hábitos alimentares ofertados. A noção de
“resgate das tradições”, comumente encontrada no discurso, não apenas dos
proprietários, mas também de funcionários e consumidores, reforça ainda mais esta
imagem de “autenticidade”, já que implica a recuperação de uma prática cultural tal
qual ela teria sido no passado, “sem contaminações”. A questão é que, como bem
sabemos, as manifestações de ordem cultural não são estáticas, com contornos definidos
e, ainda menos, definitivos. Não são assim hoje e não foram assim “no passado” de que
se fala. São processuais, dinâmicas, e o sentido a elas atribuído é, deste modo,
constantemente “arriscado na ação” (SAHLINS, 1990), reavaliado na prática diária da
vida social. Sendo assim, o “resgate” a que se faz referência é parte de uma
performance discursiva que esconde, em sua apresentação estereotipada, um processo
de invenção de tradições (HOBSBAWM, 1997), como bem observou Barreira e Vieira
(2007) – processo este necessário a efetivação de conexões de sentido que dão eficácia a
produção regional, tornando-a “real” e “significativa” no cotidiano das interações
sociais.

De que forma as composições e recomposições dessas imagens apontam para,


além de formas de distinção, ordens de organização de uma identificação específica?
Como os envolvidos registram, em uma “semiótica do espaço”, um conhecimento e um
imaginário ressignificado? Por quais caminhos se forma um determinado habitus
(BOURDIEU, 1996) da publicidade e da operação do regional? Em outros termos,
como a estrutura de percepção da história (SAHLINS, 1990) é elaborada pelos agentes
desse universo?

Procurando organizar a forma pela qual tantos símbolos e imaginações são


construídos e operados, penso que seja necessária uma articulação entre as posturas
teóricas sobre o tema e as idéias criadas pelos sujeitos pesquisados, no âmbito dos
restaurantes – sem forçar as últimas aos projetos das primeiras. Entrevistas,
observações, leituras de materiais de publicidade e divulgação, análise de discursos
variados e relacionados ao universo da produção da imagem regional, compõem o
quadro geral de minhas preocupações, ao mesmo tempo em que permitem a
“atualização” das reflexões acerca do universo empírico dos restaurantes. De forma
similar, a conexão entre experiências, impressões e o desenvolvimento teórico de um
questionamento concreto sobre identificação e manipulação de imagens culturais,

23
implica, no entendimento deste trabalho, compreender o uso de símbolos socialmente
produzidos como parte de uma administração do simbólico, vivenciada em um mercado
onde “cultura” e “passado” parecem ser tanto uma moeda como um “conjunto
cartográfico” que aponta o lugar dos significados e os significados do lugar.

24
CAPÍTULO I

RESTAURANDO OS SABORES E OS COSTUMES:


NOTAS SOBRE O CONSUMO ALIMENTAR FORA DE CASA

O restaurante define. A lista de uma casa de pasto é


muitas vezes um elemento de crítica maneira social.
Saber por que maneira o povo come é penetrar na
sua vida íntima, conhecer o seu gosto, apreciar seu
caráter. Hoje em dia, comer já não é como outrora –
alimentar-se. Comer é revelar-se.
João Chagas (2008)

1.1. Introdução: das origens européias

Nas últimas décadas do século XVIII, o restaurante surge em meio ao então


incipiente comércio de refeições parisiense13 e anuncia uma verdadeira revolução nas
práticas alimentares dentro e fora de casa (PITTE, 1998; SPANG, 2003; TRAFZER:
2009). Deslocando sensações do âmbito privado para o público, democratizando o
acesso a haute cuisine e civilizando o ambiente e o atendimento comerciais, esse novo
espaço de consumo alimentar rapidamente conquista uma clientela fiel, tornando-se
referência na produção de um saber gastronômico com ares de ciência e conselheiro do
“bom gosto”14.

Antes, todavia, dos primeiros restaurantes abrirem suas portas, em muitas cidades
européias, outros tipos de estabelecimento já ofereciam alimentos cozidos e prontos
para o consumo. Nas áreas urbanas de Paris, tabernas e estalagens disponibilizavam,
aos forasteiros e à população local, um ambiente “apropriado” para se fazer uma
refeição na rua. No entanto, para além da oferta culinária, o aluguel de quartos era o que

13
No início do século XVIII, Paris tinha um grande número de comerciantes de comida e bebida,
organizados por decretos monarquistas em 25 diferentes guildas, todas regidas por estatutos mutuamente
exclusivos. Desse modo, o direito de comercializar refeições completas (em casa de repasto ou, sob
encomenda, para festas particulares) estava restrito, portanto, apenas aos caterers (traiteurs), mestres
artesãos da gastronomia. Todavia, estes não estavam autorizados a oferecer qualquer tipo de bebida
alcoólica para acompanhamento – muito embora não tenham, por isso, deixado de ofertar,
clandestinamente, vinhos de “qualidade duvidosa”. Tal junção de atividades só foi legalmente possível
nas últimas décadas do século XVIII, quando, como conseqüência da Revolução, as “corporações de
ofício” são desfeitas e os primeiros restaurantes aparecem.
14
Conforme será explicado mais à frente, a adoção de uma postura mais “democrática” e “civilizada”
pelos restaurantes, como estratégias de sobrevivência social e comercial, insere-se num amplo processo
de transformação das idéias políticas e dos costumes europeus, cujo desenrolar possibilitou,
historicamente, uma compreensão positiva e necessária de tais concepções.

25
identificava esses estabelecimentos, sendo eles, mais especificamente, uma espécie
embrionária de pousada15 (ou de pensão, como prefere comparar Spang (2003),
considerando uma certa dimensão de “hostilidade” que caracterizaria esses dois
formatos históricos de guarida pública). Para um viajante do final do século XVII,
alojar-se nessas hospedarias era sua única alternativa – a menos, é claro, que ele levasse
consigo uma extensa carta de recomendação; espécie de passaporte que lhe assegurava
acesso à opulência de alguma casa particular, garantindo-lhe conforto na acomodação e
“boa comida”.

Longe de sua cozinha, restava ao comensal que estivesse “de passagem”


contentar-se com o serviço de alimentação da pousada na qual se encontrava ou dirigir-
se ao salão de banquetes de um traiteur. Neste, por uma módica quantia, era possível
sentar-se à mesa e servir-se, conforme seu desejo ou necessidade, de “pratos” simples e
com pouca variedade. A table d’hôte – como ficou conhecido este tipo de serviço –
apresentava-se, deste modo, como uma instituição hospitaleira: literalmente “a mesa do
anfitrião”, aberta a todos que não dispunham de suas próprias mesas. No entanto, a
dinâmica de informalidade e descontração que permeava essa prática alimentar causava
certo desconforto aos visitantes, desabituados aos costumes locais:

Uma refeição servida em uma grande mesa, sempre à mesma


hora marcada, e na qual os comensais tinham pouca chance de
escolher ou pedir pratos especiais, a table d’hôte não raro era
um ponto de reunião regular ao meio-dia para os artesãos e
trabalhadores locais, velhos amigos e antigos moradores de um
bairro. Uma tradição urbana, a table d’hôte oferecia uma fofoca
confiável para os interessados no crescimento da vizinhança,
mas podia ser um ambiente não tão aprazível para forasteiros
recém-chegados. (SPANG, 2003: 19)

Como é possível perceber, a despeito do estranhamento que causava nos


visitantes, a table d’hôte constituía uma experiência de importância significativa para
boa parte da população urbana francesa. Atendendo a um número amplo e regular de
trabalhadores locais e acolhendo, ao mesmo tempo, viajantes esporádicos, ela constituía
um dos raros espaços públicos de comensalidade da época. Apesar disso, tratava-se de

15
SERAFIN. Marco Antônio M. A história da hotelaria no Brasil e no mundo. Disponível em:
http://www.etur.com.br/conteudocompleto.asp?idconteudo=6144 Acesso dia 14 de dezembro de 2009.

26
uma atividade marginalizada socialmente: em parte, devido à simplicidade culinária que
lhe era característica e à fama de seus freqüentadores – acusados de uma
“convivialidade barulhenta, muitas vezes licenciosa e ocasionalmente provocadora de
brigas” (PITTE, 1998: 753) –, mas também porque, de qualquer forma, comer fora de
casa não era, no Antigo Regime, uma prática muito apreciada.

Havia, nessa época, uma intensa valorização do ambiente doméstico, não apenas
como o lugar mais seguro – ou seja, supostamente mais limpo e pacificado (ELIAS,
1992) – para se fazer uma refeição, mas, sobretudo, como referencial distintivo para
aqueles que podiam usufruir o criativo e sofisticado universo gastronômico dos grandes
hôtels ou palais.16 Isto porque, nesses espaços, era possível desfrutar das invenções
culinárias de renomados chefs: cozinheiros profissionais cujos preparos, bastante
elaborados e diversos, não raro eram considerados verdadeiras obras de arte. Mestres na
combinação de sabores e texturas, na estética suntuosa de apresentação dos pratos e nas
práticas cerimoniais à mesa, tais profissionais eram imensamente valorizados e
admirados pela nobreza de corte e pelos reis absolutistas (por Luís XIV e por seu filho,
Luís XV, principalmente), que chegavam a conceder títulos de honra aos que mais se
destacavam (CHAVES e FREIXA, 2008).

O segredo de tanto “sucesso”, contudo, não estava apenas no evidente talento


pessoal de muitos desses profissionais – entre os quais poderíamos citar, por exemplo,
Vatel e La Varenne, cozinheiros de fama internacional cujas criações revolucionaram o
gosto e as técnicas culinárias de seu tempo, tornando-os, ainda hoje, referência para
muitos chefes de cozinha no mundo inteiro. Para além de qualquer habilidade individual
na preparação de alimentos, eles tinham a seu favor uma lógica de organização social
profundamente enraizada na necessidade de distinção, por parte dos grupos dominantes,
como estratégia de manutenção do poder. De acordo com Elias (2001: 73), nos séculos
que precederam a Revolução, uma série de mecanismos de diferenciação são produzidos
na camada dominante “como instrumentos de auto-afirmação e defesa contra a pressão
feita por quem ocupa um nível mais abaixo” na estrutura hierárquica da sociedade.
Embora a condição dos camponeses só piorasse nesse período, uma nova camada social,
a burguesia, crescia e acumulava cada vez mais capital, tornando-se uma ameaça direta
à aristocracia de corte e ao seu modo de vida, cuja lógica de acumulação priorizava não

16
Eram chamadas de hôtels as casas da mais alta aristocracia de corte francesa, enquanto os palais
constituíam as residências dos príncipes e reis.

27
o dinheiro, mas as honras e os privilégios de sua posição. Por isso mesmo, esta foi um
época que testemunhou intensa elaboração do cerimonial, das posturas, da fala e do
comportamento – tudo originado na corte e apresentado com um propósito: impor a
existência de uma estrutura imutável de poder.

Na medida em que a alimentação era inserida nessa lógica estrutural das cortes, o
surgimento de um profissional capacitado para imprimir à comida toda a pompa e o
requinte da “boa sociedade” logo se fez necessário. Os cozinheiros em atividade nos
palais eram, assim, incentivados a trabalhar no aperfeiçoamento técnico e estético da
produção culinária, no intuito de possibilitar, à alta nobreza de corte, o desfrute das mais
ricas e saborosas iguarias, preparadas com ingredientes exóticos e servidas em um
cerimonial que, mais tarde, tornou-se conhecido por Service à la française.17
Promovendo, frequentemente, grandes jantares festivos (os famosos banquetes), bem
como as refeições reais diárias (que nem por isso deixavam de ser verdadeiros
acontecimentos18), esses profissionais desenvolveram, juntamente com suas equipes, um
“aparato gastronômico”, nos termos de Strong (2004), que se tornou um dos mais
expressivos sinais do luxo e do poder das cortes absolutistas (FRANCO: 2006;
DROUARD, 2009; SPANG, 2003; STRONG, 2004).

Essa relação de interdependência que se criava entre chefes de cozinha e


aristocratas de corte possibilitou aos primeiros a incorporação do prestígio social
desfrutado pelos segundos. A proximidade e a admiração da corte elevavam os chefs à
condição de celebridades, de modo que eles passavam a ser disputados e pagos como
tal. Logo, o conhecimento por eles desenvolvido e acumulado ao longo de suas
experiências na corte, servindo aos reis e aos seus convidados, transforma-se em objeto
de desejo daqueles que buscam imitar o estilo de vida cortesão como tentativa de

17
A respeito deste tipo de serviço, Strong nos explica: “A moda refletia a preocupação de século XVII
com a ordem, o equilíbrio, o bom gosto e a elegância. O número de pratos para cada serviço era calculado
segundo uma relação fixa entre pratos e comensais. Uma refeição de quatro serviços para 25 pessoas, por
exemplo, significava cem pratos. Podia-se multiplicar ou dividir a partir daí. Aumentar o número de
convivas não significava, como hoje em dia, simplesmente produzir uma quantidade maior dos mesmos
pratos. Pelo contrário, exigia mais pratos diferentes. O resultado era que, embora os alimentos grandes e
robustos, como os assados, mantivessem seu lugar, eles tendiam a servir como âncoras numa mesa,
cercados por uma miríade de outras iguarias.” (2004: 198)
18
Au grand couvert, expressão que encerrava o costume do Rei Sol de jantar e cear em público, consistia
em um grande evento diário que mobilizava uma equipe de 55 pessoas, coordenadas por um chef e
distribuídas entre os serviços de cozinha e o cerimonial de apresentação dos “pratos”. Tal costume durou
até a década de 1690, quando o jantar real (nesta época, realizado ao meio-dia) passou a ser realizado
privadamente – e a ser chamado de petit couvert – nas recém-inventadas “salas de jantar” ou em seus
aposentos de gala. Para mais detalhes sobre os rituais alimentares da nobreza durante o Antigo Regime,
ver Strong (2004: 213-220).

28
inserção social. Conscientes de tal situação, os chefs se lançam no mercado editorial
francês, publicando seus cadernos de receita, os quais são vendidos sob o pretexto de
que neles é possível encontrar pratos que “servem-se, presentemente, na mesa dos
Grandes”19. Sendo as cortes francesas – especialmente o castelo de Versalhes, a partir
de 1664 (moradia do rei Luís XIV) – consideradas pólos difusores de moda da época,
berço dos “bons costumes”, tal apelo publicitário se mostra absolutamente adequado e
eficaz em seu objetivo: estas publicações se tornam uma verdadeira “febre” no Antigo
Regime.20 Tão boa foi a recepção destes tratados de culinária que algumas dessas obras
chegaram a ser reeditadas mais de vinte vezes, permanecendo no mercado por cerca de
cinqüenta anos (HYMAN, 1998).

Coordenando os grandes eventos da alta sociedade de corte e tornando


relativamente acessíveis, através da publicação de livros, os segredos de tais realizações,
os chefes de cozinha ocuparam lugar central na propagação de um novo modelo
alimentar, guiado não apenas pela satisfação de uma necessidade vital, mas,
essencialmente, pelo prazer de “comer bem”. Nesse sentido, aquilo que, na época,
passou a ser considerado como a moderna cozinha francesa, representava uma
revolução nos modos medievais e renascentistas de fazer e de consumir os alimentos.
De natureza elitista, essa cozinha gozou de grande prestígio por toda a Europa, neste
período, projetando no imaginário social uma gastronomia francesa ricamente
elaborada, hegemônica em criatividade e sofisticação. Pondo em desuso o excesso de
condimentos e de carnes gordurosas21 e celebrando a leveza dos legumes e das verduras
(plantados nos jardins do castelo de Versalhes, entre as flores e as plantas ornamentais),
esse novo formato de prática culinária pregava uma busca epicurista pelo melhor sabor,

19
Trecho retirado do prefácio do primeiro livro de receitas de La Varenne, Le Cuisinier françois, e citado
por Hyman (1998: 625).
20
A publicação de livros de receita não é uma novidade do Antigo Regime. Desde a Idade Média o
mercado editorial francês investe em obras com orientações de ordem culinárias, todavia, estas possuíam
mais o caráter de receituários médicos ou de manuais para a organização de banquetes, bem diferente do
tipo de leitura gastronômica que surge no século XVII, onde as receitas e as promessas de deleite
gustativo são os grandes destaques dos livros.
21
A redução de tais práticas alimentares tão marcadamente medievais indica uma transformação dietética
significativa e condizente com as necessidades físicas e sociais dos habitantes da corte, que podem
dispensar as reservas nutricionais indispensáveis aos guerreiros medievos, optando por uma dieta “leve” e
moderada, capaz de promover, ao mesmo tempo, satisfação fisiológica e distinção social. Assim, é à base
de aves, peixes e legumes sempre frescos que a alta aristocracia passa a se manter – um luxo concedido a
poucos, já que a maior parte da população continuava comendo carne de porco (mais calórica e barata) e
conservando o que consumia, por questões de ordem financeira e ecológica, através de técnicas que
alteravam consideravelmente o sabor original dos alimentos. Nesse sentido, a diminuição do excesso de
condimentos é expressiva dessa tendência de valorização do alimento fresco, livre do gosto acentuado que
os conservantes (como o sal e algumas especiarias) costumavam infundir.

29
colocando preocupações de ordem fisiológica em segundo plano e elegendo o apetite
como o principal elemento motivador da prática alimentar.

Nesse processo de reeducação do paladar – que não deve ser dissociado de um


outro processo, mais amplo, de regulação das pulsões, cujo desenrolar permitiu,
historicamente, a transformação de guerreiros em cortesãos (ELIAS, 1993) –, os chefs
figuram como verdadeiras autoridades na definição do que é “bom” ou “ruim” em
matéria de comida. Ter um desses profissionais à disposição em casa significava,
portanto, garantia de acesso aos prazeres da “boa mesa” e, consequentemente, inserção
(ainda que parcial) nos círculos sociais mais privilegiados da corte. Por isso mesmo, de
acordo com Pitte (1998: 754), desde o reinado de Luís XIV, os representantes mais
abastados da nobreza francesa, residentes em Paris, “raramente utilizam os serviços dos
profissionais da alimentação instalados por conta própria. Preferem manter responsáveis
pelos serviçais e cozinheiros, disputando a preço de ouro os homens de talento e
procurando imitar os faustos culinários da corte”.

Era toda essa admiração dedicada à figura do chef – lentamente edificada em um


contexto muito específico de relações, como vimos – que fazia do ambiente doméstico o
lugar por excelência da prática alimentar, já que era à cozinha e aos salões das casas
particulares22 que estava restrito, até então, o espaço de atuação profissional dos
cozinheiros e mestres de cerimônia. O impacto dessa presença ultrapassava o universo
da elite francesa para se tornar parte das expectativas sociais mais amplas. Comer fora
de casa, nos estabelecimentos que ofereciam a table d’hôte, caracterizava, portanto, uma
atividade desaconselhada socialmente, em especial para aqueles que se pretendiam
cortesãos. Além da impossibilidade de manter bons cozinheiros – capazes de oferecer
um cardápio variado e elaborado de preparos, conforme as exigências do gosto
aristocrático –, a diversidade de freqüentadores encontrada nesses estabelecimentos,
bem como a informalidade característica do modo de tratamento entre eles, também
contribuía para a compreensão do espaço público, por parte da aristocracia, como um
lugar inadequado para a alimentação. “Se a comida era muito semelhante nessas mesas
[públicas]”, afirma Spang (2003: 18), “a companhia também era por demais variada”,

22
Ou da corte, que, para Elias, pode ser entendida como uma extensão da casa (2001).

30
logo, com bastante receio era vista a table d’hôte, “já que nunca se poderia afirmar
quem estava sentado lá”23.

A essa insegurança era acrescida, ainda, certa desconfiança no que concerne às


posturas ética e sanitária supostamente adotadas pelos profissionais de cozinha “da rua”.
Os cozinheiros domésticos eram parte de uma extensa rede de relações, poder-se-ia
dizer, quase familiares e, consequentemente, era concebível que fossem leais e dignos
de confiança. Já os “cozinheiros públicos”, estranhos à nobreza e aos viajantes, eram
colocados sob constante suspeita. Dissertações médicas concordavam totalmente que
estes “só se interessavam em ganhar dinheiro” e, deste modo, representavam “uma séria
ameaça ao bem-estar de comensais desventurados” que se arriscassem a provar as
preparações “baratas e inferiores” (escolhidas por avareza, apenas) que eles
costumavam servir (idem, ibidem: 46). Pelos corredores das cortes parisienses, corriam
histórias de horror sobre envenenamentos causados pelo cobre de panelas mal revestidas
e sobre contas de vidro ou outros objetos, possivelmente fatais, que eram misturados
sem querer aos guisados. Mas, obviamente, há, aqui, certo exagero necessário à
manutenção da ordem social e da superioridade da chamada haute cuisine. Tanto
traiteurs quanto estalajadeiros eram costumeiramente bem integrados com a
comunidade e seus costumes e, como comerciantes, encontravam-se numa relação de tal
dependência com seus clientes que pouco (ou nenhum) sentido faria para eles
negligenciar a mínima qualidade dos alimentos oferecidos. Bem nos lembra Spang que:

Assim como um traiteur permitia que seus clientes regulares


“pendurassem as despesas” e confiava que eles pagariam ao final
do prazo estipulado, também sua clientela esperava sobreviver a
cada refeição. Considerando-se que o negócio dependia em
grande parte dos clientes regulares, não interessava ao cozinheiro
envenená-los – aliás, era crucial para ele não fazê-lo. (idem,
ibidem: 47)

De todo modo, embora para os milhares de parisienses que faziam refeições


regularmente na table d’hôte de um traiteur, os supostos riscos imanentes a este
costume não causassem muito alarme – posto que a experiência diária lhes garantia

23
Trecho retirado por Spang de um dos escritos do estudioso alemão Joachim C. Nemeitz, intitulado
Séjour de Paris, c’est à dire, Instructions fidèles pour lês voiageurs de condition.

31
segurança –, para aqueles que desconheciam sua história e sua prática, o risco parecia
bem maior e ameaça, mais imediata.

Assim, a imagem gastronômica de Paris – décadas antes do surgimento dos


primeiros restaurantes – salientava duas instituições largamente exclusivas. De um lado,
a casa particular, lócus de uma cozinha altamente qualificada e abundante, privativa do
mundo aristocrático e consolidada na produção criativa de chefs que promoveram uma
verdadeira “libertação da gula” (FLANDRIN, 1998). Do outro, o mundo igualmente
proibitivo da table d’hôte diária, marcada pela escassez e pela frugalidade de uma
cozinha sem recursos, vivenciada pelas classes mais pobres, cujos sabores e os modos
de preparo tinham na tradição, no conhecimento acumulado na luta pela sobrevivência,
sua razão de ser. 24

A situação era, então, minimamente delicada para os viajantes. Aponta Shore


(2009: 301) que, na Europa medieval e do início da era moderna, uma multidão de
peregrinos, estudantes, emissários e soldados ocupava as estradas, tendo expectativas de
se alimentar em algum lugar. No entanto, se “era dificílimo, até mesmo para os
estrangeiros mais importantes, receber convites para as melhores casas francesas”, os
rumores acerca das condições das hospedarias da região – “tão miseráveis que poderiam
levar a maioria dos ingleses ao suicídio” – contribuíam para o agravamento da situação
25
dos indivíduos que, por razões variadas, precisavam de estadia e alimentação.
Encarando-os como um mercado consumidor em potencial, os primeiros restaurateurs
investiram em um novo formato de comércio alimentar, visando, principalmente
(embora não exclusivamente) o atendimento de viajantes que se dispusessem a pagar
por um serviço diferenciado.

Contudo, conforme nos ensina Spang (2003: 12), “séculos antes de um restaurante
ser um lugar aonde se ia para comer (e até varias décadas depois disso), um restaurant
era algo de comer”. Desde o século XV, o termo indicava um tipo de caldo

24
Mesmo se tratando de um tipo de estabelecimento onde a comida tinha um espaço bastante reduzido,
convém registrar, ainda, a existência dos cafés. Desde 1670, esses espaços se multiplicavam pelas ruas de
Paris, servindo bebidas exóticas à base de café e chocolate, sorvetes e alguns poucos petiscos. Colocando
jornais à disposição dos clientes, os cafés se tornaram centros de informação e discussão de idéias
políticas e literárias. Freqüentados por intelectuais e artistas, eles são quase sempre lembrados como
palcos do desenvolvimento do pensamento iluminista que incitou a Revolução de 1789. Todavia, se os
cafés eram lugares ideais para articulações políticas, não se pode dizer o mesmo acerca de seu potencial
gastronômico: para Pitte (1998: 755), nesses espaços era possível “alimentar o espírito, mas de modo
algum o estômago”.
25
Trechos retirados dos relatos de viagem de Philip Thicknesse e Helen Maria Williams,
respectivamente. Citados por Spang (2003: 19).

32
semimedicinal, comumente utilizado para restaurar as forças dos indivíduos de saúde
fraca. Sua receita costumava incluir uma variedade de carnes – presunto, vitela e
alguma ave (galinha, perdiz ou faisão) – lentamente cozidas, quase sem adição de água,
em uma panela bem tampada ou no “banho-maria”26, até que tivessem alcançado um
alto nível de decomposição, transformando-se em um consomê concentrado, capaz de
fornecer nutrição, conforme a crença em vigor, sem sobrecarregar o debilitado sistema
digestivo de um doente crônico (idem, ibidem). Caldo de pura carne, temperado com
ervas finas e servido com pão torrado, o restaurant era um alimento de luxo,
encontrado, até então, apenas nas mesas mais ricas.27

Foi por volta de 1766 que isso começou a mudar. Na torrente de proliferação
comercial que assolava a calmaria aristocrática parisiense, surgem butiques com um
serviço de alimentação completamente diferenciado das tabernas, estalagens e casas de
pasto. O agito das transformações urbanas em curso, acalorado por lutas políticas e
sociais, clamava por uma instituição nova, capaz de aliar o desejado requinte da cozinha
aristocrática aos ideais democráticos que faziam fervilhar os sonhos de ascensão de
certos grupos enriquecidos pela prática comercial, mas, ainda assim, desprivilegiados
socialmente. Oferecendo, a todos que pudessem pagar, nobres e delicados consomês
fortificantes, servidos em mesas individuais a qualquer hora do dia ou da noite, os
primeiros restaurantes – conhecidos, inicialmente, por Le salon d’ un restaurateur ou
une salle à manger28 – surgiam para atender as expectativas de um público atingido
pelas fadigas da vida moderna e enfeitiçado pelos encantos intangíveis da haute cuisine.

O pioneirismo de tal empreendimento é atribuído a Mathurin Roze de Chantoiseau


(PITTE, 1998; SPANG, 2003). Filho de um comerciante próspero e advindo do
pequeno povoado de Chantoiseau, o autodenominado “inventor do restaurante” mudou-
se para Paris em 1760, onde se ocupou de uma infinidade de projetos de reforma e
planos empresariais. Assim como outros empreendedores e intelectuais de sua época,

26
O bain marie francês, bem como o que se usa no Brasil, é um procedimento culinário por meio do qual
se coloca a panela que contém o alimento a ser preparado em um recipiente com água no fogo, de modo
que o aquecimento desta promova um cozimento lento e integral de tal alimento.
27
No entanto, também a população mais pobre consumia caldos. Estes, todavia, eram postos à mesa não
apenas dos doentes, mas de todos os que tinham fome. Juntamente com as sopas, eles constituíam
elemento central da alimentação cotidiana das classes pobres, dado seu potencial restaurativo e sua
propriedade de rendimento. Mergulhando legumes, um pouco de manteiga e alguns pedaços de toucinho
– a carne de porco (à exceção do pernil), como vimos, era praticamente a única opção de carne acessível –
em um caldeirão de água, esses caldos, acompanhados de pão preto, alimentavam uma família inteira,
fornecendo sustento e força para o trabalho.
28
Conotando um estabelecimento comercial, o termo restaurante aparece pela primeira vez apenas no ano
de 1835, no Dictionnaire de l’Académie Française (PITTE, 1998; SPANG, 2003).

33
freqüentava as rodas aristocráticas e administrativas da cidade, apresentando projetos
para corrigir a economia francesa que, graças às extravagâncias desmedidas da nobreza,
encontrava-se seriamente debilitada. De origem burguesa, via nos mecanismos de
comércio (a circulação de bens e o estimulo de desejos), há muito estigmatizados,
possíveis canais para o benefício social e o desenvolvimento do país.

Em 1766, na rue des Poulies, nas proximidades do Louvre, ele inaugura sua
primeira salle à manger. De extrema sensibilidade para a prática comercial,
Chantoiseau (também conhecido por Boulanger), percebendo a importância que a saúde
adquiria no âmbito das preocupações da elite parisiense – que sofria, desde 1720, com
pestes e epidemias oriundas dos descompassos do processo de urbanização –, apresenta-
se como o guardião dos segredos para o bem-estar físico e espiritual. Na fachada de seu
estabelecimento, estampa a seguinte paráfrase de um versículo bíblico: Accurite ad me
omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo (“Corram a mim vós todos cujos
estômagos padecem, e eu vos restabelecerei”)29. Proclamando essa atenção com a saúde,
ele se inseria no “imenso mercado do consumismo medicinal do século XVIII”, com a
vantagem de possibilitar a cura das fraquezas do corpo não pela ingestão de purgantes
de gosto insuportável, mas no deleite de caldos saborosos, feitos em panelas
criteriosamente limpas e servidos individualmente, ao gosto do freguês.

Essa culinária “saudável” – que dava razão e sustento ao empreendimento de


Chantoiseau e de outros tantos restaurateurs que se seguiram – fora batizada de
Nouvelle Cuisine. Possivelmente inspirada nos modos refinados, mas sem muita
pompa, de Luís XV – que teria herdado do pai, Luís XIV, o gosto pela boa mesa, “só
que com mais sofisticação” (CHAVES e FREIXA, 2008) –, essa cozinha era expressiva
de uma tentativa de cientifização da culinária e dos padrões dietéticos. Ao mesmo
tempo em que promovia uma troca gradual dos modos tradicionais de cozinhar por um
saber mais metódico, supostamente livre de crendices e misticismos, ela enfatizava o
valor de uma dieta sem exageros, baseada numa alimentação “simples”. Para Spang
(2003: 57),

(...) os restaurantes dos anos 1760 e 1770 apresentavam uma


inovação dietética em uma forma que combinava a ciência

29
No original bíblico: “Vinde a mim vós todos que estais cansados e sobrecarregados e eu vos darei
descanso”. (Mateus, 11: 28)

34
vanguardista com impulsos mais conservadores e rústicos. Os
restaurateurs anunciavam que mantinham os consumês
aquecidos em bains-marie, instrumentos normalmente
considerados peças complicadas do equipamento científico, mas
também insistiam que uma extrema “simplicidade” caracterizava
essas mesmas sopas.

Aqui percebemos a gênese de uma importante inversão de valores, cujo


desdobramento possibilitará, a longo prazo (como veremos), a formação de um dos
pilares sobre o qual se sustenta, de um modo geral, o discurso regionalista alimentar: a
simplicidade dos preparos – que, no trecho acima, conota tanto o antônimo de
“complexidade”, quanto de “luxo”. Se, até meados do século XVIII, o consumo
conspícuo se exprimia pela prodigalidade e por um conjunto indefinido de alimentos
elaborados e pomposos, característico de um modelo urbano parisiense de comer, a
partir de então se verifica uma transformação gradual desses padrões, pois uma
importância significativa passa a ser dada, como marca de distinção, a uma alimentação
moderada e simples, inspirada no romantismo imaginado da ruralidade alimentar
francesa. Assim, “quando os restaurantes serviam caldos ‘simples’, contribuíam” –
afirma Spang (ibidem: 58) – “para a construção de uma versão mítica da vida rural
saudável e genuína, que mostrava ser aceitável para a elite urbana”.

Vemos, portanto, que, desde sua fase embrionária, o restaurante se apropria,


remodela e comercializa não apenas comida, mas, sobretudo, discursos e imagens que
destravam as engrenagens culturais, materializando mudanças e gerando possibilidades.
Foi com essa perspicácia que os primeiros restaurateurs provocaram uma reavaliação
acerca do consumo alimentar fora de casa. Evidência disso foi a conquista de um seleto
público formado por comerciantes, empresários, homens de letras e funcionários
públicos venais (na maioria, gente de fora da cidade) que, até então, nutria profunda
desconfiança no que concerne à produção dos “cozinheiros públicos” de Paris. Para
tanto, um conjunto de medidas materiais e simbólicas foi adotado: além do intenso
apelo ao restabelecimento das forças e da saúde – que, levando-se em consideração o
conturbado cenário urbano parisiense do final do século XVIII, já é, por si só, um forte
atrativo –, a atenção com a estrutura do local disponibilizado para tal finalidade – que
incluía “um salão elegante, garçons bem apresentados, uma adega cuidadosa e uma
cozinha superior” (BRILLAT-SAVARIN, 1995) – constituía um diferencial relevante e
decisivo nessa conquista. Ora, na medida em que importava da corte os moldes de sua

35
ambientação e atendimento, o restaurante causava nos visitantes afortunados a
impressão de “estar em casa” ou (em se tratando de comerciantes e empresários bem-
sucedidos) a desejada sensação de “inserção” no mundo da alta aristocracia. Ao mesmo
tempo, tanto num caso quanto no outro, possibilitava uma agradável “quebra da rotina”
que atraia os consumidores, viabilizando sua progressiva inclusão ao conjunto das
opções de lazer da cidade. Além disso, deve-se levar em consideração, ainda, uma
invenção simples e aparentemente insignificante, mas de impacto decisivo na
construção de uma nova percepção acerca da prática de comer fora de casa: o cardápio
impresso.30 Celebrando o culto da individualidade e do gosto pessoal, esse instrumento
concedia ao comensal oportunidade de escolha – regalia inédita na história do comércio
varejista de comida, até então –, permitindo que ele pudesse fazer de sua preferência
tanto uma questão financeira quanto de paladar.

A despeito da boa aceitação desse novo gênero de estabelecimento – que, até o


ano de 1789, já somava quase cem, em Paris–, a alta cozinha aristocrática, comandada
por requisitados chefs, ainda reinava soberana em aprimoramento técnico e valor social.
Todavia, a crise político-econômica, há tempos abafada pela classe dominante, tornou-
se insuportável no reinado de Luís XVI (1774-1793): enquanto a nobreza vivia com
grande ostentação de riqueza, no campo e na cidade o povo passava fome.31 De acordo
com Chaves e Freixa (2008: 108),

Essa situação revoltante de extravagância da nobreza em


oposição à miséria da plebe, insuflada pela burguesia nascente,
levou à Revolução Francesa. A Queda da Bastilha, no dia 14 de
julho de 1789, marca o fim da monarquia na França. Por mais de
dez anos o processo revolucionário perdurou e, no decorrer desse
período, os cozinheiros da corte tiveram que sair dos palácios em
busca de novas formas de sobrevivência para sua arte.

Considerando a simbologia que a haute cuisine assumia no contexto da monarquia


francesa, poderíamos supor que os chefs – ícones dessa culinária luxuosa e aristocrática

30
Tal invenção teve nos menus apresentados nos banquetes de Luís XV, provavelmente, sua fonte de
inspiração. Estes, entretanto, eram apenas registros dos “pratos” que seriam servidos no decorrer da
refeição, impossibilitando o comensal de qualquer poder de escolha.
31
Convém lembrar que esta situação foi agravada, de 1715 até 1789, por uma grande crise agrícola.
Como a população crescia em ritmo acelerado, a quantidade de alimentos era insuficiente e as geadas
ainda abatiam a produção alimentícia, colocando as classes mais pobres em uma ameaça de fome
constante.

36
– também arcaram com as conseqüências da Revolução; afinal, como nos aponta Spang
(2003: 151), “a poderosa República exortou seus cidadãos a rejeitar o ‘apetite refinado’
caro às almas sensíveis ao Antigo Regime como uma marca do dandismo degenerado e
do egoísmo impatriótico”. Entretanto, o que se observa é algo completamente diferente
e (apenas em parte) inesperado. Desempregados em virtude da fuga ou execução dos
aristocratas para quem trabalhavam, alguns chefs encontraram nos salões dos
restaurateurs oportunidade de trabalho. Outros, no entanto, conseguiram estabelecer-se
por conta própria, abrindo refeitórios elegantes nas ruas centrais de Paris. Aproveitando-
se da decadência das guildas de comércio, provocada pela Revolução, eles sintetizaram
no restaurante um conjunto diferenciado de serviços de alimentação que incluía uma
carta selecionada de vinhos e os mais diversos preparos: não apenas os famosos caldos
restaurativos, mas uma grande variedade de pratos oriundos das “mesas dos reis” –
como o exótico peru com trufas, símbolo maior do poder e do luxo aristocrático. Ao
contrário do que se poderia prever – dado o contexto cultural que abrigava tais
mudanças –, o sucesso do empreendimento foi estrondoso:

Clientes que nunca haviam saboreado trufas nem tinto de


Chambertin e que, segundo o que seria de esperar, deveriam
colocar seus atos em acordo com suas idéias políticas e sociais,
têm pressa em freqüentar os restaurateurs para se deleitarem com
tais iguarias. De uma centena antes da Revolução, o número de
restaurantes passou para 500 ou 600 no período do Império e
3.000 durante a restauração. (PITTE, 1998: 757)

Ora, se levamos em consideração o significado por séculos atribuído à haute


cuisine no imaginário social, percebemos que, para a burguesia insurreta, apropriar-se
desse espaço tão marcadamente aristocrático implicava a realização de um “desejo de
poder” há muito tempo silenciado – além de uma forma de “vingança”, é claro: adentrar
o mundo tão severamente restritivo da nobreza, roubando aquilo que mais lhe apetecia,
sua cozinha fascinante e ostensiva, tinha, certamente, um sabor especial para os que
estiveram por tanto tempo à margem da “alta sociedade”. A “comida dos reis” servida
nos restaurantes atraia, portanto, uma clientela numerosa e assídua de deputados
revolucionários das províncias (especialmente os que não tinham casa em Paris), todos
dispostos a pagar caro para experimentar o “poder” que o consumo desse tipo de
alimento possivelmente lhes concederia. A manutenção dessa clientela teve, ainda, um

37
outro fator significativo: de modo a prestigiar o paladar da nova classe dominante e
tentar amenizar um inevitável estranhamento dos sabores exóticos da haute cuisine,
muitos restaurantes passaram a incorporar “pratos regionais” aos seus cardápios – ou a
estilizar receitas clássicas dessa cozinha por meio do uso de ingredientes até então
conhecidos somente nas províncias. Um novo conceito de alimentação era, aqui,
inaugurado, abrindo caminho para a formação de um tipo inédito de percepção
culinária, representativo de uma vinculação entre comida e território.

Quando, no século XIX, o restaurante se consagra como a instituição mais


importante da gastronomia, tornando-se uma esfera comercial de hospitalidade e lazer,
seu incipiente discurso acerca das “cozinhas regionais” ganha novo fôlego,
acompanhando as grandes transformações econômicas, sociais e tecnológicas que
marcaram esse período. Invenções como o trem e o automóvel, a conquista de direitos
trabalhistas (como as férias anuais) e o surgimento dos guias especializados32 foram
alguns fatores que incentivaram a prática da viagem de lazer, impulsionando o
desenvolvimento do turismo. Para atender a esse público crescente, hotéis e pousadas se
multiplicavam pelas estradas numa grande diversidade de opções, dos mais luxuosos
aos mais simples. Do mesmo modo proliferavam os restaurantes, muitos deles locados
no interior de grandes hotéis, disponibilizando aos viajantes um cardápio farto e
refinado de iguarias “da terra”. Vendida como símbolo cultural, a comida do lugar ia
ganhando a preferência dos comensais de fora da cidade, que eram convidados a
enxergar a alimentação como uma via de acesso para adentrar a “cultura da região”.

O incentivo para o desenvolvimento dessa concepção de particularidade local,


imposta pelo ambiente, vem também dos anseios revolucionários de construção
nacional. Na medida em que valorizava os sabores e as técnicas “tradicionais” e
“cotidianas” de cozinha, a culinária – assim como os museus e jardins patrióticos em
criação – tornava-se uma área de continuidade histórica, de memória e consciência de
pertença comum, contribuindo, deste modo, para a estruturação de uma “comunidade
imaginária” (ANDERSON, 1989) necessária à sustentação da idéia de nação. Refletindo
os ideais democráticos que inspiraram a Revolução, o território (e não mais a classe)
indicava a inspiração mais adequada para a produção culinária, já que sua significação

32
Como veremos mais à frente, os guias de viagem são de inegável importância para compreensão do
surgimento das cozinhas regionais, uma vez que, atuando, gradualmente, na promoção de uma culinária
atrelada ao território, eles evidenciam transformações materiais e simbólicas que conduziram à construção
de uma percepção positiva acerca da “comida local”.

38
diluía, ao menos metaforicamente, as desigualdades sociais, colocando todos numa
mesma escala valorativa. Em meio a esse processo, as “cozinhas regionais” emergem,
portanto, como sinais distintivos das localidades, transformando-se em um elemento
notável da nação em sua diversidade e representações (CSERGO, 1998) – fato cujas
implicações sociológicas serão tratadas, de forma mais aprofundada, no terceiro capítulo
deste trabalho.

A invenção do restaurante, como espaço social, configura um marco na história


dos costumes, de um modo geral, e da gastronomia, mais especificamente. Instituindo
novos sentidos às práticas alimentares fora de casa – e reconfigurando, “por tabela”, os
hábitos domésticos de alimentação –, esse tipo peculiar de estabelecimento rapidamente
conquista uma posição de destaque no agitado universo urbano parisiense,
transformando-se em uma verdadeira instituição cultural e inserindo-se entre os mais
familiares e distintivos marcos da cidade (SPANG, 2003). Importante lembrar, porém,
que ainda no século XIX, os restaurantes deixam de ser um fenômeno exclusivamente
parisiense, reproduzindo-se de forma vertiginosa em vários países que, sob a hegemonia
cultural francesa, rapidamente incorporam essa nova prática ao seu cotidiano urbano –
obviamente, redesenhada nas particularidades de cada história. Pensando o corpo
multisegmentado desse histórico de mudanças e transposições simbólicas e cotidianas,
vejamos como se deu a incorporação do restaurante ao cotidiano alimentar brasileiro.

1.2. Da dinâmica alimentar no Brasil

Um estudo processual das práticas alimentares brasileiras encontra na relativa


escassez de material bibliográfico uma dificuldade inicial. Objeto, poder-se-ia dizer,
controverso e paradoxal para as ciências da cultura, apenas nos meados do século XX a
alimentação passou a incorporar, no Brasil, o conjunto das preocupações históricas,
sociais e antropológicas, tornando-se alvo de pesquisadores como aspecto revelador e
explicativo das relações humanas. Essa incipiência é refletida, consequentemente, no
espaço da temática no mercado editorial do país. A despeito de um visível aumento, nos
últimos anos, do volume de obras voltadas para o registro e análise dessa dimensão

39
cultural do alimentar33, esse tipo de publicação é ainda bastante reduzido e de difícil
acesso – em oposição ao amplo mercado de publicações culinárias que já no século
passado ganha espaço nas prateleiras por todo o país. No que tange ao tema “comer
fora de casa”, as referências são ainda mais raras e fragmentadas, exigindo o seu achado
um esforço de garimpo nos relatos de viajantes, nas entrelinhas da história dos costumes
e no aparente desinteresse da literatura especializada – dada a limitação de páginas
(quando não de parágrafos) comumente destinada a essa modalidade de alimentação.
Guardadas, entretanto, essas dificuldades iniciais de fonte teórica, algumas idéias
podem ser traçadas acerca do desenvolvimento desse tipo particular de consumo.

Enquanto a aristocracia francesa se fechava no isolamento das cortes, cultuando a


culinária elaborada de seus chefes de cozinha e evitando, assim, contato com o mundo
“não-civilizado” da gastronomia de rua, como estratégia para manutenção do prestígio
de sua classe, no Brasil, a relação da elite com o espaço público e sua oferta alimentar
mostrava-se mais flexível e tolerante – salvo as diferenciações de gênero. De acordo
com Freyre (2008: 88),

Enquanto a mulher da classe senhoril passava a maior parte de


seu tempo no interior da casa, o homem – o homem senhoril da
cidade – gastava grande parte do seu fora. (...) Os homens
brasileiros, à maneira dos gregos, gostavam das camaradagens
fáceis e ligeiras da rua e da praça pública; e na rua e na praça
pública discutiam política, Donizetti, a lei Aberdeen; e
realizavam negócios ou transações de contos de réis. (...) A noção
de lar não era tão forte entre os homens brasileiros, moradores de
sobrados, ao tempo em que a família patriarcal estava em seu
pleno vigor, que os fizesse caseiros em seus gostos e em seus
hábitos.

As particularidades estruturais da sociedade brasileira em épocas pré-nacionais


ajudam a entender essa facilidade de adaptação ao ambiente da rua, aos seus perigos e
prazeres. De “índole semi-capitalista” (HOLANDA, 1995), o português colonizador,
devotado à exploração latifundiária e monocultura escravista, fundou no Novo Mundo
uma “aristocracia rústica” (FREYRE, 1971), cujos dispositivos de diferenciação e
imposição social incluíam o uso da força e a acumulação de capital (dinheiro, terras,

33
Publicadas, essencialmente, pela editora do SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial),
instituição pioneira no Brasil na formação de cozinheiros e demais profissionais de gastronomia.

40
escravos), associados a um estrutura patriarcal de família e de produção34. Esse sistema
de dominação a um só tempo aristocrático e “democrático” produziu formas de
interação menos rigorosas entre a classe senhoril dominante e os grupos menos
favorecidos da sociedade, incluindo os escravos, que conviviam numa intimidade
inconcebida no Antigo Regime francês. Para alimentar-se, contavam as crianças de
família rica, desde muito pequenas, com a ajuda de escravas negras, que não raro lhes
davam de mamar no próprio peito. Nas cozinhas das casas-grandes de fazenda e dos
sobrados da cidade, também a presença da mulher escrava era uma constante comum e
indispensável, dividindo o espaço e o tempero com a sinhá dona da casa, que não
apenas superintendia o preparo das refeições, como também se lançava no fabrico de
pratos variados – principalmente de doces e bolos, cujas receitas, comumente de origem
portuguesa, eram adaptadas aos ingredientes disponíveis em solo brasileiro (CHAVES e
FREIXA, 2008). Essa proximidade – favorecida e até facilitada, segundo Freyre (1971),
pela estrutura habitacional desenvolvida no Brasil durante o período colonial –, decerto
contribuiu para que os níveis de resistência ao espaço público e à alimentação de rua,
em especial, fossem mais abrandados na elite brasileira, uma vez que esse tipo de
consumo estava, nas formas iniciais de sua prática, profundamente marcado pela figura
familiar da escrava negra.

Com as primeiras cidades, surge um tipo de comércio ambulante de alimentos,


representativo de uma culinária doméstica, feminina e fundamentalmente doce. Das
cozinhas dos sobrados mais simples, preparados com capricho pelas mãos de mulheres
pobres, principalmente por viúvas ou mesmo por escravas livres, saíam guloseimas
coloridas e perfumadas que ganhavam as ruas em cestos ou tabuleiros equilibrados com
maestria por negras quituteiras (escravas de ganho, como eram conhecidas) que
trabalhavam temporariamente, conforme a necessidade da cozinheira, nos serviços de
venda – e também no auxílio das atividades de cozinha, quando preciso. Conforme
sugerem os anúncios de jornais cariocas do século XIX, estudados por Bruit e El-Kareh
34
Nos grandes engenhos ou nas grandes fazendas de criar brasileiras, as condições medievais de
comunicação e infra-estrutura produziram, segundo Freyre (2008: 77), “povoações com alguma coisa de
feudos”: comunidades inteiras que se mantinham por conta própria, social e economicamente – abrindo
suas cancelas para o mundo exterior poucas vezes, por necessidades de caráter econômico –, sob os
mandos patriarcais do senhor dono das terras. Ainda de acordo com o autor (ibidem), um “observador
estrangeiro que viajou pelo interior do Brasil imperial, nos dias de esplendor do feudalismo brasileiro,
escreveu: ‘O proprietário de um engenho de açúcar ou de uma fazenda de gado é, praticamente, senhor
absoluto’. Acrescentando: ‘a comunidade que vive à sombra de homem tão poderoso forma sua corte
feudal. Pela conspiração de alguns desses homens, que são capazes de levar inúmeros vassalos e sequazes
para a luta, a tranquilidade das províncias seria perturbada pelas revoltas, que davam ao governo muito
trabalho’”.

41
(2004), cozinhar para fora era uma prática bastante comum entre as donas de casa e,
tudo indica, relativamente próspera35, não sendo considerada, entretanto, uma profissão
formal, mas apenas uma extensão dos afazeres domésticos como estratégia para o
aumento da renda familiar. Embora já houvesse regulamentação específica para esse
modo de comercialização36, boa parte das quituteiras atuavam ilegalmente pelas
freguesias urbanas, servindo na informalidade uma clientela híbrida formada por
trabalhadores locais de variados níveis sociais, desde altos funcionários públicos a
escravos forros (idem, ibidem).

De raízes na tradição colonial açucareira e no paladar acentuado das frutas


tropicais, essa cozinha de rua possuía tamanho alcance social por valer-se de um
produto que há tempos havia conquistado ricos e pobres no Brasil: o doce.37 Segundo
Silva (2008: 37), durante uma viagem ao Brasil no início da década de 1820, Maria
Graham constatou que, “como gulodice, desde os nobres até os escravos, doces de todas
as espécies, desde as mais delicadas conservas e confeitos até as mais grosseiras
preparações de melaço, são devorados em grosso”. Herança possivelmente portuguesa38,
o apreço pelo sabor doce – ou, como diria Freyre (2007), pelo “excessivamente doce”,
considerando, de um modo generalizado, o paladar europeu – motivou o consumo e o
aprimoramento dessa confeitaria de tabuleiro, ambulante, originada na primeira capital
do Brasil, Salvador, e propagada depois por outros pontos urbanos em florescimento,

35
Essa prosperidade é evidenciada, ainda segundo Bruit e El-Kareh (2004), no grande número de
anúncios requerendo o aluguel de negras “honestas” e “capacitadas” para a venda de doces na rua, bem
como no florescimento de uma indústria de reaproveitamento de embalagens usadas, também verificado
por meio de um considerável volume de anúncios específicos, tais como o da doceira do sobrado da rua
do Cano, nº 41, que anunciava que “na mesma casa compram-se latas servidas de marmelada e goiabada”.
(idem, ibidem: 82)
36
De acordo com Silva (2004), para colocar vendedores ambulantes de alimentos nas ruas, as senhoras –
principais (embora não únicas) praticantes desse tipo de comércio – deveriam solicitar à Câmara
Municipal um pedido formal, onde constava sua própria identificação e endereço, lado a lado com os
dados básicos (como origem, sexo, idade) dos escravos e escravas, forros ou não, colocados ao ganho.
Estes, sob pena de prisão, deveriam portar a chapa de identificação com o número do alvará concedido
durante o trabalho.
37
A esse respeito, convém lembrar a leitura da obra Açúcar, uma sociologia do doce (2007), de Freyre.
Nela o autor passeia pelo contexto colonial brasileiro, mostrando com uma riqueza de detalhes curiosos a
rendição gustativa da população local aos encantos do açúcar e de suas possibilidades culinárias. Através
do registro e do estudo de receitas de bolos e outros doces, que se mantiveram em segredo por muito
tempo, repassadas de mãe para filha através dos séculos pela tradição oral ou em cadernos de receita
particulares, Freyre revela grande sensibilidade sociológica no entendimento do que ele chama de um
“paladar brasileiro histórico”, cultural e ecologicamente condicionado, no qual o gosto pelo doce seria
marcante e distintivo.
38
De acordo com Cascudo (2004: 591), “nem os negros e nem os amerabas faziam doces”. Já os
portugueses, explica o autor, possuíam uma tradição doceira que “já estaria muitas vezes centenária
quando o açúcar apareceu” (idem, ibidem: 299), cuja base era o mel de abelha.

42
inclusive (e principalmente), para a cidade do Rio de Janeiro, transformada, no início do
século XIX, no coração do “Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves”.

Reduzida a 46 ruas estreitas de terra batida, com casas de aparência modesta e


população majoritária de mestiços e escravos, a pacata cidade do Rio de Janeiro, cuja
alimentação fora de casa estava ainda limitada ao comércio peregrino das negras
quituteiras, sofreria mudanças rápidas e intensas com a chegada da corte portuguesa, em
março de 1808. O aumento populacional, agravado pela incorporação dos muitos
estrangeiros que se transferiam para o Brasil, atraídos pelas expectativas de
enriquecimento no Novo Mundo, motivou o surgimento das chamadas “casas de pasto”.
Para atender a esse público crescente de forasteiros recém-chegados e trabalhadores
urbanos, passaram as senhoras que fabricavam quitutes para a venda de tabuleiro a
alugar os quartos de suas próprias casas e a preparar refeições completas para seus
hóspedes e demais interessados – servidas diariamente ao meio-dia (nesta época, ainda
chamada “hora do jantar”) –, disponibilizando elas, ainda, um serviço rudimentar de
entrega, sob encomenda, para os pontos comerciais da cidade. Explica Bruit e El-Kareh
(2004: 83) que,

apesar de muito corrente, não se criou, como na França, um


vocábulo específico para designar esse profissional, o traiteur.
Aqui, essa atividade ficou conhecida pelas expressões “tomar
comida de uma casa particular”, “dar jantar para fora” e,
especialmente, “comer de pensão”; e o fornecedor, “que dava de
pensão”, como “o dono ou a dona da pensão”.

Os primeiros estabelecimentos dessa natureza surgiram, possivelmente, no final do


século XVIII. Em 1794, conforme afirma Luís Edmundo, citado por Silva (2008: 42),
existiam dezoito comércios desse tipo no Rio de Janeiro, divididos em “lojas de comer
imundas, freqüentadas por oficiais mecânicos, aprendizes e mulatos” e algumas poucas
casas “limpas e asseadas”, para os bem-nascidos. Nas primeiras décadas do século XIX,
mestres de culinária estrangeiros – franceses e italianos, principalmente – deram nova
roupagem a esse tipo de estabelecimento, imprimindo-lhe um caráter mais formal e
sofisticado para atender às novas demandas gastronômicas, oriundas dos modismos da
corte portuguesa recém instalada em solo brasileiro. Segundo Abdala (2005), Debret,
lembrando o ano de 1817, teria se referido a um monopólio italiano, estabelecido a

43
partir do sucesso de um cozinheiro dessa nacionalidade que executava “refeições
magníficas”, satisfazendo aos hábitos dos europeus que afluíam à capital. Acerca dessas
“casas de comestíveis”, Abdala (2005: 102) apresenta algumas características:

O serviço das casas de pasto podia ser feito em mesas coletivas,


cobrando-se por pessoa, ou em quarto separado, para quem
preferisse, seguindo o costume europeu. O cardápio era
constituído de massas, juntamente com carnes cozidas ou
guisadas. Jantares para fora também eram oferecidos por essas
casas, ligadas ao comércio de bebidas, café, bilhar ou a
hospedarias. Uma análise comparativa mostra que serviam o
jantar, principal refeição do dia, entre uma e duas horas da tarde.
Algumas serviam almoços, constituídos por caldos de galinha,
café e frios.

Com a assinatura da carta régia, que permitia a abertura dos portos brasileiros às
nações amigas, e o estabelecimento da liberdade de indústria e comércio, uma grande
variedade de gêneros alimentícios importados passou a rechear, além das mesas da corte
e das famílias ricas, o cardápio das casas de pasto mais sofisticadas – não raro chamadas
de restaurantes por alguns estudiosos da alimentação (ABDALA, 2005; CASCUDO;
2004; SILVA; 2008). Um mundo de sabores desconhecidos, símbolos da superioridade
aristocrática européia, estava agora acessível a quem pudesse pagar por ele. Presuntos,
salames, vinagres, nozes, avelãs, amêndoas, frutas secas: a lista era imensa e o desejo de
inserção nesse universo, maior ainda. Como nos aponta Chaves e Freixa (2008: 183), “a
mesa da elite patriarcal [brasileira] era desprovida de requinte” – ou, mais exatamente,
poderíamos acrescentar, de requinte aos moldes franceses, cuja culinária “de grife”
pressupunha, entre outras coisas, a criatividade inventiva de um chef socialmente
legitimado. Baseavam-se as refeições diárias da classe senhoril na fartura de produtos
da terra, como (feijão preto, mandioca e milho) plantados, colhidos e preparados por
mãos escravas. Os ditames da coroa portuguesa acerca dos limites do “bom gosto”
culinário – aprendidos nas cartilhas de Londres e Paris –, estimulavam a transformação
das expectativas gastronômicas, tornando o ato alimentar uma expressão de gosto e
especialização.

44
A profusão de mudanças proporcionadas pela presença da família real e suas
medidas para “embelezar” e “civilizar” a capital do império39 (ABDALA, 2005: 105),
financiadas pela riqueza advinda da produção cafeeira e referenciadas no modelo
europeu, favoreceu diretamente o aumento e a diversificação da oferta de serviços
culinários. Multiplicou-se pela cidade do Rio de Janeiro – e, depois, por todo o Brasil –
um grande número de estabelecimentos alimentares, expressão de “modos de ser” e das
novas necessidades urbanas e sociais. As vendas, misto de bar e armazém, atraiam
seguimentos diversos da população pobre, que consumia mercadorias básicas e se
divertia com batuques e folguedos. Todavia, gozavam estes freqüentadores, também, da
fama de briguentos: “Além de comprar, estes grupos regados pela ‘aguardente da terra’,
inevitavelmente servida, envolviam-se com brigas, ferimentos e mortes em seu interior”
(FIGUEIREDO e MAGALDI, 1985: 60). Nos botequins, serviam-se petiscos variados,
consumidos como “tira-gosto” nas rodas de bilhar ou gamão. Já os cafés do início do
século XIX foram descritos por estrangeiros, segundo Abdala (2005: 103), “como
lugares de preços moderados, cujas porções eram de qualidade inferior, consistindo de
café com açúcar não refinado, leite aguado, pão com manteiga inglesa, um tanto
rançosa, e limonadas”. As poucas confeitarias da cidade (na maioria, italianas),
freqüentadas pela mais fina elite carioca, inclusive pelas mulheres, serviam “bandejas
de doces para o chá e refrescos nevados, além de estrelinhas, lasanhas, vermicelli,
macarrão, aletria e empadas de peixe para a época da quaresma” (SILVA, 2008: 43).
Aceitavam ainda encomendas de jantares e ceias, serviço muitas vezes utilizado pela
própria corte portuguesa, em seus bailes e banquetes (CASCUDO, 2004).

Essa diversidade de espaços de lazer exprimia não apenas as transformações de


ordem urbana, política e econômica em curso, mas também alterações profundas no
cotidiano e na subjetividade das pessoas, afetadas em seus modos de pensar e agir pela
forte influência francesa, representativa dos ideais de modernização e progresso
decorrentes da revolução científico-tecnológica européia. Na busca pela distinção
social, a elite brasileira se afrancesava nos valores e padrões comportamentais. Para
Cascudo (2004: 678), “a grande época social de 1850 a 1870, quando o Rio de Janeiro
surpreendia os visitantes, era notadamente uma projeção francesa em seus figurinos,

39
Muitas iniciativas foram tomadas pelo príncipe-regente D. João VI, nesse sentido. Entre elas,
poderíamos citar, por exemplo, o apoio à vinda da chamada Missão Cultural Francesa, em 1816; a
fundação da Academia Nacional de Belas Artes, da Biblioteca Nacional, do Teatro São José; a criação do
Banco do Brasil e da Tipografia Régia; e a construção do Jardim Botânico, com suas palmeiras imperiais
trazidas da Ásia.

45
músicas, danças, serviços de cardápio”. Criou-se neste período, conforme nos conta
Chaves e Freixa (2008: 200), “o hábito de usar a palavra ‘menu’ para os ‘cardápios’ que
eram servidos à mesa dos cerimoniais, assim como escrever em francês o nome dos
pratos, embora boa parte deles fosse de origem portuguesa e brasileira”.40 Assim,
cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, inclusive, ganhavam novos ares
urbanos, num esbanjar de luxo e cosmopolitismo inspirados nas últimas novidades da
belle époque parisiense.

Nesses charmosos cenários urbanos, remodelados pelos padrões estéticos e sociais


da mais famosa metrópole européia, destacava-se o volume de opções de lazer público
(cinemas, teatros, exposições de arte, praças, cafés), para homens e mulheres, como
expressão das novas formas de segregacionismo social. No final do século XIX, quando
os meios de transporte se tornam mais rápidos e seguros, o turismo de luxo passa a
incluir a lista das atividades de lazer das classes altas brasileiras, impulsionando o
aparecimento de suntuosos hotéis nos mais importantes centros econômicos do país. É
como parte integrante das ofertas de lazer desses hotéis que surgem, no Brasil, os
primeiros estabelecimentos com as mesmas características dos restaurants franceses do
final do século XVIII – a saber, locais com mesas individuais onde se ofereciam vários
pratos, escolhidos à la carte pelos fregueses, com preço fixo, pago no final da refeição,
e feitos por cozinheiros profissionais em um espaço exclusivo para a produção
comercial. Além do formato, eram franceses também seus chefes de cozinha41, cuja
culinária internacional atraia não apenas turistas de outras regiões ou países, mas
também a elite local da própria cidade onde se encontrava o hotel, a qual expressava
todo seu requinte e “bom gosto” degustando iguarias exóticas como patê de foie gras
(fígado de pato ou ganso superalimentado), homard au vin du Rhein (lagosta ao vinho
da região do Rhein) e steak tartar (carne e gema cruas, servidas com temperos).

40
Analisando os usos gastronômicos dos espaços doméstico e comercial nos anúncios de jornais da
segunda metade do século XIX, Bruit e El-Kareh (2004) encontraram alguns exemplos curiosos dessa
utilização exagerada do francês, usado inclusive para nomear pratos nativos. Os autores comentam acerca
de um dos anúncio: “o cardápio proposto, em francês, pelo Hôtel de la Providence, ‘Rue de Cima 27 et 29
à S. Domingos’, portanto, no bairro niteroiense preferido das classes mais ricas do Rio de Janeiro pelo seu
clima ameno e seus banhos de mar, dá uma idéia de sua clientela e do que se podia saborear, num dia de
domingo do verão de 1851, depois de um passeio: ‘huîtres fraîches, potage aux huîtres frites, branlade de
morue, et tout ce que l’on peut désirer dans um hotel’, como, por exemplo, o ‘gras-double à la mode de
Caen”, que, apesar da imponência do nome, não passava de uma buchada de boi!” (2004: 84).
41
Como, por exemplo, o famoso chef Paul Bocuse, trazido para assumir o Le Saint-Honoré, do hotel
carioca Le Méridien, e o chef Gaston Lenôtre, que comandou o Pré-Catalan, do Rio Palace Hotel. Em São
Paulo, o La Cuisine du Soleil, do Hotel Macksound Plaza, ficou sob a responsabilidade do prestigiado
chef Roger Vergé.

46
Aos poucos, já no século XX, esse modelo de restaurante deixa o ambiente
hoteleiro, instalando-se de forma independente e se diversificando em preço e tempero.
A partir de 1950, a economia brasileira ganha novos rumos – incorporando padrões de
produção e consumo de países como os Estados Unidos42 –; intensificam-se os fluxos
urbanos e o romantismo característico da belle époque dá lugar à praticidade frenética
das novas relações sociais e de trabalho. Nessa nova configuração, o tempo destinado à
prática alimentar é diminuído pelo acelerado das atividades profissionais e pela
incorporação gradual da mulher no mercado de trabalho. Surgem, então, para dar mais
agilidade aos processos de cozinha e ao ato de comer, propriamente, inúmeros produtos
e serviços. Nos espaçosos supermercados que agora suplantavam as pequenas vendas e
mercearias, uma variedade de comida pronta e semipronta, como congelados e
enlatados, passaram a lotar as prateleiras, embalados com criatividade para chamar a
atenção dos clientes. A alimentação fora de casa ganhava os restaurantes de comida a
quilo e os fast-foods, que imprimiram novo ritmo ao consumo de lanches e refeições,
dominando a cena gastronômica nas grandes cidades, segundo parâmetros diferenciados
de novas conjunturas globais de consumo.

Uma especialização, cada vez maior, de restaurantes e lanchonetes se efetivou


nesse período (segunda metade do século XX). De acordo com Abdala (2005), por todo
o país, surgiam casas elegantes de comida francesa, italiana, árabe, portuguesa,
espanhola, entre outras, que atendiam a um público seleto formado pelos “novos
poderosos”, enriquecidos pelo comércio, pela indústria ou mesmo pela conquista de
cargos públicos – como políticos, burocratas, executivos e empresários. Em maior
proporção, e ao mesmo tempo, multiplicavam-se os espaços que ofereciam uma comida
mais barata, como pizzarias, casas de churrasco, cadeias de comida árabe e cantinas
italianas. Entretanto, “eram raros”, afirma a autora, “os restaurantes de comida
brasileira” (idem, ibidem: 107).

A construção de símbolos culinários com a capacidade de unificar toda a


população em torno de uma ementa parece ter se dado de forma particularmente

42
Que, após o fim da Segunda Guerra (1939-1945), projetam-se como uma das mais poderosas potências
econômicas mundiais, divulgando o american way of life através das produções cinematográficas de
Hollywood. De acordo com Chaves e Freixa (2008: 221), “Na década de 1950, no Brasil sonhava-se com
a modernidade americana e seu conforto. O maior desejo de consumo das brasileiras era ter fogão a gás e
elétricos, uma geladeira e eletrodomésticos como batedeiras, liquidificadores e torradeiras na cozinha,
além de aspirador de pó, máquina de lavar roupa e enceradeira” – instrumentos que representavam a
diminuição do tempo dedicado aos trabalhos domésticos: uma necessidade real advinda da emancipação
feminina em curso e de sua inserção no mercado de trabalho.

47
dificultosa no Brasil, considerado o fato de que, por aqui, os grupos dominantes “não
quiseram se confundir com a população nativa, preferindo como identidade a origem
européia” (DÓRIA, 2009: 17) – ou, mais recentemente, a americana. Somente no início
do século XX, por meio do movimento modernista de 1922, fomentou-se uma crítica
expressiva à costumeira absorção osmótica de valores e costumes estrangeiros pela elite
brasileira, sugerindo-se uma busca por raízes nacionais, isto é, pelo que haveria de mais
autenticamente brasileiro.43 Em 1928, Oswald de Andrade, um dos expoentes da
Semana de Arte Moderna, lança o Manisfesto Antropofágico, que se tornou símbolo
dessa postura crítica, propondo uma modernidade brasileira que soubesse ingerir e
deglutir criativamente o que vem de fora. Afirma Dória (ibidem: 22) que

o tema da antropofagia, da “deglutição cultural”, esteve presente


em toda a produção intelectual a partir de então. Tratava-se, no
dizer do poeta Jorge de Lima, de empreender um grande esforço
de “achamento”, isto é, de abandonarmos a maneira bocó de nos
vermos, como se fôssemos europeus ou estrangeiros em nossa
própria terra, e “acharmos a nossa expressão”. (...) Na medida em
que o achamento da nossa expressão se espraiou como diretriz de
“procura”, chegou-se também ao terreno da culinária. Era um
terreno inédito.

Gilberto Freyre foi, nesse sentido, desbravador. Antes dele, as pesquisas sobre
cultura brasileira, como na obra de Silvio Romero, não traziam descrições acerca de
uma “culinária nacional ou regional”. Em 1926, no manifesto produzido pelo I
Congresso Brasileiro de Regionalismo, o autor esboçava um registro do que ele
acreditava ter o Brasil de mais expressivo em matéria de culinária44, propondo a

43
Convém lembrar, entretanto, que ainda no século XIX uma tendência de valorização do que seria mais
“autenticamente” brasileiro aparece nos escritos da escola indianista da nossa literatura, atingindo seu
apogeu nos romances de José de Alencar, nos quais, segundo Oliven (2006: 40), “se valorizavam nossas
raízes nacionais: o índio, a vida rural, etc.”.
44
Apontou o autor: “Três regiões brasileiras destacam-se hoje no Brasil: a baiana, a nordestina e a
mineira. A baiana é decerto a mais poderosamente imperial das três. Mas talvez não seja a mais
importante do ponto de vista sociologicamente brasileiro. Outras tradições culinárias menos importantes,
poderiam ser acrescentadas, com suas cores próprias, ao mapa que se organizasse das variações de mesa,
sobremesa e tabuleiro em nosso país: a região do extremo Norte, com predominância de influência
indígena e dos complexos culinários da tartaruga (...) e da castanha, que se salienta não só na confeitaria
como nas próprias sopas regionais – tudo refrescado com açaí célebre (...); a região fluminense e norte-
paulista, irmã da nordestina em muita coisa pois se apresenta condicionada por idênticas tradições
agrário-patriarcais e mais de uma subregião fluminense, pelo menos uso farto do açúcar; a região gaúcha,
em que a mesa é um tanto rústica, embora mais farta que as outras em boa carne (...). O mais poderia ser
descrito, do ponto de vista culinário, como sertão: áreas caracterizadas por uma cozinha ainda agreste (...)
e nas florestas do centro do país pela utilização da caça e do peixe de rio – tudo ascética e rusticamente

48
valorização desses sabores regionais, populares e tradicionais, que sofriam risco de
abandono e desaparecimento, em função da larga influência do industrialismo
capitalista norte-americano, como um caminho para a construção nacional. “Uma
cozinha em crise”, afirmava o autor no Manifesto Regionalista, “significa uma
civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se”.

As repercussões dessa preocupação de Freyre com a compreensão de uma cozinha


representativa do território brasileiro, em suas variações regionais, social e
ecologicamente definidas, decerto foram amplas em forma e extensão. A partir das
iniciativas pioneiras do autor, outros se lançaram nesse desafio (entre folcloristas,
historiadores e sociólogos), buscando não apenas conhecer os reais modelos alimentares
brasileiros, mas também entender os caminhos imaginários e simbólicos que
transformam um alimento cotidiano (ou não) em símbolo de unidade nacional ou
regional. Cruzando as fronteiras do mundo acadêmico, esse conhecimento gerado acerca
das culturas alimentares é incorporado, de muitos modos, pelo senso comum, que o
reinterpreta e o transforma, dando-lhe novos contornos e usos. Nos restaurantes que
surgem na virada do século XX para XXI, totalmente dedicados ao que se convencionou
chamar de “culinária brasileira ou regional”, a comida do local é estereotipada e
transformada em mercadoria – perdendo sua autenticidade, para alguns –, como parte
de um processo maior que insere o turismo e a alimentação no rol das possibilidades de
desenvolvimento econômico local e nacional.

As relações históricas e cognitivas discutidas aqui encenam um quadro de


referências no mínimo curioso: de um lado, ao longo da organização social da França
revolucionária e dos movimentos sociais que transformaram o cenário brasileiro do
Oitocentos, temos uma reposição do valor da alimentação como prática cotidiana
partilhada; do outro, ainda pensando esses períodos, mas compreendendo também as
mudanças recentes, é possível imaginar que lidamos com um contexto caracterizado,
especialmente, pela institucionalização comercial do comer fora. Em resumo, os dois
aspectos apontam algumas das raízes do peso simbólico da idéia de regional. Um peso
que, dados os limites do campo aqui abordado, é preciso investigar mais de perto.

preparado”. (Trecho retirado do Manifesto regionalista, disponível em:


http://www.arq.ufsc.br/arq5625/modulo2modernidade/manifestos/manifestoregionalista.htm. Acesso: 14
de abril de 2010)

49
CAPÍTULO II

O CEARÁ E A EMERGÊNCIA DE UMA COZINHA REGIONAL

O alimento é um fixador psicológico no plano emocional.


Comer certos pratos é ligar-se ao local do produto.
Câmara Cascudo (2004)

Sobre as cozinhas regionais pesa a certeza costumeira de sua longa jornada


histórica. No Brasil, por exemplo, elas remontariam, no conjunto de seus sabores e
práticas, ao período colonial, onde teriam sido originadas na fusão quase mitológica de
três “culturas alimentares”: portuguesa, africana e ameríndia (CASCUDO, 2004). Tal
idéia, entretanto, parece ser antes fruto de um processo de construção imaginária, do que
uma evidência histórica efetiva. O que usualmente chamamos de cozinha regional45 –
isto é, esse conjunto mais ou menos definido de sabores, texturas e modos de preparo,
reconhecidos como algo exclusivo e/ou representativo da sociedade da qual emergem –
configura uma elaboração fundamentalmente imagética e discursiva, cuja gênese social,
ao menos no Brasil, não é anterior ao século XX46, como vimos no capítulo anterior. No
Ceará, de modo específico, o desenho e a conseqüente valorização de uma culinária
desse tipo começa a ser esboçado apenas nas últimas duas décadas, levado pela força da
corrente de intervenções estatais, de natureza estrutural e ideológica, que vem
construindo e consolidando o estado como um destino turístico.

2.1. Notas sobre as políticas de incentivo ao turismo no Ceará

Conforme indicam Coriolano e Fernandes (2007), na década de 1970, o Ceará


começa a aparecer no cenário nacional como uma alternativa para o turismo de passeio
no Nordeste, onde, até então, apenas o estado da Bahia constituía atração para esse tipo
de consumo. Nessa época, a pequena rede hoteleira de Fortaleza se concentrava ainda
no centro da cidade, embora um movimento de alocação de hospedarias na orla
marítima já começasse a tomar forma, “acompanhando o surgimento de uma demanda
45
Ou nacional, se observada de outra perspectiva.
46
Em países europeus como a França, a Alemanha e a Itália, entretanto, algumas coletâneas de receitas
autodenominadas “regionais” começam a aparecer ainda na virada do século XVIII para o XIX, sugerindo
um movimento nascente de elaboração e efetivação de cardápios regionais – muito embora sejam as
cozinhas regionais, por lá, não raro consideradas frutos de “tradições culinárias milenares” (CSERGO,
1998).

50
turística e da tendência globalizada” (idem, ibidem: 404). Nos anos 1980, o relativo
crescimento do fluxo turístico na capital e nos municípios litorâneos, principalmente,
sugere o turismo como uma atividade econômica de grande potencial no Ceará,
consideradas, especialmente, suas condições geográficas e naturais.47 Contudo, é apenas
a partir de meados da década 1990 que o estado desponta como um destino turístico
forte e competitivo, resultado da aplicação de políticas intensivas de desenvolvimento
do setor.

Nesse período, o turismo passa a ser compreendido como a principal alavanca para
o crescimento econômico do estado, constituindo pauta prioritária na fala pública
governamental. A criação da SETUR (Secretaria de Turismo do Ceará) em 1995 é
expressiva dessa nova percepção acerca do turismo e de suas potencialidades, bem
como a publicação, no mesmo ano, do chamado Plano de Desenvolvimento Sustentável
do Ceará (1995-1998), cujo objetivo consistia em tornar as cidades cearenses
competitivas e atrativas para turistas e investidores estrangeiros por meio de uma ampla
política de “reordenamento do espaço”, com o intuito de adequar o estado, com
destaque para Fortaleza, ao novo contexto econômico mundial, caracterizado pela
competição acirrada entre as cidades (MACIEL, 2006). Nesta perspectiva, os programas
que compunham tal plano giravam em torno da criação de um “produto turístico
diversificado”, junto com o qual a oferta de incentivos fiscais, infra-estrutura, belezas
naturais e aspectos histórico-culturais configurassem vantagem comparativa para o
Ceará.

Uma mínima estruturação física de Fortaleza e dos chamados “destinos turísticos


estratégicos”, através da construção ou reconstrução de avenidas e rodovias, bem como
de equipamentos urbanos indispensáveis à desejada expansão internacional do fluxo
turístico no estado, consistia, deste modo, em medida prioritária. Com recursos oriundos
da primeira fase do PRODETUR-NE (Programa de Ação para o Desenvolvimento do
Turismo no Nordeste)48 – um investimento de cerca de US$ 150 milhões – foram

47
De acordo com Maciel (2006), o Ceará está “próximo dos maiores mercados mundiais e das mais
importantes rotas de navegação do Atlântico Norte”. Além disso, dispõe de 573 quilômetros de litoral e
temperatura média de 28 graus o ano inteiro, atrativos naturais bastante valorizados pelo mercado
turístico nacional e internacional.
48
Trata-se de um programa, segundo o site da SETUR (Secretaria de Turismo do Ceará), inserido no
plano federal Brasil em Ação e cujo objetivo consiste na “expansão da atividade turística de forma
planejada e sistêmica, a partir da definição de macro estratégias de atuação previamente definidas na
região da SUDENE, isto é, nos nove estados nordestinos e na região norte do Estado de Minas Gerais (...)
O programa reúne cerca de 500 projetos. Para a sua execução, estão disponíveis recursos totais de US$
800 milhões. Destes, US$ 400 milhões são provenientes do BID - Banco Interamericano de

51
realizadas, então, obras de grande impacto na estrutura urbana do estado como, por
exemplo, o novo Aeroporto Internacional Pinto Martins49 e suas vias de acesso, além
das chamadas “rodovias estruturantes”, que ligam a capital cearense às praias do litoral
leste e oeste.

Entretanto, a conquista do estatuto de destino turístico, reconhecido e vantajoso


quando comparado aos demais concorrentes, exigia alterações ainda mais profundas,
não apenas na infra-estrutura urbanística, mas, sobretudo, no terreno dos símbolos
definidores do lugar. A confecção de um “produto turístico cearense” competitivo
incluía, portanto, um esforço de recomposição simbólica, de modo a restaurar a imagem
do estado, corrompida nacionalmente pelos estigmas da seca e da miséria. Produzir
artificialmente “uma imagem turística própria e memorável” constituía, deste modo,
uma emergência, manifesta no texto oficial do Plano de Desenvolvimento Sustentável
do Ceará, de 1995.50

Através de uma densa campanha publicitária, o estado foi ganhando, então, outras
feições no imaginário social. Numa reviravolta semântica, as antigas lembranças da seca
e da miséria, que durante séculos teriam assolado a população local, representando
“atraso” e causando “vergonha”, tornaram-se parte de um passado (“superado”,
acredita-se) de luta que, supostamente, orgulha e diferencia os cearenses de hoje – numa
lógica de inversão simbólica semelhante àquela encontrada por Barreira (2005: 317) nos
guias turísticos de Berlim, onde as evocações da guerra e do holocausto revelam um
“paradoxo entre as tragédias a não serem esquecidas, porque funcionam como lições
para a humanidade, e a tentativa de redefini-las, com o objetivo de criar novas narrativas
para a cidade”. Dentre as imagens que passaram a preconizar a “nova realidade” do
Ceará e de sua capital estavam, então, a de “Caribe Brasileiro” e “Miami do Nordeste”
(GONDIM, 2004).

Assim, ao lado de uma “ação territorial”, de cunho urbanístico estruturante, foi


realizada ainda uma “ação comercial”, que objetivava atrair turistas e investidores do
Brasil e do exterior. O amplo projeto de marketing do “Ceará Turístico” – por meio do

Desenvolvimento, sendo o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) seu agente repassador”. Atualmente, o
PRODETUR-NE está em sua segunda fase. No Ceará, os recursos oriundos da primeira foram aplicados
no período de 1995 a 2002.
49
Construído entre 1996 e 1998, a obra do Aeroporto Internacional Pinto Martins contou ainda com
recursos oriundo de um empréstimo feito pelo Governo do Estado ao Banco Interamericano de
Desenvolvimento-BID.
50
Ceará. Governador, 1995-1998 (Tasso Jereissati). Plano de Desenvolvimento Sustentável do Ceará –
1995-1998, Fortaleza: SEPLAN, 1995, p. 79.

52
qual foram promovidas noções positivas do estado, enfatizadas em imagens paradisíacas
de praia e sol –, previa sua divulgação em escala nacional e internacional51, o que vem
de fato ocorrendo, de forma massiva, através de uma série de veículos de comunicação
(entre jornais, revistas, internet e TV) e ações complementadas (como a participação em
eventos especializados). Apenas para citar alguns exemplos da amplitude desse
investimento, poderíamos citar as campanhas publicitárias realizadas em famosos
periódicos internacionais, tais como Newsweek, The Economist, The New York Times e
Wall Street Journal; e a constante participação cearense em eventos de grande porte
como a Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL), a Feira Internacional de Turismo da
América Latina (FIT), a Feira Internacional de Turismo de Madrid (FITUR), a Bolsa
Internacional de Turismo de Berlim (ITB) e a Bolsa Internacional de Turismo de Milão
(BIT).

Segundo o atual Secretário de Turismo do Ceará, somente em 2008, o Governo


Estadual investiu cerca de 25 milhões de reais nesse tipo de publicidade: para ele, uma
forma de “criar no imaginário dos brasileiros um Ceará positivo, um Ceará de charme,
bonito, alegre e com grandes potencialidades”. Em um trecho da entrevista por ele
concedida ao jornal Diário do Nordeste, o referido Secretário explica de que modo vêm
sendo aplicados, em território nacional, os recursos com essa finalidade:

Além das participações em feiras e eventos nacionais e


internacionais, em número inigualável, o Ceará vem fazendo uma
agressiva campanha publicitária nos principais veículos de
comunicação do país, como nas revistas Veja, Isto é, Época e
Caras, além das especializadas no segmento turístico; promoção
e parcerias com emissoras de TVs, nos jornais O Globo, Folha de
São Paulo, Estado de São Paulo, etc.; em salas de cinema e de
aeroportos das principais capitais brasileiras, dentre outras
iniciativas.52

Nas imagens veiculadas, “o que fica evidente”, para Coriolano e Fernandes (2007:
403), “é a comunicação do Ceará Turístico como um destino rico em atrativos que

51
Nos termos do Plano de Desenvolvimento Sustentável do Ceará (1995-1998), p. 82, “a estratégia de
marketing será apoiada na promoção do produto turístico cearense através de campanhas e de outras
ações complementadas pela realização de workshops e eventos, a participação em eventos e fanturs,
dirigidos fundamentalmente para os mercados da região Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte do País e para
os demais países do Cone Sul, alguns países da Europa, Estados Unidos e Canadá.”
52
“O Ceará conquista melhorias”, Diário do Nordeste, Caderno de Turismo, 9/01/2009. Disponível em:
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=604744 Acesso: 17 de janeiro de 2010.

53
extrapolam as belezas naturais do litoral”, instituindo-o como um lugar de múltiplas
seduções. Numa combinação paradoxal, elementos de modernidade e de tradição são
evocados, variando em grau conforme a finalidade da peça publicitária, de modo a
compor o quadro representativo do estado e de sua principal porta de entrada, a cidade
de Fortaleza. Assim, ao mesmo tempo em que se enfatiza a disponibilidade de uma
moderna infra-estrutura urbana, já adquirida ou em vias de execução53, condizente com
padrões globais, anuncia-se a conservação de certos modos tradicionais de ser e de
fazer, tão “antigos” quanto se possa imaginar. E quando os baús da cultura e da história
passam a ser revirados na busca por aspectos distintivos da região, que funcionem como
atrativos para o turismo, as práticas alimentares não tardam a ser encontradas.

2.2. “O de comer tá botado”

Na medida em que a noção de cultura se desprende do universo antropológico e


invade o circuito turístico, constituindo patrimônio local do mesmo modo que as belezas
naturais e os monumentos arquitetônicos, ela passa por um processo de estereotipização,
por meio do qual é reduzida a um conjunto de referências típicas que condensam as
diferenças internas de uma sociedade, apresentando-a ao turista como um todo
aparentemente coeso e distinto. Ancorados na idéia de tradição, esses traços culturais
“específicos” tornam-se ainda mais expressivos e facilmente assimiláveis pelo visitante,
uma vez que agregam valor histórico às suas composições, tornando-se curiosos não
apenas pelo exotismo étnico que lhes é atribuído, mas também porque deslocados de um
passado longínquo. É assim, tomando aspectos ditos tradicionais da cultura como
critério na eleição do típico que, no Ceará, foram sendo delineado os primeiros
contornos de uma cozinha regional, resultado de um contexto de intensa elaboração
publicitária do estado na busca por sua consolidação como destino turístico competitivo.
Todavia, antes de apontarmos alguns dos caminhos de efetivação social desse tipo de
culinária no estado, convém atentar, de modo mais enfático, para o aspecto
essencialmente inventivo de sua elaboração. Isto porque a ancoragem simbólica da idéia
de cozinha regional à idéia de tradição produz certas impressões que, embora

53
Atualmente, por exemplo, estão em andamento as construções dos aeroportos de Aracati (litoral leste) e
Jericoacoara (Litoral Oeste), do Metrô de Fortaleza, do Centro de Feiras e Eventos do Ceará, bem como a
duplicação do trecho Iguape-Beberibe da CE-040.

54
necessárias aos propósitos de sua existência social, são reveladoras, do ponto de vista
sociológico, de certas incoerências sobre as quais parece relevante pensar aqui.

Costumeiramente utilizada para evocar práticas cujas origens (não raro


transformadas em mitos) remontam a um passado distante, mas que, através da
repetição, rompem as barreiras históricas, mantendo-se imutáveis ao longo dos tempos,
a noção de tradição assume, no imaginário social, um formato demasiado rígido e
idealizado, contestado por muitos pensadores sociais em razão de sua disparidade no
que tange às evidências históricas que lhes são subjacentes (GIDDENS, 2001; BURKE,
2000; MONTANARI, 2008). Além de uma evidente dificuldade de efetiva
“conservação histórica” de um procedimento cultural54, conforme aponta Habsbawm
(2008: 9), “muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são
bastante recentes, quando não inventadas”. Para o autor, essa noção de “tradição
inventada” pode ser utilizada num amplo sentido:

Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e


formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de
maneira mais difícil de localizar num período limitado e
determinado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e
se estabeleceram com enorme rapidez. (...) Tais práticas, de
natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e
normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com
um passado histórico apropriado.

Nessa perspectiva, é possível compreender a cozinha regional, verificada no


Ceará, como uma espécie de “tradição inventada”, fruto de um contexto muito
específico de elaboração de uma imagem turística do estado. Aliás, para a historiadora
Catherine Bertho-Lavenir, da Universidade Sorbonne, é possível generalizar tal idéia.
Para ela, o processo de transformação dos produtos de determinada região em pratos
típicos se dá sempre de “maneira artificial”, uma vez que são criados “para e pelo
desenvolvimento do turismo”.55 Portanto, a imagem repassada aos turistas – e,
necessariamente, partilhada entre nativos – de que certas comidas são naturalmente

54
Muitos autores sociais dissertaram acerca da dinamicidade das culturas. Para fins deste trabalho, foram
consultados, especialmente, Cuche (2002), Kuper (2002) e Burke (2000).
55
Conforme matéria sobre a autora disponível no endereço virtual: www.historiadaalimentacao.ufpb.br
/gastronomia_vale_o_passeio Acesso: 26 de abril de 2010.

55
interpretadas como típicas ou regionais por uma coletividade, posto que seriam
preparadas e consumidas do mesmo modo há muito tempo, constitui, assim, apenas uma
criação de ordem simbólica, que facilita a percepção do visitante sobre os costumes
alimentares do lugar – atualmente considerados um dos principais critérios utilizados na
definição do destino a ser visitado, segundo pesquisa de Fagliari (2005).

No Ceará, observa-se que a elaboração ostensiva de uma cozinha regional, como


um produto do chamado “consumo cultural”, ganha importância e razão de ser dentro de
uma configuração social particular, para usar um termo de Elias (1994), na qual o
turismo passa a ser compreendido e difundido pelas autoridades públicas locais,
conforme apontado no tópico anterior, como estratégia central na promoção do
desenvolvimento econômico do estado. Assim, nas últimas duas décadas, a chamada
“gastronomia da terra” vem sendo insistentemente lembrada através de uma série de
atividades de cunho comercial e publicitário. Junto ao artesanato, ela “ajuda a vender a
região como destino”56 em eventos nacionais e internacionais voltados para divulgação
turística. Além disso, uma grande variedade de feiras e festivais gastronômicos começa
a compor o calendário de muitos municípios cearenses, atraindo um grande público e
instituindo, deste modo, a crescente valorização dos produtos considerados
característicos da localidade. Alguns dos mais conhecidos são o Festival de
Gastronomia e Cachaça, realizado pelo Museu da Cachaça, em Maraguape; o
Pindorecana, festival da cana-de-açucar que acontece em Pindoretama; o Festival
Saberes e Sabores, em Pacatuba; o Fest Leite, em Quixeramobim; o Cajufest, realizado,
em suas duas últimas edições, em Beberibe (por agregar, atualmente, a maior produção
de caju do Ceará); e a Tejubode, feira de ovinocaprinocultura realizada em Tejuçuoca.
Convém registrar que muitos desses festivais, ou mesmo eventos menores57, tem
conquistado atenção internacional para seus produtos, fabricando-os em tamanho
gigante, a fim de serem homologados como recordes mundiais no Guinness Book. Até
então, são considerados os maiores já fabricados no mundo, por exemplo, o queijo de
coalho de Quixeramobim (718,5kg), a tapioca do Centro das Tapioqueiras de Messejana

56
Cultura Nordestina, Diário do Nordeste, Negócios, 24/04/2009.
57
Como, por exemplo, o que acontece anualmente no Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de
Messejana (CETARME), sempre na data em que se comemora o “dia do índio” – uma forma de
homenagear o suposto “criador” da tapioca.

56
(com 120m de comprimento e quase 1/2 tonelada) e a rapadura de Pindoretama (cuja
confecção contou com cerca de 15 toneladas de cana-de-açúcar)58.

A valorização dos preparos regionais conta, ainda, com a ação direta de duas
instituições: o Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e a Abrasel
(Associação Brasileira de Bares e Restaurantes). Em parceria com o Ministério do
Turismo (MTUR), desde 2007, tais instituições vêm desenvolvendo de forma conjunta,
em alguns municípios do Ceará, o Programa Gastronomia Competitiva, cujo objetivo
consiste em:

Promover o desenvolvimento sustentável de municípios com


potencial turístico de todo o país por meio do estímulo ao
envolvimento empresarial a partir de ações de capacitação,
qualificação e promoção dos empreendimentos de serviços de
alimentação fora do lar, promovendo a gastronomia como
vantagem competitiva para o turismo.59

Outro projeto nacional de incentivo às cozinhas regionais, orientado pelas mesmas


instituições, é o Festival Brasil Sabor, que teria como proposta, de acordo com o
presidente da Abrasel, “apresentar a comida do lugar de todas as regiões do país, (...)
buscando a promoção da gastronomia brasileira como diferencial competitivo para o
setor do turismo”60. Há, ainda, inúmeras ações do Sebrae por todo o estado, apoiadas
pelo MTUR, cujo intuito é possibilitar o fortalecimento do segmento turístico por meio
de uma qualificação dos serviços ofertados. No ano de 2009, uma média de R$ 4,7
milhões foi investida em ações para melhoria do setor. Entre as principais, estariam

as capacitações gerenciais, consultorias, palestras, seminários,


apoio a promoção e comercialização, missões técnicas, ações de
inovação e tecnologia, além de ações de estímulo à cultura da
cooperação e integração do turismo com o artesanato, cultura e
gastronomia.61

58
A rapadura gigante de Pindoretama ainda permanece em exposição no Engenho Casa Grande,
localizado às margens da CE-040, no mesmo município. Quanto à tapioca e ao queijo de coalho gigantes,
por serem mais perecíveis, foram distribuídos gratuitamente nos eventos onde foram lançados.
59
“Programa incentiva turismo gastronômico”, Diário do Nordeste, Caderno de Turismo, 19/10/2007.
60
“Gastronomia local para turista”, Diário do Nordeste, Caderno de Turismo, 18/04/2008.
61
“Sebrae investe no turismo do CE”, Diário do Nordeste, Caderno de Turismo, 24/09/2009.

57
Como vemos, não apenas elementos culinários passaram a incorporar as marcas
da terra, transformando-se em atrativos. O que podemos testemunhar, nos últimos anos,
é uma profusão de aspectos culturais sendo institucionalmente integrados ao quadro das
singularidades regionais do estado. As produções artesanais, por exemplo, nunca foram
tão estimadas, nesse sentido. Tanto que renomadas grifes cearenses têm apostado “na
tradição e em elementos regionais”, tais como as rendas de bilro e os bordados, na
confecção de suas peças, acreditando que suas produções lembram “outro tempo, que as
pessoas querem valorizar, manter e transmitir para os próprios filhos. É como se fosse
uma herança”62. Do mesmo modo, também uma certa linguagem regional – arraigada
ao bom humor que também tem constituído característica marcante de um “jeito
cearense de ser”63 – vem recebendo atenção particular na última década. Desde o ano
2000, inúmeros dicionários do chamado Cearês ou Cearensês foram publicados no
estado, tais como o Super Dicionário de cearensês, de Carlos Gildemar Pontes; o Orélio
cearense, de Andréia Saraiva e o É o novo!, de Verônica Nicolau. Segundo Lima (2003:
289), “o Ceará teria, então, um ‘dialeto’, numa dimensão folclórica, engraçada, que se
revela através de uma fala marcada pela ‘mangação’ do mundo e também por uma
‘automangação’, características que coincidiriam com o ‘ser cearense’”.

É, portanto, como parte de um processo mais amplo de ressignificação cultural,


impulsionado, de modo particular, pelo desenvolvimento do turismo no estado, que uma
cozinha regional ganha forma e sentido no imaginário social cearense. De modo
gradual, certos “pratos” saem da ordinariedade de seu consumo e passam a figurar como
especialidades locais; tornam-se vetores de comunicação, expressivos de uma realidade
cultural da qual é possível experimentar literalmente. Nesse movimento publicitário de
valorização do regional e de construção de discursos legitimadores do alimento como
evidência da “cultura de um povo”64, inúmeros bares, lanchonetes e restaurantes de

62
“Grifes cearenses apostam na tradição e em elementos regionais”, disponível em:
http://www.sebrae.com.br/integra_noticia?noticia=9383032. Acesso: 16/02/2010.
63
As referências ao estado como “Ceará moleque” ou à Fortaleza como a “Capital da Alegria” são
atualmente encontradas com bastante freqüência em jornais locais e em revistas ou sites especializados
em turismo. Tal inclinação para o humor costuma ser justificada na consagração nacional de muitos
humoristas nascidos no Ceará: “O humor é dos mais reconhecidos produtos culturais do Ceará. O talento
cearense para contar piadas e provocar risos e gargalhadas já deu ao Brasil consagrados comediantes
como Chico Anísio, Renato Aragão, Tom Cavalcante, Paulo Diógenes, Falcão, Zé Modesto, Rossicléia,
Meirinha, Adamastor Pitaco e Tiririca. Novas gerações de artistas de humor continuam surgindo em
Fortaleza.” Revista Fator Brasil, Cultura e Lazer, abril/2008. Disponível em:
http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=4559. Acesso: 11 de abril de 2008.
64
No último semestre de 2008, deu-se início ao projeto Comida Ceará, uma iniciativa do Memorial da
Cultura Cearense. O objetivo de tal projeto consiste no registro das práticas alimentares de todo o estado.
Para tanto, pesquisadores e fotógrafos estão percorrendo os municípios cearenses no intuito de coletar

58
temática regional ganham as ruas de Fortaleza e dos principais municípios turísticos do
estado. Além da “culinária litorânea”, já consagrada à beira-mar, em vários pontos da
capital e no caminho para as praias, muitos estabelecimentos têm se dedicado à oferta
de uma “culinária sertaneja”, cuja boa aceitação tem se mostrado não apenas entre
turistas, mas também, e principalmente, entre os consumidores locais.

A fim de melhor compreendermos o papel desse tipo de estabelecimento no


contexto de criação de uma cozinha regional, no Ceará, convém conhecermos um pouco
melhor esses espaços, suas propostas decorativas e gastronômicas. Convido o leitor,
desse modo, a um passeio sem pressa pelos cenários dos dois restaurantes regionais
selecionados para este estudo. Entretanto, não custa relembrar, antes, que descrever é
uma tarefa da perspectiva. Como tal, o exercício heurístico e empírico que me proponho
a fazer, aqui, atravessa uma relação inegável: a de um sujeito que imagina com os
objetos que vê e contextualiza. Como pesquisadora compreendo as implicações deste
processo, assim como sei da "mágica" simbólica do mesmo. Sei, por exemplo, que atuo
na descrição por meio de aproximações, de comparações com linguagens e
identificações estéticas do meu tempo e de um imaginário do qual partilho. Sei ainda
que, ao falar desses espaços, em toda a sua semiótica culturalmente alimentada, me
limito a descrevê-los como forma de narrar sua construção. Ou seja, pensando esses
mesmos espaços como lugares com história, partes de projetos dos sujeitos pesquisados.
A "mágica" mora nisto: descrever a presença de tantos signos e propor relações entre os
mesmos é traçar sentidos de ação (WEBER, 2004), é pensar o movimento da produção
material e simbólica de seus conteúdos.

Dito isto, conheçamos os restaurantes.

2.2.1. Chica Sinhá

Localizado à margem direita da Avenida Washington Soares, sentido Fortaleza-


Aquiraz, no bairro de Messejana, o restaurante Chica Sinhá, em funcionamento desde
2006, é um convite para uma viagem no tempo por meio de uma refeição diferenciada.
O termo “sinhá”, que completa o nome do estabelecimento, ativa na memória de quem

materiais (entrevistas, utensílios de cozinha, receitas, etc.) que auxiliem na compreensão do que poder-se-
ia chamar de “cultura alimentar cearense”. Entre os coordenadores do projeto está Raul Lody,
antropólogo baiano, um dos responsáveis pelo registro do Ofício da Baiana do Acarajé no IPHAN.

59
ouve (ou lê) lembranças de um passado não necessariamente vivido, mas, ainda assim,
de muitos modos conhecido e compartilhado. Por isso mesmo, logo somos tentados a
associar o termo à mulher de classe senhoril, esposa de senhor de engenho, dona da
casa-grande (e, depois, também dos sobrados urbanos); figura icônica, cujo recato dos
modos e o talento na cozinha – por séculos considerados “critérios genéricos e
indispensáveis da educação feminina brasileira” (CASCUDO, 2004) – tornaram-se
sinais de uma personagem que foi, gradativamente, nos efeitos criativos e reprodutores
do recontar histórico, galgando espaço permanente e significações múltiplas no
imaginário social.

Todavia, essa imagem da mulher branca e rica que nos salta ao pensamento
quando escutamos a palavra “sinhá” sofre, neste caso, transmutações estética e
semântica, promovidas pela inclusão do apelido “Chica” no nome do restaurante e pela
adoção, como logotipo da empresa, de uma figura feminina negra, gorda e bonachona,
segurando uma colher de pau – segundo o dono do comércio, um tipo social “muito
comum no tempo de antigamente, chamada de mãe preta”. Associados nome e imagem,
o resultado é uma remontagem simbólica que transforma a escrava cozinheira em
senhora da casa, em sinhá-dona. Nessa brincadeira de inversão de papéis, caricaturas
são construídas e postas em oposição, realçando-se uma simpatia despojada e
acolhedora da primeira, na medida em que se desvaloriza o polimento aristocrático,
demasiado frio e indiferente, que caracterizaria o comportamento da segunda.

Figura 01 – Pinturas da fachada do restaurante Chica Sinhá.

Uma pintura em tons propositalmente desbotados, logo na fachada do restaurante,


parece esboçar uma tentativa de localização histórica dessa “sinhá reinventada”,

60
estimulando a imaginação e criando expectativas. Na imagem, algumas casas, entre
sobrados e residências térreas, alinham-se desenhando uma pequena rua ou vila, pela
qual transitam figuras humanas, na maioria, masculinas e de pele escura. A sensação de
passado é imediata, embora também um tanto imprecisa. Em poucos segundos,
vislumbra-se uma série de possibilidades interpretativas, numa ligeira busca de sentido
para o que se vê: um mergulho nos guardados da memória que, mesmo configurando
uma atividade tão íntima, revela uma experiência social, evidenciando analogias
historicamente (re)construídas nas diferentes perspectivas do pertencimento. Nesse
sentido, pareceu-me quase inevitável, por exemplo, não lembrar das lições de história
do Brasil, aprendidas na escola; das leituras de algumas das obras de Gilberto Freyre,
entusiasmadas, umas, na defesa de um “regionalismo nordestino”, outras, na definição
ampla de um “caráter brasileiro”; ou ainda de certa novela global que alcançava altos
índices de audiência no ano de 2006, quando o restaurante foi inaugurado, chamada
Sinhá Moça65 – ficção cuja influência na definição da temática do estabelecimento e,
posteriormente, na sua boa aceitação comercial, não pode ser negligenciada.

Essas primeiras impressões preparam o consumidor para uma experiência


gastronômica diferente, essencialmente simbólica, com sabores que ultrapassam os
limites puramente materiais do comer, estendendo-se para os campos do sentimento e
da imaginação. Apresentando-se, categoricamente, através de uma grande placa fixada à
frente do estabelecimento, como um restaurante de cozinha regional – autodefinição
que força uma conexão de sentido entre a idéia de típico, aí implícita, e as ofertas
culinária e arquitetônica da empresa –, o Chica Sinhá conquista sua clientela apelando
para a nostalgia, para a saudade dos “tempos de outrora”, quando as cidades eram
pequenas e a vida passava sem pressa nos recantos rurais.

Nessa perspectiva, o prédio que hoje abriga esse estabelecimento, construído em


2005 especialmente para tal finalidade, foi todo projetado pelo proprietário do mesmo,
engenheiro civil formado e atuante, para produzir nos visitantes a sensação de “reviver o
passado”, como ele mesmo gosta de dizer. Assim, na medida em que se adentra as
instalações do restaurante, parece que se caminha em direção a um outro tempo e
também a um outro lugar, distantes da modernidade cinza e barulhenta da cidade que,
com poucos passos, vai sendo deixada para trás.

65
Atualmente, a novela Sinhá Moça – um remake da versão exibida em 1986, de Benedito Ruy Barbosa –
vem sendo apresentada diariamente no programa Vale a pena ver de novo, da mesma emissora.

61
Contrariando a lógica comercial de incentivo ao consumo rápido e de máximo
aproveitamento do espaço, o Chica Sinhá se distingue por uma política de estímulo ao
relaxamento e pela significativa extensão de todas as suas áreas. Só o estacionamento –
que representa, proporcionalmente, cerca de ¼ do estabelecimento – possui uma área
média de 200m², segundo estimativas da própria gerente. Ali, um feliz impacto com a
generosidade do verde dos gramados e das copas exuberantes de árvores centenárias,
tão escassas às paisagens urbanas, vai, desde já, envolvendo os consumidores em um
clima de sítio ou fazenda: um irresistível convite para esquecer, por hora, o acelerado do
tempo, a pressa rotineira e, muitas vezes, enfadonha das atividades citadinas, e render-se
à calmaria imaginada do campo, no quase silêncio das árvores e do vento.

Figura 02 – À esquerda, entrada lateral do restaurante Chica Sinhá (estacionamento); à direta,


área de lazer infantil do mesmo.

Chegando, pois, de carro, como a maioria dos clientes – dado que considero
revelador do perfil econômico desses sujeitos –, o acesso mais rápido ao restaurante,
propriamente dito, é pela entrada do estacionamento: uma pequena abertura feita na
“cerca viva” (cerca feita de plantas) que o separa das áreas de consumo. Podada a uma
altura de mais ou menos 60cm, dali é possível visualizar o grande espaço que abrange
parte dessas áreas – considerando que estamos falando de um restaurante, a amplitude
impressiona. Do lado esquerdo, logo na entrada, sob a sombra constante de uma árvore
frondosa, uma casinha de madeira colorida, com balanço e escorregador, oferece
distração às crianças que acompanham seus pais, principalmente nos fins-de-semana.
Por trás dela, uma estrutura semelhante a uma pequena varanda, com bancos de pedra e
cestos de palha, também constitui um espaço para brincadeiras e conversas distraídas.
Em uma das paredes que sustentam tal estrutura, a pintura de uma paisagem rural, com

62
carros de boi e homens negros tangendo gado, ajuda a insuflar ainda mais a imaginação
do consumidor, que desde a fachada já vem sendo visualmente estimulado a enxergar o
espaço do restaurante como um lugar para rememorar um tempo talvez não vivido, mas
projetado no presente como raiz de uma história comum.

Seguindo a trilha de pedra e cimento que se ramifica por todos os espaços do


restaurante – ladeada, na maior parte, por jardins bem cuidados e jarros ou bichos
coloridos moldados em barro –, chega-se, primeiramente, a uma grande árvore, alta,
robusta e acolhedora, que sob seus longos galhos garante sombra o dia inteiro. Bem ali,
doze mesas de concreto, com cadeiras brancas de plástico, são dispostas de três em três,
sobre o piso cimentado, oferecendo lugar para cerca de trinta e seis pessoas. Um pouco
mais ao lado, mas ainda embaixo da árvore, mais duas mesas como estas, todavia, com
bancos também de concreto, acomodam mais seis pessoas sem aperto. E que o leitor
não se engane: este não é um espaço utilizado apenas para conversas informais ou
reuniões de trabalho. Trata-se de uma área efetiva de consumo alimentar – uma das
mais concorridas, é importante que se acrescente. Embora configure uma prática
estranha para um restaurante moderno, localizado em uma avenida de tráfego intenso,
cercada de empresas e fábricas de grande e médio porte, comer debaixo da árvore se
tornou, paradoxalmente, uma atividade simpática e interessante – possivelmente porque
bastante inusitada –, pela qual se paga com prazer, mesmo conhecidos os riscos de ver
(ou, pior, de não ver) ajuntar-se a comida, por um golpe de “sorte”, uma variedade de
seres e “apetrechos” naturais habitualmente não comestíveis.

Figura 03 – Áreas de consumo do restaurante Chica Sinhá.

63
Dali a trilha irradia para três espaços. O mais próximo e mais ao fundo é uma
pequena casa branca, que abriga os banheiros masculino e feminino, cuja frente se
estende em um alpendre de tamanho médio, alto, coberto de telhas vermelhas e apoiado
em colunas amarelas e arredondadas, comuns também a outros espaços do restaurante –
de acordo com o proprietário, uma marca do estilo colonial de construção que serviu de
modelo à arquitetura do estabelecimento. Cerca de sete mesas de madeira, umas maiores
e outras menores, todas sem toalhas, apenas com um apoio de pano para os pratos,
imprimem certa rusticidade ao local, auxiliadas ainda por outros elementos decorativos,
tais como o chão de cimento queimado e peneiras de palha – originalmente, um
utensílio artesanal imprescindível na cozinha – penduradas na parede frontal da casa,
bem acima da pintura de um grande cavalo.

Ao lado desse alpendre, no muro que cerca por trás o restaurante, uma outra
imagem chama a atenção: trata-se de uma igreja com traços antigos, cujas duas torres e
a abóbada central, moldadas em alvenaria e concreto acima do muro, dão à pintura um
efeito de profundidade que distrai o observador na forte impressão de “realidade”,
instigando-o a encarar tal imagem como algo que de fato existe ou, provavelmente,
existiu. Em um ponto centralizado da figura, um recuo na parede acolhe uma escultura
de N. Sra. de Fátima. O banquinho de concreto posicionado próximo à pintura, na
lateral direita, sugere a utilização daquele diminuto cenário para a prática do
catolicismo, da oração e da reflexão – ou, pelo menos, para fazer lembrar a possível
existência desse tipo de credo e prática no passado que o restaurante recria,
comercialmente.

Figura 04 – “Cantinho da reflexão”, à esquerda, e o alpendre lateral do restaurante Chica Sinhá,


mais uma das muitas áreas de consumo do espaço.

64
Seguindo, ainda, pelo estreito caminho de pedra e cimento, chega-se a mais uma
área coberta, também em formato de alpendre – todavia, com quase o dobro do tamanho
do primeiro. Contornado por cerca viva, essa estrutura de madeira, com telhado alto e
chão de cimento queimado, dispõe de dez mesas, cada qual com quatro cadeiras. Aqui e
ali, entre uma mesa e outra, redes coloridas de dormir decoram o ambiente e convidam
para o tradicional cochilo após o almoço. Aliás, é preciso que se esclareça: ao contrário
do que poderíamos pensar, inicialmente, os fregueses – de modo especial, os mais
regulares – dificilmente sentem-se intimidados em usar essas redes, se não para
cochilar, pelo menos para descansar o corpo por alguns minutos. Para conseguir uma
delas, vale até o esforço de tentar chegar um pouco antes do horário convencional de
almoço, conforme afirmaram alguns deles. Mas se as redes já estiverem sendo usadas,
resta ainda, como opção de descanso, algumas espreguiçadeiras, colocadas em um
espaço reservado mais ao fundo do alpendre, onde uma televisão, fixada na parede a uns
dois metros de altura (o que permite sua visualização de todas as mesas daquela área),
evoca a “modernidade urbana” e entretém os que preferem não dormir.

Figura 05 – Fachada interna do restaurante Chica Sinhá e sua área de self-service.

Ao lado desse alpendre e à frente das demais áreas de consumo e lazer, até agora
descritas, encontra-se o prédio central do restaurante, onde são feitos e servidos os
“pratos do dia”. O avarandado integral da fachada, as colunas cilíndricas, destacadas de
amarelo, e o tamanho exagerado das portas e janelas chamam de imediato a atenção.
Segundo o proprietário, são marcas do estilo colonial de arquitetura que refletem um
tipo de moradia “muito comum nos sertões de antigamente”: a casa-grande de engenho
ou de fazenda. Sua área interna abrange três compartimentos: a cozinha, uma pequena

65
sala com duas mesas (espécie de recepção do restaurante) e um amplo salão, claro e
arejado, que abriga algumas mesas e toda a composição necessária à prática comercial
do self-service. Todavia, o equipamento convencional onde são apresentados e mantidos
aquecidos os pratos, encontra-se, aqui, sob o disfarce de uma estrutura em alvenaria que
lembra um fogão a lenha – atualmente, revestida de cerâmica, de acordo com o gerente,
por “questões de higiene”.

Abrindo de segunda a domingo, somente para o almoço, a oferta gastronômica do


Chica Sinhá consiste, basicamente, no que se intitula de “cozinha regional fina”66. A
expressão indica a preocupação da casa em oferecer aos seus clientes, “desacostumados
ao sabor das comidas tradicionais do sertão”, um cardápio regional adaptado ao paladar
e ao nível social dos freqüentadores mais regulares, inseridos, segundo o proprietário,
entre as classes médias e altas de Fortaleza. Assim, aos preparos tradicionais são
adicionados ou retirados ingredientes que possibilitem certo refinamento dos pratos
regionais, tornando-os supostamente mais “elegantes” e “digeríveis” – nada, entretanto,
que os faça perder seu caráter regional: “o sabor e o jeito de fazer pode até mudar um
pouco, mas a essência permanece”, afirma o mentor do Chica Sinhá. É nesse sentido
que, para citar alguns exemplos, a carne de sol se torna recheio de panqueca, o baião-de-
dois ganha creme de leite em sua composição e a carne de carneiro é servida à
milanesa. Já a tradicional feijoada dos sábados – ainda segundo o proprietário, uma
“comida que deve fazer parte de toda cozinha regional brasileira porque, além de muito
apreciada pelos brasileiros e visitantes, ela fala da nossa história de luta, do nosso
passado” – perde alguns ingredientes costumeiramente utilizados em seu preparo, como
o toucinho, “muito pesado e calórico, prejudicial à saúde”.

Uma olhada rápida nas opções do self-service do restaurante revela essa


remodelagem da culinária regional, cujas misturas e combinações possíveis entre
ingredientes e preparos de diversas culturas alimentares constituem sua principal marca.
Todos os dias são oferecidos, comumente, três tipos de arroz (branco, à grega, e
integral), dois de feijão (verde e mulatinho), macarrão ao alho e óleo, baião-de-dois,
algumas opções de farofa (de banana, de cuscuz, de carne, etc.), galinha caipira cozida,
algum prato à base de carne de sol (escondidinho, lasanha, panqueca, etc.) e de carneiro
(cozido, assado, recheado, etc.), suflê de legumes, panelada e sarrabulho, além de uma
grande variedade de frutas da estação e saladas cruas. Para sobremesa, doces de leite e

66
Trecho retirado de uma placa em frente ao restaurante.

66
frutas, puros ou misturados, oferecidos nas mesas em pequenas porções, sobre a bandeja
das garçonetes.

Um aspecto interessante do Chica Sinhá se refere à exclusividade feminina no


quadro de funcionários. A explicação do proprietário para tal fato se alimenta em
representações historicamente construídas acerca das habilidades que seriam inerentes à
condição feminina. Dada uma dimensão supostamente “caseira” da culinária regional
disponibilizada no restaurante, o proprietário explica:

Só a mulher sabe fazer aquela comidinha caseira que todo mundo


gosta e senti falta quando ta longe de casa. É ou não é? É por isso
que eu só contrato mulheres pra minha cozinha. Homem não
consegue fazer aquela comidinha assim com gosto de casa, não.
Tem nem perigo! As mulheres são mais jeitosas com as coisas de
casa, por isso aqui você só vê mulher, desde a limpeza, passando
pelo serviço nas mesas até o caixa. Elas são mais cuidadosas,
atenciosas... E pra cozinha do meu restaurante, então, eu não
contrato homem de jeito nenhum. Porque a comida regional ela
tem essa origem caseira, né? E da casa ninguém entende como a
mulher. Eu fico maravilhado com a capacidade feminina pra
cozinha: um almoçozinho simples, trivial, é um verdadeiro
manjar!

Ancorando sua concepção regional às tradições domésticas, das quais as mulheres


seriam as mais “autênticas” guardiãs e praticantes, o restaurante se feminiza até no
nome com o qual foi “batizado”. Símbolo do conforto e dos cuidados do lar, a mulher
incorporaria as qualidades ideais para a produção de uma “culinária caseira”,
extremamente valorizada em tempos de padronização e industrialização alimentar por
sua tentativa de imitar os modos de preparo domésticos – como, por exemplo, o uso de
temperos artesanais, preparados com raízes e verduras frescas, e o cozimento de pouco:
“em cada panela, uma galinha”, explicou-me a cozinheira, reproduzindo as orientações
do patrão. Inseridos em uma rotina de trabalho que os afasta o dia inteiro do aconchego
e bem-estar associados ao ambiente doméstico, os consumidores do Chica Sinhá são
convidados a perceber na oferta culinária do restaurante, produzida e servida por mãos
femininas, reconfortantes resquícios de casa, propiciando à experiência gustativa a
combinação de múltiplas satisfações, fisiológicas e emocionais.

67
2.2.2. Lá na Roça

Chegar no restaurante ‘Lá na Roça’ é como fazer uma viagem às antigas


Fazendas do interior... Logo na entrada a porteira de madeira começa a criar o clima
sertanejo que transparece em cada detalhe do local. Transpondo-se a mesma, avista-se
ao fundo uma cerquinha de estacas e a casa de tijolos aparente, onde funciona o
restaurante. Na varanda, mesas feitas de troncos, luminárias de cipó, tamboretes de
couro e redes, completam o ambiente. Entre sem fazer cerimônia, como se faz em casa
de velhos amigos. Pegue seu prato no guarda-louça e vá se servir no grande fogão
onde descansam as especiarias do sertão: carne de sol, baião de dois, arroz de leite,
paçoca, galinha a cabidela, capote, pernil de porco e de carneiro, além de muitos
outros pratos. Após a refeição não esqueça de pedir um doce de compota daqueles bem
caseiros. Tem de leite, de banana, de goiaba, de coco e de mamão. “Lá na Roça”
também é parada para o café da manhã. São momentos para a tapioca, queijo assado,
canjica, pamonha, coalhada, bolo de milho, bolo de macaxeira, ovo caipira, sopas,
cuscuz e etc.

(Retirado do site oficial do restaurante: www.lanaroca.com.br)

Adentrar o universo estético e gastronômico do restaurante Lá na roça é vivenciar


um paradoxo de sensações. A rusticidade demasiado expressiva da decoração,
evidenciada em tons excessivamente ocres e na multiplicidade de adornos que
rememoram certo simplismo rural, provoca inevitável estranhamento ao consumidor
urbano, habituado a uma imagem diferenciada de restaurante. Ao mesmo tempo, na
medida em que se passeia o olhar pelo conjunto decorativo do espaço, experimenta-se
também uma reconfortante impressão de reconhecimento. Como numa espécie de
museu, a materialização do “sertão nordestino” em objetos, cheiros e sabores conduz o
visitante, independente de sua origem, a compreendê-lo, nas formas de sua
apresentação, como sinal de uma cultura específica, raiz de uma história singular.

Situado no centro do Município de Eusébio, na rua de mesmo nome, o restaurante


está em funcionamento desde 1999. Conforme relato dos proprietários, o local foi
escolhido, essencialmente, por três razões. Primeiro, mantinha uma distância razoável
dos grandes centros comerciais de Fortaleza, suficiente para nem ser tão longe a ponto
de impossibilitar a vinda do cliente que mora ou trabalha nessas áreas, nem tão perto
que inviabilizasse um dos principais atrativos do espaço, ou seja, sua “tranquilidade
rural”. Segundo, o terreno dispunha de muitas árvores de grande porte, que davam
sombra o dia inteiro, e de uma pequena casa, simples e aconchegante, que precisaria

68
apenas de algumas modificações para a instalação do restaurante; ideais, portanto, para
o que se propunha. Depois, naquela época, estava às margens da rodovia estadual CE-
040 (hoje Rua Eusébio), o que significava um possível fluxo de turistas pela região –
um público em potencial para o tipo de restaurante que se desejava abrir.67

Apresentando-se como o primeiro de cozinha sertaneja do Ceará, o Lá na roça é


fruto de um desejo de “recuperação” de certas tradições culinárias “esquecidas” no
tempo. Autodenominados sertanejos, posto que nascidos no interior do estado, os
proprietários afirmam que, antes do Lá na roça, aquilo que se considerava “cozinha
regional” do Ceará estava intrinsecamente ligado ao chamado cardápio litorâneo, cuja
base dos preparos inclui peixes e alguns crustáceos (camarão, lagosta e caranguejo,
principalmente). Viajando pelo Brasil, como representantes comerciais, e degustando
em cada lugar sua especialidade gastronômica, o casal de proprietários, engenheiros de
formação, concluiu, no entanto, que havia uma grande semelhança entre as receitas
verificadas em boa parte da faixa litorânea brasileira – “muda o peixe, mas o tempero e
o preparo é o mesmo”, explica um deles. Portanto, na percepção do casal, dado seu
suposto caráter de exclusividade local, é a comida do sertão que melhor caracterizaria
as cozinhas regionais brasileiras e, portanto, com a cearense não poderia ser diferente:

Então a gente acha que a comida verdadeiramente típica, que só


tem aqui no Ceará, é o baião-de-dois, é a paçoca de pilão de
madeira, é a buchada, é a panelada, é o sarrabulho. Essas coisas
são realmente daqui. É a culinária do sertão. Essas dificilmente
você encontra em qualquer lugar.

Cansados da rotina de viagens a que estavam submetidos na antiga profissão e


dispostos a “resgatar” o valor do sertão na alimentação local, eles optaram pela abertura
de um tipo de restaurante regional ainda “inédito” no cenário gastronômico cearense –
na visão dos mesmos, tanto uma necessária estratégia de inserção no mercado, quanto
uma ainda mais necessária tentativa de incorporação das iguarias e costumes sertanejos

67
Posteriormente, entretanto, como parte de políticas para o desenvolvimento do turismo, a CE-040 foi
remodelada para passar por fora do centro do município de Eusébio. Como se pode prever, a
movimentação de carros também acompanhou as novas rotas da rodovia. Contudo, nem por isso o
restaurante experimentou dias ruins de faturamento. Ao contrário, conforme acreditam os proprietários,
isso imprimiu certo “fetiche” à casa, contribuindo para que o espaço se tornasse ainda mais expressivo da
temática que o inspira. Longe do ruído dos motores e do esganiçado das buzinas dos carros, o Lá na roça
conservaria, assim, um “clima de interior” que, conforme foi dito, constitui um de seus principais
atrativos.

69
ao quadro das manifestações ditas típicas da região. Antes, entretanto, eles foram
juntando artefatos, utensílios decorativos ou de cozinha, garimpados em cidades do
interior ou em outros lugares por onde transitavam. Ao mesmo tempo, iam tecendo
idéias de investimento, analisando formas de publicidade e de organização do capital,
bem como traçando as linhas gerais do desenho arquitetônico do estabelecimento. Dessa
racionalização cuidadosa dos meios viáveis de efetivação do restaurante, acrescida de
uma quase missão de recriar aquilo que é percebido como singularidade sertaneja,
resultou um espaço comercial alimentar cuja ambientação produz, nos termos de um dos
donos, “um efeito psicológico” nos consumidores que, lá chegando, “cortam o vínculo
com o urbano e entram na roça”.

Figura 06 – Entrada para o estacionamento e entrada para área coberta do restaurante.

Ultrapassando-se a conhecida porteira central – que não apenas dá acesso ao


interior do empreendimento, mas funciona também como uma espécie de “portal” que
liga dois mundos supostamente isolados (urbano e rural) –, o que se avista é uma área
aberta, sombreada pelas muitas árvores que a circundam, onde os clientes costumam
estacionar os carros. Não se trata, entretanto, de um estacionamento aos moldes
convencionais, posto que não há marcas divisórias ou de sinalização – salvo um
simpático canteiro central, próximo de um poço coberto de troncos e telhas, que serve
de rotatória para uma melhor circulação dos veículos.

No letreiro de madeira mais à frente, sobreposto em duas altas colunas de tijolo


aparente, além do nome do restaurante, vemos a figura que serve de logotipo da
empresa: o matuto, também conhecido como caipira. Na visão dos proprietários, trata-
se do “morador da roça”, a representação do “sujeito simples que lida com a terra”. No

70
site oficial da empresa, é ele quem faz as apresentações – um anfitrião um tanto
incomum, poder-se-ia imaginar, para um restaurante cujo público consumidor abrange,
principalmente, as classes médias e altas de Fortaleza. Vestido em calças remendadas,
falando “Cearês” e segurando uma galinha, ele cativa pelo exotismo e pelo bom humor.

Passando-se por baixo do letreiro, acessa-se um estreito corredor, cercado de


plantas por todos os lados, inclusive no teto, que leva à parte interna do restaurante,
separada do estacionamento apenas por uma cerca de faxina, envolta em fios de arame,
que ladeia toda a área de consumo. Lá dentro, uma grande variedade de plantas e
objetos decora o ambiente. De imediato, tem-se uma impressão ligeira de que está tudo
meio “fora de ordem”. Nada mais compreensível: o volume exagerado de artefatos
ornamentais parece fugir dos padrões estéticos costumeiramente adotados pelas casas
modernas de comercialização alimentar, cuja lógica da beleza decorativa é regida pela
aversão ao excesso. Além disso, também a subversão do uso de certos objetos – que,
originalmente, possuíam outras funções e por lá são encontrados como elementos da
decoração – contribuem para o adensamento dessa sensação inicial de desordem. Vêem-
se, por exemplo, penicos, caçarolas velhas e pratos de metal, com símbolos de “proibido
fumar”, dependurados nas forquilhas; lenços de chita, gaiolas (que abrigam caixas de
som) e, até mesmo, celas de montaria suspensos no teto, por sobre as mesas; gibão e
chapéu de couro nas janelas; e nas paredes, gravuras, cortinas rendadas, portas-copo de
madeira e panôs de palha com bonecas de pano.

Figura 07 – Áreas de consumo do restaurante Lá na roça.

Tantos artigos expressam um esforço de inventário daquilo que é percebido como


singularidade sertaneja. Cada peça parece evocar aspectos diferenciados de um modo

71
de vida referenciado na tradição, cujos saberes e práticas romperiam imutáveis as
barreiras do tempo e do espaço. Combinados, estes artefatos transformam o restaurante
em um “espaço cultural”, por meio do qual é possível ver e sentir o sertão de que se
fala. Apresentado de forma nostálgica e idealizada, o universo rural ali construído vai,
assim, envolvendo o consumidor urbano, cativando-o com aquilo que parece faltar na
cidade, como certa calmaria e amplidão, acrescidas ainda de uma aprazível simplicidade
dos gostos e costumes.

Presença inarredável na fala dos donos e funcionários do Lá na roça, a idéia de


simplicidade permeia todas as dimensões do restaurante, constituindo ponto de
centralidade em sua formação regional. Da produção culinária, por exemplo, ela é o
“segredo” que torna mais saborosos os “pratos”. “Aqui” – disse-me um dos cozinheiros,
certa vez, – “o que a gente faz é comida caseira extramente simples. Nenhuma
sofisticação. O segredo de ficar tão gostoso é a simplicidade”. Opondo-se, assim, ao
requinte e à artificialidade esperada das cozinhas profissionais, a noção de simplicidade
intenciona, em seu uso corrente no restaurante, uma exaltação da culinária doméstica
que, embora limitada em técnica e variedade, acompanharia a sensação de bem-estar e
segurança proporcionada pelo reduto do lar.

No que tange à ambientação, a modéstia das acomodações e dos ornamentos é


reflexo da pretensão dos proprietários de recriar no Lá na roça uma “casinha do
sertão”.68 Em nome da fidelidade do estabelecimento à “simplicidade rural”, as mesas
pesadas de madeira desgastada pelo tempo – retangulares, na maioria, mas também com
formatos irregulares, quase sem acabamento – dispensam toalhas, contrariando os
padrões estéticos e de higiene costumeiramente adotados em estabelecimentos de
consumo alimentar. Poucas são as cadeiras disponíveis. Observa-se bancos compridos
de madeira, para quatro ou cinco pessoas, na maioria das mesas. Apenas em algumas é
possível encontrar assentos individuais, conhecidos como tamboretes de couro. Em um
dos pontos do alpendre que abriga a área de consumo, uma árvore de grande porte se
camufla ao cenário, deixando expostos, próximo das mesas, seus troncos robustos e
algumas galhas verdes, ficando a maior parte de sua copa oculta pelo teto de varas.

68
Convém atentar para o fato de que a utilização do termo “casa” no diminutivo exprime não apenas a
dimensão do imóvel imaginado, mas também o nível social dos possíveis moradores. Obviamente, longe
de indicar uma opinião pejorativa, o termo expressa certo romantismo acerca das carências econômicas
do sertão, supostamente compensadas, na visão dos proprietários, pelo “contato com a natureza” e pela
“vida tranqüila, longe do estresse e do barulho da cidade”.

72
De um modo geral, o desconforto promovido pela rusticidade do espaço não
parece incomodar os visitantes que, ao contrário, mostram-se costumeiramente bastante
satisfeitos sentando em tamboretes de couro, não raro tirando fotos para recordação de
tal feito. Ouvi de um deles, certa vez: “isso é coisa antiga demais, difícil de ver hoje em
dia; coisa dos nossos antepassados, das nossas raízes”. A emoção de “reviver” no
restaurante uma época entendida como mais pura e em harmonia com a natureza
costuma agradar ao consumidor urbano da atualidade, fadigado pela rotina acelerada e
multifacetada de seu próprio tempo. Nessa perspectiva, passam-se quase despercebidas
certas “incoerências” espaços-temporais, amenizadas pela impressão de reencontro com
práticas de um passado romantizado e compreendido como “nosso”. Assim, igualmente
como acontece no Chica Sinhá, no Lá na roça, comer deitado em uma das redes que
decoram o ambiente ou tirar nelas um cochilo após o almoço não constitui nenhuma
gafe e a mesa mais disputada encontra-se embaixo da árvore anteriormente citada69,
mesmo conhecidos os riscos de se fazer uma refeição ali.

Apesar de deslocados das convenções urbanas de comportamento – e,


possivelmente, por isso mesmo –, tais costumes exercem relevante fascínio nos
freqüentadores do Lá na roça. O universo supostamente estável e simplificado do
sertão, o estilo “natural” de vida do sertanejo, parece adequado às classes altas da cidade
como instrumento de diferenciação social, dada a vulgarização, favorecida pelo
aprimoramento da indústria e dos meios de comunicação, dos hábitos e produtos
importados – que, como vimos, por séculos foram incorporados ao cotidiano brasileiro
pelos grupos dominantes locais como forma de distinção.

Assim, em tempos de acesso fácil a gigantescos supermercados, uma bodega de


paredes caiadas e com reduzida variedade de produtos promove grande curiosidade e
alvoroço. Logo na entrada do Lá na roça, um pequeno cômodo tenta reproduzir esse
pitoresco modelo de comércio. Durante alguns anos, a bodega funcionou como um
espaço autônomo de venda dentro restaurante, onde era possível adquirir uma infinidade
de artigos ditos “do sertão”: doces em compota, cajuínas, artigos de barro, peças em

69
Tamanho é o valor dado à “mesa da árvore” que foi preciso fazer algumas adaptações no espaço para
que ela pudesse ser utilizada também nos meses chuvosos. Conta um dos proprietários: “quando eu
comprei as mesas pro restaurante, sobrou uma que não coube na varanda que, na época, logo no início,
era menor que essa [atual]. Eu não tinha aonde botar, aí eu botei ali debaixo da mangueira. Fiz um piso lá
perto e coloquei. Aí eu comecei a observar que era onde o cliente mais queria ir era pra debaixo da
mangueira. Só que no inverno eu perdia minha mesa embaixo da mangueira. Aí eu foi que eu fiz? Mandei
cobrir uma parte, só que deixando ainda a árvore visível. Pronto, é o ano todinho agora aquela mesa
cheia. O nosso cliente gosta demais.”

73
couro, barris de madeira para cachaça, farinha, lambedores caseiros70, vassouras e
cestos de palha, etc. Nos últimos anos, entretanto, uma reestruturação da logística do
estabelecimento manteve o espaço apenas como anexo da área de consumo, com
algumas poucas mesas disponíveis. Principalmente aos fins-de-semana, o cenário
também atrai muitas pessoas como plano de fundo para fotografias – por certo, uma
lembrança não apenas do restaurante, mas também do lugar social ali retratado, bastante
incomum nos dias de hoje.

Figura 08 – Bodega do Lá na roça.

Ao lado da bodega, mais ao fundo do estabelecimento, encontra-se o Espaço


Otacilândia, construído há poucos anos. Conforme informaram os proprietários, tempos
após a inauguração, eles perceberam que o aumento gradual do número de pessoas que
almoçavam regularmente no Lá no roça exigia uma expansão do restaurante, de modo a
proporcionar maior conforto e variedade ao sistema self-service. Na época, a exposição
dos “pratos” ficava muito próxima das mesas, dificultando, em alguns horários, a
circulação dos consumidores. Criou-se, então, inspirado na arquitetura da fazenda da
mãe da proprietária do restaurante – localizada em Ipueiras, no Ceará, e em atividade
desde 1624 –, o Espaço Otacilândia, cujo nome é uma homenagem ao avô da mesma.

70
Tipo de preparo para fins medicinais cuja base é, quase sempre, o mel de abelha, adicionado de ervas e
raízes variadas, conforme a finalidade fitoterápica do mesmo.

74
Figura 09 – Espaço Otacilândia, Lá na roça.

Amplo e naturalmente iluminado, graças às soluções arquitetônicas imitadas da


antiga fazenda de Ipueiras, o lugar é totalmente construído em tijolo aparente e coberto
de telhas de barro. Imitando um grande fogão a lenha, a bancada do self-service tem
capacidade para mais de cinqüenta opções de pratos. Os preparos seguem as orientações
do caderno de receitas da avó da proprietária. Entre as variedades disponíveis, o baião-
de-dois e a paçoca de pilão são o orgulho da casa, produzidos, de acordo com os donos
do empreendimento, “do jeitinho que era feito há duzentos anos”, utilizando técnicas
tradicionais de preparo – todavia, padronizadas até na medida do sal: uma forma de
conservar o sabor, independente do cozinheiro em atuação, mas também de propiciar
possíveis esquemas de franquia da marca.

Figura 10 – À esquerda, o self-service de saladas verdes e legumes; à direita, o de


“sobremesas caseiras”.

Além dos pratos salgados disponíveis – na visão dos proprietários, uma seleção de
comidas genuinamente sertanejas, limitadas ao que eles chamam de “ingredientes do

75
sertão” –, saladas cruas e frutas fatiadas, marcas dos modelos dietéticos
contemporâneos, também compõem a oferta culinária do restaurante como uma forma
de balancear o teor calórico e o sabor acentuado da culinária oferecida, cuja fama de
“pesada” e “indigesta” não parece influenciar a preferência dos mais de 4500 clientes
atendidos por mês no Lá na roça. Após a refeição, saborear uma das muitas opções de
doce de compota oferecidas parece irresistível. São cerca de 20 sabores, todos
preparados artesanalmente pela mãe da proprietária – que ficou conhecida entre os
clientes por Vovó Zil.

Funcionando de terça a domingo, para o almoço e café do manhã, o Lá na roça


constrói uma imagem regional agregando costumes e sabores considerados autênticos
de uma experiência histórica. O tradicionalismo inerente a sua concepção, fincado
naquilo que os donos acreditam ser o verdadeiro sertão, o impede de abrir em feriados
como a sexta-feira santa, posto o costume cristão de se comer peixe nesta data – um
alimento, segundo a proprietária, relativo à cultura litorânea, não à sertaneja.71 Unindo
a limpeza e o bom serviço à rusticidade de estilo, o restaurante alcança um público
misto de turistas e moradores locais, sendo estes mais numerosos e assíduos, todos
dispostos a pagar caro72 para degustar os fortes sabores das iguarias sertanejas, aos
moldes do sertão.

71
Enfática, ela me comunicou por telefone, certa vez: “eu fecho na sexta-feira da Paixão porque eu não
vou mudar o meu cardápio pra vender peixe só porque é sexta-feira da Paixão”.
72
Como foi dito em seção anterior deste trabalho, atualmente é cobrado o valor de R$ 27,80 (quilo),
durante a semana, e de R$ 31,50 (quilo) nos fins de semana. A diferença de preço é justificada pelo
aumento da variedade de pratos.

76
CAPÍTULO III
CONSTRUÇÕES REGIONAIS DA ALIMENTAÇÃO: HISTÓRIA,
IMAGINÁRIO E MEMÓRIA SOCIAL

Pois a verdade parece ser realmente esta: a das nossas


preferências de paladar serem condicionadas, nas suas
expressões específicas, pelas sociedades a que pertencemos,
pelas culturas de que participamos, pelas ecologias em que
vivemos os anos decisivos da nossa existência.
Gilberto Freyre (2007).

Somos o que comemos. A assertiva, múltipla em seus significados, já é velha


conhecida de especialistas e do senso comum. Em termos fisiológicos, ela parece ainda
mais convincente. Isto porque a alimentação tem propriedades peculiares que a
distingue da maioria das formas de consumo. Uma vez deglutido, o alimento é
incorporado; entra no corpo do comedor e torna-se o próprio comedor, participando
fisicamente da manutenção de sua integridade (FISCHLER, 1998). Convém atentar,
entretanto, para o fato de que tal incorporação não se dá de forma mecânica ou
instintiva, num impulso incalculado de sobrevivência. Pressupõe, ao contrário, um saber
socialmente acumulado acerca dos limites do comestível e dos protocolos partilhados de
seu uso – mesmo em casos extremos como o da fome, as orientações culturais ainda
exercem influência sobre os indivíduos, que tecem estratégias de sobrevivência com
base em antigas referências alimentares. Comer engloba, portanto, um complexo de
crenças e conhecimentos técnicos que extrapolam os sentidos meramente nutritivos do
alimentar-se. Embora íntima em seus efeitos materiais, trata-se de uma experiência, a
um só tempo, socializante e socializada, definida em sua forma por representações
gestadas e absorvidas no jogo dos entrelaçamentos sociais. Evidências culturais
(MONTANARI, 2008), as práticas alimentares sinalizam sobre as sociedades das quais
emergem – não apenas como uma forma de identidade, mas, sobretudo, como um fértil
caminho para a interpretação de inúmeras questões sociológicas.

Tão mais que um simples best of culinário da região, exposto a turistas


despreocupados com os critérios de seleção de tal inventário, as cozinhas regionais são
espaços privilegiados para o entendimento dos mecanismos de organização e
transformação da realidade social. Revelam rituais cotidianos, formas de interpretação
histórica, bem como os desejos e incômodos de uma coletividade. Regidas por uma
lógica simbólica peculiar e resistente, elas dão novo sentido às práticas econômicas,

77
fetichizam-nas, configurando um meio eficaz e politicamente reconhecido – não apenas
no Brasil, mas em inúmeros países do mundo – de promoção do desenvolvimento local.
Como uma forma de linguagem, nos termos de Lévi-Strauss (2006), as cozinhas
regionais comunicam as impressões de uma sociedade sobre si mesma; expressam
memórias e imaginários tecidos num longo processo histórico de mediação entre
inevitáveis trocas culturais e a elaboração necessária de uma auto-representação, tão
real quanto idealizada.

Os dois restaurantes selecionados para este estudo constituem uma manifestação


material e uma possibilidade analítica de compreensão dos fundamentos daquilo que se
convencionou chamar de cozinha regional, no Ceará. Para fins deste trabalho, ela não
será abordada simplesmente como um conjunto de “pratos típicos” – ainda que, mesmo
de modo difuso, esses ressaltem nos estabelecimentos estudados. Aqui, buscar-se-á
interpretá-la como um espaço de acordos e tensões sociais, como um meio de acesso ao
entendimento das permanências e rupturas históricas que vem (re)definindo os modelos
alimentares urbanos no estado, impregnando-os de novas práticas e sentidos.
Visualizada como um amplo campo de relações, a cozinha regional encontrada nos
restaurantes engloba idéias e preocupações que ultrapassam os limites de seus muros,
reverberando noutros espaços e tempos, num ecoar permanente de símbolos e imagens
que vão recompondo histórias, costumes e visões de mundo.

3.1. Fabricações culturais: entre passados, encantamentos e práticas

3.1.1. O “resgate” das tradições culinárias sertanejas

A despeito das particularidades temáticas de cada restaurante, algumas


singularidades podem ser apontadas na composição regional dos mesmos. Uma delas se
refere à postura quase missionária adotada pelos proprietários na luta por um suposto
resgate das tradições culinárias oriundas do sertão nordestino. O termo expressa um
sentimento de desaparecimento próximo de técnicas, habilidades ou produtos
considerados sertanejos e, portanto, interpretados como parte de uma história comum a
todos os cearenses/nordestinos. Por vezes, ele aparece nos restaurantes, aparentemente,
mais flexível em sua noção e prática, como no caso do Chica Sinhá, cuja tentativa de

78
refinamento dos pratos regionais sugere o reconhecimento de uma necessária adaptação
daquilo que se entende por “receitas originais” ao contexto atual. Noutras, observa-se
uma maior rigidez na utilização do conceito, que implica uma efetiva recuperação do
“patrimônio culinário” de determinada época através de uma reprodução fiel de suas
receitas, tal qual eram realizados no tempo que se evoca. Quando perguntado a respeito
do que não poderia faltar em um restaurante de cozinha regional, um dos proprietários
respondeu:

Na parte da comida, a paçoca de pilão e o baião-de-dois feitos da


forma certa, porque são duas coisas muito características da nossa
comida e que realmente não se faz mais porque não querem
cozinhar do jeito mais trabalhoso ou mesmo porque essas receitas
se perderam. Essas receitas, ao longo do tempo, as pessoas
desaprenderam a fazer, quando eu digo se perdeu no tempo,
perdeu-se a receita. Então, hoje se faz da maneira moderna, né?
Usando-se de utensílios de cozinha mais modernos. Mas aqui,
não é só uma questão de ter a paçoca e o baião-de-dois. A
questão é ter a paçoca e o baião-de-dois feitos da forma
tradicional, resgatando-se essa tradição, esses sabores, esse jeito
de fazer.

Mas, do ponto de vista cultural, como seria possível resgatar um gosto do


passado? Para Montanari (2008: 106), reconstituir a “sensação de um tempo” é algo
tecnicamente impossível. Por duas razões simples: os produtos já não são os mesmos
(ainda que levem o mesmo nome) e, o mais importante, os sujeitos são outros (com uma
educação sensorial, inevitavelmente, distinta). Logo, sugere o autor, “a proposta poderia
ser a de jogar com a ‘cozinha histórica’, respeitando algumas regras (não há jogo sem
regras), mas sem cair na empáfia da reconstituição filológica com fim em si mesma, da
receita retomada em sua ‘autenticidade’”.

Contudo, as referências ao teor autêntico das iguarias sertanejas disponibilizadas


nos restaurantes é uma constante na fala dos proprietários em estudo – inclusive o do
Chica Sinhá. Por certo, a defesa dessa autenticidade constitui, nos discursos analisados,
a criação de um diferencial mercadológico para os produtos oferecidos. Todavia, reduzir
tais valores a uma mera manipulação publicitária parece um erro. Há, no discurso dos
sujeitos pesquisados, um sentimentalismo nostálgico, uma crença incorporada na
validade do sertão como raiz de uma história comum, que perpassa e dá sentido à

79
racionalidade mercantil. Autodenominados sertanejos, eles afirmam sentirem-se na
obrigação de “preservar as tradições da culinária do sertão, antes que elas desapareçam
para sempre”. O depoimento do mentor do Chica Sinhá é expressivo desse desejo de
salvaguardar o que Poulain (2004) intitula de “paraíso culinário perdido”. Enquanto
explicava as razões que o levaram a optar pelo estilo rústico da decoração do
restaurante, ele afirmou:

Essa concepção ela já faz parte da minha própria cultura, da


minha própria visão do que seja uma fazenda, do que seja uma
casa antiga dos nossos sertões. Porque, inclusive, eu sou
sertanejo. Eu nasci no Icó. Minha primeira infância foi no Icó
Mirim, num ambiente totalmente rural. E isso fica impregnado no
subconsciente da gente, na nossa maneira de perceber, de sentir e
de ver as coisas. Então, muito do que tem aqui é o que eu
guardava na minha memória e que muita gente guarda também,
mas que não vê mais porque as coisas estão muito mudadas, hoje.
Mas os nossos sertões são muito ricos, têm muita beleza, muita
comida gostosa, forte, e eu não poderia deixar isso morrer assim.
Aí eu fiz o restaurante.

Essa inclinação para o “resgate” de uma “autenticidade perdida”, além de um


incentivo do setor turístico, reflete uma das mais expressivas angústias da chamada
“modernidade alimentar”. As últimas transformações estruturais da cadeia produtiva de
alimentos têm provocado certo abalo, de alcance mundial, na aparente solidez
conceitual de comida. Com a industrialização em massa dos gêneros alimentícios e a
proliferação dos restaurantes de comida rápida (os fast-foods), instala-se entre os
consumidores uma impressão negativa da “artificialidade” desses produtos, suspeitos
pela utilização de procedimentos e conservantes desconhecidos pela população em
geral. Restrita sua fabricação – anteriormente, parte das atividades domésticas de
cozinha – a uma série de máquinas estranhas e aos mandos de “inescrupulosos
empresários que só visam o lucro”73, o alimento moderno gera receio, instituindo uma
sensação de insegurança causada, possivelmente, pela falta de sentido oriunda do
afastamento do comedor dos processos de produção de seu próprio alimento.

Poulain (ibidem: 26) nos faz lembrar que, na segunda metade da década 1990, “um
mundo de tecnologias cada vez mais sofisticadas nas mãos de aprendizes de feiticeiro,

73
CALS, Jorge. “Sabor Nordestino”, Jornal O Povo, Boa Mesa, 07 de julho de 2007.

80
prestes a transgredir as ‘regras da natureza,’” salta aos olhos dos telespectadores
urbanos, diariamente, em horário nobre, nos noticiários de TV, exibindo as intervenções
(ora benéficas, ora anômalas) dos conhecimentos industrial e genético nos produtos
alimentares. Da vaca louca à vaca canibal74, passando pela proliferação de transgênicos
e pelo uso ameaçador de agrotóxicos, as desventuras dos industriais e produtores do
ramo alimentício vão sendo expostas à ansiedade cada vez mais exacerbada dos
consumidores, que vêem esvaírem-se suas certezas acerca do que comem. Ainda
segundo o autor, “um sentimento de crise se instala de modo durável; sentimento que a
multiplicação de colóquios e conferências sobre ‘segurança alimentar’ amplia mais do
que diminui”.

Os fast-foods – ou frankenfood (junção de Frankenstein e food), conforme a gíria


inglesa – encarnam, então, a insígnia de uma modernidade alimentar pervertida;
constituem uma ameaça declarada aos modos mais tradicionais de preparar e consumir
os alimentos. Junto aos produtos industrializados são, portanto, costumeiramente
designados de “comida falsa” ou “não-comida” (RIAL, 2006). Por um processo
metonímico, também as casas que oferecem esse tipo de produto constituem “falsos
restaurantes” – talvez por isso muitas cadeias de fast-food prefiram empregar o termo
“loja” para classificar seus estabelecimentos. Assim compreendidos, são solenemente
ignorados nas classificações das mais apreciadas “bíblias” locais e internacionais do
bom gosto culinário – mesmo conhecidas as dimensões de público atraídas por esse tipo
de empreendimento (o que, por outro lado, pode ser considerado, possivelmente, uma
razão para essa ausência).

Interpretados, ainda, como os grandes vilões do aumento da obesidade adulta e


infantil verificada nos últimos tempos – para alguns especialistas, uma verdadeira
“pandemia” da contemporaneidade (GARCIA, 2007) –, os fast-food contribuíram para
uma reaproximação entre medicina e culinária, viabilizando uma reformulação das
orientações dietéticas. Assim, as preocupações com a saúde e com a estética do corpo
ganham cada vez mais importância na lista das prioridades cotidianas, passando a
instituir uma relação aparentemente conflituosa com a alimentação ou, mais exatamente,

74
A expressão foi título de uma matéria, veiculada em um jornal francês, citado por Poulain (2004), que
fazia referência ao surto europeu de Encefalopatia Espongiforme Bovina (a doença da vaca louca) e à
conseqüente descoberta do que poderia ser sua principal causa: um tipo de ração consumida pelo gado
feita com carcaças de outros animais, inclusive de bois e vacas.

81
com La mal bouffe75. As dietas ou normativas médicas para um “estilo de vida
saudável” impõem-se, de um modo geral, como restrições aos prazeres da mesa.76
Conforme sugere Montanari (2008), baseada na análise química mais que na observação
física77, a ciência dietética começa a falar uma língua diferente, usando categorias
estranhas ao universo alimentar. Transformada em fórmulas e palavras sem qualquer
ligação com a experiência sensorial – “quem conhece o sabor dos carboidratos ou o
gosto das vitaminas?”, questiona o autor –, a comida é desmistificada, deslocada de sua
função de regozijo, esgotando-se, praticamente, em seu aspecto nutricional. Uma vez
mais, o conceito é posto em xeque, incitando reavaliações acerca do que seria ou não
“verdadeira comida”. Ainda que, hoje assim como ontem, os ditames da dietética
incidam de forma profunda sobre os modos de aproximação da mesa, é preciso
reconhecer também que a nova ciência nutricional, em contraponto, destoa o equilíbrio
anteriormente estabelecido entre saúde e prazer gastronômico, incitando nos
consumidores angústia e nostalgia de tempos em que essa preocupação ou não existia,
ou tinha importância menor. Por conseguinte, as definições acerca do que seria uma
“verdadeira” ou uma “falsa” comida são perpassadas por esses sentimentos. Na
concepção de Rial (2006: 202),

O critério que permite julgar um alimento como verdadeiro ou


falso é a sua proximidade ou distância da cozinha caseira, não
necessariamente a cozinha da casa de quem fala, mas a que se
cria em um passado nostálgico, em um tempo que permanece
indefinido: a época da mãe? Da avó? Quando se trata de gosto, os

75
O termo – criado nos 1970 para designar uma alimentação excessivamente calórica, processada, e
promover uma “alimentação sadia” – tem sido comumente utilizado na França e alguns países europeus
em referência ao consumo de guloseimas consideradas sem valor nutritivo. Em alguns dicionários de
língua francesa, ele aparece, de modo muito sugestivo, como umas das acepções para a palavra porcaria.
76
Ao que parece, um aspecto moderno da relação prazer-saúde. Em culturas pré-modernas, tal relação
não era imaginada de forma conflitante, mas como um nexo inseparável, no qual os dois elementos
(prazer e saúde) se reforçariam mutuamente (MONTANARI, 2008; SORCINELLI, 1998). Para
Montanari (ibidem: 90), “a idéia de que o prazer seja saudável, que ‘o que agrada faz bem’ é uma idéia-
base da dietética antiga e medieval. E as ‘regras de saúde’ são, antes de mais nada, regras alimentares,
entendidas não no sentido da restrição (como parece sugerir atualmente a idéia de ‘dieta’, hoje prevalente
na linguagem comum), mas da construção de uma cultura gastronômica”.
77
Convém lembrar que a dietética pré-moderna seguia as orientações da chamada “medicina galênica”,
assim intitulada em homenagem ao médico romano Galeno (século I d. C.) (SORCINELLI, 1998). Tal
medicina se baseava no principio fundamental de que cada ser humano possui uma combinação de quatro
fatores (quente/frio e seco/úmido), dos quais derivam uma combinação de quatro elementos (fogo, água,
terra e ar) que constituem o universo. A boa saúde estaria associada ao equilíbrio desses vários elementos.
Se um deles prevalece sobre o outro, constituiria providência indispensável recuperar o equilíbrio através
da ingestão de alimentos adequados, de natureza semelhante ao do elemento em baixa no organismo.

82
consumidores adultos mostram-se bem conservadores, no Brasil,
na França e em outros países.

Servindo “comida de verdade, feita como antigamente, sem conservante, do jeito


que a vovó fazia”, os restaurantes regionais estudados cativam o consumidor urbano na
medida em que apelam para o imaginário coletivo, incocando imagens de uma relação
menos tensa e mais feliz entre boa saúde e consumo alimentar. Nessa perspectiva, o
consumo em demasia, “até encher o bucho” (encher a barriga), é encarado como uma
idéia agradável e bem humorada, mesmo que nem sempre posta em prática. Mais que
isso: parece constituir, de um modo geral, satisfatório aspecto definidor de um “jeito
cearense de ser, de comer”. De acordo com um dos proprietários, “a gente [referindo-se
aos cearenses] gosta de comer bem, com sustança. Esse negócio de comer de pingo é
coisa de estrangeiro.”

De uso bastante comum, não apenas no espaço dos restaurantes analisados, mas no
Ceará, como um todo – especialmente no interior –, a palavra sustança também se
insere nesse contexto de “reação” aos padrões dietéticos em voga, atualmente,
sinalizando uma valorização dos pratos ditos sertanejos, aos quais é habitualmente
associada, apesar da fama de “indigestos” e “calóricos” dos mesmos. Com uma boa
dose de sutileza, o termo liberta esses preparos das classificações negativas que pesam
sobre eles, transformando-os em “comidas fortes”, que de fato alimentam, ao contrário
de um “cardápio saudável ideal”, divulgado em programas de TV e revistas de saúde,
cuja base se constituiria de frutas e verduras: alimentos considerados excessivamente
“leves”, que “podem até enganar o estômago, mas não matam a fome de ninguém”,
conforme a percepção de um dos mentores do Lá na roça – e ainda ligada à definição
para a palavra em Raimundo Girão (2000[1967]: sf. Resistência, vigor, robusteza,
fortaleza, corrutela de substância).

Essa reavaliação dos “alimentos sertanejos” configura um jogo de articulação


simbólica (entre rural/urbano e passado/presente) necessário à boa recepção, ao
reconhecimento, por parte dos consumidores dos restaurantes, da cozinha regional que
estes impõem como um dado positivo. Ressignificando personagens, objetos e histórias,
os restaurantes temáticos colaboram para a transformação do rústico em atrativo
estético e gastronômico para os grupos urbanos dominantes, convidados, ainda, a adotá-

83
lo como um marca de distinção social. Nesse processo, o tema da simplicidade
sertaneja ganha realce.

3.1.2. O elogio à “simplicidade”

Associada aos modos oriundos do sertão, a noção de simplicidade permeia todas


as dimensões dos restaurantes analisados, configurando importância destacada na
concepção regional verificada nesses espaços. Compreendida como um aspecto
característico de certos grupos menos favorecidos socialmente (em geral, representantes
do que vem sendo chamado de “cultura popular”) e evidenciando um desejo de
aproximação do natural, a idéia de simplicidade é apresentada como o “segredo” para a
conquista de uma vida plena e mais feliz. Além disso, é ainda compreendida como
garantia de “pratos” extremamente saborosos: de acordo com o proprietário do Chica
Sinhá, “quanto mais simples uma comida, mais gostosa ela é; acaso não é a comida
mais gostosa do mundo aquela feita pela mãe da gente, todo dia, na maior simplicidade
do mundo?”. Seja na culinária ou na ambientação, a idéia de simplicidade é inspiradora
de relações mais sólidas, de harmonia com a natureza, de prazer genuíno ao paladar:
sensações consideravelmente desejadas pelo elitizado público consumidor dos
restaurantes, que se dispõe a pagar bem para sentar-se em bancos desconfortáveis de
madeira e comer baião-de-dois sob a fronde de mangueiras ou cajueiros. As razões que
levam um turista a visitar restaurantes desse tipo parecem mais imediatamente
compreensíveis: as experiências referidas, interpretadas como típicas e exóticas,
configuram uma aventura de contato com uma “cultura Outra”, a qual o visitante é
estimulado a experimentar. Mas, o que dizer do consumidor local? Ou, de modo ainda
mais específico, como explicar essa inclinação para o gosto pelo “simples” nos
proprietários e nos freqüentadores regulares do Chica Sinhá e do Lá na roça?

É claro que uma tentativa de explicação mais esmiuçada poderia levar em conta a
opinião direta dos consumidores a esse respeito. Entretanto, conforme esclarecido ainda
nas páginas iniciais deste trabalho, a pesquisa que lhe serve de base priorizou como foco
de análise o discurso de proprietários e funcionários dos restaurantes selecionados, por

84
razões de ordem essencialmente prática.78 Contudo, penso que nem só pela fala é
possível acessar o universo simbólico que orienta as escolhas dos consumidores.
Considerando o gosto, tal qual Montanari (2008), não apenas como sabor, mas,
prioritariamente, como um saber, adquirido e reproduzido no convívio social, acredito
que, com base nas observações que realizei e no discurso dos sujeitos pesquisados,
algumas idéias podem ser elaboradas acerca dos motivos que conduzem à valorização
da chamada simplicidade sertaneja, tanto pelos consumidores (que regularmente optam
por fazer suas refeições nesses espaços, o que me parece um dado de considerável
relevância, nesse sentido, especialmente se levada em conta a disponibilidade de outros
tipos de restaurante na mesma área), quanto pelos mentores dos restaurantes (que
também costumam almoçar diariamente em seus estabelecimentos).

Ao que parece, essa “supervalorização” de uma suposta rusticidade rural pelas


elites não constitui exclusividade cearense; trata-se de um fenômeno amplo, verificado
em grande parte do Ocidente. No Brasil, assim como em outros países, conforme
veremos um pouco mais adiante, ela começa a ser esboçada nos movimentos de
identificação de um “caráter nacional”. Quando, a partir do início do século XX, uma
crítica à costumeira absorção de aspectos culturais estrangeiros pela elite nacional
começa a ser tecida, encabeçada por intelectuais envolvidos no Movimento Modernista
de 1922, uma tendência de busca (e conseqüente exaltação) pelo que haveria de mais
autenticamente brasileiro é estabelecida entre os pensadores e artistas do país. Com o
Manifesto Regionalista de 1926, esse rastreamento das manifestações culturais
expressivas da nação se regionaliza e ganha ainda mais veemência, dado o
conservadorismo injetado em tal processo. Ao mesmo tempo em que anuncia o
progresso e os valores modernos como malefícios, como ameaças ao desaparecimento
das singularidades regionais em prol de uma “excessiva unificação cultural”, o
Manifesto, escrito por Gilberto Freyre, enaltece as “tradições” associadas às classes
populares (especialmente, às rurais). Compreendidas como imaculadas pelas influências
externas que “descaracterizaram” a elite brasileira, elas passam a representar, deste

78
Durante as primeiras investidas no campo, algumas tentativas foram realizadas no intuito de coletar a
opinião dos freqüentadores dos restaurantes. Entretanto, no decorrer da pesquisa, optei por focalizar o
estudo nos funcionários e proprietários dos mesmos, considerando, de modo particular, as dificuldades
encontradas em campo para a execução de uma pesquisa paralela com os consumidores (como a
resistência dos proprietários em permitir uma abordagem dos freqüentadores para tal finalidade, uma vez
que isso poderia gerar algum tipo de incômodo indesejável) e o curto tempo disponibilizado para a
conclusão deste trabalho. Ainda assim, por meio da observação e de conversas casuais com
consumidores, pude compreender um pouco a dinâmica de utilização dos espaços analisados e os sentidos
a ela intrínsecos.

85
modo, as mais legítimas expressões nacionais ou regionais, devendo, portanto, ser
preservadas do “mau cosmopolitismo e do falso modernismo”. Para Oliven (2006: 47),

É significativo que, ao fazer a defesa intransigente dos valores do


Nordeste e da necessidade de preservá-los, Freyre escolha itens
do que é considerado atraso e/ou símbolo de pobreza. Assim, por
exemplo, ele tece um elogio aos mucambos como exemplo de
contribuição do Nordeste à cultura brasileira, no sentido de
abrigo humano adaptado à natureza tropical e como solução
econômica do problema da casa pobre.

Na medida em que a cultura é compreendida como um instrumento de dominação,


ela passa a constituir, então, uma questão política. A “cultura popular”, posta em
contraposição a uma “cultura hegemônica”, é, nesse sentido, tomada como um conjunto
de manifestações ingênuas e originais, que estariam ameaçadas de desaparecimento pela
força dominadora da “alta cultura oficial” – e, mais recentemente, da chamada “cultura
de massas”. Conforme nos explica Ortiz (2001: 160), nessa forma de concepção da
cultura, acentuada nos 1930, “popular significa tradicional, e se identifica com as
manifestações culturais das classes populares, que em princípio preservariam uma
cultura ‘milenar’, romanticamente idealizada pelos folcloristas”. Nessa perspectiva, ele
é visto como objeto a ser conservado em museus, livros e casas de cultura.

Ainda de acordo com Ortiz (ibidem), em meados do século XX, outra corrente de
discussão do “nacional-popular”, mais politizada, aparece na cena histórica. Múltipla
em seus matizes ideológicos79, ela propunha o rompimento com a perspectiva
tradicionalista e conservadora que percebia a “cultura popular” unicamente do ponto de
vista folclórico, transformando-a em um caminho para levar as classes populares a uma
“consciência crítica” dos problemas sociais e, consequentemente, da nação que se
desejava construir. Todavia, a antiga concepção de popular não desaparece. Ao
contrário, e diferente do que se costuma imaginar, ganha novo impulso com o avento da
Indústria Cultural, uma vez que esta se apropria dos valores locais como estratégia de
implantação. Se considerarmos a expansão do alcance da televisão, tomando como
exemplo o caso da Rede Globo, percebemos que a criação de um “sistema regional”, por
meio do qual era adicionado à programação dos estados ou regiões um toque local à

79
Segundo Ortiz (2001: 162), “reformista para o ISEB, marxista para os Centros Populares de Cultura,
católica de esquerda para o movimento de alfabetização e o Movimento de Cultura Popular no Nordeste.”

86
massa de informações transmitidas, foi de importância fundamental em sua
consolidação nacional. Conforme o artigo Mercado Global, citado por Ortiz (ibidem:
166), “a implantação da Rede Regional de Televisão foi uma forma de impedir que o
homem do campo ficasse alienado do meio em que vive, produzindo-se localmente
programas que abordassem temas sobre a vida da comunidade-pólo”. Nesse contexto, a
fabricação e reprodução de imagens regionais são inevitavelmente realizadas,
considerando-se, de modo muito particular, as peculiaridades folclóricas, que dão um
“colorido” especial à programação local.

Obviamente, não se pode negligenciar que a emergência de uma indústria cultural


e de um mercado de bens simbólicos reorganiza o quadro cultural e dá à noção de
popular nova abrangência. Ela se reveste de outros significados, passando a constituir
também aquilo que é mais consumido. Nesse sentido, não me furta o entendimento de
que indústria cultural (por meio da TV, do rádio, da publicação em massa de livros e
revistas, etc.) promove uma reinterpretação da cultura popular e das compreensões de
uma “identidade nacional/regional” em termos mercadológicos. Dito de outro modo:
por considerar o consumo como categoria para a medição da relevância dos produtos
culturais, a lógica de mercado despolitiza a discussão. Todavia, não há, neste trabalho,
qualquer interesse de julgamento acerca das categorias utilizadas na identificação de
manifestações da cultura popular como aspecto representativo da nação ou da região. As
referências históricas e as posturas conceituais aqui sintetizadas acerca da idéia de
“popular” constituem apenas uma tentativa de compreensão sociológica dos
fundamentos históricos e culturais que possibilitaram a configuração de um fenômeno
social particular: a constituição e exaltação dos produtos regionais no Ceará.

Nesse sentido, o apelo à “simplicidade sertaneja” como um elemento positivo e


característico da cozinha regional, verificado nos restaurantes estudados, parece
constituir fruto de um processo de organização nacional da sociedade e do Estado
brasileiros, para o qual contribuiu (e contribui) uma série de movimentos intelectuais,
sociais e mercadológicos. Quando uma diretriz de “procura” é instituída como parte de
um desejo de compreensão do que seria representativo da “alma do povo brasileiro”, as
manifestações culturais associadas às classes populares são, então, interpretadas como
mais puras e genuínas, constituindo, portanto, símbolos ideais de caracterização
regional/nacional. É claro que este é um processo bem mais complexo e instável do que
pode parecer, à primeira vista, uma vez que nem tudo o que é considerado popular é

87
absorvido nesse jogo de identificação – até mesmo porque, como vimos, a própria
definição de “cultura popular” é transitória e imprecisa, sendo constantemente
reavaliada, conforme as novas situações e interesses históricos. Porém, grosso modo,
apropriam-se, comumente, como aspecto compositório dos quadros regionais, apenas
“manifestações populares” referendadas na tradição (seja ela uma invenção recente ou
não). Nessa perspectiva, os costumes rurais são os mais requisitados, posto que
expressivos de um espaço social originário, onde se encontrariam nossas raízes
culturais.

Logo, o que se entende por “simplicidade sertaneja” difere, portanto, de “pobreza


do sertão”. Nos restaurantes, não há sertão pobre, “de fome e seca”. Ao contrário, o
sertão por eles evocado, nos cenários e no cardápio, é de uma riqueza incalculável, não
apenas do ponto de vista cultural, mas também numa dimensão econômica, perceptível
no “potencial agrário e pecuário” que lhe seria evidente, “hoje um pouco mais que
ontem, é verdade”, conforme percebe o proprietário do Chica Sinhá. A simplicidade
sertaneja, tão comunicada por proprietários e consumidores como um dado cultural que
orgulha e diferencia o cearense ou o nordestino, expressa um “jeito de viver”
simplificado (e, acredita-se, mais feliz), se comparado ao estilo de vida moderno das
grandes cidades. O desconforto e as possíveis carências vividas pelo sertanejo na
rusticidade de sua vida rural são vistos sob um prisma romantizado. Por meio de uma
inversão simbólica – compreensível se alocada nos processos a pouco citados de
elaboração de uma “comunidade imaginária” (ANDERSON, 1989) brasileira e de
mercantilização de tais imagens –, as limitações econômicas e sociais do sertanejo (o
cearense ou nordestino do passado) são revestidas em histórias de superação e
heroísmo, contadas sempre com o bom humor que nunca teria lhe faltado, mesmo nos
momentos mais duros. Nesse mesmo quadro, a percepção da humorista cearense Valéria
Vitoriano (criadora da personagem Rossicléia) é expressiva dessa ressignificação da
condição sertaneja. Em entrevista à revista eletrônica Fator Brasil, ela afirma que: “o
nordestino é um povo que sofreu muito. Nossos ancestrais comeram muito jabá com
rapadura e se acostumaram a rir da própria desgraça, tirando proveito de cada dia, sem
perder a esperança.”80

80
“Verão esquenta economia da cultura em Fortaleza”, Revista Fator Brasil, Cultura e Lazer. Disponível
em http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=4559 Acesso em 11 de abril de 2008.

88
É emblemático, portanto, que a figura do matuto tenha sido adotada como logotipo
do Lá na roça. Quase sinônimo de habitante pobre do interior ou do sertão, o termo
tinha originalmente um uso pejorativo, apontando o indivíduo “deslocado” das regras de
civilidade que regem o comportamento urbano. No início do século XX, em um de seus
escritos intitulado Outrora, no Ceará, João Brígido (2008) conta uma história jocosa
que ilustra de forma divertida o que se entendia por matuto, ao mesmo tempo em que
revela certo embaraço, como um modo de “preconceito”, diante das peripécias de tais
sujeitos:

(...)
Matutos havia que, não se sabe por que, embirravam até com o
nome!
Um, vimos nós, há cinqüenta anos, que, indo a uma mesa de
vila, mui prevenido e receoso de fraudes, para lhe meterem no
bandulho algum café, não quis participar de uma torta; porque,
com muita franqueza e desembaraço, declarou à dona de casa:
Ela o queria enganar... aquilo era café!...
Um sujeito que, há largos anos, tinha ido à Bahia, falava com
acento de admiração e ainda deslumbrado de um baile de
militares, a que tinha tido a subida honra de assistir. Contava
que ali tinha aparecido um vinho tão bom e tão grosso, que se
trinchava a faca e garfo!...
Que diabos lhe disseram ou lhe deram de comer, não se pode
adivinhar.
Não há sessenta anos, F..., na vila de Pajeú, precisando sair pela
manhã, mandou que, na sua ausência, servissem almoço a
alguns jurados, que lhe tinham ido meter em casa. Posta a mesa,
os matutos consultaram entre si, como começariam a servir-se
do café, do açúcar, do pão e da manteiga, que estavam à vista...
Resolveram comer primeiro o pão e, em seguida, o açúcar, para
finalmente beberem o café.
Mas o que fazer da manteiga?
Um deles disse que aquilo era uma papa; outro que coisa de se
comer com farinha, e um terceiro se propôs a pedí-la.
Um derradeiro, porém, mais avisado em etiquetas e cerimônias
de vila, opôs-se dizendo: Você está doido? Já viu pedir-se
farinha na casa alheia?... Então, assentaram todos de comer
aquilo, como estava; meteram-lhe as colheres, e foi um dia...
manteiga.
Não podemos prosseguir...
Está-nos aí o leitor a fazer sinais de dúvida!

No site do Lá na Roça, o matuto, habitante da roça, é também, tal qual na história


contada por Brígido, inserido no posto de anfitrião da casa. É ele quem conduz o

89
visitante virtual pelo universo do restaurante, apresentando-lhe a história do
estabelecimento, seu cardápio e suas instalações. Mas se os matutos encontrados por
Brígido esforçavam-se no intuito de se adequar aos padrões comportamentais dos rituais
urbanos, não se verifica o mesmo esforço no matuto imaginário do Lá na roça. “Mal
vestido e falando errado”, conforme a descrição de um dos garçons do restaurante, ele
encanta os consumidores por sua espontaneidade e simpatia. Encarado o personagem
como o estereótipo de um jeito leve e divertido de levar a vida, é compreensível,
portanto, que ele já não apresente qualquer sinal de “vergonha” por não partilhar do
código comportamental citadino; afinal, é justamente o exotismo de seus modos sua
maior atração.

Figura 10. Vista panorâmica da homepage do site oficial do Lá na roça.

3.1.3. O prazer da cozinha caseira

A afeição pela culinária sertaneja é, concordando com a percepção de autores


como Montanari (ibidem) e Flausino, uma espécie de contraponto ao crescimento
contínuo das cidades e do industrialismo global. Isso porque, como nos sugere Poulain
(2004:52), a urbanização e a mundialização dos mercados alimentares desconectam o
alimento de seu universo de produção, colocando-o num estado de mercadoria que
“destrói parcialmente seu enraizamento natural e suas funções sociais”. O “mal-estar”,
nos termos de Bauman (1998), gerado nesse contexto de surgimento do comedor-
consumidor, que se vê cada vez mais afastado dos procedimentos de confecção de seu

90
próprio alimento, conduz ao que Morin (apud POULAIN, 2003) intitulou de
“mentalidade neo-arcaica”. Segundo o autor, tal mentalidade produz,

por meio de um duplo retorno aos valores da “natureza” exaltada


em oposição ao mundo artificial das cidades e da “arkhé”
rejeitada pela modernidade como rotina e atraso, uma inversão
parcial das hierarquias gastronômicas a favor de pratos rústicos e
naturais. Assim os cozidos, os pães do campo, a broa de
manteiga, surgem na mesa burguesa; as batatas assadas, os
diversos assados em fogo à lenha, os legumes “naturais”, a
procura gourmand de vinhos, azeites, embutidos, produtos
coloniais em oposição aos produtos industriais; tudo isso traduz a
nova valorização da simplicidade rústica e da qualidade natural
que deixam de ser desprezadas em relação à sofisticação e à arte
complexa da alta gastronomia.

Os produtos artesanais ganham, então, destaque nesse novo quadro, legitimados


por sua suposta origem em um passado longínquo, tradicional. Compreendida a história
como uma linha de evolução progressista, por meio da qual o homem partiria de uma
condição essencialmente rural (e boa) para uma situação majoritariamente urbana (e
ruim), o passado é, portanto, interpretado como um tempo não corrompido pelas
máculas do tecnicismo e da ameaça padronizadora dos costumes; um tempo rural e
desapressado, onde as relações sociais e os prazeres da vida são mais duradouros.
Idealizado, ele agrega, portanto, um universo culinário mais seguro e de sabores
inigualáveis, consagrado na imagem da vovó quituteira81, personagem icônica que ronda
o imaginário social como uma senhora gorda e amorosa, cujas demonstrações de afeto
estão quase sempre ligadas ao oferecimento de uma mesa farta, aberta a todos.
Utilizando ingredientes naturais e técnicas artesanais de preparo, quase sempre
trabalhosas e repletas de “truques” místicos, as receitas “do tempo da vovó” são alçadas
para o presente por meio da tradição, de modo a promoverem a recuperação de uma
emoção gastronômica que, acredita-se, foi perdida em meio à massificação que
acompanhou o desenvolvimento da indústria alimentar.

Essa íntima conexão entre uma “cozinha afetiva” e a mulher, como característica
do que vem sendo chamado de “Utopia da ruralidade feliz” (POULAIN, 2003), é
encontrada de forma bastante clara nos restaurantes. No caso do Lá na roça, por

81
Que a personagem Dona Benta, de Monteiro Lobato, ajudou a inspirar.

91
exemplo, todas as iguarias oferecidas no cardápio seguem, conforme informações da
proprietária, as orientações do caderno de receita ou dos livros centenários de culinária
da mãe da mesma, a Vovó Zil. Espécie de guardiã desse conhecimento, ela teria
repassado boa parte de sua experiência culinária aos futuros cozinheiros do restaurante
antes de ele ser aberto. No que diz respeito à doçaria, entretanto, apenas ela permanece
com pleno domínio das receitas. O ritual do preparo, repleto de detalhes e
“segredinhos”, desde o modo de lavar a panela até a forma de movimentar o tacho,
exigem um “jeito de lidar” e um “carinho pela cozinha” que se sobrepõe à técnica. A
esse respeito, disse-me a proprietária do Lá na roça:

Eu lhe dou qualquer receita de doce aqui e você num acerta fazer.
Porque doce, por exemplo, de banana: é égua, banana e açúcar.
Não tem outro ingrediente. Agora, o que minha mãe faz pra ele
ficar vermelho, aí é cheio de coisinha, cheio de “nove hora”...
Doce de leite cremoso. Pra ele ficar bem lisinho? Menina, até o
jeito de lavar o tacho de cobre faz diferença! Vou te contar uma
história recente. A mamãe contratou uma moça nova pra ajudar lá
em casa agora, mas a moça, claro, não sabia desse negócio da
lavagem. Aí a mãe fez o doce e tá lá na geladeira. Não prestou.
Ele adquiriu outra textura e outro sabor. Tudo porque ela não fez
um determinado procedimento antes de botar o leite dentro; antes
de ascender o fogo. Então, é cheio de detalhes, pequenos e
aparentemente insignificantes detalhes, mas que fazem enorme
diferença no resultado final do doce. Inclusive, muita gente não
leva a sério, mas até o seu humor influência, sabia? To falando
sério. Num é nem no sentido assim mais místico, assim, não. É
que é preciso concentração, mesmo, e gosto, carinho pelo que
você ta fazendo pra que aquilo saia bem feito, saboroso.

Já no Chica Sinhá, a prática culinária é diretamente associada à personagem


feminina e bonachona de mãe-preta, o que fica expresso tanto na colher de pau
sustentada por ela, na figura que serve de logotipo à empresa (ver figura 01), quanto no
discurso derramado do proprietário pelas supostas habilidades intrínsecas da mulher
para com as funções de cozinha, como vimos anteriormente. Pintada de doçura nos
escritos de Freyre (2002; 2008) – autor conhecido e admirado pelo proprietário do
Chica Sinhá – e nas novelas de TV, a imagem de mãe-preta sobrevive de forma afetuosa
na memória social, posto que ela teria cumprido nos tempos patriarcais, muitas vezes, o
papel de uma mãe carinhosa e dedicada. Em um dos muitos trechos de Casa Grande e
Senzala (2002) em que Freyre faz referência a esta personagem, ele comenta que era a

92
figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o
menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou berço,
que lhe ensinava as primeiras palavras de português errado, o
primeiro “padre-nosso”, a primeira “ave-maria”, o primeiro
“vôte” ou “oxente”, que lhe dava na boca o primeiro pirão de
carne e molho de ferrugem, ela própria amolengando a comida.

Assim, associados a figuras femininas como a “vovó do interior” e a “mãe-preta”


de épocas pré-nacionais, imaginadas numa redoma de candura e talento culinário, os
restaurantes e seus cardápios partilham de uma memória gustativa agradável e saudosa,
que lhes imprime um significativo diferencial mercadológico. E isto se deve, em boa
parte, ao enquadramento da mulher no mercado de trabalho e à considerável ruptura
gastronômica que este fato ajuda a desencadear. Ora, com a redução do tempo
disponível para os afazeres domésticos, atividades historicamente destinadas à mulher, a
função culinária diminui, auxiliada ainda pelo desenvolvimento de equipamentos
urbanos (como os restaurantes) e da indústria alimentar (que passa a produzir alimentos
congelados e enlatados, prontos ou semi-prontos para o consumo). Para atender a uma
demanda crescente de trabalhadores e trabalhadoras que não podem retornar às suas
casas no horário das refeições, uma cozinha profissional é requisitada e amadurecida,
embora também visualizada com certa suspeita, posto que operada por estranhos, cujos
princípios e métodos de preparo rondavam as fronteiras do desconhecido. Por outro
lado, a cozinha doméstica, tradicionalmente mais segura e confortante, diminuía cada
vez mais em importância e prática – o que repercute, inclusive, na arquitetura das
residências modernas82 –, dadas as novas condições urbanas de sobrevivência e à
proliferação de produtos industrializados. O vazio gerado nesse processo conduz a uma
exaltação da “antiga comida caseira”, feita por mulheres menos apressadas. Saudoso,
Cascudo (2004: 36) afirma:

Os apetites são substituídos pelas fomes e a inquietação moderna


impossibilita as lentas paciências operadoras, realizando as
maravilhas do paladar. O comum, natural, obrigatório e lógico
para a mulher em nossos dias é saber improvisar um jantar,

82
Cada vez menos utilizadas, as cozinhas foram ocupando um lugar cada vez menor na arquitetura de
casas e apartamentos modernos, possibilitando o aumento ou a criação de espaços de lazer e descanso,
como sala de estar, os quartos e sala de jogos. (POULAIN, 2003)

93
enfeitar o prato, disfarçar a fisionomia de cada espécie deglutível
com a ciência nefasta dos corantes, das mistificações sugestivas,
da incaracterização gustativa. (...) O signo da velocidade anula e
desmoraliza as demoradas preparações que orgulhavam os
antigos gourmets. A industrialização dos alimentos reduz a
cozinha a um armário de latas. A técnica essencial limita-se a
saber abrir uma lata sem ferir os dedinhos. Um jantar egresso de
latas é ato de comer, mas não no nível de uma refeição.

Jogando com esse sentimento de falta, os restaurantes regionais anunciam-se


distintos dos concorrentes por oferecerem em seus cardápios “comida caseira”, feita aos
moldes antigos. Quando o estilo de vida moderno impõe transformações radicais às
práticas de cozinha, como bem nos faz lembrar Flausino (2006: 82), “o gosto da
comidinha lá de casa adquire novo valor”. Por meio de um criativo processo de
investimento simbólico, os restaurantes passam adotar, então, procedimentos artesanais
de fabricação culinária, estimulando a imaginação do consumidor a assimilar tais
preparos ao conforto e à segurança do lar.

No Chica Sinhá, é a mão feminina que garante o sabor caseiro. A exclusividade de


mulheres na cozinha, “cozinhando de pouco, arroz, feijão, galinha... essas coisas que
todo mundo gosta de comer em casa, diariamente”, tem, para o proprietário, significado
especial: “só as mulheres dão à comida o gosto caseiro que a gente aprecia tanto.
Alguns homens até cozinham bem, mas eles são técnicos demais; não cozinham com o
mesmo encanto, não.” No Lá na roça, embora também homens sejam contratados para
a cozinha, o gosto caseiro dos pratos também seria alcançado graças à “reprodução fiel”
dos conhecimentos de uma mulher, a Vovó Zil, cujo saber culinário, um sobrevivente às
intempéries históricas, deve ser, por isso mesmo, valorizado e praticado tal qual, de
modo que uma continuidade com o passado seja estabelecida – para a proprietária, uma
condição indispensável para a “preservação de uma tradição”.

Todo restaurante pega cebola, tomate, coentro, pimentão,


cebolinha, bota dentro do liquidificador, liquidifica, aí vira uma
papa que eles temperam tudo com ela. Botam na carne, no peixe,
em tudo. Aqui, não. Eu tempero um porco como se tempera um
porco; um peixe, como se tempera um peixe; um frango, como se
tempera um frango. A cebola, o pimentão, o tomate, etc. é tudo
cortado na hora. O alho é pilado, eu não uso alho de balde
processado que o povo usa por aí. Eu compro alho com casca. Aí
boto de molho, aí descasco, aí pilo. Porque eu faço assim? Porque

94
minha avó fazia assim. Porque o tamanho da cebola que minha
avó cortava é o tamanho da cebola que eu corto até hoje.
Tradição é isso.

A operação desses valores – lentidão no tratamento da produção como marca


artesanal, emoção como caractere básico do alimento saboroso, mistificação do lugar da
mulher no espaço culinário – sugere a cadeia de relações que sustenta a produção e
reprodução desta “materialidade de fazeres”. Mas sabemos bem, que, guardadas as
proporções da inventividade publicitária, o uso desses elementos continua sendo
historicamente produzido, além de socialmente produtor; o que significa dizer que a
encenação realista presente nessa mesma operação não escapa a dívidas históricas, no
sentido de serem marcas de processos de longa duração na tecitura das imagens.
Pensemos sobre isso.

3.2. Comida e território: pedaços de uma longa história

Todos os elementos e estratégias presentes no discurso dos restaurantes – de seus


proprietários, de sua lógica simbólica construída – dependem de um conjunto de
relações antigas, veladas pelo amplo processo de naturalização que converge em torno
das produções socialmente elaboradas. Essas relações, orientadas por um processo
contínuo de colonização econômica, política, cognitiva, estão vivas no passado europeu,
como dois pólos distintos. Primeiro, de uma “conversão” histórica de cozinhas
“internacionais” para espaços gastronômicos onde o regional passa a ser valorizado
como signo. A segunda relação vive de forma sutil dentro da primeira: se trata da
conexão entre a relevância crescente das “memórias locais” no panorama da formação
das nacionalidades e identificações e o incremento do produto alimentar local na pauta
de uma “economia do bom gosto”.

Nesse contexto, o que é possível pensar sobre a história dessas gastronomias


enquanto uma história de rupturas? As cozinhas regionais são, costumeiramente,
compreendidas como realidades atávicas, nativas, “antiqüíssimas”. Também
interpretadas como patrimônio gastronômico de uma localidade, este tipo peculiar de
culinária é fortemente operado como um símbolo identitário, um sinal por meio do qual

95
localizamos e somos localizados geograficamente.83 Representando, assim, uma cultura
de território, elas exprimem as “raízes” históricas de uma região, de um povo.
Entretanto, esse lugar-comum consolidado, segundo o qual a “comida da terra” expressa
um passado “perdido na memória”, que sobrevive intacto aos novos contextos, esconde
alguns equívocos sobre os quais é oportuno refletir.

Em primeiro lugar, é preciso reavaliar a noção de que as cozinhas regionais são


práticas alimentares conhecidas e valorizadas, coletivamente, “desde os tempos mais
remotos”. Este discurso acerca da culinária regional – bastante comum na fala dos
proprietários dos restaurantes estudados, como vimos – acaba por naturalizá-la,
encobrindo sua condição de produto essencialmente histórico, cultural. De acordo com
Montanari (2008), embora hoje o território constitua um valor de referência absoluta nas
escolhas alimentares, ele foi por muito tempo desprezado como critério de avaliação
culinário. É claro que os pratos produzidos com base nos recursos locais sempre
existiram. Entretanto, perceber a territorialidade como uma noção e como um dado
positivo é uma invenção, relativamente, recente. Montanari sugere, referindo-se ao
continente europeu, que ao “gastrônomo pré-moderno” interessava, principalmente (e
ao contrário do que costumamos imaginar), superar a dimensão local, ultrapassar os
limites territoriais por meio da comida:

Essa cultura sincretista significa, justamente, que a mesa é um


lugar potencialmente universal: de acordo com as
possibilidades de cada um – da mesa do imperador, descendo
aos poucos a escala social –, o objetivo primário continua sendo
reunir todo tipo de produto, todo tipo de lugar naquele mágico
lugar central que é a mesa posta. Na Idade Média, o mercado de
Bolonha ou de Milão faz falar de si não tanto porque ali se
encontram alimentos “locais”, mas por sua capacidade de se
definir como lugar de troca interterritorial, inter-regional,
internacional. O mercado de Paris durante séculos se organizou
do mesmo modo e viveu sob a mesma imagem. (2008: 137)

Não havia, portanto, uma vontade de “comer geográfico” (PITTE, 1998), isto é, de
conhecer uma localidade por meio de seus sabores, ou mesmo de se incluir em uma
“cultura de território” através da alimentação. Os produtos locais não constituíam

83
É neste sentido que Maciel (2004) propõe uma adaptação à conhecida frase de Brillat-Savarin (“Dize-
me o que comes e te direi quem és”), modificando-a para “dize-me o que comes e te direi de onde vens”.

96
nenhum vínculo memorial com o espaço. Embora estivessem estritamente vinculados
aos recursos e às tradições da região, não eram compreendidos e utilizados como uma
marca identificadora de culturas diversas. Eram, apenas, mais uma opção alimentar (a
mais acessível, deve-se dizer) em um “modelo de cozinha potencialmente universal”
(MONTANARI, 2008: 138).

Ao que parece, o que hoje chamamos de “cozinha internacional”, isto é, um tipo


específico de prática culinária aberta a um grande número de possibilidades de
combinação de ingredientes e modos de preparo, é que tem “raízes” bem antigas – ainda
que, comumente, seja caracterizada como uma das formas mais “modernas” de prática
gastronômica.84 As cozinhas romana “mediterrânea” e medieval “européia” eram
abertas à totalidade do mundo conhecido e freqüentado. Muitos são os relatos acerca
dos famosos banquetes romanos da época imperial, bem como daqueles realizados nas
cortes francesas nos séculos XVI e XVII, principalmente, nos quais o sincretismo dos
pratos dispostos à mesa é sempre referenciado.85

A dificuldade de acesso aos produtos estrangeiros – escassos e caros, dadas as


condições de transporte e de conservação dos alimentos, na época – contribuiu para que
eles se tornassem “artigos de luxo”, símbolos de privilégio social. No século VI d.C.
esta forma de diferenciação já era percebida. De acordo com Cassiodoro, ministro do
imperador Teodorico (454-526), “apenas o cidadão comum se contenta com o que o
território fornece. A mesa do príncipe deve oferecer de tudo e suscitar maravilha
somente ao vê-la”.86 Esta distinção assinalada pelo consumo de alimentos de outras
partes do mundo marcou, por milênios, as sociedades européias.

Uma inversão desta tendência só começa a ser percebida a partir do final do século
XVIII, primeiramente na França. O movimento de construção nacional promovido pelas
novas lideranças políticas, após a Revolução Francesa, impulsionou uma reorganização
do território e de suas representações, como vimos no capítulo I deste trabalho. De
acordo com Csergo (1998), o desenvolvimento do absolutismo e do centralismo tinha
favorecido em Paris, até então, o surgimento de uma “grande cozinha”, elevada à
“glória do Rei”, de ares essencialmente cosmopolitas. A emergência de uma

84
Em revistas de culinária ou em matérias de jornais, esse aspecto “moderno” e “sofisticado” da cozinha
internacional é quase sempre ressaltado. Justifica-se esta suposta “modernidade” da prática de misturar
produtos de origens diversas, em um mesmo prato, na facilidade de acesso aos alimentos de várias partes
do mundo promovida pelos processos de globalização, de integração mercantil.
85
Sobre estes banquetes, ver Alexandre-Bidon, 1998; Franco, 2006; Montanari, 2003; Strong, 2003.
86
Citado por Montanari (2008: 43).

97
personalidade culinária francesa, reivindicada na década revolucionária como parte de
um processo mais amplo de elaboração e afirmação de uma “cultura nacional”,
proporcionou uma constante desvalorização deste tipo de culinária. Em contraponto,
incentivou a ostentação das produções regionais, das tradições alimentares ancoradas às
“novas geografias da França”.

Para Montanari (2008: 141), “o momento de desenvolvimento das cozinhas que


hoje chamamos de “regionais” (atribuindo-as, excessivamente, a arquétipos históricos
que nunca existiram) de fato é o século XIX, ou seja, exatamente o período da
industrialização”. Tal afirmação pode parecer paradoxal, mas não é. Csergo (1998)
explica que os avanços tecnológicos e o “formidável crescimento urbano” que
marcaram esse período, geraram também inúmeras patologias sociais, denunciadas por
filósofos e literatos da época. Na medida em que apontavam os malefícios de tanto
progresso, estes pensadores exaltavam um estilo de vida rural (supostamente mais puro
e feliz) que, aos poucos, ia se perdendo no passado. Deste modo, “imagens duradouras
da sã rusticidade do povo primitivo das zonas rurais” (idem, ibidem: 808) começam a
ser elaboradas. Como se pode pressupor, a frugalidade alimentar desses sujeitos, sociais
e históricos, também passa a ser valorizada como parte desta construção imagética
estereotipada, de tom saudosista, que desenha o mundo rural em termos de sua sadia
relação entre homem e natureza e, portanto, também de sua autenticidade ou
originalidade dos costumes – supostamente imaculados frente às manchas da
“civilização”.

A relação entre ruralidade e regionalidade, tão “natural” atualmente, começa a


ser, então, tecida no interior das trocas sociais. O discurso que transforma a vida
camponesa em símbolo “autêntico” de uma cultura – ora regional, ora nacional –
encontra terreno fértil no complexo contexto de formação da nacionalidade francesa. Na
mesma medida em que são criados jardins patrióticos e museus de província, uma
cozinha, ancorada na diversidade das riquezas locais e tradicionais, é construída e
incorporada, paulatinamente, ao conjunto dos elementos representativos do território. A
publicação de livros de receitas “típicas” de algumas localidades demonstra esta nova
percepção acerca do alimentar. Segundo Csergo,

Na virada do século XVIII para o XIX são publicados na


França os primeiros livros de receitas “regionais” escritos por

98
cozinheiros profissionais ou donas de casa: em 1789 é editado
em Genebra La Cuisinière de Genève; em 1811, em alemão, em
Mulhouse, La Cuisinière du Haut-Rhin; em 1830 e 1835, são
publicados em Nîmes e Avignon, respectivamente, duas
coletâneas de receitas meridionais, Le Cuisiner Durand e Le
Cuisinier méridional d’après la méthode provençale et
languedocienne. (ibidem: 812)

A multiplicação dessas “resenhas” das especialidades culinárias “regionais”,


durante todo o século XIX, indica o estatuto que será outorgado ao território no
imaginário e nas representações simbólicas de nação e identidade nacional. A comida
do lugar, produzida com os recursos locais, começa, assim, a se libertar dos limites
geográficos e sociais nos quais estava mergulhada e a emergir como sinal distintivo da
localidade, tornando-se “um elemento notável da nação em sua diversidade e
representações” (idem, ibidem: 809). É neste sentido, por exemplo, que Charles-Luis
Cadet de Gassicourt, autor de Cours gastronomique (1808), assume como vocação,
ainda de acordo com Csergo, apresentar aos curiosos as origens dos alimentos e suas
formas “anedóticas”87 de utilização. Por meio de um olhar “antiquário”, Gassicourt
desenvolveu a idéia da criação de um museu ou gabinete de curiosidades gastronômicas,
no qual animais ou utensílios de cozinha representariam os principais produtos
alimentares que dão celebridade às localidades.

Conforme podemos perceber, apenas quando o espaço local passa a ser


compreendido como um objeto de saber, um lugar de memória, é que a comida da terra
assume uma conotação diferenciada. No momento em que o território francês é objeto
de um “inventário patrimonial”, natural e artístico, a alimentação é inserida em um novo
circuito de significação, passando a comunicar uma identidade, uma consciência de
pertencimento. Transformada em símbolo cultural, ela é “manipulada” como um sinal
de continuidade histórica, de um passado comum:

No prolongamento da concepção romântica do local como


conservatório da sensibilidade do passado constrói-se um
sistema de representações que transforma as cozinhas regionais
na encarnação das tradições da terra e da solidariedade
camponesa, dos costumes familiares e religiosos, a expressão
87
Assim como acontece hoje, no Brasil, as tecnologias tradicionais de produção culinária eram
transformadas em produtos “exóticos”, que chamam a atenção por serem “estranhos”, “curiosos”, se
comparados aos modelos atuais.

99
da nostalgia de um “outrora” anterior à revolução industrial e à
urbanização. (idem, ibidem: 814)

A idéia de cozinha regional é, assim, lentamente concebida e incorporada pelos


sujeitos da época. Metáfora culinária de um contexto, ela expressa a condensação de
variados pratos e preparos em uma espécie de modelo alimentar ideal, simplificando em
duas palavras uma diversidade de sabores – assim como a idéia de “nação” ou “região”
pretende englobar toda uma heterogeneidade social e cultural. Sintetizando, por meio do
apelo à tradição, gostos e modos de fazer, ela passa a ser também operada como um
caminho através do qual é possível adentrar uma cultura outra, tornando-se, neste
aspecto, uma forte aliada no desenvolvimento de práticas turísticas.

A presença da comida em publicações como guias de viagem é sugestiva desse


processo de investimento simbólico que motiva crenças e práticas. Incluída no conjunto
dos elementos “eleitos” para apresentar uma cidade, um estado ou uma nação a um
visitante, ela adquire novos sentidos, distintos daquele que lhe é mais diretamente
associado: saciar uma necessidade fisiológica. Atualmente, quase todos os guias fazem
algum tipo de referência à alimentação como um atrativo cultural. Todavia, esse tipo
particular de valorização da comida e das práticas culinárias, tão comum na atualidade,
é resultado de um processo histórico de construção simbólica.

Desde o século XIX, são produzidos guias que trazem conselhos aos viajantes,
informações geográficas e históricas, mapas e itinerários. A primeira edição dos Guides
Joanne, um dos pioneiros, remonta a 1840, na França. Entretanto, de acordo com
Csergo (1998), só algumas décadas depois – em 1877, exatamente – é que alguns
gêneros alimentícios começam a ser mencionados, e apenas de forma muito rápida e
pontual, na perspectiva de enfatizar um aspecto econômico: “comércio bastante ativo de
aves de Bresse”88. A autora explica que isso se devia ao crescente desenvolvimento do
comércio e dos transportes na França, nesse período, que tornava os recursos locais,
antes de tudo, uma riqueza industrial e comercial.

No início do século XX, surge um outro formato de guia – associado a um novo


modo de consumo e descoberta do território (o turismo automotivo) –, no qual é
dedicado um espaço maior para recomendações alimentares. Essa forma de turismo teria
possibilitado o fortalecimento das cozinhas regionais e o desenho de uma “economia

88
Trecho dos Guides Joanne, citado por Csergo (1998: 818).

100
turística”. De acordo com Pitte (1998: 761), “para tornar atraente a longa viagem na
rodovia nacional 7, entre Paris e Cote d’Azur, os parisienses afortunados acostumaram-
se a fazer etapas de descoberta e prazer gastronômico”. Os guias de viagem passaram,
então, a incorporar sugestões de “alimentos característicos do local” e endereços nos
quais se poderiam experimentar essas iguarias. O Guide bleu Savoie, no início da
década de 1920, inaugura uma seção intitulada “Pratos Locais” (CSERGO, 1998: 819).
Assim, codificando novas modalidades de percepção do território, os guias contribuíam
para a agregação de valores à alimentação, enfatizando-a como símbolo cultural de um
povo.

(...) são eles [os guias] que, confinando de forma duradoura a


particularidade culinária em representações estereotipadas,
acabam por impô-la – relacionando-a com a noção de ponto de
interesse – como parte integrante do patrimônio, no mesmo nível
do mirante, da arquitetura ou das personagens que, daí em diante,
pontuam as paisagens e as histórias locais. (idem, ibidem: 817)

A importância que as especialidades culinárias foram assumindo no terreno das


práticas turísticas – seu poder de representação do “outro” ou da “cidade” que se
desejava conhecer – favoreceu o surgimento de guias especializados. Marcel Rouff e
Curnonsky inauguram o gênero com o Tour de France gastronomique, editado em 28
volumes (1921-1928) – um verdadeiro inventário das riquezas culinárias francesas.
Nesta obra, as curiosidades naturais e as glórias locais não passam de trufas, patês ou
capões. A partir da década de 1930, multiplicam-se os guias com esta temática,
diversificados em seus itinerários e circuitos. Consolidando uma nova expectativa de
conhecimento do território, estes guias incentivam a prática do turismo gastronômico,
promovendo “um apego fervoroso e saboroso à terra e à localidade” (idem, ibidem:
824).

Esta afeição pelo alimento local tem, no processo de internacionalização das


trocas comerciais e do consumo, uma motivação para surgir e ser resguardada. Com o
aperfeiçoamento e a proliferação de grandes indústrias alimentícias, o processo de
distribuição de alimentos passa por profundas mudanças em todo o mundo. De acordo
com Fischler (1998), assim como se espalham o carro e a televisão, multiplicam-se
também, na Europa ocidental da década 1960, os supermercados, que oferecem

101
produtos do mundo inteiro a preços relativamente mais acessíveis. Esta “revolução” da
distribuição em grande escala permite uma intensa transformação nas estruturas sociais.
A passagem de uma “sociedade da fome” à “sociedade da abundância” modifica um
valor relacionado ao consumo alimentar que havia sido de fundamental importância em
épocas passadas, ou seja, o uso da comida como instrumento de distinção social
(MONTANARI, 2003).

Em todas as sociedades tradicionais, como foi dito, o modo de comer é um dos


primeiros sinais de diferença entre classes e indivíduos. No momento em que a comida
se transforma, entretanto, em um bem difundido, esse código alimentar se enfraquece.
Por outro lado, e ao mesmo tempo, o valor do território se afirma nos processos de
diferenciação. Lembra-nos Montanari que, em uma sociedade e ideologia como as da
Europa pré-moderna, tão rigorosamente classista, não teria sido possível elaborar uma
significação como esta: “ninguém poderia ter pensado em uma ‘comida de território’,
porque a noção de território anula, ou pelo menos enfraquece, as diferenças sociais”
(2008: 143). Com os processos de democratização política e a conseqüente diminuição
(ao menos, ideologicamente) das desigualdades sociais, entretanto, o paradigma da
cozinha se torna o espaço, passível de ser ocupado por todos, independente de classe ou
raça.89 A nação ou região se transformam, assim, em referências importantes (e
politicamente corretas) na composição identitária. Diante de uma tendência global à
unificação de modelos alimentares, esta “solidariedade comum ao território” – que,
simbolicamente, condensa diferenças sociais – pode significar uma espécie de “reação”
ou “resistência” a um processo amplo de massificação do alimentar que vem tomando
proporções, cada vez maiores, desde meados do século XX.

Com efeito, a alimentação torna-se, propriamente falando, um


mercado de consumo de massas: a partir de então processa-se
como produto altamente transformado por procedimentos
industriais de vanguarda. Concebidos e comercializados com o
apoio das mais modernas técnicas do marketing, packaging e
publicidade, são distribuídos por redes comerciais que não
cessam de aperfeiçoar seu poder e complexidade, colocando em

89
É neste sentido que Abdala, ao estudar o que ela chamou de “mito da mineiridade”, salientou o fato de
que a cozinha regional mineira “reúne pratos partilhados por ricos e pobres, assumindo, pois, importância,
porque, no plano simbólico, eles apagam diferenças e despertam verossimilhança, identificando um grupo
amplo, o dos mineiros, frente a outras regiões” (ABDALA, 1997:154).

102
ação uma logística extremamente elaborada. (FISCHLER,
1998: 846)

A rede MacDonald’s é um dos exemplos mais solicitados desta forma de produção


em massa da alimentação. Símbolo (quase sinônimo) do que hoje é conhecido por fast-
food, esta empresa foi uma das pioneiras no ramo, adaptando o sistema de produção em
cadeia de Henry Ford à fabricação de alimentos prontos para o consumo (idem, ibidem).
A idéia consistia, basicamente, numa divisão de tarefas bem definidas e na criação de
uma cozinha compartimentada que possibilitassem a preparação de uma refeição em
alguns segundos. Assim, técnicas de conservação e padronização de alimentos foram
elaboradas de modo a potencializar cada vez mais a proposta da empresa. O “sucesso”
comercial constatado em seu país de origem, os Estados Unidos, propiciou uma
expansão gradativamente mundial, não apenas da empresa, mas também de seu modelo
de produção.

A noção de resistência a este novo modelo alimentar – marcado, fortemente, pelos


hambúrgueres e batatas fritas que fizeram da rede MacDonald’s uma marca conhecida
em todo o planeta – é, decerto, uma “força de expressão”, utilizada para enfatizar uma
corrente oposta de significação e valorização de alimentos locais, que se dá, justamente
(e curiosamente), neste momento de expansão de padrões alimentares industrializados.
Mas é também uma realidade empiricamente observável, projetada conscientemente na
defesa de tradições. Comentando acerca das dificuldades de inserção da Macdonald’s
no mercado europeu, Fischler afirma que

Na Suécia, no início dos anos 70, na época da Guerra do


Vietnã, ergueram-se vozes veementes para criticar os
americanos que pretendiam forçar a saudável juventude sueca a
engolir “alimentos plásticos” estranhos à tradição local. Muito
mais tarde, na Itália, quando a rede MacDonald’s desejou abrir
um discreto restaurante na Piazza di Apagna, em Roma, alguns
milhares de pessoas manifestaram seu protesto. Tratava-se de
defender a tradição culinária local contra a invasão dos
americanos bárbaros. Criou-se um movimento intitulado slow
food, que ainda hoje existe.90 (ibidem: 855)

90
O movimento Slow food baseia-se no que tem sido chamado de “ecogastronomia”. De acordo com o
site oficial do movimento no Brasil (www.slowfoodbrasil.com), sua filosofia consiste no “direito ao
prazer da alimentação, utilizando produtos artesanais de qualidade especial, produzidos de forma que
respeite tanto o meio ambiente quanto as pessoas responsáveis pela produção, os produtores”. Acredita-se

103
Parece claro que não se pode negligenciar, todavia, o aspecto político e ideológico
que se esconde nestes episódios. Bem nos lembra Fischler que as mesmas críticas
formuladas contra o hambúrguer norte-americano – e a Macdonald’s, em particular –
não se dirigem com igual veemência a todas as formas de fast-food. De fato, se
pensarmos, por exemplo, no caso da pizza, também difundida no mundo inteiro por
meio de empresas multinacionais, especializadas em seu preparo rápido, percebemos
que ela parece ter escapado (pelo menos, relativamente) à maioria das críticas dirigidas
à massificação alimentar. Isto se deve, entre outras razões, a uma questão simbólica
importante: o hambúrguer e a MacDonald’s encarnam, superlativamente, o
“imperialismo americano” que, segundo o autor, constitui uma ameaça para a grande
maioria dos europeus às tradições culinárias as quais eles teriam se apegado
historicamente. Logo, o hambúrguer “é responsabilizado por toda espécie de defeitos,
de ordem nutricional ou simbólica, quer se trate de gorduras saturadas ou de perda da
identidade”. (idem, ibidem: 853)

Na contracorrente deste processo de padronização alimentar, as cozinhas regionais


são criadas e interpretadas como uma noção positiva, como receptáculos de uma nova
forma de diferenciação. Emblemáticas de uma cultura atrelada ao território (imaginária
ou politicamente definido), é possível entendê-las como uma invenção social
“moderna”, fruto de uma confluência de fenômenos de caráter tanto cultural, quanto
econômico. Dizendo de outro modo, com o crescimento da padronização que
acompanhou o desenvolvimento da indústria alimentar, as cozinhas regionais encontram
razão para “existir” não, unicamente, como sinais de cultura, mas também como recurso
econômico.

O Ceará, como vimos, atravessa processos semelhantes, ainda que seja válido
reconhecer sua singularidade. Discutimos, antes, a emergência dessa culinária regional
como parte de interesses turísticos. Mais especificamente: como parte de um interesse
efetivo em criar pólos positivos no contexto dos símbolos que demarcam a “localidade”

que a alimentação pode ser melhorada, consumindo-se produtos mais “naturais”; preparando-os e
saboreando-os com prazer e sem pressa. “O Slow Food”, ainda segundo o site, “opõe-se à tendência de
padronização do alimento no mundo e defende a necessidade de que os consumidores estejam bem
informados, se tornando co-produtores”. Neste sentido, o movimento luta também contra o que eles
entendem como o “desaparecimento das tradições culinárias regionais”.

104
cearense no plano da produção de um “comer fora de casa” diferenciado. Sabemos,
portanto, que as vinculações entre localidade, memória e imaginários, se portam como
negociações tanto racionalizadas quanto dotadas de identificações parcialmente claras
ou conscientes. É possível ainda ensaiar, sempre nos limitando aos objetos investigados,
mas pensando também um pouco além deles, que a teia móvel dessas disposições
culturais transforma não apenas objetos em fetiches mercantilizados, em ferramentas
dotadas de sentido emocional-comercial: ela está permeadas por manifestações de
identificação territorial, por tentativas de construção de mapas de memória. Mapas estes
também políticos, ainda que inseridos no curioso e rápido jogo econômico da
gastronomia regional.

105
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os restaurantes tomados por objeto desta pesquisa sinalizam a existência de um


complexo fenômeno moderno, essencialmente urbano, que vêm convocando a atenção
de pesquisadores de diversas áreas: a crescente valorização das chamadas “cozinhas
regionais (DÓRIA, 2009; MONTANARI, 2008; POULAIN, 2006). Delicada e
polêmica, a temática tem sido abordada sob várias perspectivas, evidenciando um
amontoado de pontos de vista (uns mais conservadores, outros mais liberais) que
enriquecem e instigam a discussão. Como dito anteriormente, ancoradas na idéia de
tradição, as cozinhas regionais se apresentam como dados atávicos e inquestionáveis,
combinando um conteúdo moral e emocional que tende a dificultar uma observação
pretensamente mais “objetiva” acerca de seus fundamentos e implicações sociais.
Assim, ao pesquisador social, apenas dois caminhos parecem possíveis: ou legitimá-las,
por meio da produção intelectual de inventários gastronômicos, obtidos através de
estudos que ajudam a transformar culturas alimentares em “alimentos culturais”; ou
desmistificá-las, adotando uma postura objetivista que busca medir as representações
(em todos os sentidos do termo) pela “realidade” visualizada. Se a primeira opção
registra uma tendência compreensiva, ou interpretativa do universo subjetivo
investigado, a segunda reforça uma incessante busca pela desconstrução do “dado” –
exercício intelectual de posicionamento das categorias diante de um conjunto “prático”
de mudanças.

Concordando com Bourdieu (2005), acredito que isso se deve, entre outros fatores,
ao costumeiro privilégio dado nas pesquisas sociológicas ao conhecimento da
“realidade” em relação ao conhecimento dos instrumentos de conhecimento, tanto da
ciência, quanto do mundo social, de forma generalizada. E, nesse sentido, uma saída
alternativa para o entendimento de um objeto tão peculiar quanto as cozinhas regionais
se constituiria na realização do que poderíamos chamar de uma “história social” desta
categoria de classificação alimentar. É o que tento realizar, aqui: a leitura dos processos
de objetivação de categorias. Inserindo-as num jogo particular de “luta das
classificações”, isto é, lutas pelo monopólio “de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer
e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por
esse meio, de fazer e desfazer grupos” (idem, ibidem: 113), volto o olhar para a história

106
como um processo permeado de permanências e rupturas cognitivas, por meio do qual
são selados e rompidos acordos acerca das formas de perceber e classificar a comida.

Comumente abrigada no reino “fantástico” e “ilusório” do imaginário, a cozinha


regional é questionada em sua “existência real” – não raro sendo vista, por isso mesmo,
como tema de relevância menor no conjunto das preocupações sociológicas
(POULAIN, 2006). No entanto, como nos sugere Castoriadis (1982), essa dicotomia
entre imaginário e realidade/racionalidade é apenas aparente e profundamente
simplificadora da questão. Para o autor, o imaginário não deve ser entendido como algo
fantasmagórico, totalmente inexplicável, e separado do real. Ao contrário, para ele,
“tudo que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente
entrelaçado com o simbólico” (idem, ibidem: 142). Logo, não é possível compreender as
instituições sociais apenas através de uma visão econômico-funcionalista, que as
interpreta apenas em termos de sua função social, como se fossem unicamente resultado
de “necessidades reais” ou “materiais” da sociedade. Também é preciso atentar para
uma dimensão simbólica que não apenas é parte constitutiva das instituições, mas que
as tornam “reais” para nossa percepção. É, portanto, como “sistemas simbólicos
sancionados” que elas existem socialmente, orientando as condutas e o pensamento dos
grupos humanos.

Mas esses repertórios de significados e significantes não podem ser entendidos


como um conjunto bem definido de códigos ou interpretações imutáveis. Eles são,
conforme a explicação de Bourdieu (2005: 118), “resultante, num dado momento, da
luta para fazer existir ou ‘inexistir’ o que existe”. Considerando que as classificações
estão sempre subordinadas a “funções práticas” e orientadas para a produção de efeitos
sociais, convém, então, percebê-las como construções erigidas no jogo de poder e
interesse que as fundamenta.

Sendo assim, mesmo categorias tão naturalizadas como a de regional revelam,


como vimos, marcas das determinantes sociais. Evidenciando uma descontinuidade
decisória na continuidade natural, a constituição da região é um ato de autoridade, de
imposição de uma definição legítima de suas fronteiras. Nesta perspectiva, não é o
espaço que faz a região, mas a história, os movimentos de configuração e
reconfiguração das representações, no sentido de imagens mentais, que a instituem,
socialmente, transformando-a num dado “natural”, conforme inúmeras vezes
enfatizaram os proprietários entrevistados. Quando perguntado sobre os critérios de

107
definição do cardápio do Chica Sinhá, por exemplo, o proprietário afirmou
prontamente: “Foi uma coisa natural. Você sabe que eu sou do Icó, sou do sertão, passei
a maior parte da minha infância lá, então, quando eu pensei em vender comida regional,
naturalmente me veio em mente a paçoca, o baião-de-dois, a carne de sol, enfim, foi
algo espontâneo.”

A fala do empresário é, obviamente, expressiva de um desejo de imposição,


cultural e mercadologicamente fundado, dos contornos de uma cozinha regional e do
valor sentimental que ela deve agregar. A revelação de sua origem natal em meio à
conversa impõe-se, desse modo, como estratégia para legitimar o que é dito. Como toda
forma de poder simbólico (idem, ibidem), as cozinhas regionais precisam ser não apenas
conhecidas, mas reconhecidas como tal. Para tanto, no campo de luta das classificações,
certos “lugares de fala”, já estabelecidos, são evocados a fim de conceder autoridade ao
enunciador, de modo que a “noção formular de verdade” por ele tecida tenha força de
lei (GIDDENS, 2001). Falando por todos os nascidos no sertão, o proprietário do Chica
Sinhá, bem como os do Lá na Roça, sanciona uma forma de conceber a alimentação,
fazendo-a existir como uma realidade natural, digna de ser creditada.

Nessa empreitada de elaboração e reprodução simbólica, como também vimos, os


proprietários são ainda apoiados (e mutuamente influenciados) pelo Estado, que por
meio de políticas públicas e de um forte aparato publicitário, reinventa o Ceará e os
modos alimentares da população local no intuito de fortalecer a imagem turística do
estado, posta a importância que tal prática adquire nos projetos de desenvolvimento
econômico da região. Além da repetição publicitária, as estratégias de “convencimento”
das imagens regionais que se deseja impor incluem a invocação da autoridade científica.
O recente projeto Comida Ceará, citado rapidamente no segundo capítulo, é um
exemplo disso. Encabeçado por pesquisadores da cultura (incluindo o antropólogo Raul
Lody), ele tem contribuído para a legitimação de certos alimentos como “patrimônio
cultural” do estado. Se, até pouco tempo, o que configurava ou não comida regional era
definido por meio da utilização de recursos meramente simbólicos e informais (como o
apelo à tradição), o que se verifica nos últimos anos é a oficialização de tais
concepções, por meio da criação de leis patrimoniais e do estabelecimento das
chamadas Denominações de Origem Controladas (D.O.C.) – espécie de selo que
garante a “autenticidade” dos intitulados “produtos da terra”. No Rio Grande do Sul, por
exemplo, o churrasco é prato típico do estado, conforme a lei estadual nº 11.929, de 20

108
de julho de 2003, 91 e o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) se encarregou da
criação do selo de garantia de autenticidade ISSO-Tchê, espécie de paródia com o ISO-
9000 e outros congêneres (MARCIEL, 2005). O Ceará segue a mesma tendência,
ficando o Comida Ceará encarregado, por meio de pesquisa em toda a extensão
territorial do estado, de fazer o registro dos “hábitos alimentares cearenses”, de modo a
cogitar a possibilidade, com base no relatório final das atividades do projeto, de abrir
um processo de tombamento da receita de baião-de-dois como patrimônio cultural do
estado, registrado em lei.

Entendendo, tal qual Bourdieu (2005: 115), esse contexto de elaboração regional
apenas como um estado da luta das classificações, isto é, da histórica da “relação de
forças materiais ou simbólicas entre os que têm interesse num ou noutro modo de
classificação”, penso que a visão (e, em certo sentido, a divisão) do universo alimentar
partilhada pelas autoridades públicas e pelos proprietários analisados é, em grande
parte, produto de um estado anterior de relação de forças no campo de luta pela
delimitação legítima das fronteiras alimentares. Quero dizer que esses sujeitos, assim
como os profissionais envolvidos no projeto Comida Ceará, sedimentam suas propostas
de interpretação regional com base em determinações advindas de configurações sociais
precedentes que tornam tais interpretações “aceitáveis” ao mundo social, ou seja,
reconhecidas como válidas e, deste modo, passíveis de existência real e indiscutida –
“assemelhando-se a construção de um mito”, lembra-nos Dória (2009: 27), uma cozinha
regional somente se torna efetiva “pelas adesões com que conta”. A boa recepção do
que se deseja impor como tradição e, agora também, como lei, não depende unicamente
do reconhecimento consentido àqueles que o detêm;

ele depende também do grau em que o discurso, que anuncia ao


grupo a sua identidade, está fundamentado na objetividade do
grupo a que ele se dirige, isto é, no reconhecimento e na crença
que lhe concedem os membros deste grupo assim como nas
propriedades econômicas ou culturais que eles têm em comum,
pois é somente em função de um princípio determinado de
pertinência que pode aparecer a relação entre estas propriedades.
(BOURDIEU, 2005: 117)

91
Poderíamos citar ainda, como exemplo de alimentos que foram oficializados, por meio de lei estadual,
como típicos da região, o pão de queijo de Minas, o acarajé da Bahia e o bolo de rolo pernambucano. O
modo de preparo de todos eles foi também tombado pelo IPHAN como patrimônio cultural imaterial do
Brasil.

109
Isso quer dizer, grosso modo, que a formação de uma ordem simbólica não se dá
de forma totalmente livre. Ela deve tomar sua matéria, de acordo com Castoriadis
(1982), no que “já existe”; apoiar-se no que “aí se encontra”. A formulação de uma
categoria simbólica não pode privar-se em seu teor de toda referência ao “real”. E por
“real” entenda-se, conforme já sugerido, também as representações do real ou, mais
exatamente, “a luta das representações, no sentido de imagens mentais e também de
manifestações sociais destinadas a manipular as imagens mentais” (BOURDIEU, 2005:
113).

Os caminhos históricos, aqui observados, de concepção e valorização dos produtos


regionais – acompanhados a partir da instituição social do restaurante e da alimentação
fora de casa, bem como do desenvolvimento da indústria turística que deu ao setor
novos direcionamentos – evidenciam alguns dos embates pela legitimação das formas
de conceber e apropriar-se do alimento, como parte de jogos de interesse que levavam
em consideração razões de ordem política, econômica, nutricional, identitária, etc. Das
estratégias de conservação do poder aristocrático francês aos movimentos de
fundamentação da nacionalidade brasileira, as percepções acerca do alimentar como
elemento de distinção social/cultural são modeladas conforme o contexto e as
necessidades em jogo.

Ora adotados como estigmas, ora administrados como símbolos de orgulho


coletivo, no Ceará, a valorização dos alimentos “da terra” revelam, além de interesses
econômicos evidentes, tentativas de reequilíbrio do capital político das elites locais,
enfraquecido no processo de unificação nacional (ORTIZ, 2001). Para tanto, floresce
nos estados nordestinos – bem como noutras regiões que a nacionalização tornou
periféricas (como o Sul) – uma série de estudos tradicionalistas acerca das
manifestações culturais da região. Os antigos símbolos de pobreza, como o sertão, são
transformados em sinais de uma história comum, honrosa, que diferencia os nordestinos
pela coragem e pela resistência “geneticamente” herdadas do sertanejo, agora seu
ancestral direto, consagrado nas palavras de Euclides da Cunha como um forte.

As imagens regionais alicerçadas naquela época, início do século passado,


alimentam ainda hoje as impressões que temos a esse respeito – embora as novas
situações históricas tenham motivado também novos interesses na luta pela definição
dessas imagens. É possivelmente em razão disso que um mapeamento dos hábitos
alimentares tipicamente cearenses, como o que vem sendo realizado pelo Comida

110
Ceará, volta-se, quase que exclusivamente, para a chamada culinária “tradicional
popular”92, interiorana (mesmo na capital), dispensando os consumos industrializados
ou mesmo o cardápio cotidiano dos sucos, salgados e sanduíches que parecem ser tão
característicos da alimentação fortalezense e de outras tantas cidades do interior do
estado. As fronteiras que delimitam a “cozinha do lugar” encerram-se nas idéias de
ruralidade, de caseiro e de tradicional. O industrializado e o massivo, ou mesmo o
“popular” (aqui, no sentido de mais consumido), incorporariam as impurezas de uma
modernidade demasiado miscigenada, globalizada, “sem identidade” – o que, talvez,
tenha levado Bourdieu (2005:128) a afirmar que o regionalismo constitui “uma forma
doce e larvada de racismo”.

A esse respeito, Dória (2009) nos faz pensar que, atualmente, estamos consumindo
não apenas os produtos alimentares, mas “também as relações de produção que o trazem
ao mundo”. Os alimentos regionais são compreendidos como síntese das necessidades
modernas de reverter os males que estariam no cerne dessa “modernidade alimentar”,
cuja industrialização e a grande distribuição, que lhe seriam características, incorporam,
além do risco da padronização, referências de um capitalismo desenfreado e sem
princípios, promotor das desigualdades sociais e símbolo de exploração do trabalho. As
preparações regionais, supostamente na contramão desse processo, são idealizadas
como produtos singulares e naturais, frutos de relações de produção tradicionais,
familiares e, portanto, mais justas – como parece supor o movimento político-
gastronômico slow food. Tanto que o atual conceito de terroir dificilmente se aplica à
grande produção, sendo geralmente utilizado para expressar a produção em pequena
escala, que costuma resumir as qualidades mobilizadas pelas estratégias de
“desenvolvimento sustentável”. Logo, “ao comermos produtos de terroir, nos
perfilamos, simbolicamente, numa linha de resistência”.

Mas a oposição valorativa entre “comida industrial” e “comida do lugar” podem


ser interpretadas, ainda, em termos de suas relações com as idéias de “abundância” e
“raridade”. A história das práticas alimentares brasileiras e européias, sintetizadas aqui,
nos ensinam que, no que tange à necessidade social e ao desejo de distinção das elites, a
apropriação de certos alimentos como símbolos de status é uma constante. E nessa
perspectiva, os critérios de seleção de tais alimentos passam por sua condição de

92
Conforme é possível perceber na matéria: “Patrimônio cultural”, Diário do Nordeste, Caderno 3,
Comer e Beber. Disponível em: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=638401 Acesso:
16/02/2010.

111
raridade. Ainda no século XII, segundo Montanari (2008: 112), a respeito do feijão,
Isidoro de Servilha afirmava: “tudo o que abunda é vil”. Assim, enquanto os produtos
importados eram caros e de difícil acesso, na França, assim como no Brasil, conforme
foi dito, eles eram operados como sinais do poder que desfrutavam as elites. Quando as
transformações da indústria alimentícia permitem a produção em massa e a distribuição
em escala mundial, muitos produtos estrangeiros passam a ser encontrados em
abundância nas prateleiras dos supermercados, a preços relativamente acessíveis,
tornando-os inviáveis como demarcadores de privilégio social. Paradoxalmente, as
comidas “da terra” passam a constituir uma alternativa, nesse sentido. A lógica de
seleção permanece a mesma: os produtos regionais se tornam cada dia mais caros e
exclusivos, o que é justificado pelo sistema artesanal de produção e pela escassez de
certos ingredientes. No Lá na roça, por exemplo, a proprietária explica o alto preço do
self-service dando o exemplo da chamada “galinha caipira”:

As pessoas confundem o rústico com o barato. Elas não entendem


o quanto é difícil trabalhar com a comida regional de verdade, do
sertão. Por exemplo, a questão da galinha. Você compra por aí
nos supermercados o quilo do frango por R$ 2,18 na promoção,
como eu vi essa semana. Sabe quanto eu pago por uma galinha
caipira? R$ 18,00! Caipira mesmo, que nasceu ciscando e
morreu ciscando; que nunca comeu ração. Hoje em dia é difícil
demais de achar! Então, aí eu vou tirar os pés, as víceras, a
cabeça... Quando eu peso essa galinha ela dá 800 gramas!
Quando dá um quilo e duzentos a gente comemora. Então, além
do trabalho que tenho pra achar um fornecedor de galinha caipira
de verdade, eu ainda pago muito caro por ela. Então, eu não tenho
como vender comida sertaneja autêntica e ser um restaurante
popular.

A frase final da citação, porém, nos situa diante de uma das muitas encruzilhadas
simbólicas que o tema evoca. A contradição aparente entre o sertão como um espaço
social de escassez e simplicidade e o alto custo de sua recriação como produto
comercial – e sua redefinição como consumo não-popular – permite compreender um
pouco mais os elos entre atribuições simbólicas e universo material. Essa compreensão
nos leva a entender a apropriação de um habitus muito preciso: uma leva de disposições
voltadas tanto para a produção de meios de produção do diferente como articuladas em
torno da construção de novos capitais de importação simbólica. A economia dos

112
restaurantes regionais, parte de um mercado muito maior de necessidades e ofertas,
sintetiza, nos sujeitos envolvidos em sua criação e reprodução, um quadro de
transferências da memória, gerando um produto comercial que extrai valor não somente
de sua dificuldade de oferta material ou de sua singularidade simbólica, mas também (e
talvez sobretudo) da referência constante ao preço das rupturas fundamentais para sua
manutenção como empreendimento. Em outras palavras: os restaurantes produzem seus
discursos como forma de se construir, tomando as separações históricas entre urbano e
sertanejo, memória e passado, simplicidade e distinção como alicerces culturais.
Marcam a identificação com o regional como uma orientação de trabalho e como
registro de legitimação de seus capitais simbólicos. Por fim, o sabor, o saber
incorporado de seu uso e abuso, retorna a cena trajado de cores e lugares – sugestões
práticas para quem o vivencia. O vivido das técnicas ligadas à produção dos alimentos
regionais não pode existir sem esse espírito de cultura. Esta é a sua forma de se
refinanciar: angariando mais e mais recursos e valor dentro de uma esfera pública ou
comercial que transforma a cultura em mercadoria especializada, que só pode ser
concluída como fruto de trabalho-memorial, emocionalmente legitimado e defendido. É
o sabor dessas regras, deste jogo de produção e venda, do familiar ou do pretensamente
familiar, que precisa ser continuamente experimentado, a fim de que possamos, cedo ou
tarde, revelar um pouco mais os territórios de seu preparo.

113
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