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PRESTACAO DE CONTAS DE UM GOVERNANTE COLONIAL DO ANTIGO ESTADO DO MARANHAO E GRAO-PARA Arthur Cézar Ferreira Reis Alexandre de Souza Freire, na qualidade de Governador e Capi- to-General do Estado do Maranhdo e Grdo-Para, administrou aquela unidade brasileira de 14 de abril de 1728 a 16 de julho de 1732. Foi ativo, durante os meses que permaneceu em Belém, pois aquela cidade era parte integrante, como toda a Amazénia, do Estado do Mara- nhdo, que tinha sede na cidade de Séo Luis. Um dos atos mais importantes de sua gestio na area amaz6nica foi mandar o sertanista Belchior Mendes de Moraes, como se 1é em Ladislau Monteiro Baena, em «Compéndio das Eras da Provincia do Para», 1838, verificar se ainda existia o marco plantado por Pedro Teixeira, na Franciscana, na foz do Aguarico-Napo, marcando entéo a fronteira entre os territérios sob soberania portuguesa e soberania espanhola. Ainda segundo Baena, Belchior encontrou o marco um tanto deteriorado (janeiro de 1730), que fizera restaurar, lavrando ter- mo que teve a assinatuta, entre outras pessoas presentes a0 ato, do missionario espanhol Jodo Batista Julian, Superior das Misses Catoli- eas, que entdo andava em visita regido. Terminado 0 governo, Alexandre apresentou relatorio a Sua Ma- jestade 0 rei de Portugal, D. Jodo V, através do qual fez sucinta re- flexdo que fora sua ago e das dificuldades que tivera de enfrentar, bem como dos dissabores que quase o fizeram um nao agradecido & lembranga de S. Majestade ao entregar-lhe a administracdo regional. Essa prestacdo de contas vai a seguir. SENHOR Manus tuae Domine fuerunt me . Et sic repente praccipitas me? Assim clamava 0 Propheta Job a DEOS; ¢ com as mesmas expregdes me restituo agora aos Reacs Pez de Vos- REVISTA DO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAFICO BRASILEIRO sa Magestade, depois de o ter servido quatro annos nas mais trabalhosas campanhas, em que o meo zello deixa triunfando os Missionarios do Estado, incomprehensivel forca da Providencia, gloriosa reserva do merecimento. Padecer pouco pelo servico de Vossa Magestade, ja se vé que nao he muito; mas ter depositado a fortuna este nad esperado gdlpe, para maior cabedal dos meos sacrificios, nad pode negar-se que he mais; E entéao, Senhor, depois de morto 4s mads da minha conformidade; ou do tempo, que he ja chegado 0 de acabar — Si mane me quaesieris non subsistam'), © mandar-me Yossa Magestade para 0 Governo do Maranhad, como castigo da minha tespeituosa inseparabeli- dade, pode ser destino infeliz; mas reparar-lhe eu esta reso- hugad, com tanto honrado procedimento, bem me podia fa- zer ditozo sem escrupulos. Logo no primeiro anno do meo Governo foi a minha honra to combatida de accusagoés, que se publicou no Es- tado, como artigo de Fé, a minha futura depozicad em o anno seguinte; livrou-me a innocencia; mas continuou em o segundo com tal forga, ¢ calumnia, que a repetidos mila- gres de huma, desmaio da outra, abrindo o sentimento hor- rorosa brecha na parte mais nobre da minha sensibilidade me deo effacias 0 estrago, ou a impaciencia, para reparala. Fiz prezente a Vossa Magestade, com volumosas justi- ficacots, a implacavel ambicad dos missionarios, a nenhu- ma verdade dos seos procedimentos, ¢ o incomparavel zello com que the inutilisara os seos dezignios. Quiz 2 fortuna mostrar-me no terceiro anno, que con- valescia com tantos manifestos mas como hera minha, des- carregando no quarto anno a malevolencia dos mesmos contendores os maiores golpes, de repente me achei sendo o mais vil despojo do seu triunfo. Entre tanto poderoso inimigo nas batalhas mais porfia- das de opposicdes, servi a Vossa Magestade, tad incontras- tavel aos seos A ..., como declaro nos artigos seguintes. Com quarenta dias de assistencia, depois de tomada posse do Governo no Maranhad, despedi huma Tropa em descobrimento das minas do Ouro do Pindaré, a que inuti. lisou a minha desgraga, junto com as industriosas cavil go@s da Companhia; mas para expedir a mesma Tropa sup- (1) Estas palavras aparecem sublinhadas no original, @ Junto desta palayra esta escito sic com letra e tinta diferentes. prio a minha efficacia a falta de todos os meios que havia para se executar esta deligencia, com a maior opposicad dos Jezuitas; para elles primeira pedra de escandalo do meo Governo. Passando logo ao Para, estabeleci hum correio pelo ca minho de terra, que ate entad nunca houve, para que todos ‘0s mezes se me facilitassem as noticias, e despachos de hu- ma e outra Cidade com prompta administragao da justica; (© que Vossa Magestade me agradecéo por Carta do Conse- tho Ultramarino que mandei registar na Camera do Mara- nha, ‘Com esta Providencia nad s6 evitei os vagares que ate aquelle tempo se experimentavad para se conseguir hum despacho, mas poupei a Real Fazenda de Vossa Magestade, a importancia de quinhentos, ¢ seis centos mil reis, a se gastava no apresto de huma Canda em que se quizesse re- meter qualquer Avizo. Neste mesmo anno individuei com a mais importuna deligencia o que Vossa Magestade me recomendou pelo Conselho Ultramarino, sobre @ importancia que rezultaria & sua Real Fazenda, se os Missionarios pagassem Dizimos; segunda, e maior pedra de escandalo. No terceiro anno tornei a repetir 0 mesmo. descobri- mento, sobredito do Pindaré, ea renovar a dor mais sensi- vel dos Jezuitas, de que seguindo-se, por novas cavilagoés, arribar a Tropa, ihe remediei a retirada, ¢ a fiz tomar a prosseguir a mesma deligencia. suprindo com parte do seo aviamento 4 custa da minha fazenda, por emprestimo 4 de Vossa Magestade. Terccira pedra de escandalo, pela repeti- cao da primeira. Todos os annos, com incancavel fadiga, me transporta- va de huma para outra Cidade, duas vezes andando por mar e terra, trezentas legoas. Despedi no Para duas Tropas de guérra, huma a que ‘ao depois tornei a soccorrér contra o gentio Mayapena, ¢ Cubiiba, de que resultaram 4 Real Fazenda de Vossa Ma- gestade quarenta mil cruzados, de quintos, e resgates, athe ‘© tempo que entreguei 0 governo, e continuamente vinhad descendo, e terad descido, para augmento desta quantia, tudo em virtude dos meos despachos, ¢ do socego em que a dita guérra meteo de posse a todos os Certots do Ryo Ne- gro; quarta pedra de escandalo, que ainda a verdade tantas veses manifesta, ndo pode redusir a Cinzas, pela dureza q Ihe participad os odiosos coragoés dos Missionarios; porém se de tanta pedra se pode ja fazer huma estatua, eu serei, Senhér, agora o que da superior altura em que adoro a jus- REVISTA DO INSTITUTO HiSTORICO E GEOGRAFICO BRASILEIRO tiga de Vossa Magestade Ihe despenhe os manifestos, para sepulta-ta na sua ultima ruina. Outra contra os Indios Cahivicenaz, ¢ Parianaz, no Ryo Solimoés, a que tambem a incancavel ambicad dos Frades do Carmo, Missionarios daquelles districtos, inten- taram fazer oppozigdes, valendo-se do meio de sumirem a devaga do Cartorio da Ouvidoria geral, por soborno do Es- crivad que foi delle Antonio de Mello, em a qual se acha- vad as ditas Nagoés sentenciadas 4 guérra, de que suppo- nho da conta a Vossa Magestade 0 meo sucessOr com mais indevidualidade. Zellei com summa efficacia os augmentos da Real Fa- zenda de Vossa Magestade nas suas cobrangas, de q nunca me vali, antes com 0s meos soldos, suppria os gastos do seo Real servico, para que este nao parasse quando os Al- moxarifes se achavad sem effeitos. Consta por Certidoés, q aprezentarei. Estabeleci (sic) a Vossa Magestade hum Donativo no Para e no Piauhy; neste de quarenta mil cruzados, e na- quelle de muito mais pela suavidade com que o pratiquei; a qual o facilita a perpetuar-se. Mandou-me Vossa Magestade pedir trinta duzias de champroés, que a vinte ¢ quatro, ¢ trinta mil reis a duzia, haviad de importar perto de trez mil cruzados; ¢ grangiei trezentos © sessenta ¢ nove sem custo da sua Real Fazend: dos quaes tenho remetido duzentos ¢ vinte ¢ seis, ¢ ficad promptos para embarcar se no Para trezentos e quarenta e quatro; consta por certidoés; e do mesmo modo remeti quantidade de amostras de madeiras. Recomendou-se-me 0 Estabalecimento (sic) e fabrica do Anil, ea reduzi a sua de- vida execugao. Zelei € deffendi os Reaes Dominios de Vossa Magesta- de; assim os confinantes com os de Castella, como com os de Franga, expedindo para huma e outra parte Tropaz e Canéas armadas em guérra; e para o Ryo Nesro com 0 projecto de que podem resultar grandes conveniencias 4 Real Fazenda de Vossa Magesiade. Mudei no Cabo do Norte o Prezidio para logar mais conveniente; € nelle o estabaleci de modo, que poupei a Vossa Magestade todos os annos, dous, ¢ trez mil cruzado: que em cada hum se dispendia com as Candas de guarda costa que se remetiad do Para; por que no mesmo novo Prezidio se armavad as ditas Candas sem nenhum gasto mais, q nos pagamentos dos Indios necessarios para rema- las, que he o para que ordenci se remetessem revezados de tempos em tempos das Aldeas circumvisinhas a elle, INEDITOS: occupando-se os ditos Indios no tempo em que vagavad 4 expedigao de guardar a Costa, em lavrar rossas para livrar © repetido socc6rro de mantimentos, que de dous em dous, ede trez em trez mézes se the mandava do Para, com gran- de trabalho e despeza de Vossa Magestade. Mandei por duas vezes escoltas contra os Negros fugi- dos que em malécas pelos mattos, hoje do riquissimo Rio do Guamé pela grande abundancia de Cacoaes mansos, i festavad as povoagdes dos Vassallos de Vossa Magestade, ¢ por que nad podem extinguir-se as ditas maldcas, pelas re- petidas fugidas de Indios, e Vossa Magestade gastava da sua Fazenda, e devertia os seos Soldados, sendo pouquissi- mos na Cidade do Para, em que ao prezente por esta rasaé se acha6 entrando de guarda as Ordenangas, nomeci em 0 mesmo Rio na distancia de quatro e cinco marés hu Cappi- tad e hum Sargento Mor, Braz Pires, e Sebastido Rodri- gues, os mais opulentos Lavradores que morad naquelles districtos para faserem a guérra & sua custa aos mesmos gentios fugidos, impedindo-lhe as mortes e roubos, que em prejuiso dos Vassallos ¢ fazenda de Vossa Magestade fazem nos ditos Canoaes mansos, ¢ nos servos, e servas delles. Criei estes dous postos da Ordenanga sem soldo, nad 80 pelas refferidas raso€s, mas 4 imitagad de outros seme- Ihantes que ha no Maranhad em o Rio Itapicoru, falto da opulencia, com que hoje se acha o do Guamé, a pedra pi ciosa do maior valor do Estado; ¢ se pela distancia de quasi a metade do que este dista do Para, se criou no Itapicoru Cappitad ¢ Sargento Mor para ter mais prompta a deffensa contra os Barbaros, com muito maior rasad o Guama, por ar mais longe do Para necessitava da mesma providen- cia, Augmentei de sorte esta Cidade, suposta a recomenda- a0 que para este fim, Vossa Magestade faz no Capitulo 19 do Regimento daquelie governo, que se acha a sua Cappita- nia com perto de milhao e meio de pés de cacao manso ¢ ja com muito Caffé, sendo raro o morador; por que athe os Negros alcanca; que se ndo veja luzidam*, vestido de velu- dos e Tisso, achando-os quando tomei posse daquelle go- verno, a todos tad pobres que raro hera 0 que se podia ves- tir de Camelad grogo; chegando a tanto a consternacdo de alguns por falta de servos que intentavad mudar-se para a Ilha Terceira; ¢ estes herad 0 Coronel da ordenanca Gaspar de Sequeira de Queiroz, e Thomaz Luiz. Zellei a liberdade dos Indios com summa proluxidade como se pode vér nos termos das Juntas de Missdes do Ma- ranhad, € Para, ¢ declarara o Procurador dos Indios Ale- 90__ REVISTA DO INSTITUTO HisTORICO E GrOoRAFICO BRASILEIRO xandre Camello de Azevedo que em todos os quatro annos do meu Governo, com poucos meses menos exercitou esta ocupagad. Nunea offendi pessoa a alguma na sua honra antes tra- tei a todos com a maior civilidade. Na6 tomei couse algu- ma a ninguem. NaB tive commercio nenhum. Nao deixei de concorrér para os descimentos necessa- tios das aldeas uteis a0 servisso de Vossa Magestade e seos Vassallos. _ Nad fiz injustica as Partes, nem as tratei com violen- cia. Ao Bispo respeitei sempre com @ maior urbanidade ¢ veneracad, € 20 Clero, missionarios, e Ministros de Vossa Magestade. Reparei, ¢ conceriei ambas as Cazas de Vossa Magesta- de no Para e Maranhad. Fiz o mesmo por duas veses a Caza forte do Guams. No fortim das Mercez no Para mandei faser os concer- tos necessarios, assim na ponte com q s¢ comunica a Cida- de, como na Sapata e alicerce do mesmo Fortim Nas salinas Reaes do Maranhad mandei faser huma muralha para conservacad das caldeiras, ¢ das sobreditas ordenei se conduzisse bastante Sal e Vossa Magestade. Cuidei sempre muito no socégo publico dos Povos, com rondas ¢ Bandos, quando herad precisos, para evitar disturbios ¢ alvorogos. No Maranhad soceguei os maiores tumultos entre os Frades de Sto. Antonio, ¢ 0 Ordinario. Repeti juntas de Misses, ¢ outras muitas para acertar no servigo de Vossa Magestade; ¢ em todas com grande op- posigad dos missionarios, e dos delinquentes, como por au- tos mostrarei a Vossa Magestade, e repetindo em cada ac- co destas hum novo sacraficio (sic), me faltava o tempo para 0 descango com especialidade no em que despachava navios, Candas, e Tropas para 0 Certad, nad me rendendo nunca 20 maior trabalho, pois nelle me fazia descancar 0 zello do servigo de Vossa Magestade. Este o meo exercicio de quatro annos de guérra viva, ¢ 2 mais violenta, # que por servir a Vossa Magestade, sem outra alguma dependencia, me acrisquei de modo, que hoje pelo mesmo zello me acho malquisto com todos os missio- narios, e accurado com falcidades blasfemas contra a mi- nha honra, sendo o maior estimulo da sua inflexivel ambi- — Ineprros a a6, ¢ malevolencia, o sistema unico que pratiquei a Vossa Magestade, para se augmentar e conservar aquelle Estado no depozigad do Governo temporal que os ditos missiona- rios exercitad nas aldeas com tanta demazia. E por que nad faltasse em mim nenhuma parte de in- dependencia, athe sem attencdo 20s mesmos homens, a quem devia tantas, procedi contra todos em huma inquiri- a0. de Testemunhas que pessoalmente tirei do negocio que se fez no Par& com huma Balandra de Francezes, que ¢s- tando eu no Maranhad aportaram nella aquella Cidade de que se me originou malquistar-me tambem com todos os comprehendidos na dita inquirigo, e disporem-se com esta queixa, esquecidos dos beneficios com que os tratei, se pos- sa com elles augmentar a opposicad dos missionarios. No caminho da terra do Maranhad para o Pard, esta beleci aldeas, instituhi missdes, que em nenhuma das que achei havia fasendo tambem por este modo, € pelo excessi- vo trabalho meo, vadeavel o caminho que de antes hera inacessivel. Na sobredita Cidade do Maranhad fiz augmentar as rendas de Vossa Magestade, como tambem na Cappitania do Piauhy, e suas annexas; consta por certidoés, Chegando a esta Cidade no Anno de 1730 quando a el- la me recolhi do Para, ¢ achando que o Provedor da Fazen- da Real Joad Valente da Franca tinha roubado a Vossa Magestade quatro mil cruzados em hum Leilad que fez & sua porta, mandei proceder contra elle na forma do Regi- mento do Governo ¢ cuidando que tinha ofrado bem, me trataram do Conselho com grandes injurias, q eu agora ve- nho sarar 4 Real presenca de Vossa Magestade, com os formes authenticos dos mesmos autos, e do mesmo Regi mento. ‘Achei tambem que Vossa Magestade perdera trinta mil cruzados nos dous ultimos triennios do contracto do Pari, e pelo faser prezente a Vossa Magestade por Certidoés au- thenticas, tive outra carta de reprehensdo do Conselho de sorte que hera o mesmo para o dito Tribunal o meo zello, que comprehender-se todo com o maior escandalo; 0 que tambem agora farei prezente a Vossa Magestade por docu- mentos juridicos. Contravier fis hostilidades dos Indios insultores, conti- nuados daquelles districts, impedindo-the os estragos com que ameagavad todas as fazendas de gados dos Vacallos de Vossa Magestade. Na junta de misso&s do Maranhad resolvi guérra con- tra elles a qual se executou sem quebrantamento das Leis 92. REVISTA DO INSTITUTO HISTORICO & GEOGRAFICO BRASILEIRO de Vossa Magestade, ¢ em virtude della, no alcanse q se fez por Manuel da Silva Pereira ao Gentio barbaro se descobri- ram nas cabecerias do Rio Itapicoru, districto do Mara- nhad, novos campos geraes, de que ainda nad havia noti- cia, ¢ nelles estad para se estabelecer e povoar bastantes fa- zendas de gados, em augmento da Real Fazenda de Vossa Magestade. Acodi sempre com a maior promptidao as dependen- cias de todas Cappitanias do Piauhy, sem embargo das suas grandes distancias, como podem informar a Vossa Mages- tade os dous Ouvidores Geraes do Villa de Mocha, Antonio Marques Cardozo, e seo successor Jozeph de Barros Coe- Tho; e em fim, Senhor, nad me ordenou Vossa Magestade couza alguma naquelle Governo que naO executasse com a maior pontualidade e presteza. Fui para o Governo pobre, e recolho-me delle, pobris- simo, ¢ isto porque sem comtemporisar com os aduladores da benignidade Real na6 cuidei mais que em aplicar-me a0 servigo de Vossa Magestade, com todas quantas forcas ca- biad na Alma, € no corpo, ¢ hoje, Senhor, em hua © outra parte me acho padecendo, na alma pela nobreza do spirito, no cérpo pela qualidade do sangue, natureza bebida em a Divina, alento participado da Real. No ultimo quartel da minha vida, depois de tanto tra- balho pelo servigo de Vossa Magestade, este he o descanco; depois de tanta fineza, esta he a fortuna; mas se por Vossa Magestade padecem as partes mais nobres de hum Vacallo, que maior dicta? Salve-se a honra na tormenta dos embus- tes, ¢ logo se nao affligira o Spirito; na6 se derrame o san- gue confundido nos accidentes, ¢ logo com elle circulara 0 esforgo. Aquelle hera o meu ultimo sistema, que nad praticava no socégo da minha caza, de donde / Real, e Soberana tes- temunha Vossa Magestade / naé intentei nunca governos, mas hum lugar no Conselho ultramarino, adonde poderia conservar-me sem tantas occasies de malquistar-me Zello- 50. Rezolveo-se Vossa Magestade a dar-me esta vida de Governos adonde provera a Deos nao viesse, ¢ morresse an- tes de partir para elle, se havia dezagradar a Vossa Mages- tade; intentei ajustar-me as mesmas acgdés com que vivia em Lisboa, e ou por erro do entendimento, ou por fraque- za da vontade, entendi, que me incapacitava por este modo de dar conta de todo hum Estado, em que a ambicad de missionarios, a pobreza dos Vagallos, ¢ a disolusad de to- 1 — INngrtos, 8 dos me fazia quebrantar os limites do sofrimento ficando- me difficultozo contrastar ambigdes senad obrasse dezinte- ressado, ¢ estabelecer tributos, se nad. contemplasse aug- mentos; confego nas ideas o engano, lebrando-me do Eter- no manifesto nas resolugdés de desejo, ¢ intentado o servi- 90. Sejad de alguma véz, como agora, os Reis confecores que quazi sempre o devem ser, para nad castigarem Veniali- dades, e dellas me absolva Vossa Magestade, que do mais nad tenho para q merecé-lo contricto. Estas em geral forad todas as minhas acgdes no gover- no do que Vossa Magestade me encarregou, se errei, ¢ nos Reis pode haver delicto, culpe Vossa Magestade a sua im- comparavel grandeza de piedade com que fiou de mim aquelle Estado, ¢ nad fique no meio Am6r livre da mesma culpa; esias sad as de que me accuzo, sem rezervagad ne- nhuma; saiba-o Vossa Magestade, e se tiver de que arrepender-se na eleicad que fez de mim, preceda esta noti- cia ao desprazer, antes que os missionarios Ihe confundad as verdades. Temo-o pela experiencia das pertubagdes a que redusi- ram © Maranhao os da Companhia, facilitando os seos par- ciaes As desobediencias, na esperanca que todos os annos Ihe faziad ter de novo Governador; chegando a tanto a vir- tude das suas pregagdes, sem que 0 odio q me tem Ihe dei- xasse premeditar a ruina q 0 Cappitdo mor da Praca Da- mido de Basto intentou primeira, ¢ segunda sublevacad na- quella cidade contra mim para elle s6 ficar governando; co- ‘mo consta de dous Autos e Hua Devaga. Fez-se para este fim, nad o sendo parcial do Ouvidor dda mesma Cidade Mathias da Silva Freitas, ¢ este do Pro- vedor da Fazenda Real Jodo Valente da Franca, elegendo todos para seo perniciossimo Concelheiro a hum degradado Felipe Delgado, que por nad hir cumprir 0 seo degredo a ‘outra Cappitania, para que o mandava, para 0 socégo pu- blico, em virtude do Regimento do Governo, o tiraram da Fortaleza do Itapicoru adonde o prendi, athe haver occa- siad de remete-lo para fora do Maranhdo, e lhe langaram 0 habito de Donato no Convento de Santo Antonio, sendo o mesmo Cappitad mor seo Padrinho. Deste diabolico Donato, peior que o mesmo Demonio se originaram as ja tocadas perturbagSes de Cenguras, entre ‘os seus Frades, de que hera Letrado, ¢ o Vigario Geral do Maranhad, as quaes sad as que soceguei dentro de trez dias chegando do Para. REVISTA DO INSTITUTO HISTORICO £ GEOGRAFICO BRASILEIRO Por este se causaram tambem os roubos que 0 Prove- dor da Fazenda Real sobredito féz a Vossa Magestade, facilitando-o a que obrasse com ella o que lhe parecesse, que eu me nad intrometer na sua jurisdicad, ainda q a qui- zesse lancar no mar. Deste he que nasceo o novo procedimento de excomu- nhdes entre os sobreditos depois que tornei a voltar p* o Para fasendo conservar com pertinacia ao referido Ouvidor nas Cenguras que contrahio por devagar do Governador do Bispado, ¢ Sentencia-lo. Deste he que nasceo a assuada que o tal Ouvidor deu hua noute a Gregorio de Andrade da Fonceca, a quem Vos- sa Magestade mandou por carta sua de 12 de abril de 728, que eu deffendesse daquelle Ministro que intentou prender © tal homem, como Acessor de seo Cunhado 0 Vigario Ge- ral do Maranhao; para que opprimido por este modo 0 ab- solvesse da Cencura, de que elle nad queria eximir-se; Consta por carta que me escrevéo 0 mesmo Ouvidor. Deste he que nasceo dar o refferido Cappitad mor Da- miad de Basto toda a ajuda de braco secular contra 0 dito Gregorio de Andrade a quem Vossa Magestade deffendia, me mandava deffender. Deste he que nasceo a dezobediéncia a todas as minhas ordens que forad do Para, sobre nad dar 0 dito soccorro militar para este effeito, visto que Vossa Magestade 0 pro- tegia Deste he que nasceram os Conciliabulos, feitos com os nomeados € mais sediciosos, procurados por todos quatro em 0 Convento de Santo Antonio, para q me prendessem, ¢ me depuzessem do Governo elegendo para elle 0 dito Cap- pitad mor. Deste he que nasceo o desprezo que o tal Ministro fez da absolvig&o que o Bispo do Para the offerecéo. Deste he que nasceo tirar 0 dito Ouvidor aos Oficiaes da Camera que se achavad actualmente servindo por eleicad Canonica, por temerem como verdadeiros filhos da Igreja a participacad das cencuras tratando com elle. Deste he que nasceo pela fugida dos proprios oficiaes da Camera, fazer o Ouvidor outros, contra as Leis de Vos- sa Magestade, e arrombar com elles 0 Archivo da mesma Camera; tirando, ¢ introduzindo os papeis que the parecéo. Deste he que nasceo depois de restituidos os verdadei- ros Officiaes da Camera as suas devidas occupagdes ¢ lan- — Ineprros 9 gados fora os intrusos, em virtude do assento, que se to- mou em Caza do Bispo do Para na Junta que nesta celebrei de Theologos, ¢ Juristas em 0 mesmo dia que entraram ou- tra véz de posse os mesmo Officiaes, espera-los a sahir da Camera, 0 Ouvidor, com os da sua justica, ou injustica, € © tal Cappitad mor, com Soldados escondidos em sua Ca- za, para mata-los ou prende-los; tudo nad so contra repeti- das ordens minhas, mas da rerolugad da junta mencionada. Deste ultimamente he que hia nascendo, ou acabando a ultima ruina, ¢ 0 Maranhéo, alvorotados; todo 0 Povo repartido em bandos, ¢ 0 Cappitad mor, Ouvidor ¢ Dona- to, cabega dos sediciosos. Da providencia da sobre dita Junta he que nasceo 0 re- pentino socégo de toda esta calamidade, aparecendo com huma ordem minha o Cappitad mandante do Maranhad Valerio Corréa Monteiro, na ultima dezesperagad de outro remedio, em que mandei, que nenhum Soldado, ou Official obedecesse ao dito Cappitad mor, este fOsse prezo na For- taleza do lapicoru. Foi milagrozo o socégo com esta resolugad em que DEOS mostrou se agradava, pela deffensa que eu fasia & sua Igreja ordenando que naquelle mesmo tempo, por As- sento da tal junta, que o Ouvidor ficasse suspenco por ex- comungado, em quanto se ndo mostrava o absolto : Foi es- ta ordem publicada por hum bando, ¢ aos clamores das cai- xas, e das vozés ficou o Maranhdo com 0 desejado socégo. ‘Com este se conseryou athe 4 chegada dos Navios des- te Reino, em que por virtude de hua fixatoria, se aclamou ‘© Ministro por nad excomungado, ¢ como chegou tambem ‘a noticia de meo successér, receoso Cappitad mandante, a athe esse tempo teve a Infantaria 4 minha devocad, deixou exercitar ao Ouvidor a occupagdo, com que entrou a vingar-se dos que herad Vacallos fieis de Vossa Magestade, com as tirannias nunca ouvidas, nem imaginadas, como vai continuando, com Soldados perseguindo os refugiados nos mattos, e por que se Ihe nio entregad, lhe remata os bens, para pagamento da Infantaria, dada pelo novo Capp. ao mor. Chegou em fim o meo Successér Joseph da Serra, € com cinco dias de asistencia no Maranhad soltou 0 Cappi- tad mor prezo, e Autuado por crimes capitaes; trouxe or- dem do Conselho para soltar o Provedor da Fazenda Real, mandado sentenciar pelo Ouvidor meo Inimigo declarado, como cabega dos sediciosos que de antes queriad, prender- 96. REVISTA DO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAFICO BRASILEIRO me, € depdr-me e com tal cavilagdo fez tudo, que sendo elle © que votou na prizad do mesmo Provedor, como mostra- rei pelos Autos principaes / cujos Treslados remeti ao Con- selho ultramarino, adonde naé aparecerad, mas sé huma carta minha de conta / 0 pdz solto e livre. Segundo meo inimigo, solto da prizad em que o man- dei recolher na forma do Regimento do Governo, que apre- sentarei com a Devaca fez tais execuodes ta6 diabolicas, que fingindo culpas contra o Almoxarife Diogo Pedro, de furtos de setenta mil cruzados, o meteu com hum grilhad na enxovia, de donde para subi-lo para a salla livre, deo a0 dito Provedor quinhentos mil reis e para hir della para caza quatro mil cruzados; ¢ aquelle mesmo, que hontem hera Ladrad e a quem havia feito hum sequestro geral, hoje foi Sancto, e nad deve nada; Estes sad os procedimentos que deve de aprovar e quer o Conselho em seos Ministros. Porque nad querendo eu, em virtude de Regimento do Governo consenti-los trouxe, meo SuccessOr ordem para se nad entremeter em materias de justigas e Fazenda € por este modo vi queimar com injusticas, furtos ¢ tiranas insulensias os Vacallos de Vossa Magestade, as mads do Ouvidor, e Provedor do Maranhad Mathias da Silva © Freitas, ¢ Joao Valente da Franca, e nao Ihe pode valer nos recursos com que 0 invocad os clamores de todos os afflitos. O Convento de Santo Antonio, adonde prezide 0 so- bredito diabolico Donato, esta de posse de se formarem nelle os conciliabulos para os motins, ¢ rebellides contra Vossa Magestade nas pessoas dos seos Generaes; La no tal Convento se ajustou a depozigad do Governador Francisco de S& Menezes, ¢ se ajustava a minha, contra 0 qual se so- brelevaram os do Maranhad e prenderam em caza ao seo Cappitad mor Balthezar Fernandes de Barros, que em au- sencia sua, por estar no Para, governaya com a cominaréo de que o matariad se sahise fora della, e hum Frade Capu- cho deste mesmo Convento, ¢ désse tempo, Frei Bartholo- meu dos Martyres, vindo prezo para este Reino por ordem de Vossa Magestade como culpado, morréo no mar. Hera ja 9 fogo da sedicad ordida pelo Cappitad mor, e Ouvidor que pegando-se huma noute fogo na caza de Vossa Magestade, pelas duas horas depois da meia nou- {e, empo em que que estava no mais profundo somno me acordou DEOS, para nad queimar-me dentro da mesma Caza, ¢ achando-me so com hum Negro, por estar para partir, como parti dahi a trez horas para o Para, ¢ ter hido INEDITOS: a rh ae parte da minha famillia em os navios, nem tempo livre tive para calgar-me, e descalgo acodi ao fogo, que nascendo da Loges, ja estava em cima ateado no sobrado. Arrisquei-me por entre as chamas a salvar a Caza de Vossa Magestade, com risco tad evidente que ja se supu- nhad as Vigas queimadas, ¢ sem embargo delle entrei na Caza para facilitar ao companheiro, que hera dito Negro, a abrir janellas por onde sahisse fogo, ¢ fumassa, convoquei Soldados da Guarda, e Negros, ¢ com potes de Agoa que langava no mesmo sobrado, tirando-lhe debaixo a materia em que se ateava tive a fortuna de apagar o fogo, ¢ livrar por mim mesmo a Caza de Vossa Magestade. Em 0 caminho me disserad q hum Soldado da parciali- dade do Cappitad mor fora o incendiario, delle Ihe mandei logo ordem, para que o prendesse, ¢ ordenasse ao Ouvidor, devagace 0 Cazo, teve-o prezo quatro dias, ¢ ambos o sol- taram logo avizando me que estava innocente; da brevidade do manifesto inferi o pouco caso que ambos fizeram do ‘successo, € do pasado risco tive fundamento para entender, @ quem desejava depér-me ocazionaria por este _modo matar-me. Como os Navios chegaram antes do meo Succes- sOr, com a noticia da sua vinda, foi tad insultante 0 Ouvi- dor, que me tomou as minhas carias particulares, ¢ as do Governo que eu enviava pelo corréo do Para para o Mara- nhad; testemunhas: Manoel Lopez de Souza, Gregorio de ‘Andrade da Affonseca, o Padre Joseph Vidigal Provincial da Companhia ¢ outros a quem 0 mesmo Ouvidor, depois de ler a5 cartas, mandou abertas; e 0 mesmo Cappitad mor novo, a quem da parte de Vossa Magestade mandou pedir © prego, thas mandou entregar promptam.te ficando com recibo; Consta isto tambem por certidad de hum Clerigo do Maranhad jurada in verbo Sacerdotis. Ultimamente, Senhor, nem ao mesmo Bispo do Para, tem a Camera intruza dos excomungadcs do Maranhad, aquella devida obediéncia, q Vossa Magestade ordena se the tenha as suas dispozigdes, pois vindo 0 dito, prelade pelo Cabbido da Sé oriental, com a nomeacdo de Governador daquelle Bispado, aquela mesma Camera the recreveo huma carta de tanto atrevimento, como consta da copia della, que fago prezente a Vossa Magestade, que he o que tam- bem suponho fara o mesmo Bispo, Nad ha insulencia nem falcidade, q caiba no possivel, quc os sediciosos, com as ref- feridas quatro cabecas, nad ponhad em pratica, nem o dei- xem de ter posto antes no sobredito Conyento de Santo ‘Antonio, adonde fiserad quantidade de papeis contra mim, REVISTA D0 INSTITUTO HiSTORICO E GEOORATICO BRASILEIRO pelos mesmos q queria castigar, por desobediente as Leis de Vossa Magestade que se forad refugiar no Convento de Santo Antonio, até que chegando 0 meo Successor, obras- sem na forma refferida, Requeiro a Vossa Magestade mande hum Ministro de- interessado, a devagar disturbios, q tem occasionado 0 Ouvidor Mathias da Silva e Freitas, e 0 Provedor da Fazen- da Real, Joad Valente da Franca, aquele roubando a fazen- da dos defuntos, ¢ auzentes, ¢ este a de Vossa Magestade, mandando recolher para este Reino a hum e outro, para q esta Deligencia se faca fora da prezenca d’ambos, por que existindo na terra, sucedera com elles 0 mesmo que com outros, que sendo huns Ladroes levad as Rezidencias de huns santos. Requeiro tambem a Vossa Magestade que me dezagra- ve das injurias com que affrontou o meu caracter o Cappi- tad mor que foi do Maranhad Damiad de Basto, o que consta pur hua Devaga, ¢ dous Autos que comigo trago; ¢ por zello do seo Real Servico mande desterrar de todo o Estado do Maranhad 0 diabolico Donato Felipe Delgado, de quem tive noticia ter ja sahido do Convento de Santo Antonio, para o habito de Secular, castigando-o tambem para escarmento de todos quantos delectos ja neste memo- rial faco manifestos. E por que os fagad perante Vossa Magestade menos sofridos as minhas tolerancias, ¢ 0 meo zello, lembro a Vossa Magestade a reprezentagad que Ihe fiz para se aug- mentar a sua Real Fazenda na mudanga que agora foi de- cretada para se fazer a arrematacad do Contracto do Para, naquella mesma Cidade, ¢ nad no Conselho, em que 0 pre- go delle tanto se diminuio; como consta por certid&io q co- migo trago. Expondo mais 0 dezamparo ¢ perdigad em que deixo toda a minha fasenda, q tenho nos Campos do Piauhy Bahia, deixando de recolher-me a esta Cidade por hua ¢ outra parte, por que nad parecesse queria faser esquecida com © beneficio do tempo, a promptissima satisfacad, que logo pertendo dar de todos os encargos de impostura fal- G48, com que 0s inimigos, que pelo servico de Vossa Mages- tade grangiei, me tem accuzado. Parece que a impulsos desta pontualidade se nao prati- cou comigo, o que com todos os Governadores se pratica, ” dezempenho para o tempo to 0 Creado, o homem sem castigo, a justia sem execcu- ad, € Os meos enxovalhos sem mais comtemplagad que a do meo soffrimento. Para Vossa Magestade he que appello, de pois de ter li lo © mesmo recurso para DEOS que Guarde a Real Dessoa de Vossa Magestade, como todos os seos Vassalos, havemos mister. Rib, Nae. Documento a. 133.57 ( sddice ). N. $964 do CEHB.

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