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O Lugar Da América - Por Uma Expressão Arquitetônica Moderna, Panamericana e Universal Nos Anos 1920 JOSIANNE FRANCIA CERASOLI - PDF
O Lugar Da América - Por Uma Expressão Arquitetônica Moderna, Panamericana e Universal Nos Anos 1920 JOSIANNE FRANCIA CERASOLI - PDF
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Departamento de História, IFCH-Unicamp. Doutora em História.
arranha-céus, presidida pelo arquiteto Carl A. Ziegler, dos Estados Unidos.1 Todas as versões
dos Congressos organizaram-se em torno de um temário geral previamente preparado sob a
forma de diversas teses que deveriam compor as sessões de discussão e deliberação dos
delegados, como era usual nos congressos técnicos e científicos desde o século XIX; no caso
dos arquitetos do continente, são predominantemente teses relacionadas à formação, ao
exercício e à inserção profissional na sociedade.2
A abrangência desse temário geral permite vislumbrar um quadro interessante sobre a
inserção da Arquitetura no continente americano, mesmo se considerarmos apenas esta visão
de conjunto e sem atenção a detalhes, desdobramentos e relações com outras questões
contemporâneas aos eventos. Essa abrangência permite antever a pluralidade que tem definido
esse campo profissional, pelo menos desde o século XIX, quando a ampliação das técnicas e
dos espaços conhecidos e explorados tornou-se um artifício universalizante, ao lado da
diversificação dos problemas e desafios advindos das novas formas de vida urbana e de novas
forças políticas. Essa pluralidade converte-se assim em complexidade, e se apresenta como
um desafio à pesquisa histórica ao se pensar a Arquitetura nas Américas no século XX,
considerando-se as tensões políticas e sociais, bem como os desníveis em termos de
modernizações materiais e técnicas, ao lado de heranças culturais singulares, às vezes
partilhadas.
Particularmente sensível ao desenvolvimento científico aplicado e aos
aperfeiçoamentos técnicos, o campo da Arquitetura é ao mesmo tempo mobilizado a dialogar
com heranças culturais dos povos, mesmo que de modo instrumental. O tradicional dilema de
sua caracterização enquanto ciência ou arte – dilema intensamente debatido nos primeiros
Congressos Panamericanos de Arquitetos e suas repercussões – pode ser entendido como
sintoma de pressões específicas que atuam como desdobramentos do próprio papel da técnica
e dos conhecimentos científicos. Enquanto progresso material ou acumulação e
melhoramentos que tendem à universalização como "finalidade instrumental" que estimula o
afloramento de uma "consciência única da humanidade", a própria noção de "civilização
mundial" parece submeter as culturas tradicionais a um constante tensionamento. Essa tensão
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Além das delegações brasileira, chilena, argentina e uruguaia, estavam presentes a delegação norte-
americana, com três membros, um delegado do Panamá e outro da Venezuela, além de alguns convidados
especiais, representando arquitetos britânicos e canadenses, portugueses, espanhois e franceses (Alfredo
Agache).
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A partir de 1950, um tema geral definido para cada Congresso passou a nortear essas discussões, abarcando
questões como: "Problemas da arquitetura contemporânea Panamericana" (1950, sétimo Congresso, em
Havana, Cuba), "A função social do arquiteto" (1955, nona edição, Caracas, Venezuela), "Cidades das Américas"
(1965, em Washington, primeira edição do evento ocorrida nos Estados Unidos), "O arquiteto e a humanização
da vida urbana" (1970, San Juan, Porto Rico).
é sublinhada por Paul Ricoeur, em texto de 1964 reeditado em 2007 como parte de uma
coletânea sobre "regionalismo arquitetural". O autor sintetiza essa tensão ao abordar o
ingresso da humanidade "numa única civilização planetária que representa ao mesmo tempo
um progresso gigantesco para todos e uma tarefa esmagadora de sobrevivência e adaptação da
herança cultural a esse quadro novo." (RICOEUR, 1968: 277).3 Aproximando a ideia de uma
civilização técnica e universal, o pensador chama atenção para "uma espécie sutil de
destruição" a que então estão submetidas as culturas tradicionais, e se pergunta sobre suas
possibilidades criadoras nesse tensionamento. Analisado historicamente no âmbito do
continente americano sob esse prisma, o dilema ciência/arte figura com singular importância
no panorama das discussões sobre o lugar da Arquitetura na/da América no mundo.
A partir desse quadro geral e tomando-se as reflexões sobre as relações entre
civilização e tradição – entre outros, de Ricoeur – como proposição para se pensar a
problemática, seleciona-se neste estudo, no interior dos debates feitos nos Congressos
Panamericanos de Arquitetos, questões em torno da configuração de uma referência
identitária à Arquitetura nas Américas, como se fosse portadora de mensagens (e imagens)
específicas relativas ao continente e sua inserção no "concerto das nações". Esse debate foi
particularmente intenso entre as décadas de 1920 e 1940, quando os impulsos universalizantes
dos modernismos nas artes, e do próprio repertório técnico-científico expresso nos diferentes
modos de modernização, enfatizaram vários questionamentos em torno do lugar dos
"regionalismos" ou "interpretações locais" nas diversas linguagens, inclusive na Arquitetura.
Seus desdobramentos estão longe de desaparecer, assim como as tensões que os instigam, mas
foi na década de 1930 que os debates em torno do internacionalismo, proclamado pelo
modernismo, pressionaram enfaticamente as identidades locais e nacionais, os chamados
regionalismos – motivo que justifica o privilégio do período neste estudo. Para não perdermos
a dimensão histórica e ao mesmo tempo atual da questão, é importante lembrar a vigência da
discussão sobre o lugar das culturas americanas na "civilização mundial", nos termos de
Ricoeur. Há menos de uma década o Congresso Panamericano de Arquitetos propôs como
tema geral, significativamente: "Mestiçagem, cultura e criação" (2004, em Point-à-Pitre,
Guadalupe), e não é menos sugestivo o tema geral deste ano de 2012, no Brasil: "Viver o
território, imaginar a América".
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O texto "Civilização universal e culturas nacionais" foi elaborado para a segunda edição francesa de História e
Verdade, e editado também em Canizaro (2007).
Busca-se inicialmente situar o debate dos primeiros Panamericanos entre outras ações
do período, relacionadas ao papel das artes e dos conhecimentos técnicos e científicos no
continente, bem como às implicações políticas da discussão, e em seguida prioriza-se o estudo
dessas questões nos debates da temática no Brasil, tomando-o como um exemplo importante
para se entender essas tensões, seja pela inserção dos profissionais brasileiros nessa pauta,
seja em função do significativo alcance da questão entre os profissionais ligados ao campo da
Arquitetura no país. Apenar de ser possível notar, entre os diversos registros analisados,
diferentes entendimentos sobre o lugar da Arquitetura e sobre o alcance de conceitos e noções
próximas, como de latinidade e de pan-americanismo, com significativos desdobramentos
políticos no período, este estudo não pretende uma abordagem conceitual4. Pretende-se
discutir a questão identitária fortemente presente nos Congressos Panamericanos como parte,
mais ou menos involuntária, de forças políticas mais penetrantes e sutis.
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Ver Camilotti (in: SEIXAS et.al, 2012, no prelo), Bruit (2000) e Beired (2009).
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São exemplos as tensões entre México e Estados Unidos por questões territoriais no final do século XIX, as
intervenções norte-americanas em prol da independência do Panamá e da gestão da comercialmente preciosa
"passagem" entre o oceanos Atlântico e Pacífico. Apesar da presença militar estadunidense na região, o próprio
Panamá e seu importante canal foi reelaborado no cenário panamericano como alegoria máxima da integração
entre as Américas.
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Cabe observar a importância do chamado Mission Style no início do século XX, difundido inclusive como
expressão possível de uma arquitetura panamericana. Atique (2007) faz exaustiva investigação sobre a questão,
indicando ao papel do estilo em exposições similares, como a Panama-Pacific Exposition de San Diego,
Califórnia, ocorrida em 1916 em homenagem à abertuda do Canal do Panamá.
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No temário dos Congressos, registra-se insistentemente a preocupação com questões como: as
especificidades do ensino de arquitetura nesse contexto de inserção da América no "concerto das nações"; a
defesa do patrimônio artístico e histórico das nações americanas; a importância da criação de museus de
materiais construtivos do continente, a fim de subsidiar a formação da arquitetura nacional; o papel da tradição
regional na formação do arquiteto e na composição de sentimentos nacionais; o regionalismo e o
internacionalismo na arquitetura; a necessidade de uma "orientação espiritual para a arquitetura na América",
entre outros temas que tiveram deliberação coletiva após serem discutidos em cada Congresso entre 1920 e
1940.
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Justificava essa proteção ao patrimônio certa concepção de arquitetura em certo sentido bastante tradicional,
espelhada nos tratados arquitetônicos clássicos que subsidiavam os estudos e projetos da área pelo menos
desde o chamado renascimento cultural do século XVI. Essa concepção é norteada por uma leitura linear da
história e, como se argumenta na justificativa da proteção, só a existência de tratados de arquitetura e arte aliado
a um sólido conhecimento do passado e das manifestações artísticas regionais poderia fornecer repertório
efetivo para a criação de uma arte e uma arquitetura legítimas – nesse caso, legitimamente americanas.
entre outras ações, organizou viagens de estudo para cidades do interior do país, em Minas
Gerais, para examinar com os futuros arquitetos o repertório construtivo remanescente do
período colonial. Não caberia neste estudo inventariar as diferentes iniciativas nesse sentido,
mas interessa pontuar a inserção destacada dessas ideias nos encontros de arquitetos. A
participação de Marianno Filho junto ao Panamericano de Arquitetos do Rio de Janeiro, em
1930, é anotada em todas as sessões plenárias e de encerramento (REVISTA DE
ARQUITECTURA, 1930: 470-546), e na terceira sessão, em que se discutiu a tese I do
Congresso ("Regionalismo e internacionalismo na arquitetura contemporânea. Orientação
espiritual da arquitetura na América"), Marianno foi o primeiro a contestar as restrições
apresentadas pela assembleia ao relatório da comissão encarregada do exame da tese;9 por
uma arquitetura mesológica, defende enfaticamente na plenária a criação de uma cátedra de
Arte Nacional das Escolas de Arquitetura, fundamentando a sugestão em estudos de
Geografia, História e Literatura.
O reconhecimento das posições de Marianno no evento, em homenagens
individualizadas na sessão de encerramento e mesmo nos registros posteriores do encontro,
aponta indícios de aprovações mais amplas acerca dessas ideias. Quando se aproxima os
debates do Congresso de 1930 de manifestações difundidas nas décadas seguintes, favoráveis
ao que se denominou como moderno em arquitetura, é possível perceber que a defesa enfática
de certa "racionalização" dos projetos e uma "simplificação" decorativa não esteve presente
de modo destacado quando se buscava a definição de uma arquitetura americana. Ao contrário
disso, as conclusões dos Congressos sinalizam cautela em relação ao "internacionalismo" e ao
"modernismo" em arquitetura, e mantêm por várias edições recomendações preocupadas
acerca da estética das edificações: "não existe incompatibilidade entre o regionalismo e o
tradicionalismo com o espírito moderno, já que é possível obter uma expressão plástica
nacional dentro das normas e práticas da comum orientação que programas e materiais
análogos nos impõem." (ARQUITECTURA E CONSTRUCÇÕES, 1930: 3). Portanto, não
está explícito como algo necessário opor tradição e modernização nesse momento, ao menos
como orientação estética. Os discursos sobre a presença e originalidade da arquitetura
moderna no continente, bem como os lugares simbólicos a que serão remetidas,
historicamente, as iniciativas plurais em prol de uma arte e uma arquitetura tradicionais
certamente contribuirão, a posteriori, para outras leituras acerca desses debates.
9
Comissão interna formada pelos arquitetos Elzeario Boix (uruguaio), Fortunato Passerón (argentino) e
Christiano Stockler das Neves (brasileiro).
10
"Fundamentally, regionalism is a state of mind." (HARRIS In: CANIZARO, 2007: 57-64).
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Nesse sentido, não deixa de ser significativo notar a presença sempre discreta de representantes e delegados
de países da América do Norte nos Congressos Panamericanos de Arquitetos, como também pontuou Atique em
estudo já mencionado. O primeiro Congresso realizado no norte foi em 1965, em Washington, e a participação
estadunidense nesses debates se deu de modo frequentemente discreto. Considerando-se a profusão de
iniciativas desse país em termos políticos e econômicos no período, por exemplo, nas discussões dos
Congressos Panamericanos de Estradas de Ferro, é possível se indagar a respeito da proposição de Harris
acerca do regionalismo "limitado" e daquele da "liberdade": seria o regionalismo reivindicado nos Panamericanos
de Arquitetura uma expressão induzida pelos limites econômicos e, portanto, nada originais? Certamente essas
indagações abrem outras possibilidades de pesquisa, entrecruzando, por exemplo, as Exposições
Panamericanas de Arquitetura ocorridas nos Estados Unidos (citadas por González, em trabalho já mencionado)
e os Congressos aqui estudados.
Referências
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(dissertação da these). São Paulo: Typ. Brazil de Rothscild & comp., 1909.
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pensam e o que dizem os nossos pintores, escultores, arquitetos e gravadores sobre as artes
plásticas no Brasil). Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927. p.290-300.
IV Congresso Panamericano de Architectos. Archictectura e Construcções. São Paulo:
EDANEE, n.12, v.1, jul.1930, p.3-7.
RE, Flávia Maria. A distância entre as Américas: uma leitura do pan-americanismo nas
primeiras décadas republicanas no Brasil (1889-1912). Dissertação (mestrado em Ciência
Política)-FFLCH, São Paulo: USP, 2010.
REVISTA DE ARQUITECTURA. Número especial referente al IV Congreso Panamericano
de Arquitectos y Exposicion de Arquitectura, realizado en Rio de Janeiro, Brasil., año XVI, n.
116, ago.1930, Buenos Aires: Sociedad Central de Arquitectos e Centro de Estudiantes de
Arquitectura, p.470-546.
RICOEUR, Paul. [1955] História e verdade. Trad. F.A.Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense,
1968.
WARCHAVCHIK, Gregori. A arquitetura atual na América do Sul. In: Arquitetura do século
XX e outros ensaios. Organização e introdução Carlos A. Ferreira Martins. São Paulo: Cosac
Naify, 2006. p.169-173.