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Política e Prisões: uma

entrevista com Angela Davis


POLITICS AND PRISONS:
AN INTERVIEW WITH ANGELA DAVIS*
A ENTREVISTA COMO MÉTODO: DIÁLOGO COM ANGELA DAVIS
Nos últimos anos, Eduardo Mendieta tem desenvolvido interessante
projeto, que agora pode ser percebido com maior claridade. Trata-se de uma
proposta de resgatar a dignidade filosófica do diálogo por meio de entrevistas
com importantes intelectuais. Esse método, que a muitos pode parecer trivial
ou superficial, proporciona um contato mais intimista com o interlocutor
que, por sua vez, revela-nos detalhes autobiográficos ou nuances que publi-
cações teóricas apagam por meio de parcimoniosas revisões editoriais.
Após realizar e coletar entrevistas por vários anos com Jürgen Haber-
mas, Richard Rorty, Enrique Dussel, Angela Davis, Cornell West e outros
expoentes do pensamento crítico, Mendieta tem lançado várias publicações
nas quais essas entrevistas vêm a público.1 A revista Impulso tem sido um es-
paço privilegiado para a publicação de tais trabalhos, registrados em suas pá-
ginas antes mesmo de aparecerem em importantes publicações nos Estados
Unidos, Alemanha, Espanha e outros países2
Na presente conversa com Angela Davis surgem dados sobre sua mi-
litância na busca da libertação de presos políticos e em seu envolvimento nos
movimentos pelas liberdades civis dos negros nos Estados Unidos. A entre-
vista também revela que Davis estudou filosofia com Herbert Marcuse,3 Entrevista concedida a
Theodor Adorno e Jürgen Habermas em Frankfurt e que se preocupa atual- EDUARDO MENDIETA
mente com o sistema prisional nos Estados Unidos, o qual, em sua opinião, em 5/maio/04
é uma perpetuação do sistema escravagista e deve ser abolido. Além disso, ela
estabelece um diálogo com importantes nomes na história do movimento e
cultura negra nos Estados Unidos durante o século XX, como W.E.B. Du-
Bois, George Jackson, Markus Garvey, Zora Neale Hurston, Martin Luther
King, Malcom X, Alice Walker e Toni Morrison.
Nos limites dessa breve introdução não podemos apresentar todos esses
personagens ou indicar o importante papel deles mais além da história estadu-
nidense. Mas é possível pelo menos afirmar que essa entrevista é leitura fun-
damental para quem quer conhecer Angela Davis, ter uma visão crítica da si-
tuação atual nos Estados Unidos, entender as relações raciais naquele país e
considerar o possível impacto dessas experiências em países como o Brasil.
AMÓS NASCIMENTO
Editor científico da Impulso
* Tradução do inglês: NUNO COIMBRA MESQUITA (USP/SP)
1 Cf. MENDIETA, E. (ed.) Religion and Rationality [ensaios e entrevista com Jürgen Habermas], Cambridge:
MIT Press, 2004; Cuidar la Libertad. [entrevistas sobre política e filosofía com Richard Rorty), Madrid: Edito-
rial Trotta, 2005; e Abolition Democracy [entrevistas com Angela Davis], New York: Seven Stories, 2005. Cf.
também “Interview on American Empire” [entrevista com Cornel West] em Logos, v. 3.4 (Fall, 2004)
2 Esse é o caso da entrevista de Mendieta com Habermas, em Impulso 35: “Sobre a Guerra, a Paz e o Papel
da Europa” (v. 14, set./dez., 2003, p. 119-135).
3 Em entrevista à Time Magazine (30/ago./71), Marcuse afirmou sobre Angela Davis: “Eu a considero a
melhor estudante que eu já tive em mais de 30 anos de atividade como professor”.

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Eduardo Mendieta: A senhora provavelmente é uma das cinco mulheres negras mais
importantes na história estadunidense e seus livros são continuamente considerados
obras “notáveis do ano” pelo New York Times. Em 1974, sua autobiografia foi
publicada pela Random House. Desde então, tem se constituído um clássico da
literatura afro-americana. Tornou-se central à tradição de escritoras negras e do
pensamento político negro, que, de várias formas, remete às narrativas dos escravos
negros. Como a senhora vê esse trabalho, agora, em 2004, com trinta anos de
perspectiva?
Angela Davis: Antes de mais nada, obrigada por me lembrar que esse
é o trigésimo aniversário da publicação de minha autobiografia. No mo-
mento em que a escrevi, não me imaginava inserida em nenhuma dessas
tradições. Para falar a verdade, inicialmente relutei em escrever uma au-
tobiografia. Eu era muito nova e não me considerava como um assunto
convencional de uma autobiografia. Acreditava que a celebridade, ou
como queira chamar, que eu havia me tornado tinha muito pouco a ver
comigo como indivíduo. Sustentava-se, primeiramente, na mobilização
do Estado e no seu esforço em me prender, no fato de eu estar na lista
dos dez mais procurados do FBI. Mas também, e talvez de forma mais im-
portante, sabia que minha situação fora criada, em grande parte, por um
movimento global intenso, que, bem-sucedido, conseguiu minha liber-
dade. Então, a questão era como escrever uma autobiografia comprome-
tida com a comunidade coletiva de luta. Decidi que queria escrever não
a autobiografia convencional, na qual o herói fornece lições para o públi-
co, e sim uma autobiografia política, que exploraria a maneira pela qual eu
tinha me moldado por movimentos e ativistas em comunidades de luta.

EM: Desde então, esse livro também se tornou fundamental à tradição


da literatura estadunidense. De que modo a senhora acha que a biografia po-
lítica negra desempenha um papel nessa tradição da literatura estadunidense?
AD: Os cânones da literatura estadunidense foram contestados an-
teriormente e, considerando o exemplo da autobiografia de Malcom X,
que conseguiu neles se inserir, poderia se falar sobre até onde isso fez a
diferença. Por outro lado, me pergunto se os cânones em si não foram
transformados. Parece-me que essas formas de luta para contestar grupos
de literatura são similares àquelas pela mudança e transformação social. O
que somos capazes de fazer, cada vez que conseguimos uma vitória, não
é tanto alterar as estruturas, mas criar novos terrenos para a luta. Assim,
argumentaria que é positivo que isso tenha acontecido. Mas, certamente,
como Toni Morrison poderia ressaltar, isso não alterou os cânones de
forma significativa.

EM: Já que estamos falando sobre cânones, na verdade eu cheguei re-


lativamente tarde ao seu trabalho, mas, uma vez que o li, me pareceu que se
encaixava em outra tradição, o cânone filosófico. Se pensarmos nos trabalhos
de Boethius, Jean-Paul Sartre, Martin Luther King, Dietrich Bonhoeffer, An-
tonio Gramsci, Primo Levi... Essas são figuras filosóficas que fizeram uma re-
flexão de suas experiências na prisão. Mesmo assim, é curioso que a reflexão

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filosófica sobre o aprisionamento tenha sido tão ra- Os tipos de perguntas feitas são aqueles que, de
ra. Como a senhora vê o seu trabalho contribuindo outro modo, não seriam possíveis de ser formu-
para isso, ou a senhora não o vê como pertencente a lados e acho que é isso o que tento fazer. Porque,
essa tradição filosófica de escritos da prisão? realmente, não se trata das respostas que se des-
AD: Escritos da prisão são freqüentemente cobre, trata-se do alcance das perguntas.
descritos como aquilo produzido na prisão ou
EM: Há belas páginas em sua autobiografia
por presos e, certamente, os cadernos do cárcere
de Gramsci fornecem o exemplo mais interessan- sobre a sua relação com Herbert Marcuse, que foi
te. Não sei se é acidental que as condições da pri- seu professor, mentor e membro da Escola de
são, ou ela em si, não tenham sido teorizadas por Frankfurt. A senhora passou alguns anos em Frank-
aqueles que se engajaram na produção intelectual furt no final da década de 1960, tendo estudado
enquanto nela estavam. Existem, é claro, exce- com Theodor Adorno, Jürgen Habermas e Max
ções. George Jackson é uma delas. Não sei se se- Horkheimer. A senhora se considera uma teórica
ria possível pensar criticamente a prisão enquanto crítica na linha da Escola de Frankfurt?
AD: Certamente fui inspirada pela teoria
eu era prisioneira. Creio seguir a tradição de al-
guns dos pensadores que o senhor menciona. crítica, que precisamente focaliza o papel da re-
Não publiquei enquanto estava na prisão. Escrevi flexão filosófica, ao mesmo tempo em que reco-
um artigo chamado “Reflexões sobre o papel da nhece que a filosofia nem sempre pode dar res-
mulher negra na comunidade de escravos”.1 E postas às questões que ela mesma levanta. Quan-
outro texto, para a conferência da Sociedade para do a pesquisa filosófica entra em diálogo com ou-
o Estudo do Materialismo Dialético, ligada à As- tras disciplinas e métodos, somos capazes de
sociação Filosófica Americana, “Mulheres e capi- produzir resultados mais frutíferos. Marcuse
talismo: dialética da opressão e liberação”,2 recen- subverteu os limites que separam as disciplinas da
temente publicado em The Angela Y. Davis Rea- filosofia, sociologia e literatura. Adorno colocou
der. Também desenvolvi um estudo bem extenso a música e a filosofia em diálogo. Estes foram os
sobre o fascismo, que nunca foi publicado. primeiros esforços no sentido de legitimar a pes-
quisa interdisciplinar.
EM: A senhora tem formação como filósofa;
EM: A senhora foi por duas vezes candidata a
entretanto, ensina no programa chamado História
vice-presidente dos Estados Unidos pelo Partido
da Consciência, na Universidade da Califórnia. A
Comunista, antes de deixar o partido nos anos 90.
senhora considera que a filosofia pode desempenhar
Após a queda do muro de Berlim, da União Sovié-
algum papel na cultura política, nos Estados Uni-
tica, o comunismo ainda pode desempenhar algum
dos? A filosofia influenciou o seu trabalho sobre a
papel nos dias de hoje?
estética, o jazz e, particularmente, a maneira pela
AD: Ainda que não seja mais membro do
qual analisa a situação das mulheres negras?
Partido Comunista, eu ainda me considero uma
AD: Certamente. Creio que a influência da
comunista. Ainda que não tenha acreditado na
filosofia é formular, fazer os tipos de perguntas
possibilidade de se derrotar o capitalismo e de se
que, de outro modo, estariam excluídas. Posso
construir um futuro socialista, essa era a única
dizer que aprendi um bocado de Herbert Marcu-
inspiração que permitia continuar com meu tra-
se sobre a relação entre a filosofia e a crítica ideo-
balho político. Por mais triunfante que o capita-
lógica e política. Sua obra, por exemplo, Contra-
lismo pareça após o colapso da comunidade de
Revolução e Revolta, está ligada diretamente às
nações comunistas, ele ainda continua incapaz de
condições materiais do final da década de 60.
crescer e de se desenvolver sem ampliar e apro-
Mas, ao mesmo tempo, a estrutura é filosófica.
fundar a exploração humana. Deve haver alguma
1 “Reflections on the black woman’s role in the community of slaves”.
alternativa ao capitalismo. Hoje, o que nos desa-
2 “Women and capitalism: dialectics of oppression and liberation”. fia é a tendência de se assumir que a única versão

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disponível de democracia é a democracia capita- tem sido profundamente influenciado pelo marxis-
lista. Devemos ser capazes de separar nossas no- mo e pelo comunismo – existe uma grande tradição
ções de capitalismo das de democracia a fim de nesse sentido. Mas uma maneira da qual falamos,
poder perseguir um modelo mais igualitário de às vezes, sobre o pensamento político negro é em
democracia. O comunismo – ou socialismo – termos de duas figuras em tensão: John Brown vs.
ainda pode nos ajudar a gerar novas versões de Frederick Douglas, Booker T. Washington vs. WEB
democracia. Du Bois; Malcom X vs. Martin Luther King. Essa
é uma forma de falar sobre a tensão entre o nacio-
EM: O chamado movimento antiglobaliza- nalismo negro e a assimilação ou integração. Como
ção, anti-OMC, pode assumir o papel que Karl a senhora se vê em relação a essas duas tensões, na-
Marx atribuiu ao proletariado? Em outras pala- cionalismo/integração?
vras, podemos dizer “antiglobalistas do mundo,
AD: É possível pensar a história negra como
uni-vos”?
moldada por esses debates, em várias eras. Houve
AD: Não sei se a transição é tão fácil. Mas também WEB Du Bois e Marcus Garvey. Mas es-
acredito que a importância das solidariedades glo- tou realmente interessada naquilo que foi oculta-
bais não podem ser contestadas. E existe uma li- do pela conceituação das grandes questões, nes-
gação, me parece, entre a internacionalização da ses debates entre homens negros. E digo ho-
era de Karl Marx e os novos globalismos que pro- mens, porque nunca consideramos que mulheres
curamos construir hoje. A economia global é também possam ter participado. Estou justamen-
muito mais complicada do que Marx jamais po- te interessada no que fica oculto por essa tensão
deria ter imaginado; ao mesmo tempo, suas aná- entre nacionalismo e integração. Essas não são as
lises são igualmente expressivas em nossos dias. únicas alternativas.
O Capital começa com uma análise da mercado-
ria. A mercadoria capitalista permeou as vidas das EM: Então a senhora vê o seu trabalho como
pessoas de formas que não têm precedentes. O contestando essa forma de ver a tradição negra do
capitalismo, em geral, entrou em estruturas do pensamento político... Essa forma de fazer sentido
sentir, no espaço íntimo da vida das pessoas. Pen- da integração.
so aqui em uma canção interpretada por Sweet AD: Sim. Exatamente.
Honey and the Rock sobre a linha de produção
global, que nos une de forma contingente, devido EM: Estou pensando na sua “Palestra Inaca-
ao fato de participarmos das práticas explorado- bada sobre a Liberação-ii”, que começa com Hegel
ras de produção e consumo. No norte global, nós e vai até Douglass, mais os seus outros trabalhos
compramos a dor da exploração de garotas do sul concomitantes àqueles, também seus, sobre mulhe-
global, com o que revestimos os nossos corpos res em comunidades de escravos. A senhora queria
diariamente... deslocar o foco e dizer que existe outra forma da
qual o pensamento político negro pode proceder?
EM: Os sweatshops3 do mundo.
AD: Certamente. E acredito que a suposição
AD: Os sweatshops globais. E o desafio é,
atual de que o pensamento político negro deve
como Marx argumentou há muito, revelar as re-
ser nacionalista ou negar as formações e a cultura
lações sociais que estão tanto incorporadas quan-
negra é muito falaciosa.
to escondidas por essas mercadorias.
EM: Mas uma das coisas atribuídas à globali-
EM: O pensamento político afro-americano,
zação é o fim dos nacionalismos. A senhora acha
o pensamento político negro nos Estados Unidos
que não existe nenhum papel para o nacionalismo
3 N.T.: fábricas, especialmente têxteis, que empregam mão-de-obra
negro nos Estados Unidos? Ele se tornou comple-
barata. tamente obsoleto? Talvez um anacronismo?

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AD: De certa forma, sim. Mas, em outro de acabar com o racismo estrutural. E, assim, o
sentido, poderia se argumentar que os nacionalis- que o movimento dos direitos civis fez, me pare-
mos que têm ajudado a moldar a consciência ne- ce, foi criar um novo terreno para formular novas
gra irão perdurar. Sempre gostei de me definir em questões e caminhar em novas direções. Não é
relação a esse debate acerca dos nacionalismos. uma traição o fato de pessoas como Colin
Antes de mais nada, devo dizer que não acho que Powell, Condoleezza Rice e os conservadores ne-
o nacionalismo seja um conceito homogêneo – gros que se encontram no coração do governo
existem muitas versões de nacionalismo. Sempre estarem onde estão. Na verdade, o movimento
preferi me identificar com o pan-africanismo de dos direitos civis demandou acesso, certo? Mas
web Du Bois, que argumentava que as pessoas não acredito que possamos presumir que o que
negras no novo mundo têm, sim, uma responsa- foi feito nos anos 50 e 60 irá realizar o trabalho
bilidade especial em relação à África e a outras dos anos 80 e 90.
partes do mundo, não em virtude de qualquer li-
gação biológica, racial, mas de uma identificação EM: Mas a senhora não se preocupa com o tri-
forjada. Não tem a ver com a África, porque ela bunal de Rehnquist? Quero dizer, se pensarmos so-
ser povoada por pessoas negras, mas por ter sido bre o papel do tribunal de Warren de avançar a
alvo do colonialismo e do imperialismo. E o que agenda da justiça racial...
eu também gosto, no pan-africanismo de Du AD: Ah, certamente!
Bois, é que ele é aberto a noções de lutas afro-asi-
áticas, algo, acredito, escondido nos dizeres con- EM: ...e o tribunal de Rehnquist, que é assu-
vencionais, em muitos ajuntamentos históricos midamente conservador. As pessoas nele são muito
designados como solidariedade afro-asiática. En- francas sobre o seu conservadorismo e estão de fato
tão, prefiro pensar sobre o tipo de abordagem dizendo que vamos retroceder nos ganhos do tribu-
política aberta, não racialmente definida, mas que nal de Warren. O que isso significa para a justiça
se coloca contra o racismo. racial no futuro?
EM: Além de celebrarmos os trinta anos de AD: Claro que me preocupo sobre isso. O
sua autobiografia, também estamos comemorando que estou querendo dizer é que as lutas passadas
em 2004 os cinqüenta anos de Brown versus Con- não podem corrigir injustiças atuais e, na verdade,
selho de Educação. A senhora acha que as forças da muitas pessoas que tendem a reclamar da traição
integração negra, forças dos direitos civis foram tra- do movimento dos direitos civis não estão pre-
ídas e, de algum modo, retrocederam, por causa das paradas para imaginar o que poderia ser necessá-
duas décadas de atuação de Rehnquist como presi- rio, neste momento, para desafiar o conservado-
dente da Suprema Corte, designado por Reagan? rismo da Suprema Corte, a reversão de tantas
AD: Certamente. Mas não acho que seja útil conquistas anteriores, o tipo de retrocesso do ra-
pensar numa agenda estabelecida num ponto cismo para recônditos estruturais da sociedade. É
bem-sucedido da história. Não creio fazer senti- muito difícil para elas reconhecer o racismo, es-
do presumir que esse sucesso perdurará e resistirá pecialmente quando ele não está explicitamente
a todas as mudanças e mutações ocorridas em ou- ligado a corpos particularmente racializados. O
tras áreas da sociedade. Na verdade, o movimen- que estou sugerindo é que precisamos de uma
to dos direitos civis conseguiu trazer à tona algu- agenda nova. Não podemos mais depender da
mas enormes mudanças, que abriram portas a antiga, que facilita golpes na ação afirmativa,
pessoas antes excluídas das instituições, do go- como destacou Ward Connerly, em sua campa-
verno, da educação, da moradia etc. Entretanto, a nha para a Proposta de Lei 209, na Califórnia.
abordagem dos direitos civis, como até o dr. King Para Connerly, o que se necessita é basicamente a
reconheceu antes de morrer, não tem o potencial proteção dos direitos civis dos homens brancos.

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EM: Certo. Mas eles estão usando uma estra- suntos relativos a justiça racial, como a ação afir-
tégia muito inteligente, que tem a ver com o deslo- mativa, ou reparações.
camento das questões sobre justiça racial em direção AD: Esse é o problema. E parece-me que as
ao multiculturalismo. Um exemplo é a decisão, no ideologias contemporâneas precisamente encora-
ano passado, do tribunal de Michigan – em Grutter jam essa presunção de que deve haver conflito ra-
versus Bollinger –, sobre termos de fazer alguma es- cial, particularmente nos casos de comunidades
pécie de ação afirmativa para preservar o multicul- de negros. No movimento trabalhista existem
turalismo. Qual a diferença entre justiça racial e muitos exemplos históricos de solidariedade e ali-
multiculturalismo? anças entre negros e latinos. Independente de
AD: Há uma grande diferença. Diversidade qual comunidade seja numericamente maior, sem
é uma daquelas palavras no léxico contemporâ- essas solidariedades e alianças não há possibilidade
neo que se presume ser anti-racista. Multicultu- de se almejar a um futuro anti-racista. Ao mesmo
ralismo é uma dessas categorias capazes de admi- tempo, é importante reconhecer que esta é uma
tir tanto interpretações progressistas quanto ex- nova era. As condições pós-coloniais não são só
tremamente conservadoras. Existe o multicultu- evidentes aqui nos Estados Unidos, mas literal-
ralismo corporativo, porque as organizações mente pelo mundo todo. A Europa não é mais
descobriram que é mais lucrativo criar um local um lugar geopolítico branco como costumava ser.
de trabalho diverso. E o mesmo vale para os EUA, para os negros que
estavam se acostumando à idéia de serem uma
EM: O multiculturalismo Benneton!
“minoria superior”. Deve-se abandonar essa idéia.
AD: Sim. Descobriram que os negros, lati-
Com freqüência existe a presunção de que, pelo
nos e asiáticos estão dispostos a trabalhar tão
fato dos negros determinaram a agenda anti-racis-
duro ou até mais do que seus companheiros bran-
ta para os Estados Unidos, eles sempre continu-
cos. Mas, claro, existem aqueles que falam sobre
arão sendo os advogados mais ferrenhos dessa
um multiculturalismo fortemente infectado poli-
idéia. Mas o povo negro como coletividade não
ticamente, com ênfase na comunidade inter-raci-
pode viver dos louros de seu passado histórico.
al. Porém, essa comunidade não está aí para criar
Recentemente aprendemos duras lições relativas
um lindo buquê de flores ou uma linda “travessa
ao conservadorismo nas comunidades negras.
de salada”, como se tem utilizado essas metáforas
Negro não pode ser visto como um sinônimo in-
em relação ao multiculturalismo. Ela é uma ma-
contestável de política progressista. O trabalho de
neira de lutar pela igualdade, desafiando desigual-
ativistas progressistas é fazer oposição ao conser-
dades estruturais. E considero que esse tipo de
vadorismo – independente da origem racial de
multiculturalismo tem um potencial radical.
seus proponentes. O fato das comunidades ne-
EM: Ainda sobre multiculturalismo e justiça gras e latinas não conseguirem encontrar uma
racial, existe essa questão que me preocupa pessoal- causa comum é um exemplo desse conservadoris-
mente – existencialmente – e tremendamente. Isto é, mo. Nosso trabalho hoje é promover comunida-
continuemos a falar sobre o “escurecimento” dos Es- des inter-raciais de luta que surgem a partir de as-
tados Unidos: até 2050, um quarto da sua população pirações políticas comuns – e quiçá radicais.
será, de algum modo, descendente de latinos. A se-
nhora acha que esse escurecimento dos Estados Uni- EM: No início da década de 70, Nixon e
dos irá legar um eclipse da questão da justiça racial? Hoover chamaram-na de inimiga do Estado. Eles
AD: Por que deveria? também lhe chamaram de terrorista. Entretanto, a
senhora produziu uma grande acusação contra a
EM: Os conservadores vêem justiça racial prisão, na época, e continua a fazê-lo. Seu trabalho
como questões essencialmente negras e consideram tem girado em torno da questão das prisões nos úl-
que a integração racial de latinos é distinta dos as- timos 30 anos. Quais as diferenças entre as ênfases

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do trabalho de 1970, 71 e 72 do que a senhora pu- AD: Sim. Suponho que se possa dizer isso.
blicou recentemente, As Prisões são Obsoletas?,4 Na verdade, presume-se que uma instituição de
por exemplo? repressão pode ser um sinal de igualdade e justiça
AD: O senhor tem razão. Esse engajamento se, por exemplo, ela tratar as pessoas brancas da
com as prisões tem como que definido a minha mesma maneira como trata as negras, o que seria
vida. Na verdade, precede meu próprio aprisiona- então um indicativo de igualdade e justiça. Tenho
mento, já que eu estava engajada em muitas cam- minhas suspeitas com relação a essa suposição.
panhas para libertar presos políticos. Acho que o Alguns anos atrás, James Byrd, na cidade de Jas-
per, no Texas, foi linchado por um grupo de racis-
que tenho tentado fazer recentemente é pensar
tas brancos... O senhor se lembra desse incidente?
criticamente as contribuições de pessoas, as mi-
nhas mesmo e de muitos outros, é claro, durante EM: Sim. Ele também foi arrastado pelas ruas.
aquele período e levar a sério as contribuições de AD: Dois dos homens brancos que partici-
intelectuais influenciados pela prisão. Mas tam- param acabaram sentenciados à morte. Naquele
bém refletir um pouco mais consistentemente momento, isso foi comemorado como uma vitó-
sobre as maneiras das quais a escravidão continua ria, como se o caminho para a igualdade e a justiça
a viver em certas instituições contemporâneas. racial fosse distribuir aos brancos o mesmo tra-
Poderíamos dizer que, começando por várias tamento bárbaro, horrendo, sofrido historica-
campanhas para libertar presos políticos quando mente pelos negros. Isso não faz muito sentido
eu era uma adolescente, aquele foi o meu primei- para mim.
ro encontro com essa instituição. Passando, en-
EM: A senhora poderia desenvolver um pouco
tão, durante o meu próprio aprisionamento, a
mais essa idéia? Em outras palavras, existe uma
uma análise voltada à própria instituição – auxili- continuação entre o período anterior à Guerra Ci-
ada, em grande medida, por George Jackson – vil e à a reconstrução e os guetos de hoje e a pena de
para pensar as prisões como um aparato repres- morte, que é igualmente racializada. Realmente, to-
sivo, mas também seu papel repressivo... de pro- das essas instituições e espaços parecem ter raízes na
mover o racismo, que ela ativamente produz. escravidão. São essas as ligações e continuidades às
Agora tento raciocinar sobre como isso acontece, quais a senhora está se referindo?
com a ajuda daqueles aspectos da história que AD: Interessante é que a escravidão, como
continuam incorporados em nossas instituições instituição durante o final do século XVIII e o XIX,
contemporâneas, o tipo de escravidão sedimenta- por exemplo, conseguiu tornar-se um receptácu-
da na prisão e na pena de morte. E isso, é claro, lo de todas essas formas de punição consideradas
muda. Há o potencial de mudar a maneira como bárbaras pela democracia em desenvolvimento.
pensamos as reparações. E de ampliar a demanda Em vez de abolir a pena de morte imediatamente,
política contemporânea por reparações, de modo procura-se refúgio na escravidão, de maneira que
a envolver não só os negros, mas todos os que fo- os brancos só são sujeitos à pena de morte se co-
ram tocados por essas instituições essencialmen- meterem um crime, que é o assassinato. Ao passo
te racistas, sejam negros ou brancos. que os negros, escravos, sujeitam-se à pena de
morte por até setenta crimes, em alguns Estados.
EM: A prisão nos Estados Unidos tornou-se A instituição da escravidão age como receptáculo
um tipo de gueto. E, se a entendi corretamente, a se- das formas de punição tidas bárbaras demais para
nhora está sugerindo que não pode haver, nesse país, serem atribuídas a cidadãos brancos numa socie-
um sistema prisional que não seja racial, isto é, um dade democrática. Com a abolição da escravidão,
sistema prisional não-racista é um paradoxo. essas formas claramente racializadas de punição
tornam-se desracializadas e persistem sob a más-
4 Are Prisons Obsolete? cara da justiça presumidamente indiferente à cor

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da pele [color-blind]. A pena capital continua a gico, precisamente para produzir a ressonância
ser aplicada principalmente aos negros, mas com a idéia do complexo industrial militar. E
quando a pessoa negra é sentenciada à morte, ela quando se considera a quantidade de recursos fi-
é considerada pela a lei como o sujeito jurídico nanceiros que ambos os complexos geram e fa-
abstrato, um indivíduo com direitos e deveres, e turam, ficam evidentes as similaridades entre es-
não como membro de uma comunidade raci- ses dois sistemas, que se dedicam a mutilar, matar
alizada, que foi submetido a condições que o tor- e destruir os recursos sociais. Durante a guerra
nam o primeiro candidato para a repressão crimi- do Vietnã tornou-se óbvio que a produção militar
nal. Assim, o racismo se torna invisível e irreco- estava se tornando um elemento cada vez mais
nhecível. Nesse sentido, essa pessoa negra, ho- central em toda a economia, começando a colo-
mem ou mulher, torna-se “igual” a qualquer nizá-la, por assim dizer. Pode-se detectar tendên-
outra pessoa branca, mas não inteiramente imune cias similares no complexo industrial prisional.
ao racismo da lei. Ele não é mais esse pequeno nicho na economia,
envolvendo algumas poucas empresas; a indústria
EM: A estrutura dessas instituições é profun-
da segurança e da punição está na mira de várias
damente racializada. Um exemplo seria a maneira
grandes corporações nas áreas da indústria e dos
como os presos têm seus direitos suspensos. Eles en-
serviços. As prisões têm sido identificadas como
tram numa espécie de morte civil. Isso também faz
um potencial tanto em termos de consumo como
parte do racismo, certo? A senhora menciona, no
em termos de provisão de trabalho barato. Há vá-
seu livro As Prisões são Obsoletas?, que Bush não
rias maneiras de descrever a relação simbiótica
teria sido eleito se os presos tivessem podido votar.
entre o sistema militar e a prisão. Focalizarei aqui
AD: Certamente. Interessante é que a priva-
uma das conexões mais óbvias: a similaridade en-
ção de direitos de pessoas enquanto estão na pri-
tre as populações dessas duas respectivas institui-
são é senso comum. A maioria nesse país não
ções. Na realidade, muitas pessoas jovens – espe-
questiona o fato de as pessoas, quando vão para a
cialmente as chamadas “pessoas de cor” – que se
prisão, serem roubadas do seu direito de votar.
alistam nas forças militares, geralmente o fazem
Para falar a verdade, podem até rir, quando desco-
para escapar de uma trajetória de pobreza, drogas
brem que, em alguns Estados, pessoas podem vo-
e analfabetismo que as levaria à prisão. Finalmen-
tar enquanto estão na prisão. Montam-se cabines
te, uma breve observação que tem enormes im-
de votação na prisão, como numa instituição edu-
plicações: pelo menos uma grande empresa no
cacional. E por que esse discurso de privação de di-
âmbito da indústria da defesa tem consistente-
reitos de presos tornou-se parte das estruturas de
pensamento do senso comum nos Estados Uni- mente recrutado o trabalho de pessoas nas pri-
dos? Isso tem muito a ver com a escravidão, certo? sões. Pense na seguinte situação: prisioneiros es-
Da mesma forma, os escravos não podiam votar, tão ajudando a construir as armas utilizadas pelo
não eram cidadãos completos. É claro que presos governo em sua busca de uma hegemonia global.
não podem votar: não são mais cidadãos, indepen-
EM: A senhora também argumentou que não
dentemente das razões pelas quais foram presos.
existe correlação entre crime e aprisionamento e que
EM: Em seu trabalho recente, a senhora men- a “prisonização” [prisionization] da sociedade trans-
ciona que existe uma relação simbiótica entre o formou a paisagem racial dos Estados Unidos. Qual
complexo industrial prisional e o industrial militar. é a relação entre uma coisa e outra? Geralmente pen-
Como essas associações são sustentadas? Como são samos que temos tantos presos por existirem numero-
entrelaçadas? sas pessoas cometendo muitos crimes, mas a senhora
AD: Primeiro, eu deveria indicar que o uso argumenta que é justamente o contrário.
do termo complexo industrial prisional por acadê- AD: A ligação geralmente presumida, nos
micos, ativistas e outros tem sido muito estraté- discursos popular e acadêmico, é a de que o crime

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produz punição. O que tenho tentado fazer, jun- qualificadas. Visita-se uma prisão de mulheres e
tamente com tantos outros intelectuais públicos, vê-se que elas estão presas por, digamos, acusa-
ativistas e acadêmicos, é encorajar as pessoas a ções de tráfico de drogas. E, com freqüência, esse
pensar sobre a possibilidade de a punição ser con- envolvimento com as drogas foi produzido pelo
seqüência de outros tipos de forças, e não funda- fechamento das outras alternativas, incluindo a
mentalmente da prática de um delito. Isso não assistência social.
significa dizer que as pessoas nas prisões não co-
meteram crime – não estou dizendo isso de for- EM: A senhora acha que existe, em paralelo à
ma alguma – ou o que chamamos de “crimes”. relação de simbiose entre os complexos industriais
Punição, para ser breve, pode ser vista em cone- militar e prisional, como também entre a indústria
xão com a vigilância. Mas é freqüentemente re- prisional e o sistema judiciário nos Estados Unidos?
sultado de uma vigilância maior. Aquelas comu- AD: Bem, mas eles já são partes do mesmo
nidades mais sujeitas à vigilância da policia são sistema, pois temos a lei, a coação policial [law en-
muito mais propensas a produzir mais corpos di- forcenment] e a punição. As práticas de sentenci-
recionados à prisão. E, mais importante, a insti- amento que têm sido aplicadas nas últimas duas
tuição da prisão, parece-me, tem evoluído ao lon- décadas são diretamente responsáveis pelo enor-
go dos séculos, mas especialmente nos últimos me número de pessoas que estão atrás das grades.
vinte anos, para uma solução punitiva a toda uma As mais de 2 milhões de pessoas estão em várias
gama de problemas sociais que não estão sendo prisões, incluindo prisões militares, são a funesta
tratados pelas instituições e que poderiam fazer a conseqüência do caráter mandatório de sentenças
vida das pessoas melhor. Ao invés de construir e práticas, como a chamada “sentença de verdade”
moradias, jogue os sem-teto na prisão! Em lugar [truth in sentencing – que exige cumprimento in-
de desenvolver o sistema educacional, atire os tegral de penas, ao invés de se libertar presos por
analfabetos na prisão, como também os que per- bom comportamento], a “lei das três chances”
deram empregos por conta da desindustrialização [three strikes law – que aumenta a pena de pessoa
relacionada à globalização do capital e ao ajusta- que cometeu o mesmo crime três vezes] e outras.
mento estrutural. O senhor sabe, livre-se deles!
Eles são considerados populações dispensáveis. EM: Existe um fenômeno fascinante – referido
Assim, a prisão torna-se um meio de desaparecer em seu trabalho – a indicar que, ao mesmo tempo
com as pessoas e com os problemas sociais asso- em que a construção de mais prisões parece nos dar
ciados a elas. mais segurança, há de fato um declínio na taxa de
criminalidade desde os anos 70. Por que isso? Por
EM: Esse processo de desaparecer com as pes- que nos sentimos mais seguros tendo prisões?
soas, sem resolver as contradições sociais, está rela- AD: Essa é mais uma questão sobre o que
cionado com a reforma do sistema de assistência so- faz as pessoas se sentirem mais seguras, e não tan-
cial, em 1996, que mandou tantas mulheres para o to sobre elas serem de fato mais seguras. Chega a
complexo industrial prisional, aumentando a popu- ser irônico que, com a crescente pandemia de vi-
lação feminina nas prisões? olência doméstica – a violência nos lares –, a fa-
AD: Certamente. Na verdade, as mulheres mília ainda seja considerada um lugar seguro, um
ainda constituem, acredito eu, o setor de popula- refúgio. Nos dias de hoje, a ameaça aparenta sem-
ção encarcerada que cresce mais rapidamente, pre vir do exterior, de fora. Então, os dois mi-
não só aqui, mas também em outras partes do lhões de encarcerados são materializações desse
mundo. Isso tem a ver, em parte, com o estabe- inimigo imaginado, o que faz as pessoas se senti-
lecimento de algo como o sistema de bem-estar, rem melhor e, ao mesmo tempo, as impede de re-
que não forneceu solução para os problemas de conhecer as ameaças vindas dos militares, da po-
mães solteiras desempregadas ou baixamente lícia e, às vezes, de seus próprios parceiros de lar.

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EM: Estamos continuamente sob a ameaça de vantagens das drogas psicotrópicas? Parece-me
um crime, e isso parece ser instigado pela mídia. É que isso sustenta o tráfico ilegal de drogas tam-
um pânico fabricado? Existe algum fundamento bém. Mas, é claro, estamos falando de drogas ilí-
nisso? citas, de um lado, e lícitas, de outro. Essa, me pa-
AD: Esses pânicos morais surgem sempre rece, é a diferença.
em conjunturas específicas. Podemos pensar no
pânico moral de homens negros estupradores, es- EM: A senhora também falou, em seu trabalho,
pecialmente após o fim da escravidão. Isso não ti- sobre essa série contínua e altamente problemática: o
nha muita ligação com uma ameaça real, mas com “medo vermelho”, o anticomunismo, o macarthis-
o problema de administrar pessoas negras recém- mo; depois, a guerra às drogas, aos narcotraficantes;
libertos. Parece-me que o pânico moral acerca do e, agora, a guerra ao terrorismo. Quais as continui-
crime não se relaciona de forma alguma a qual- dades, as similaridades e as diferenças entre elas?
quer aumento de crimes num sentido material, e AD: Seria muito complicado explorar todas
sim a um problema similar de gerir grandes po- as diferenças e similaridades, mas gostaria de su-
pulações, em particular das chamadas “pessoas de gerir que o terreno para a produção do terrorista,
cor” tornadas dispensáveis pelo capitalismo glo- como figura no imaginário estadunidense, tem
bal. É uma analogia simplista, mas acho que faz sido significativamente criado por pânicos morais
sentido. Poderíamos persegui-la e explorar suas anteriores, digamos, o criminoso. Este era a figu-
complexidades. ra ameaçadora, quando se considera a campanha
de Willie Horton, e assim por diante. Depois, é
EM: Nessa rede complexa de associação entre claro, o comunista tornou-se, em determinados
criminoso fabricado, punição e prisonização, a se- períodos da história dos Estados Unidos, a gran-
nhora faz uma sugestão, bem clara para mim, e de ameaça da sociedade. E, agora, é o terrorista,
muito provocativa. Diz que a criminalização da que, é claro, já foi evocado em outras ocasiões. Eu
juventude por conta da chamada “guerra às drogas” própria fui rotulada de terrorista, quando estava
seguiu a benefício, ou ao uso simultâneo, de drogas na lista dos dez mais procurados pelo FBI. Nixon
psicotrópicas. Porém, parece haver diferença entre referiu-se a mim publicamente como uma terro-
crack e um Prozac, não? rista. A questão é, entretanto, que essas respostas
AD: É claro! Uma gera uma quantidade emocionais para a alocação da figura do terrorista
enorme de lucro para as corporações farmacêuti- são sobrecarregadas com tais idéias de criminoso,
cas, a outra não – embora essa última produza lu- de comunista. Em todos os casos, trata-se sem-
cro para as economias subterrâneas das drogas. Eu pre de representar o inimigo externo contra o
hesitaria em falar sobre semelhanças ou diferenças qual cabe a nação se mobilizar para se salvar. As
químicas, mas diria que existe uma grande contra- conseqüências materiais são horríveis. As pessoas
dição entre o discurso da “guerra às drogas” e o islâmicas ou de origem árabe – ou aquelas que pa-
discurso corporativo das drogas psicotrópicas au- reçam islâmicas ou árabes (independente do que
torizadas, as quais são disponibilizadas com recei- isso signifique) – têm sofrido terrivelmente nos
ta médica a qualquer um que tenha dinheiro ou EUA e em países europeus. A ocupação do Iraque
seguro médico, sendo promovidas pelas empresas e do Afeganistão pelos EUA produziu conse-
farmacêuticas como indutores químicos ao rela- qüências espantosas e inimagináveis.
xamento, à felicidade, à produtividade etc.
EM: A senhora tem trabalhado na produção
EM: Ritalin para as crianças e, por exemplo, de um novo livro, Prisons and History [Prisões e
Viagra para os mais velhos... História]. Poderia nos contar algo sobre ele?
AD: Isso mesmo. Eu sempre ressalto: o que AD: Oxalá esse livro venha motivar pessoas a
você faz, se você é uma pessoa pobre, ao receber pensar não somente sobre a instituição da prisão,
esse bombardeamento de propagandas sobre as mas também sobre a versão particular de democra-

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cia com a qual somos forçados a concordar. Os di- neira irá inexoravelmente sentir a experiência da
reitos e liberdades democráticas são definidos em violência sexual. Mas, como isso ocorre na prisão,
relação ao que é negado às pessoas nas prisões. As- a sociedade imagina que essa forma de assalto à
sim, poder-se-ia perguntar: em que tipo de demo- pessoa seja um aspecto normal e rotineiro no apri-
cracia estamos realmente vivendo? O tipo de de- sionamento de uma mulher, sendo portanto jus-
mocracia que somente inventa a si mesma e desen- tificável pelo mero fato de se estar preso. A soci-
volve-se como a face afirmativa dos horrores mos- edade imagina que isso é o que de fato vem ocor-
trados nas fotografias de Abu Ghraib, nas agonias rer se uma mulher vai parar na prisão. Que isso é
físicas e mentais produzidas diariamente em pri- o que acontece com a cidadã que foi destituída de
sões aqui e em outras partes do mundo. Essa á
seu direito à cidadania e que, portanto, é justo que
uma concepção fajuta [flawed] de democracia.
uma prisioneira seja sujeitada à coerção sexual.
Gostaria de mencionar um exemplo que
Eu quero indicar às pessoas a urgência de se
questiona as idéias convencionais sobre a separa-
pensar mais profundamente sobre a forma pode-
ção entre prisão e sociedade, dar um exemplo que
re-situe nossas respostas, um tanto chocadas rosa e profunda como tais práticas dão forma ao
quando nos deparamos com as recentes imagens tipo de democracia na qual vivemos hoje. Gosta-
de coerção sexual no Iraque. Reconhecemos o ria de insistir na urgência de se pensar sobre ver-
fato de que mulheres em prisões em todo o mun- sões diferentes de democracia, as democracias fu-
do são forçadas, rotineiramente, a passar por re- turas, democracias fundadas no socialismo, de-
vistas de seus corpos nus e seus orifícios. Suas va- mocracias nas quais tais problemas sociais que le-
ginas e o reto são checadas. Qualquer mulher ca- varam ao surgimento do complexo industrial-
paz de se imaginar – de imaginar a si mesma, não prisional possam ser completamente resolvidos
a uma outra pessoa – sendo vasculhada dessa ma- ou, no mínimo, ser descobertos e reconhecidos.

Dados da entrevistada
ANGELA DAVIS freqüentou escolas segregacionistas em
Birmingham, Alabama, onde nasceu em 1944. Saiu de lá
para estudar literatura francesa em Nova York, depois em
Paris. Seu interesse por filosofia a levou a Frankfurt,
Alemanha, concluindo ali seus estudos doutorais com
Marcuse, antes de se tornar professora na Universidade da
Califórnia. Em 1969, aos 25 anos, foi demitida por razões
de suas convicções comunistas. Mais tarde é acusada de
participar de ações armadas com os Panteras Negras e da
tentativa de fuga de dois prisioneiros negros da prisão
Soledad da Califórnia, quando três pessoas morrem. Em
1971, é presa e encarcerada durante 17 meses, até ser
julgada inocente. Nesse período, artistas, intelectuais e
ativistas realizaram diversas manifestações pedindo sua
libertação. É autora, entre outros, de If they come in the
morning: voices of resistance (Se chegarem pela manhã:
vozes da resistência, 1971), Angela Davis: an autobiography
(Angela Davis: uma autobiografia, 1974), Women, Race and
Class (Mulheres, Raça e Classe Social, 1981) e,
recentemente, de Blues Legacies and Black Feminism
(Herança do Blues e Feminismo Negro).5

5 Para mais detalhes, cf. JAMES, J. (ed.). The Angela Davis Reader (Oxford: Blackwell, 1999), e <http://www.wunderblogs.com/vertigem/archi-
ves/2004_05.html>.

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Dados do entrevistador
EDUARDO MENDIETA é professor de filosofia na University of
New York at Stony Brook (SUNY), editor da revista Radical
Philosophy Review e tradutor de Jürgen Habermas, Karl-
Otto Apel e Enrique Dussel. Publicou dezenas de livros e
artigos sobre teoria crítica e globalização, entre eles The
Adventures of Transcendental Philosophy. Karl-Otto Apel‘s
Semiotics and Discourse Ethics (Rowman & Littlefield,
2002), além de entrevistas com Angela Davis, Cornel West,
Richard Rorty, Jürgen Habermas e Noam Chomsky.

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