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Capa e proj Revisdo: Bianca Diniz Jo editorial: Maite Cena oorsee evn Bua Dali Jorge Meare 10 “Acaessoramento grfico: André Luis Alt siortal ia Lisboa de Mello sho editorial: Ana Maria al Débora Mutter Fabio Akcelrud Duro José Hildebrando Dacanal Dados Internacionais de Catalogagéo na Publicagio (CIP) BS24p Berd, Zilé ° ‘A persisténcia da meméria. / Zilé Bernd. — Porto Alegre: BesouroBox, 2018. 172p5 16x23 om ISBN: 978-85-5527-075-8 1. Literatura comparada. 2. Meméria cultural, 3. Romances. I. Titulo, CDU 82.091 Bibliotecéria responsdvel Katia Rosi Possobon CRB10/1782 Direitos de Publicado: © 2018 Edigdes BesouroBox Ltda, Copyright © Zila Bernd, 2018. Todos os direitos desta edigdo reservados a Edigdes BesouroBox Ltda, Rua Brito Peixoto, 224 - CEP: 91030-400 Passo D'Areia - Porto Alegre - RS Fone: (51) 3337.5620 www.besourobox.com.br Impresso no Brasil Maio de 2018 PREFACIO ..... APRESENTAGAO....... PARTE I ANTERIORIDADES/INTERIORIDADES . MEMORIA CULTURAL E GERACIONAL: ROMANCES DE FILIAGAO ENTRE INTERIORIDADE E ANTERIORIDADE NOTAS PARA UMA TEORIA DA TRANSMISSAO.... PARTE II FILIACOBS ..... MODOS DE TRANSMISSAO INTERGERACIONAL EM ROMANCES DA LITERATURA BRASILEIRA ATUAL....... 41 ROMANCES DA ANTERIORIDADE: COMPARTILHAMENTO E TRANSMISSAO INTER E TRANSGERACIONAL NA FICGAO, ATUAL DAS ANTILHAS E DO BRASIL... MEMORIA CULTURAL E GERACIONAL: ROMANCES DE FILIACAO ENTRE INTERIORIDADE E ANTERIORIDADE Repensando o conceito de meméria cultural e geracional Os tedricos que hoje introduzem nos estudos da meméria social ecoletiva a denominag’o de meméria cultural, tais como Aleida e Jan Assmann ¢ Andreas Huyssen, valorizam os estudos da meméria nfo apenas em termos de armazenamento de dados em arquivos, mas de tudo aquilo que escapa ao registro oficial, como o residual, o que foi obliterado ou o que se tentou apagar. Enfim, a assim chamada memé- Tan Assmann (2010, p. 41) aborda a questo do imbricamento das denominagdes — meméria individual e coletiva (Halbwachs), me- moéria social (Warburg) e meméria cultural, explicitando que memé- ria coletiva seria a denominacao genérica — enquanto se preocupa, no livro intitulado La mémoire culturelle (2002, versio do original em 21 Zila Bernd alemao), em distinguir meméria comunicacional ¢ meméria cultu- ral, que seriam aspectos da memoria coletiva. Afirma o mesmo autor que cultura da lembranga ¢ mem6ria cultural podem ser descritas em ficmos de “tradicao” ¢ “transmissio” (2010, p. 31). lan Assmann ar- gumenta ainda que a meméria cultural remete a uma das dimensoes_ : moria culeural seria externas da meméria humana, Nessa medida, a rernas da memoria humana, Nessa mecica as quatro dimensoes da memoria externa, a saber: | imética (indicagdes escritas, como livros de cozinha, bulas, manuais ‘quadros, utensilios domésti- : 1. meméria etc.); 2. meméria dos objetos (méveis, cos que despertam lembrangas de nossos.an ancestrais); 3. memoria co- municacional (a linguagem ¢ a capacidade de comunicar-se nao seria interna, mas se desenvolveria no contato com 0s demais); 4. meméria cultural ou transmissio do sentido (ritos ¢ comemoragoes sio trans- mitidos; 0s préprios objetos, quando se cornam cones, transbordam ° sentido de meméria dos objetos para se tornarem “meméria cultural”), (ASSMANN, 2010, p. 18-19). i Ja para Andreas Huyssen (1995), 0 sentido de meméria cultural estd associado & meméria geracional: para algo se transformar em me- meéria, é preciso que seja transmitido de geragao em geragao. O tempo do ato de meméria é 0 presente, €n40 0 passado, embora todamemé- ria dependa de alguna experiencia que ocoreu 0 ssc Valendo- se de uma belissima metafora — 0 ocaso ou crepuisculo — para definir a meméria, o autor menciona que é neste periodo intervalar — quando ainda nao noite, mas jé nao é mais dia - que as memérias emergem. “Ocaso (twilight) ¢ 0 momento do dia que antecede a noite do es- quecimento; um entre-lugar em que a tiltima luz do dia ainda pode efetuar maravilhas. E 0 tempo privilegiado da meméria” (p. 19-21)... pela historiografia tradicional, mas também pela meméria contidanos vestigios, no que foi reprimis . ‘A maioria dos autores citados que trabalham com o conceito de meméria cultural insistem na relagdo entre o imagindrio urbano € as memérias traumaticas (exterminios, deportagées, shoah, escravidao etc.), pois ambos tém um papel-chave na transformagio das sociedades 22 A persisténcia da meméria contemporaneas. E nesse sentido que reiteramos o sentido politico no emprego do conceito de meméria cultural. Régine Robin, num sabo- 1080 livro que é, ao mesmo tempo, ensaio ¢ autobiografia, Le roman mémoriel (1989), tematiza em ensaios ¢ em contos ficcionais as narra- tivas de vida de grupos da populagéo que foram obrigados a silenciar, aesquecer ea reprimir para sobreviver, com énfase para a comunidade judaica & qual ela pertence. Essas lembrangas constituiriam a meméria cultural que, segundo a autora, nao se confunde com meméria de gru- po, no sentido identitario do termo (1989, p. 56). Seria uma meméria geracional cuja formula emblématica é: a meméria cultural “é o que nés conhecemos de melhor”? (p. 56). Para melhor explicitar sua fér- mula, ela insere uma citagdo de seu romance La Québécoite, no qual a personagem recém-chegada da Franca para o Quebec rememora com nostalgia o que ela ea familia, que exilou-se na Franga durante a ocu- pagio nazista da Polénia, faziam: os livros que liam, os poemas que recitavam, os exercicios de piano, os fragmentos de filmes assistidos, os objetos que decoravam a casa, bem como fotos amarelecidas. Assim, a personagem elabora listas de filmes, musicas, objetos, nomes préprios para ndo esquecé-los. Essa meméria cultural seria polifénica ¢ tam- bém, segundo Robin, aquela que se desenvolve melhor em narrativas ficcionais do que na escrita da Histéria: Passado fixado, conservado, magnificado, comemorado; pasado odiado que queremos esquecer, que reprimimos; contra-meméria que opomos & meméria nacional, 4 meméria oficial, tirando nossa identidade do “nés” que ¢ oposta a “cles”, passado opressivo. * (1989, p. 59) 3 [..] c'est ce que nous avons connu de meilleur 4 Passé fixé, conservé, magnifié, commémoré ; passé hai que l'on veut oublier, que l'on refoule ; contre-mémoire qu'on oppose @ la mémoire nationale, la mémoire officielle, en sortant son identité du ‘nous autres’ opposé ‘eux’, passé pesant. (1989, p. 59) 23 Zila Bernd Le Romance memorial e romance de filiago / Anterioridade / Interioridade Régine Robin, em 1989, associa meméria cultural e romance me. morial ou romance familiar. Para a autora, o romance memorial serig aquele em que “um individuo, um grupo ou uma sociedadé penza seu passado niodificando-o, déslocando-o, deformando-o, inventandolem- “brangas, um passado glorioso, ancestrais, genealogias ou, ao contriio, jutando pela exatidao factual, para a reconstituigio do acontécimento ee en ee ou sua ressurreigao” (p.48), Esse romance seria necessariamente hibri- do porque nao separa co. Resumidamente, a me tural, expressa através do romance memorial ou parental, desencadeia afetos ¢ pode ser definida como a rememoragio dos “fantasmas pelos quais o sujeito mod mente seus lacos com seus pais” (FREUD apud Robin, . Duas décadas mais tarde, Dominique Viart (2008) débraga-se so- bre os romances que ele denomina parentais ou de filiagao. Em alen- tado estudo sobre a literatura francesa na contemporaneidade, aponta como uma das caracteristicas do romance atual na Franca a preocu- paso com a temética da ascendéncia, da ancestralidade, projeto este que faz parce de outro mais amplo conhecido como as “escritas de si”, no qual se incluem 2s autobiografias eas obras autoficcionais. Observa © autor que, a partir dos anos 1980, o carater de interioridade, que caracteriza as escritas de si, evolui para o carter deanterioridade, que define ‘as chamadas escritas da filiacao (escrever sobre 0 pai ou amae)_ (VIART, apud VIART, D.; VERCIER, B., 2008, p- 79-101). Falar dos pais é um subterfiigio para falar de si préprio, apontando para um desejo de conhecer melhor a heranga deixada pelos pais. Na verdade, trata-se do autobiografico descrito através de um outro ponto de vista. O filho deseja saber o que aconteceu em momentos da vida dos pais em que ele nao esteve presente, Na verdade, esse tipo de romance da meméria familiar pode apresentar dois aspectos: a) render tributo a0 pais ¢ avds, salientando o quanto o narrador herdou de seus ances- trais, estabelecendo um continuum familiar; b) tornar-se um lugar de 24 le A persisténcia da meméria afrontamento e de acerto de contas com os antepassados, podendo re- sultar em ruptura com a familia ou em reconciliagao apés 0 confronto. Esse tipo de romance que Viart chama de “romance de filiaga0” articula-se a partir de vestigios (objetos da casa paterna, cartas, fotos) ou da falta (pais ausentes, transmissio imperfeita, ressentimento). Quais seriam entao as especificidades de cada um; romance me- morial (Robin) ¢ romance de filiagéo (Viart e Demanze)? Ambos sio formas autoficcionais, mas deles se distinguem pela énfase dada & “an- terioridade”, ou seja, para falar de si, os personagens narradores focali- zam um ancestral: a mie, o pai, os avés ou um ancestral mitico. Resumidamente, poderiamos apontar duas variantes do romance da anterioridade: 1. romance memorial, que seria uma faceta pés-moderna da saga, com énfase para a busca dos vestigios, astros ¢ fragmentos olvidados no passa- do e que constituem a meméria cultural, definida por Régine Robin como aquela feita “de pequenos nadas” (1989, p. 21); 2. romance de filiagdo (ou parental), variante da autoficgio com a ca- racteristica de usar o subterfiigio de focalizar a narrativa na vida de um ancestral (pai, mie, avés), numa perspectiva de ajuste de contas com 0 passado; neste caso, temos a presenga do que Laurent Demanze chama de “herdeiro inquieto e problematico”, que hesita entre reivindicar a heranga paterna ou repudié-la. Como se percebe, a linha que os separa ¢ muito ténue, pois, em- bora estejamos enfatizando a “anterioridade”, cles também sao au- toficccionais, portanto, alicergados na “interioridade ou na subjeti- vidade”. Nessa medida, ocupam um espago intervalar, j4 que ambos contém: a) narrativas excentradas que nao respeitam a diacronia (que éessencial nas sagas ou no roman fleuve tradicional que caracterizou a ficcao do final do século XIX até meados do século XX); b) a presen- ga de um eu narrador envolvido em relatar memérias traumiticas ou pds-memédrias, 5 [..] des petits riens. 25 Zila Bernd Voltaremos a esses conceitos 4 medida em que forem seguindo-se as andlises dos romances do finalzinho do século XX ¢ os que emer. gem no século XI. Referéncias ASSMANN, Jan. La mémoire culrurelle: écriture, souvenir et imaginaire politi. que dans les civilisations antiques. Paris: Flammarion, 2010. ASSMANN, Aleida. Introdugio (p. 15-27); A crise da meméria cultural (p.437. 442). 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A transmissao pode se realizar através das nar- rativas que uma pessoa confia 4 outra, que uma geragao lega 4 outra, que um escritor transforma em ficg4o ou que um historiador trans- forma em Historia. Pode-se concluir que uma nao existe sem a outra: recuperacdo memorial ¢ transmissa0, duas faces da mesma moeda, Para Joél Candau, “Transmitir uma meméria nao consiste ape- nas em legar um contetido mas em um modo de estar no mundo” (2013, p. 16). E quando hé impossibilidade de transmissio? Quando as memérias sao indiziveis, nao pode haver nem a mobilizacao nem a 27 Zilé Bernd socializagio da meméria, Se tentar abordar tanto o aspecto proficuo d a eransmissio quanto o que alguns autores Shamam de ‘mal-estar da transmissio”, quando se tem vergonha de nemérias trauméticas de seu proprio passado ou do passado dos an. cestrais. :7 ; Naorigem, anecessidade humana de transmitir, ou seja,de deixar erage HATS, iscrig6es, residiuos de sua passagem, estdligada, como ros lembra Jeanne Marié Gagnebin, & consciéncia dos homens de que Yao morrer. Escrever torna-se, pois, um imperativo para que possamos deixar marcas de nossa passagem pela terra. Assim, no prélogo do livro Limiar, aura e rememoragéo (2014), a referida autora associa escrita, morte ¢ transmissio, j& que 0 desejo de transmitir pela escrita nossas historias de vida corresponde a uma forma de resistir ao esquecimento ¢Amorte. Na esteira de Maurice Blanchot, Gagnebin registra: escrevemos para sobreviver, para nao morrer por inteiro, ou para deixar algo de durével (no ousamos mais dizer de eterno), para deixar um rastro ou uma marca de nossa passagem; rastro ou marca que, esperamos, sero piedosamente conservados pela posteridade. Talvez queiramos mesmo transmitir algo essencial, algo da ‘imortal beleza’ (Baudelaire) ou da ‘sabe- doria universal’ [...]. (2014, p. 18) A autora conclui que, na realidade, escrevemos para nos “inscre- verna linha de uma transmissio intergeracional” (p. 30). Lembremo-nos de que a meméria genealégica ¢ familiar, no entender de Candau (2013; 2014), abrange em torno de duas a trés gerag6es, caracterizando-se por ser uma meméria curta ¢ estando rela- cionada diretamente as questées identitarias, isto é, 4 busca incessante em conhecer a trajetéria dos pais e avés como forma de autoconheci- mento ¢ entendimento das suas origens. “A formulacao de uma me- méria genealdgica ¢, mais genericamente, de uma meméria familiar, rocede sempre na produgio de uma identidade individual, social ¢ cultural” (CANDAU, 2013, p. 175). Jaa memoria geracional ultr: passa o nticleo familiar ¢ estende-se por diversas geracdes. Snes Vale mencionar a esse respeito a definigao de Bernd e Soares so- bres conceitos de transmissao inter e transgeracional: 28 A persisténcia da meméria A transmisséo pode ser inter e transgeracional, isto é, relaciona-se postu- ra do sujeito narrador de assumir-se como herdeiro — para dar continuida- de zo patriménio memorial herdado ou romper com ele. Cabe lembrar que a meméria geracional pode ser transmitida de uma geragéo 4 outra (intergeracional), podendg ir além dos ancestrais terrenos (pai/mae, av6/ avé) considerando-se também os patriarcas, ou seja, alideranga espiritual cuja aceitagao ou ndo, em/algumas circunstdncias, é fundamental para que haja continuidade ou ruptura. Nesse caso, trata-se de transmissio transge- racional. (2016, p. 405-421) Neste momentg, é interessante ressaltar que transmissio nao deve ser confundidé com uma “auténtica transfusio”, como lembra Candau: ela comesponde ao que Emst Bloch chamou de “apropria- ‘Go produtiva da heranga do passado” (apud Gagnebin, 2014, p. 208). Reavaliando os termos “heranga, tridi¢ao ¢ transmissio”, cabe a per- gunta: 0 que deve ser conservado ¢ transmitido? Por mais paradoxal que possa parecer, as sociedades de cultura oral rém maior facilidade de transmitir devido ao sistema de memorizagio pelos griots, conteurs, cantadores e contadores de histéria. Nas sociedades modernas, as pos- sibilidades s4o tantas de conservar ¢ arquivar em diferentes midias que a questo do que conservar se torna crucial, como lembra Aleida Ass- mann (2013, p. 367-436). Joél Candau também alude ao problema da proliferagéo de infor- magées, bibliotecas, museus ¢ imagens em nivel jamais visto, tendendo, portanto, a “tudo conservar, tudo armazenar, musealizar a totalidade do mundo conhecido ¢, por outro lado, continuando a produzir mais informagées ¢ mensagens” (p. 113). © paradoxo é a incapacidade de transmitir porque, de um lado, hé excesso de expansio memorial ¢, de outro, dificuldades de interlocugao entre os quadros sociais, que sao de suma importancia para a transmissdo. Se estes entram em colapso, a transmissao ser4 necessariamente interrompida. Trata-se de uma apo- tia da modernidade tardia: a expansio descontrolada da meméria leva a crises identitdrias pela precarizagéo dos meios sociais que viabilizam a transmissio. Estariamos nos tornando uma espécie de Funes, 0 me- morioso, o inesquectvel personagem de Jorge Luis Borges cuja memé- tia, por no esquecer nada, o impossibilitava de pensar, de produzir 29 Zila Bernd deefetivara transmissio do saber que acumulara, com. Jena afirmacdo de sua identidade? de Joél Candau que mencionamos conhecimento, prometendo assim a plena afirm Vale aqui recomar a citagao ; Jona “Transmitir uma meméria e fazer viver, assim, uma identida. de, nao consiste, portanto, em apenas legar algo, ¢ sim em uma manej- rade estar no mundo” (2014, p. 118). Essa reflexao estabelece dilogo intertextual com ado filésofo Ernst Bloch em um livro intitulado Die Kanst eu erben (A arte de herdar), de 1938: “transmitir nao se resume a fazer circular uma heranga cultural que nos foi legada pela tradicao, mas a revisar criticamente o presente, se reapropriando do passado, ou melhor, transmitir corresponde a “possibilidade de uma apropriagio produtiva da heranga do passado” (apud Gagnebin, 2014, p. 208). Sabemos que em muitas culturas acontece um choque entre “os acim: antigos”, que querem a todo custo preservar a tradicéo, e “os moder- nos”, querendo romper com a tradigo para instaurar elementos ino- wwadlores: io aconrecen na Prange entse 0 nel do século KVIle-0 inicio do século XVIII, com a famosa “Querelle des anciens et des mo- dernes”, e no Modernismo Brasileiro de 1922, quando os modernis- tas se insurgiram contra a tradi¢ao parnasiana. Mesmo nesses casos de aparente reptidio a tradi¢ao, elementos da cultura das geragoes ante- tiores subsistem na nova proposta. Nesse sentido, é essencial conferir a reflexao de Paul Ricoeur: A tradigo significa que a distancia temporal que nos separa do passado nao é um intervalo morto, mas uma transmissio geradora de sentido, An- tes de ser um depésito inerte, a tradigio & uma operagao que s6 se com- preende dialeticamente na troca entre o passado interpretado €o presente interpretante. (1985, p. 320)$ entre le passé interprété et le présent interprétant. 30 Aaintacmta o e alalavalele dos A persisténcia da memoria Transmissao geradora de sentido E essa “transmissio geradora de sentido” de que fala Paul Rico- eur que buscam realizar autores caribenhos como Edouard Glissant, Maryse Condé, Simone Schwartz-Bart e Patrick Chamoiseau, entre tantos outros que rememoram sem cessar em suas obras a palavra dos conteurs que transmitem os vestigios memoriais dos escravos origina- “Woe da Miva desembarcados nv lkaa de Caribe grande dificul- “Gade para os escravos ¢ seus descendentes de construir seu proceso identitdrio esta no vazio memorial, j4 que, chegados as Américas na condigao de “migrantes nus”, como refere Glissant, a tinica coisa que ‘tinham para compartilhar eram suas meméxias, que conservavam ¢ di- fandiam nas veillées (vigilias), durante as quais cram transmitidos aos _dlescendentes cantos, rezas, artes de fazer ¢ trechos das epopeias que os contadores guardavam de meméria. Essa transmissio fragmentar, la- ‘cunare precirla fola base de um processo de humanizagao paraaque- Tes que o regime escravagista tentava desumanizar. Por essa razio, os processos de transmissio oral da cultura, entendidos hoje como atos Se eS ee Ome de resisténcia, sao retomados pelos mais importantes autores caribe- hos da contemporancidade, que claboram sua obra poética seguindo 0s passos dos conteurs, Em seu ultimo livro, La matiére de l’absence (2016), Patrick Chamoiseau exalta a figura do conteur nas vigilias finebres ¢ seu papel de “transmutar o vazio aparente representado pela morte em um es- aco de vida” (p. 32). Como verdadeiros Senhores do verbo (Matires du verbe), esses contadores atuam como “guerreiros do imagindrio” na medida em que sua fungao de guardar, preservar ¢ transmitir, nas as- sembleias comunitarias, 0 estoque memorial através da lingua crioula (le créole) representa um ato de resisténcia. Enquanto escritor, Cha- moiseau busca identificar-se com a fungao desses senhores da palavra que conseguem, a partir do invisivel do impronunciavel (indicible), compor uma narrativa. Assim, o autor intitula seu livro de A matéria 7 [..] transmuter le vide apparent que suscite la mort en un espace de vie. 31 Zila Bernd. da ausincia (La matiére de I'absence), nam evidente oximoro que re. mete &situagio dos descendentes de escravos ¢ x-escravos que traba Iham com a matéria prima da “auséncia” (do invisivel ¢ do indizivel para dar inicio 4 resconstrugao nas Américas — a partir de fragmentos memoriais - de uma cultura transculturada que se ‘eapropria das tra- digbes africanas e as associa aos elementos culturais que encontra ng espaco caribenho, bem como aqueles trazidos pelos europeus. Chamoiseau traz interessante contribuigio para nossa reflexio sobre transmissao ao mencionar que a memoria dos ancestrais, mesmo daqueles que nio sobreviveram as agruras da travessia nos navios negrei- 70s, se transmite de maneira vaga ¢ “sem sistema ritual” a uma descen- Encia incerta, Esses ancestrais arrancados da Africa passaram a sofrer de “dismnésia’, distdrbio da meméria que se manifesta pela dificuldade pura ever lenbaneas parton sdoobegadosasei entific G25, por terem sido obrigados.ase identificar com a culeura de seus senhores, sendo que qualquer manifestagio de sua pré- pria culcura era considerada perigosa pela ordem es Contudo, ess “flea Rundacona, csc spagamento ertrucurante™ redcm coms “diabos surdos”, “vencendo o apagamento primordial” (CHAMOI- SEAU, 2016, p. 51) e gerando sentido através da transmissio. A reflexdo sobre transmissao tem tradicionalmente muito a ver com a génese ou origem de nossos ancestrais cujos saberes e artes de fazer vém sendo transmitidos de geracao cm geracio. Contudo, como vimos nas reflexes de Chamoiseau, muitas vezes, como entre os escra- vos, em vez da origem (génese), encontra-se a falta (manque). Nesse sentido, recorremos 4s inestimaveis teorias de Edouard Glissant, que chamou de “Digénese” a situagao dos escravos.na. Amézica que se opoe a tradicional ideia de filiagio tnica, ou seja, de uma génese incontes ‘vel, ou uma “matriz una ¢ indivisivel”, j4 que a cultura crioula, pelo fato de os deslocamentos e as mestigagens, ndo pode reivindicar uma génese incontestavel. Assim, 0 autor desconstrdi os eritérios de fil 40 ¢ de heranga, indo na contramio da concepgao ocidental de ori- Bem, colocando o neologismo “Digénese” no coragao de sua filosofia: 8 [..] le manque fondatewr, léffacé structurant, 32. Teric com fact rebe ot on, ho te re. taba. ivel) Atos tra- ano ade ver A persisténcia da meméria Inquietar as evidéncias de uma genealogia linear ¢ a mitificagio de uma suposta pureza original, é também reinstalar a identidade em territério de abertura, conjugar o estar-no-mundo em suas desinéncias plurais.” Transmiss&o ¢ 0 papel dos objetos de meméria (incluindo livros) Como nos lembra Anne Murel (2003, p. 149), ha basicamente b) rejeigio (0 que nao se quer repetir) e c) novidade (0 que é inau- ‘gurado como novo no seio das familias). Verificamos, na vida real ¢ no romance de filiagao, exemplos desses trés mecanismos, j4 que, em muitos casos, os descendentes se empenham na preservacao das tradi- ges familiares. H4, porém, os casos de memeérias envergonhadas ou feridas, como prefere chamar Laurent Demanze, em que o que pre- domina é o siléncio em relagao ao passado familiar ou total rejeicéo, inviabilizando a transmissao. O terceiro mecanismo — aintrodugio de elementos novos ~ se verifica, em geral, associado a um dos outros trés, havendo uma margem de negociagio que implica a utilizagao simulea- nea de mais de um mecanismo de transmissio. Os romances da anterioridade, como podem ser considerados. os romances de filiagao que diferem dos da interioridade (que seriam as obras autobiogrificas ou autoficcion: cat casos, pelo desejo de estabelecer um continuum geracional, conser- vando e transmitindo as proximas geragoes 0 legado das geracoe: teriores do qual o narrador sente-se herdeiro ¢ porta-voz.. Contudo, ‘como jé foi mencionado, os romances de filiagao também podem ca- acterizar-se por um mal-éstar na transmissio, ou seja, o “herdeiro” rebela-se, passando a repudiar o legado paterno owmaterno, Segundo 9 Inquiéter les Evidences d'une généalogie linéaire et la mythification d'une pureté originelle supposée, c'est aussi réinstaller I'identité en territoire d‘owverture, conjuguer Vétre-au-monde dans ses désinences plurielles. htp://wwwedouardglissant frdigenese. him. 33 Zilé Bernd. jo de Laurent Demanze (2008), esse herdeiro “problems, a classificaga tico e inquieto” corresponde 20 escritor contemporineo que constréias narrativas de filiasao, para eny, mar os vestigios de uma heranga em farelos e alinhavar os farrapos de on smeméria destruida. Entre transmissio ferida ¢ heranga de uma divida cessas escritas de si reinventam uma identidade singular e plural ao mesmo tempo." (DEMANZE, 2008, p. 9) ‘Anne Muxel (2007) costuma categorizar os objetos como pas. seurs culturels, ou seja, atravessadores culturais, na medida em que, passando de geracao em gerac4o, constituem-se ~ na posse dos herdei- ros — em elementos que evocam os pais ¢/ou avés, os primeiros donos daqueles objetos. Tornando-se legado ou heranga, passam a ter uma fungio simbdlica no seio da familia. Lembremos do romance Uma ponte para Terebin (2006), de Leticia Wierszchovski, que, no dizer da propria autora, “é a histéria de uma caixa de retratos que, um dia, comegaram a falar”, Esse ¢ o fendmeno da “animizagao” dos objetos, nna medida em que, através da releitura das cartas, revemos os gestos ¢ ouvimos as vozes dos que as escreveram. Anne Muxel (2007, p. 162) afirma que se trata da fungao de revivescéncia'’, j4 que objetos como cartas, fotografias, reldgios encarnam o personagem ¢ restituem uma meméria “indefectivel, quase mégica”!” (MUXEL, 2007, p. 163). Hi também o caso dos objetos utilitérios, como uma maquina de costura, por exemplo, que podem, quando transferidos em heran- 2 para um descendente, néo transmitir nenhuma carga afetiva ou memorial, tornando-se 0 que Muxel chama de fracasso da transmis- sio. Pode ocorrer, contudo, que, transferido para a residéncia de uma 10.) & léerivain contemporain qui échafaude des récits de fiiation, pour exhumer les vestiges d'un héritage en miettes et raccommoder les lambeaux de sa mémoire déchirée Enire transmission brisée et héritage d'une dette, ces éeritures de soi réinventent une identité singuliére et plurielle é la fois, 11 Entende-se por revivescéncia © reaparecimento de estados de consciéncia esquecidos ‘ou bloqueados, 12 [..] indéfectible, quasi magique. 34 herdeira, cebido & de uma: Dupré L costura § residénci Ao olha a0 deita garantir ria”, me de costu aalgum En € destac edapr daicas, tudo pi los jov. nhecin os autc lendo, Boa Oo livro, titdris matic Mux: Amo grup BC A persisténcia da meméria herdeira, o objeto deixe de ter a fungao material para o qual foi con- cebido e passe a ter uma fungao afetiva de revivescéncia, Esse é 0 caso de uma cena do romance memorial da autora quebequense Louise Dupré L ‘album mutlticolore (2014). A filha herda uma maquina de costura Singer ¢ a transfere da casa materna em Sherbrooke para sua residéncia em Montreal, onde a maquina passa a ser objeto de adorno. ‘Ao olhar para a maquina, a narradora lembra-se das noites em que, ao deitar-se, ouvia o som da méquina na qual a mie trabalhava para garantir o sustento da familia. Aqui, o objeto de meméria “faz memé- ria”, mesmo ndo correspondendo mais a sua Fungo precipua que € a de costurar. “E ld onde, nao servindo para nada, serve profundamente aalguma coisa”!3 (BAUDRILLARD apud Muxel, 2007, p. 167). Em Os judeus e as palavras, de Amos Oz ¢ Fania Oz Salzberger, é destacada a importAncia dos livros para a manutengéo da meméria e da propria sobrevivéncia para os judeus. Assim, as comunidades ju- daicas, em seus constantes deslocamentos ¢ na didspora, podem deixar tudo para trds, mas sempre tratam de levar os livros, que sio lidos pe- los jovens ¢, deste modo, mantém a tradigdo pela transmissio dos co- nhecimentos, garantia da manutengio da uniao da comunidade. Para 08 autores, os judeus est4o sempre debatendo os textos dos ancestrais, lendo, mas também discutindo com eles: FE por isso que nos sentimos no direito de colocar os antigos hebreus ¢ 0s modernos judeus num continuum linear, nio um continuum bioldgico, nao étnico, nem mesmo religioso, mas um continuum verbal. (2015, p. 46) ‘Aqui, nota-se a forga da transmissio eferuada através do objeto livro, que, passado de geragao a geragao, garante continuidade iden- titdria pelo “continuum verbal”. Sao os objetos que se tornam emble- iméticos que garantem a continuidade identicéria da familia. Segundo Muxel, em uma familia, a posse de tais objetos — no caso citado por ‘Amos Oz sao os livros sagrados — implica a integragao a histéria do grupo eavontade de dar continuidade, transmitindo-os aos herdeiros. 13 Crest la of, ne servant d rien, il sert profondément & quelque chose. 35 Zila Bernd ‘Torna-se dever da familia manter 0s objecos embleméticos no se; miliar, pois sua posse nunca deve ter um sentido individual, m, ie tivo (MUXEL, p. 159). aco i Concluindo seu alentado estudo sobre individuo e meméri | sili (Individu et mémoire familial), Muse extabelecerelaréesens” o tempo eas Fungdes da meméria que valem a pena resumir,tealeand ] a fungo de transmissio que se constituiu no propésito deste a s Como se articula a temporalidade com as fungGes da memérig? A primeira fanrpao ta tramsinissa0, que “designa aaliagzo com reconhecimento de uma inscrigao geracional ho tempo longo de uma historia familiar e como vontade de perpetuar um certo niimero de Garactersticas dessa historia de uma identidade coletiva compartlhs. 42" 2007p. 195). CLeempo predominante dessa funcio 60 passado que se quer perpetuar: a memoria dos wiewais €d0s saberes i Elia precisam ser preservados do esquecimento. O tempo € 0 passado, mas a perspectiva da transmissao € 0 futuro, sendo que, segundo a autora, o esquecimento nao é 0 contrario da transmissio, jé que as passagens apagadas, os vestigios serao reapropriados no futuro, quando a histé- ria familiar for recontada. ‘A segunda fungao éa reflexividade centrada no tempo presente: trata-se de negociar a existéncia presente & luz das experiéncias do pas- sado. A estratégia reflexiva leva ao passado para fazermos um possivel bale das dierent tapas de nossas vidas. ‘A terceira @a Fangao dé Fevivescéncia, que oportuniza a volta dos estados de consciéncia que julgévamos esquecidos, corresponde, no Timite, 3 meméria involuntdria preconizada por Marcel Proust nos permite revivenciar, através de associagdes memoriais, os s bores, os odores, as cores, as sensaqdes ¢ 08 afetos, Oe Them. nem o futuro, mas uma espécie de anulagao do tempo que nos p&t mite reencontrar 0 tempo passado, como no iiltimo volume deAle mite feencontrar_o tempo p: 10 volume d 11 La fonction de transmission désigne Vaffliation comme la reconnasance d'une inscription géndrotionnelle dans le temps long de Uhistore familial et comme vient dre merpeucr un certain nombre d‘attributscaractristiques de cete histoire t dé identté collective partagée. 36 fa- ole- 1a- A persisténcia da meméria recherche du temps perdu, intivulado Le temps retrouvt (O tempo reen- contrado). E possivel pensar que essa fungao da meméria é atemporal, jaque ela opera uma volta afetiva e emocional que ¢ 0 reconhecimento de uma emogo intima e pessoal. Nesta funcio em que se trata de “re- viver ¢ de ressentir antes de transmitir, de julgar ou explicar, o esque- cimento tem uma fungio estruturante”*’ (2007, p. 202). ‘Ao finalizarmos esta breve reflexdo, trazemos as sdbias pondera- goes de Pierre Ouellet (2015, p. 236), que afirma que transmitir nio significa tio somente “transmitir ao pé da letra”. mas pode correspon- der a “transmitir 0 espirito”. Em seu livro L ‘esprit migrateur (2005), o autor nos fala dessa migragao dos conceitos que nos leva, por vezes, a refundagao dos mitos. Esse é 0 caso de muitos autores cujo trabalho de transmissio consiste na reatualizagao de mitos biblicos, como fez Moacyr Scliar em Manual da paixéo solitdria (2008), reescritura do ca- pitulo 38 do livro do Génesis, que transforma personagens do Antigo Testamento em verdadeiros personagens de narrativas modernas, re- formulados com os conhecimentos profundos que ele tem da Tord. No dizer de Pierre Ouellet, aqui, “transmissio” adquire a forma de “trans- posigao, revitalizagio, revificagao do mito antigo” (2015, p. 236). Te- ‘mos de levar, portanto, em conta que “transmitix” também pode apre- sentar a forma de uma atualizagio ou releitura do mito, havendo entio uma migragao do espirito biblico para a literatura contemporanea. Foi nossa intengao refletir sobre a importancia da transmissio, trazendo & tona alguns de seus aspectos teéricos para, de certa forma, fornecet um embasamento a este livro, cujo foco sio as questées liga- das & tradigao, & heranga e A transmissao, sendo importante sempre lembrar que o herdeiro deve se sentir livre para aceitar ou nao o lega- do de sua heranga. Testamento, transmissio de uma heranga ¢ pre- servagao dos legados de nossos ancestrais estao ligados & preservagao da identidade dos que j4 partiram, mas também de nossa propria identidade, j4 que é a partir dos rastros memoriais que construimos 15 Dans cette fonction de la mémoire familiale, puisqu'ilss‘agit de revivre et de ressentir ‘avant de transmetire, de juger ou 'expliquer, I'oubli a un r6le structurant, 37 scaes Zila Bernd o identitdrio individual e coletivo. Assim também as comunidad, meméria recuperam as experiéncias conjugadas “do fim e da on das vivencias dos homens” (OUELLET, 2012, quarta capa), &™ Referéncias ‘ASSMANN, Aleida. Tercera parte: Armazenadores. In: Eipagas : mas ¢ transformagoes da meméria cultural. Campinas: ae ae payee ssh ASSMANN, Jan. La mémoire culturelle: écriture, souvenir ct imaginaire polit dans les civilisations antiques. Paris: Flammarion, 2010. eaace BERND, Z.; SOARES, T. R. Modos de eransmissio intergeracional em 1 da literatura brasileira atual, Revista ALEA, estudos neolatinas, Rio de Janeiro: UFRY Scio, vol 18/3, seu a der. 2016 p. 405-421. hup://wowsccl br/pdtfaleav18ns, 1517-106X-alea-18-3-0405,pdF CANDAU, Joél. Aniropologia da meméria, Lisboa: Instituto Piaget, 2013, ( jogo social da meméria eda identidade (I): transmit, receber DEMANZE, Laurent, Encres orphelines: Pierre Bergounioux, Gérard Mac, Pie re Michon, Paris: José Corti, 2008. DUPRE, Louise. L ‘album multicolore. Montréal: Héliotrope, 2014. 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Amos Oz e Fania Salzberger, Os judeus e as palavras Romance memorial ou de filiagao Iniciamos salientando nossa intengao de estabelecer uma distin- io entre o género que embalou milhares de leitores no final do sécu- lo XIX ¢ inicio do XX, o romance genealdgico, ou saga, ¢ que cor- responde, na definigao de Demanze (2008, p. 22), aquele que deseja “apreender uma histéria coletiva a partir de percursos individuais”, e o romance de filiagio, objeto de estudo da presente obra, Na definigao de Massaud Moisés (1982, p. 469), a saga corresponde a relatos de 16 Este capitulo ¢ de autoria de Zild Bernd e sua doutoranda Tanira Rodrigues Soares, do PPG Meméria Social e Bens Culturais da Universidade La Salle. 41 Zilé Bernd : jas reais, mesclando fatos veridicos e ficcionai anit rn senate de jornada heroic, usado por kgn aes (1940). O grande paradigma desse género ¢ 0 romance Q, Buddenbrooks, de Thomas Mann, de 1901. Caudalosos, geralmeng, publicados em varios tomos, as sagas out romances genealdgicos em, polgaram geragbes em visios pases, como Os Thibault, de Roger Mae fin du Gard, na Franga, publicado em oito partes entre 1922 ¢ 1949, Esses romances de familia, que tém seu apogeu no inicio do século XX, apresentam um importante desgaste a partir da segunda metade desse século. O Dictionnaire du littéraire (2010) descreve © Roman familial como um subgénero do romance, caracterizando-se por apre- sentar um tema, a narragao da evolugao de uma familia através de v4. rias geragdes ¢ um modo de escritura realista (ARON; SAINT JA. CQUES; VIALA, 2010, p. 529). Segundo Yannick Preumont, “Ele concede uma grande importincia aos ritos familiares € a tudo que far do cla uma comunidade ameacada por relagdes altamente conffituo- sas, Ele conhece variantes diversas com resultados negativos ¢ positi- vos” (2010, p. 529)”. Esse tipo de narrativa, que se pretende totalizadora na medidaem que sempre abarca a evolugio de diversas geracdes, focando muitas ve- zes em sua decadéncia, obedece a uma ordem cronolégica linear e é ge- ralmente narrada em terceira pessoa por um narrador onisciente. Em- bora, como referimos acima, esse genero entre em declinio na segunda metade do século XX, ele no desaparece totalmente, pois o gosto pelas histérias de familia persiste entre o grande pablico, como se pode cons- tatar pelo interesse que despertam novelas e séries televisivas que se- riam uma reedi¢ao trivial do grande romance de familia que dominou acena literaria do final do século XIX até a metade do século XX. Constatamos também a revivescéncia desse género na literatura quebequense com a saga Le goitt du bonheur (2000-2001), de Matic 17 I accorde une grande importance aux rites familiaux et & ce qui fait du clan une communauté que des rapports conflictuels hautement symboliques menacent. Il comait des variantes diverses 4 issue négative ou positive, 42 A persisténcia da meméria Laberge, que conta a histéria de trés geragdes de uma familia quebe- quense, refletindo, a0 mesmo tempo, sobre o contexto ea mentalidade da comunidade em que os acontecimentos da familia evoluiram, com énfase para aspectos menos conhecidos, como 0 impacto da II Guerra Mundial no Canada, Esse romance em trés volumes de mais de 600 paginas cada um tornou-se um best-seller ao ser publicado entre 2000 € 2001. No mesmo contexto literatio do Quebec, No’ Audet, em. Vombre de l'épervier (1988), que se tor mou série televisiva de sucesso, da conta do drama de diversas geragdes de pescadores, incluindo as primeiras greves organizadas pelos incipientes movimentos sindicais na regiao da Gaspésic, de onde o autor era originario. No sul do Brasil, Luiz Antonio de Assis Brasil retoma o género, dando vida & saga da familia Borges da Fonseca e Meneses, a0 contar ahistéria de dio ¢ intrigas dos fundadores do patriciado sulino com Um castelo no pampa, composto por trés volumes: Perversas familias (1992), Pedra da membria (1993) e Os senhores do século (1994), alte- rando a linearidade cronolégica que caracteriza o romance de familia tradicional por um jogo de intersecgées entre passado ¢ presente. Constata-se que, entrando em decadéncia em alguns momentos, o genero nao desaparece, ressurgindo, transfigurado, ao longo do tem- po. Contudo, a grande transformagio do romance de familia se dé na nal da virada do século XX para o XXI, com o chamado roman mémo- riel (romance memorial) em um primeiro momento-e com 6 roman de filiagio com a chegada do século XXI. Em tais romances, 0 foco deixa de ser a interioridade (0 “eu” natrador) para ser a anterioridade (focalizando na histéria dos ascendentes, o narrador acaba relatando cestrais OW resusando-se a estabelecer 0 continuum com a geragées recedentes). Para Régine Robin, o romance memorial (ou de fami- ia) seria aquele em que Im individuo, um grupo ou uma sociedade pensa seu passado, modifican- do-o, deslocando-o, deformando-o, inventando lembrangas, um passado glorioso, ancestrais, genealogias ou, a0 contritio, lutando pela exatidéo 43 Zilé Bernd factual, para a reconstituigio do scontecimento ou sua ressurreigig. (1989, p. 48) Pode-se assim constatar que 0 romance memorial esté profun. i E damente associado & recuperagio da memdria cultural, revelange ppreocupagio com a temdtica da ascendéncia ¢ da ancestralidade: aly dos pais torna-se subverfigio para falar de si proprio de seu pape} de herdciro da tradicdo parental. Como afirma o escritor israclense Amos Oz, “o herdeiro é livre para decidir o que vai escolher de sug heranga” (OZ; SALZBERGER, 2015, p. 173). Tanto 0 romance memorial quanto o de filiagio invertem a cro. nologia: a narrativa nao inicia com a hist6ria de um ancestral, passan. dou sua descendéncia, mas em geral comega no presente, fazendo ida € vindas ao passado ¢ tecendo-se de memoria e esquecimento, cujas lacunas sao preenchidas com a imaginagao. Em geral, o romance ¢ nar- indo por unt herdeiro“problemiicaeingieto” que investiga av ~deum de seus ascendentes, gperando idas ¢ vindas no tempo. E,por- tanto, o relato de uma investigagao e de uma arqueologia visando 4 re- constituigo de uma meméria incerta (DEMANZE, 2008, p. 22-23). Trata-se de ressignifcar o passado no presente, ou melhor, reencontrar © passado no presente, o que se constitui, alids, em uma das belas licdes de Walter Benjamin (apud VIEIRA, 2007, p. 23). Tais narrativas da contemporaneidade correspondem a.uma.carac- teristica atual da literatura de variadas S, que ¢a de tematizar as narrativas que tém os pais ou avés como foco da investigacao, usados como evasiva paraum melhor entendimento da propria figurado narra- dor, que constrdi esse artificio ficcional para (re) pensar sua identidade, 18 Um individu, un groupe ou une société pense son passé en le modifiant, le déplagant, Je déformant, s‘inventant des souvenirs, un assé glorieux, des ancétres, des filiations, des généalogies, ow au contraire, lutant pour lexacttude factuelle, pour la restitution de I’événement ou sa résurrection. 19 Meméria cultural pode ser definida como aquela que incorpora os elementos que perfencem a esfera do sensivel e do simb6lico, 0s quais escapam ao registro hegemdnico do poder ¢ sua tentativa de apagar os rastros memotiais de fatos que interferem no projeto de construgdo da identidade nacional (BERND, 2014). 44 A persisténcia da meméria Esses romances situam-se no espaco que Aleida Assmann intitula de “espagos de recordacao”, ou seja, aqueles que ocorrem “espotanea- mente no individuo e seguem regras gerais dos mecanismos psiquicos” (2011, p. 18). A prépria etimologia de “recordar” (passar novamente pelo coragio) evoca 0 fato de que o uso da palavra “recordacio” em lugar de “meméria” nos coloca de saida na esfera. das sensibilidades. Valea pena conferir novamente a reflexdo de Amos Orescritaem parceria com a filha Faina Oz-Salzberger, historiadora e professora na Universidade de Haifa, em Israel. Em Os judeus e as palavras (2015), pai, escritor, ¢ a filha, historiadora, refletem sobre a transmissao das esta nos livros era uma questo fundamental para a sobrevivéncia do ~sfupo, Para onde quer que os judeus se deslocassem, 0 mais impor- tante era levar junto os livros fa angas, desde cedo, auxiliadas pelo rabi (professor), entrassem em contato ativo com a sabedoria neles contida, no somente através da simples leitura, mas assumindo uma posigio critica em relacao aos textos propostos.E as- sim que, segundo os autores, os judeus esto sempre “conversando” ou “brigando” com seus ancestrais, desde os Pais até os Patriarcas, queascriar ou debatendo-se com os textos que os ancestrais produziram com as ideias que os ancestrais promulgaram. Esse habito pode ajudar a expli- car o papel dessc livro (no caso, Os judeus ¢ as palavras). E por isso que nos sentimos no direito de colocar os antigos hebreus ¢ 0s modernos judeus num continusm linear, néo um continuum bioldgico, nem étnico nem mesmo religioso, mas um continuum verbal. Tantos pais produ- ztiram tantos textos para conversar com eles, polemizar contra eles ou, nos termos de (Philip) Roth, tentar em vao fazé-los calar a boca. (OZ; SALZBERGER, 2015, p. 60) Nessa mesma linha de pensamento trafega Régine Robin, que,em seu livro Le roman mémoriel, evoca a importincia de “deixar falar essa voz narrativa que vem de longe, do alhures, do neutro, em resumo, do que chamo fora-de-lugar”® (1989, p. 17). Tanto o romance memorial 20 ..J laiser parler cette voix narrative qui vient de loin, de Uailleurs, du newre, bref de ce que j‘appelle le hors-lieu. 45 Zila Bernd quanto o de filia¢ao esto sob 0 arcabougo constitutive da meméria, uma vez que é a partir da multiplicidade memorial que tais modos de produgio discursiva acabam perenizados pela escrita. As fronteiras desses dois subgéneros do romance si0 porosas € muitas vezes, en. nam-se singulares na constitui¢ao. Uma dessas singularidades est relacionada & postura do narra. dor-protagonista no momento em que decide qual direcionamento empregar4 no seu enredo, destacando-se que no romance memorial, no entender de Robin (1989), 0 foco narrativo mescla em sua com. posigao a meméria nacional, a meméria s4bia, a meméria coletivae a meméria cultural, produzindo um texto que est4 relacionado direta- mente com a histéria de vida do narrador, interligando as influéncias sentidas e percebidas em seu contexto social ¢ cultural, © narrador nao tem uma preocupagio em tratar somente da filiagao, mas também de uma amterioridade qué engloba os demais elementos que integram a sociedade. Dessa forma, a narrativa torna-s¢ Maida © composta de memérias que dialogam ou divergem entre si, mas que de alguma ma- neira trazem consigo uma representatividade para a constituigao da identidade em proceso de transformagao. Nesse caminho a ser percorrido pelo narrador, constata-se a pre- senga de tedricos que dao sustentagao para as transformagGes ocorridas na constituigao do sujeito. A anterioridade e a filiago estéo presentes nna natrativa, mas a sutileza na abordagem das memdrias possibilita a constatag4o de que nao se trata de um romance de filiagdo, ¢ sim de um romance memorial, Modos de transmissio inter e transgeracional Maurice Halbwachs, no cléssico Mémoire collective (1997), evoca “o lago vivo das geragdes”, expressio que, segundo Joél Candau (2014, p. 137), remete 4 meméria genealégica e familiar especificando os dois tipos de genealogias: “naturalizada (relacionada ao sangue e ao solo) € 46 si a t « i i A persisténcia da meméria simbolizada (constituida a partir de um relato fundador)”. Est mui- to claro, tanto nos textos de Halbwachs (1997) quanto nos de seus leitores privilegiados, como Candau (2014) ¢ Robin (1989), que a reapropriagdo identitaria passa pela aproximagao do individuo com a meméria genealdgica, tendo a transmissio um papel vital nesse pro- cesso. Salvaguardar a meméria dos ancestrais corresponde a preservar _sua propria denidade, adveree Candau (2014p. 139). O romance memorial ¢ 0 de filiagéo englobam em suas narrativas Fatores primordiais para sua existéncia ¢ consolidacio ¢a necessidade do (cu) narrador promover a reconstrucio de trajetérias vividas por seusascendentes ¢, através desse processo, (re)significar e/ou (re)cons- truir 0 presente. E necessdrio o estabelecimento de um jogo dialético “entre lembrar e esquecer, entre pasado e presente, entre ascendentes ¢ descendentes, entre accitar ou renegar os vestigios memoriais que emergem. ~~~"Mas como se dé a transmissio de uma geragao a outra? Anne Mu- xel (1996), estudando os modos de transmissio das artes de fazer da cozinha, desenvolve interessantes reflexes sobre a arte de transmitir, de mie para filha, as receitas familiares, afirmando que, em muitos ca- sos, o reconhecimento dessa transmissdo ¢ da sua importincia para 0 individuo e parao nticleo familiar sé acontece anos mais tarde, quando aque era filha torna-se mae e se vé também na contingtncia de trans- mitir A préxima geragio tal patriménio. Assim, “o fio da meméria, po- dendo atravessar varias geragdes, muito do savoir-faire herdado, mas também os gostos, remontam aos avés. Os avds sao em muitos casos declarados como os iniciadores de prazeres e de gostos em matéria de arte culindria”2! (MUXEL, 1996, p. 89). Uma das ligdes que se pode tirar da autora de Individu et mémoire familiale (1996) é a de que o Proceso da transmissio nunca é uma equacio simples: “Mesmo nos 21 [...] fil de mémoire, pouvant traverser plusieurs générations, beaucoup de savoir- aire hérités, mais aussi des gous, remontent aux grands-parents. Les grands parents ‘sont dans beaucoup des cas déclarés comme les initiateurs de plaisirs et de gduts en la matiére, 47 Bernd casos em que ela se estabeleceu de forma adequads, ela (a transmis, sao) passa por uma reapropriagao de saberes e prdticas. Nunca éuma reprodugao de forma idéntica, ela é uma histéria de acomodacées, ¢ em matéria de cozinha as acomodagées fazem receita!” 2 (MUxEL, 1996, p. 93). Em algumas comunidades, transmitir ¢ questao de sobrevivencia, como entre os judeus: a sobrevivéncia da comunidade est4 na trans. missao dos textos, o que vai garantir sua continuagio, o continuum verbal de que fala Amos Oz: E assim por muitos séculos as criangas judias, meninas tanto quanto me- ninos, foram expostas a textos escrtos: um pouco de Biblia estranha pa, lavra hebraica, algumas béngios ¢ oragdes. Em qualquer dado momento duas ou trés geragées coabitavam a mesma casa, a sinagoga,a sala de aula. E odiam passar adiante as palavras, as canges ¢ os rituais, Junto com as pré- ticas gerais de criar os filhos — formagao de habitos, treino de habilidades enarracao de histérias -, as velhas gerag6es tratavam de assegurar que seus filhos e netos assumissem os textos. (OZ; SALZBERGER, 2015, p-33) Vemos aqui a pratica do transmitir e a importancia do receber para a sobrevivéncia da comunidade com base no estabelecimento de um covtinuum que nao é fandamentalmente religioso nem bioldgico, mas verbal ¢ cultural. Se, em algumas culturas ¢ em romances de familia, o empenho estd na transmissio, que visa a preservar a “heranga”, em outros ob- servam-se transmissdes imperfeitas ou falhas, assim como defeitos de transmisséo. Em muitos casos, os romances memorial e de filiagao tém origem em “pais ausentes, transmiss6es imperfeitas, valores caducos” (VIART, 2008, p. 94), constituindo-se o texto em uma tentativa de “restitui¢ao” dessa falta, enunciando-se como uma espécie de elegia 20 ancestral desaparecido e cuja trajetéria deixou tantas lacunas. L ‘Afi- cain, de Jean Marie Le Clézio (2004), € uma tentativa do escritor de 22 Méme dans les cas oi elles ‘avére étre la mieux éablie, elle passe par une réapropriation des savoirs et des pratiques. Elle n'est jamais une reproduction 4 identique, elle est une histoire d'accomodements, et en matiére de cuisine, les accomodements font recette! 48 A persisténcia da meméria desvendar as raz6es do nomadismo do pai médico ~ o africano -, que permaneceu longos anos na Africa, tendo ficado afastado da mulher ¢ dos filhos durante toda a Il Guerra Mundial. A narrativa da migrincia do pai torna-se, assim, uma tentativa de entender seu proprio gosto por migrag6es ¢ deslocamentos que o levaram a viver em varios conti- nentes. As situacdes de desconforto sofridas pelo pai durante os deslo- camentos nos lugares mais inéspitos da Africa, exercendo a medicina humanitéria, bem como a impossibilidade de regressar & Franga, o que foi motivo de sofrimento e de ressentimento para a mie € os filhos, sao exorcizadas nesse pequeno livro em que “o africano” (isto é, 0 que se torna estrangeiro por viver longos anos no exterior e que é pratica- mente desconhecido dos filhos), pouco a pouco, torna-se seu pai. O papel do ancestral ou da ancestralidade em narrativas da literatura brasileira No conto Othos d’égua (2015), que inaugura a seleta de mesmo nome de autoria de Conceigao Evaristo (1946), a autora realiza ma- gistralmente a busca do que seria a *heranga” da mae ¢ a transmissio } filha, A diivida da narradora, relatada em primeira pessoa, era sobre acor dos olhos de sua mae, Como poderia ter acontecido que ela nao se lembrasse da cor dos olhos da propria mae? A narradora vai em busca dos “espacos de recordacao” de que fala Aleida Assmann (2011) e traz A tona uma série de fragmentos relativos & precariedade da situ- agio familiar, & dificuldade da mae em conseguir alimentar os filhos e sua imensa habilidade de disfargar a dolorosa condicao de pobreza através da contagio de histérias. Lembrando detalhes da arte da mae em driblar a desgraca da pobreza € do desamparo da vida de favelada, volta a pergunta: “Mas de que cor eram os olhos de minha mae?” A - narradora continua lembrando que a mae usava jogos ¢ dangas para distrair a fome dos filhos, mas nao consegue lembrar a cor dos seus olhos, Recorda o temor da mae em dias de chuva, temendo que o case- bre nao aguentasse, mas ndo consegue acessar os arquivos memoriais Zilé Bernd que contém as informagées sobre a cor dos olhos dela. Lembra q Yabis®, “donas de tantas sabedorias”, as O aspecto a ser ressaltado é que as “Yabs” en como uma espécie de ancestrais/matriarcas que so aqui invocadas p, tenatva de busca ida para lembrar da cor dsohos da mae oferenda as orixés poderia judé-a a desvendar 0 segredo, AP65 lon. procure, ajudada pelas orixis, a narradora descobre porque naz i dia lembrar da cor dos olhos da mae: ela vé naqueles olhos 6 légrimas so os “olhos d “Agua” que dao titulo ao conto. Hy tram na natratiyg Minha mie trazia, serenamente em si, 4guas correntezas, Por isso prantos © prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minh 1a mae era cor de clhos dégua. Aguas de mame Oxum! Rios calmos, mas profindss cen ganosos Para quem contempla vida apenas pela supecfice. Sim, das mame Oxum. (EVARISTO, 2015, p. 18-19) O reencontro espiritual com a mae ¢ a conversa intergeracional enseja a conversa com a filha, que, por sua vez, the pergunta: “Mie, qual €2 cor tio timida de seus olhos?” Os olhos d‘4gua apresentamn-g como um continuum da geracio da avé e da mie, sendo que a teecin Beragao ~ a da neta ~ é capaz de reconhecer na mie os olhos d’égua que esta herdara de sua av, Ja Eliane Brum (1966), em Meus desacontecimentos socia seus medos, “seu mundo sem palavras” e suas tristes familiares & sua luta para fazer o silencio virar fazer das palavras scu instrumento de trabalho, personagem da historia, se tornard repérter € (2014), as- lembrangas narrativa até chegar a ja que a crianca, que é escritora, Na verdade, nao se trata do relato de uma meméria feliz, da vida ¢m um lar harmonioso de eujos ensinamentosa narradora quer tomar- se herdeira, Trata-se antes de transmiss6es imperfeitas ou falhas orig- nnadas de uma falta: ela nasce de uma mae que perdera uma filha nascida antes dela. A mea levavaao timulo da crianga morta, a fazendo- sent 23 Taba, Yabé ou Ij lyab4, cujo significado ¢ Mae Rainha, é o termo dado aos orixis femininos Yemanja e Oxum (WIKIPEDIA, 2016). 50 A persisténcia da meméria que a viva era a outra”, As lembrangas da narradora séo de uma casa escura ¢ fria que ela detestava, bem como as imagens do timulo da irma morta. Como sabemos a partir da leitura de Jeanne Marie Gag- nebin (2006, p. 107-118), a ctimologia de vimulo ¢ sera, a mesma de signo, ¢ serao esses signos memoriais da devogao da mae pela irma morta, que impediam sua mae de dedicar-se a ela, que impulsionario anarradora a registrar em palavras sua infincia interrompida. Esta é2 razao do livro: despegar-se do papel de herdeira de uma tradigao cuja transmissao ¢ imperiosa. Toda a anguistia da personagem narradora esth em dotar-se da habilidade de lidar com as palavras para registrar nao “acontecimentos”, mas “desacontecimentos”. Como em varios romances de filiago, aqui nao ha um pacto fi ional que, segundo Galle jue, segundo Galle (2014, p. 214), “implica que nada da narra- Gio pode ser referenciado a pessoas ¢ a acontecimentos da realidade”. O livro enquadra-se no novo tipo de ficgao — o romance de filiagao — que envolve muito o leitor e acompanha a trajet6ria do narrador em busca do desvendamento de periodos da vida de seus pais em que ele no esteve presente ou era muito jovem para entender o que se passa- we Spun Vier: 2008 pS) sess cnederonan te constantemente entre a forma romanesca ¢ a forma autobiografica, Zentrando sempre o foco na figura de um dos membros da familia. No caso de Meus desacontecimentos (2014), 0 pai e a mae s40 0 foco, mas também aavé, com quem anarradora tem momentos de descontragéo e cumplicidade e com quem aprende a datilografar e, por consequén- cia, inicia-se na escritura. “Nasci nao de um mas de varios tamulos. E um deles era um timulo vivo” (BRUM, 2014, p. 71). Aqui, a narradora menciona o bisavé, que, unindo-se a uma negra escrava, teve uma filha, Luzia, que se tornaria professora de seu pai. Os timulos a quese refere a narrado- ra correspondem as mortes de duas geragoes: do bisavé e do avd. Seu pai torna-se érfio com apenas 11 anos ¢, sozinho no hospital, desco- bre a salvagdo pela leitura também pela palavra escrita, preenchen- do, assim, a morte do pai (avé da narradora). A figura da professora do pai, Luzia, a iluminada, que a narradora s6 conhecerd como lenda, 51 mark também sua “linhagem”, seu “lugar simbélico de perteng: BRUM, 2014, p-77). Ea partir da meméria de Luzia que a decide que sua vida, de ora em diante, estard ligada a palavra escritg, Ge nio houve possibilidade de reconhecer-se como hetdeita d, mnie, que nio se desligou nunca do timulo da primeira filha mort rrarradora estabelece um vinculo de filiagio intelectual com o pai, que como ela, é fascinado pelas letras ¢ pela professora que “iluminoy? primeiros passos no caminho da leitura. Em sua histéria com a5 ilumis mento” ( seus palavras, com seus acontecimentos € desacontecimentos, fica claro que a decisio da narradora pela palavra escrita, que definiu sua taj. téria identitéria, deriva do amor do pai pelos livros ¢ pelas letras, Ela, “a filha errada”, cuja narrativa inicia com um confronto radical com 9 rimulo que roubou parte do encanto de sua infincia, finaliza com uma “continuidade identificadora”, para usar a expresso de Helmut Galle (2014, p. 199), com o pai e com a figura lendaria de Luzia, a professora primaria de seu pai. O livro realiza uma espécie de enquete sobre sua infancia, o papel da mae e do pai ¢ das constantes mudancas, sobretudo perscrutando a vida do pai para melhor entender a sua prépria, mas termina por revelar a vocagao da narradora como escritora. “Libertei as letras, ¢ elas emergiram dos meus abismos como voragem. Voltei a escrever. Dessa vez: uma vida para mim” (BRUM, 2014, p. 143). Em Azul corvo (201424), de Adriana Lisboa (1970), a meméria atuacomofio condutor danarrativa, levandoanarradora-protagonista, Evangelina (Vanja), por caminhos desconhecidos, revelando informa- ges sobre seu passado, assim como o de seus familiares, a0 mesmo tempo em que articula memérias de pessoas sem lacos consanguineos mas pertencentes ao universo social e cultural percorrido pela prot gonista, através da rememoracio, O ato de rememorar conceituado por Gagnebin (2009) se insere no contexto narrado no romance Azul corvo, uma vex que representa —=—__ 24 Primeira publicagto em 2010 pela editora Rocco. 52. Zila Bernd pe aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido € 20 recalcado, para dizer, com hesitacao, solavancos, incompletude, aquilo que ainda nao teve direito nem & lembranga nem 4s palavras. A rememo- ragéo também significa uma atengio precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgéncias do passado no presente, pois nao se trata so- mente de nao esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. ‘A fidelidade ao passado, nao sendo um fim em si, visa a transformagio do presente, (GAGNEBIN, 2009, p. 55) Em sua tentativa de articulacio com o passado, a protagonista rd transitar por veredas em busca de respostas para entender os acon- tecimentos familiares que delinearam o presente no qual esta inseri- da, pois precisa compreendé-lo para continuar sua trajetéria de vida. ‘A personagem narradora, Evangelina, aos vinte ¢ dois anos de idade, resolve escrever sobre um periodo marcante de sua existéncia, seus trezes anos, momento em que é surpreendida por um acontecimento inesperado ¢ irreversivel: a morte da mae, Suzana. Objetivando en- contrar o pai biolégico, Vanja decide ir morar nos Estados Unidos (Denver, Colorado) com Fernando, ex-marido de sua mae ¢ que a re- gistrou como filha. ( romance nao apresenta uma ordem cronolégica dos aconteci- mentos, ao contririo, o enredo caracteriza-se pela desordem, tendo a meméria como elemento articulador, o que confere & escrita dos quin- ze capitulos uma semelhanga com a forma de lembrar ¢ de esquecer presente no ato de rememorar, tendo a emogio como eixo articulador. O titulo Azul corvo faz referéncia ao poema The Fish, de Marianne Moore, ¢ também tem relacio direta com a trajetéria de vida da pro- tagonista, indicando uma ligagao entre 0 Brasil e os Estados Unidos, uma vez que a cor azul pode ser encontrada tanto nas conchas do mar de Copacabana como nas penas dos corvos de Denver. O azul-corvo representaria o elo afetivo de Evangelina com os dois paises, enquanto lugares que marcam de forma decisiva a constituigao de seu proceso identitario. Os acontecimentos revisitados séo aqueles vivenciados por Vanja, ¢, nessa rememoracao, ela também se utiliza da meméria de Fernando 53 Zila Bernd. ¢ de outros personagens para compor a narrativa, mesclando fatos ig, dividuais e coletivos, um pasado distante com um presente pulsante. Nesse processo, séo reveladas informagdes que se tornaram fund, mentais para o entendimento de sua existéncia ¢ que se configuran, como basilares para seu proceso identitario. Joal Candau (2014, » 140) enfatiza que “a meméria familiar serve de principio organiza dor da identidade do sujeito em diferentes modalidades”, incluinds o "compartilhamento da vontade de compartilhar” € 0 “jogo da rea. propriagao do passado familiar”. Constatamos que Vanja pratica c sas duas modalidades, pois encontra em Fernando, seu pai adotivo, 3 vontade de compartilhamento ¢ exercita a reflexao (re)claborando narrativa de sua vida, Na busca pela anterioridade, Vanja encontra-se com Fernando, que se revela um caminho para acessar as memérias do passado viven- ciadas por Suzana, e, a0 mesmo tempo, descobre fatos ¢ acontecimentos histéricos do Brasil por meio de tais relatos, comparando-os com os con- tetidos trabalhados na escola no perfodo em que viveu no pais. A mie & a referéncia primeira na busca pela anterioridade e, no decorrer do percurso, cede espaco para Fernando, pois sera nele que Vanja encontra- 14 apoio para sua busca memorial familiar. Halbwachs (1997) sustenta jue é necessdrio para o individuo evocar seu proprio pasado, recorn as lembrangas de outras pessoas, sendo preciso se reportar a pontos de referéncia determinados pela sociedade que extrapolem sua individuali- dade, promovendo, dessa forma, o enriquecimento de suas lembrancas. Percebe-se que a arizHotitide/atcelidele sricalase oom a interioridade, visto que a narrativa enfoca a trajetoria dos antepassa- dos, intercalando-a com elementos inerentes ao presente da narrado- ra-protagonista. Dessa forma, Azul corvo, apresenta caracteristicas ine- rentes ao romance de filiacao, tendo em vista busca pela anterioridade /ancestralidade; narrativa em primeira pessoa, cuja protagonista de- monstra o poder de decidir sobre sua posicao de herdeira, estabelecen- do um continuum, embora os lagos familiares nao estejam pautados exclusivamente na condigao de parentesco consanguineo, 54 A persisténcia da meméria Aancestralidade serviu para identificar Vanja com sua mae ¢ com Fernando, embora ele nao seja seu pai bioldgico. O continuum revela- se fator primordial do romance de filiagio Azul corve, uma vez que a narradora se identifica com algumas maneiras de pensar ¢ de agit oriundas de sua mae ¢ de Fernando, Trata-se, portanto, da presenga do continuum lembrado por Oz ¢ Salzberger (2015), assim como do emergir de vozes que surgem de longe mencionado por Robin (1989). Importa ressaltar a presenga da meméria cultural (ASSMANN, 2011) na narrativa, pois Vanja mescla, em seus mosaicos memoriais, infor- mages que pertencem a esfera familiar, intima, tanto de Fernando quanto de Suzana, com relatos histéricos pertencentes a0 contexto brasileiro, tais como a ditadura militar ea Guerrilha do Araguaia. [u] entre as coisas de que a gente lembra e as de que nio se lembra, entre asque conhece eas que desconhece, ¢ preciso tapar os buracos dameméria com a estopa de que se disp6e. E talvez qualquer tentativa de conhecer 0 outro seja sempre isso, nossas maos moldando tridimensionalidades, nos- so desejo e incompeténcia montando um Album de colagem para fazer levantar dali um morto. (LISBOA, 2014, p. 173-174) No romance de filiagio Azul corvo, as memérias gencaldgica € familiar encontram-se presentes de forma latente, salientando-se que Vanja nao ultrapassa trés gerag6es, por isso, tais memérias nao se en- quadram como geracionais, conforme destacou Candau (2013; 2014). A protagonist, por exercer o livre-atbitrio, decide tornar-se herdeira e sucessora das trajetorias familiares da mae, Suzana, e do pai que a re- gistrou, Fernando, as quais revelam-se referencias de vida, delineando sua personalidade e seus posicionamentos perante a sociedade. Cabe mencionar que, de Suzana, Vanja incorpora o dominio das linguas (poreugués, espanhol ¢ inglés) ea pré-disposigo para a mobil dade, tanto espacial quanto cultural, uma vez que decide ir em busca do pai biolégico e, como a mie, desloca-se para os Estados Unidos. Jade Fernando, embora nao existam lagos consanguineos, a identi- ficagio emerge através da convivéncia € da introspecc4o como forma de ser e de pensar, uma vez que Fernando tem uma postura reservada 55 Zila Bernd ¢ também adotada por Vanja no decorrer da narrativa. Nesse pro. cesso de construgao identitéria, saberes ¢ praticas sio reapropriados conforme a identificagio € o interesse de Vanja; é a manifestacio dy transmissdo que realiza as acomodagées, pois, conforme menciong Muxel (1996), hd uma (re)elaboragio dos saberes e praticas geracio. nais, embora nio se verifique uma reprodugio idéntica, j4 que se ob- servam acomodagées inerentes ao tempo presente € que nao existiam na transmissio inicial. ‘A meméria, uma ver que cla é um passado negociado, supde sempre um movimento de desvios e eventualmente de retornos, pois a0 mesmo tempo jem que cada um est ligado ao seu passado familiar, a pessoa se desfaz da obrigagio quando realiza seu proprio caminho.** (MUXEL, 1996, p. 203) obhignya quando: realiza teu proprio. camiity Ressaltemos que o ponto-chave do romance é a busca pela pater- nidade bioldgica de Vanja, que acaba se tornando secundaria no de- correr da narrativa, cedendo lugar as descobertas geradas a partir dos didlogos c da amizade consolidada entre a narradora ¢ Fernando, Tal situagao reforga a afirmacao de Candau (2014, p. 61) de que “Através da meméria o individuo capta e compreende continuamen n- do, manifesta suas Intengbes @ Ge Tespelto, estrutura-o ¢ coloca-o em ordem {tanto no tempo como ne espago) conferindo-lhe sentido”. Vanja rememora um passado familiar para re(elaborar) o presente ¢ vislumbrar um futuro. Adota, para isso, uma postura positiva perantea vida, mesmo que percalcos e sofrimentos estejam presentes, conferindo 4 meméria € ao esquecimento a condicao de linhas mestras para seu processo identitério, Os romances memorial_e de filia 0; que emergem nas trés il: timas décadas, aprescntamese como formas narrativas centradas nt arrativas centradas 1 anterioridade, ou seja, para entender-se enquanto individuo soci cultural, o narrador necessita Feconstruir a trajetoria de vida dos seus a jetoria de vida dos SO’ 25 La mémoire, parce qu'elle est ce passé négocié, suppose toujours un mouvement de détour, éventuellement un mouvement de retour. Car en méme temps que chacun est lig son passé familial, il en est délié par la réalisation de son parcours propre. 56 A persisténcia da memoria ascendentes, fazendo uso da meméria como elemento principal desse acesso ao passado que urge ser ressignificado no presente. E importan- temencionar que, durante o processo de desvendamento de momen- tos cruciais da existéncia dos ancestrais, elementos integrantes da me- méria familiar podem ser reforgados ou negligenciados, dependendo da situagao em que se encontra o narrador no presente. Romance memorial ¢ de filiacao diferem, portanto, do romance gencaldgico (sage), pois este & em geral, narrado em terceira pessoa ‘por um narrador onisciente que segue uma ordem cronolégica ¢ linear versas geragdes, O tema da transmissio — bem-sucedida ou falha — constitui-se Priam da meméria genealégica e familiar (aquela que abrange trés geragdes, no maximo) ou da meméria geracional (a que ultrapassa 0 niicleo familiar ¢ estende-se por diversas geragoes), dando origem a um continnum verbal entre as gerages, Em certos casos, operam-se Tupturas que evidenciam o desejo de rejeitar a heranga familiar, ‘Anarradora de Azul corvo, ao empregar uma investigacao do pas- sado desconhecido de ativista politico de seu pai adotivo durante 0 periodo da ditadura militar brasileira, enseja o descobrimento de si mesma e de um Brasil pretérito, isto é nuances de um passado do seu pais de origem. A partir do desvelamento desse passado (Familiar ¢ so- cial), ela principia a entender melhor seus medos, fraquezas, atitudes e decisdes, percebendo que a identidade ¢ fluida e cambiante e que pelos rastros ¢ vestigios memoriais torna-se possivel revisitar alguns aconte- cimentos ¢ (re)escrever, no presente, as vivéncias e transformagées dos seus ascendentes ¢ antepassados. Assim sendo, Azul corvo, de Adriana Lisboa, integra 0 contexto do romance de filiagio na contemporaneidade brasileira, pois, além de apresentar as caracteristicas evidenciadas na sua constituicso, en- fatiza de modo exemplar a busca pela anterioridade como meio de posicionar-se no mundo ¢, principalmente, situar-se como sujeito cuja 57 Zila Bernd identidade encontra-se em continuo processo de construcao ¢ descon, os d ‘dgua, de Conceigio Evaristo, nascida em Belo Horizon, te, mas radicada no Rio de Janciro, trabalha seu fazer literério, pp, tum lado, no sentido de abrir para a filha os fragmentos dos arquiy, rmemoriais que guarda da historia de pobreza e superagio de sua pr. pria mae e, por outro, para dar continuidade a gencalogia literéia escritoras afro-brasileiras que a precederam, como Mirian Alves, led, Martins e Esmeralda Ribeiro, procurando com elas estabelecer o con. tinwum verbal de que fala Amos Ox. Sua obra poética, que valea peng citar aqui, evidencia, da mesma forma que sua contistica, a preocups. 40 com a transmissao intergeracional: voz de minha bisavé ecoou Crianga Nos porées do navio. Ecoou lamentos de uma infancia perdida. Avvoz de minha avé Ecoou obediéncia Aos brancos donos de tudo. Avoz de minha mae Ecoou baixinho revolta No fundo das cozinhas alheias Debaixo das trouxas Roupagens sujas dos brancos Pelo caminho empoeirado rumo 4 favela, A minha voz ainda ecoa versos perplexos Com rimas de sangue ¢ fome. voz da minha filha Recorre todas as nossas vozes Recolhe em si As vozes mudas caladas Engasgadas nas gargantas. Avvoz da minha filha Recolhe em si A fala o ato, O ontem ~ 0 hoje ~ 0 agora. Navoz de minha filha 58 A persisténcia da memoria, Se fard ouvir a ressonancia O cco da vida-liberdade2s Evaristo pinta com “tintas érfis” manze — a histéria de suas ancestrais, riais e preenchendo os vazios com a foi E imperioso para a poeta, ~ paraftaseando Laurent De- recolhendo os rastros memo- ga de sua imaginagio pottica. contista e romancista Conceigdo Evaristo recordar o curso de suas antepassadas porque sabe que somos o que Jembramos ¢ é essa heranca de uma meméria cultural vazada na hist6- ria — feita “de sangue c fome” ~, que se inicia na travessia do Atlantico, que ela quer legar a filha, que dela saberd recolher “a fala 0 ato”. Meus desacontecimentos, da gaiicha de Ijui Eliane Brum, enquan- dra-se, segundo a classificagio de Laurent Demanze, no herdeito pro- blemédtico, aquele que, segundo o tedrico francés, corresponde ao escritor contemporaneo que constréi as narrativas de filiagio, para exumar os vestigios de uma heranga em farelose alinhavar os farrapos de sua meméria destrufda, Enere transmissio ferida e heranga de uma divida, essas escritas de si reinventam uma identidade singular e plural 20 mesmo tempo.” (2008, p. 9) Esse mal-estar da transmisso no pungente texto de Eliane Bram se alinha & vertente da literatura francesa atual analisada por Laurent Demanze em Encres orphelines (2008),em que o passado “se declinaem figuras da heranga impossivel, da memoria impedida ou da transmissio deuma divida”® (2008, p. 21). Impedida de constituir-se em herdeira dame, que nunca recuperou-se do luto da filha primogénita, a autora, 26 “Vozes mulheres”. In: Poemas da recordagdo e outros movimentos, 2008, 27 [..] &Vécrivain contemporain qui échafaude des récits de filiation, pour exhumer les vestiges d'un héritage en miettes et raccommoder les lambeaux de sa mémoire déchirée, Entre transmission brisée et héritage d'une dette, ces écritures de soi réinventent une identté singuliére et plurielle é la foi ; / 28 [...] se décline tout & tour en figures de l'héritage impossible, de la mémoire empéchée ou de la transmission d'une dette. 59 Rg? 7 ee OE Zila Bernd de desacontecimento em desacontecimento, recolhe a heranga fer, tadora do pai, que a conduz pela trilha criadora da escritura, Entre herdar ¢ transmitir navegaram as trés autoras dalitern contemporanea brasileira. Poderfamos nos perguntar COMO, No mo. mento atual, canto na liveratura francesa quanto na brasileira rego, nam quest6es tao basilares ¢ antigas como as de ascendéncia, meméra, heranga ¢ transmissio. Cremos que o interesse crescente ¢ renovadg pelas questées ligadas i meméria cultural, aos arquivos ficcionais ¢ ang vestigios memoriais reinventaram as escritas de si, que se voltam hoje mais para a anterioridade do que para a interioridade, como escrevey Dominique Viart (2008). Referéncias ARON, Paul; SAINT-JACQUES, Denis; VIALA, Alain (eds.). Le Dictionnaire dus lttéraire, Paris: PUF, 2010. ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Perversas familias. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. Pedra da membria. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. . Os senhores do stculo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994. ASSMANN, Aleida. Esparos da recordagdo: formas e transformacOes da memoria cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. AUDET, Noil. L ombre de I 'épervier. Québec: Editions Québec/ Amérique, 1988. BERND, Zilé. Romance memorial ou familiar ea meméria cultural; a necessida- dede transmitir em Um defeito de or, de Ana Maria Gongalves. Revista Organon, Porto Alegre, LL. 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