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«A lucerna brilha
Como sabemos, a inveja e o ciúme podem matar, e foi isso que aconteceu com a
jovem mendicante Sundarî, «a Bela», assassinada por monges rivais dos budistas com o
fito de incriminar estes e de os desacreditar aos olhos da população de Sâvatthi, no reino
de Kosala (Udâna IV: 8).
1
Naquela cidade havia, aliás, uma grande concentração de monges errantes, de
brâmanes e de mendicantes, que se empenhavam em debates complexos acerca de
questões que pouco ou nada interessavam ao Buda: a alma e o mundo são eternos, ou
não? O mundo é ilimitado ou não? A alma é igual ou diferente do corpo? A alma e o
mundo são criados por si mesmos, ou não? A desgraça é eterna, ou não? A felicidade, a
desgraça, a alma e o mundo são criados por si, por outro ou surgiram espontaneamente?
O Buda está para além da morte ou não?... As disputas eram tão enérgicas que
conduziam por vezes a agressões violentas, próprias de homens que – relata o Udâna
(VI: 4-5, pp. 133-140) – só conseguiam ver uma parte da verdade:
II
2
Depois, Siddhârta pensou em deixar de comer de todo, mas os deuses
disseram-lhe para não o fazer; e se o fizesse, eles alimentá-lo-iam com a comida
dos deuses, através dos poros da pele. Então, começou a comer cada vez menos
quantidade: «E se comesse apenas um pouco de cada vez, uma só colherada de
sopa de feijão, ou de lentilhas, ou de grão-de-bico, ou de ervilhas? Assim o fiz, e
o meu corpo ficou exangue. (…) Alguns homens ao ver-me diziam: “O asceta
Gautama é negro”; outros diziam: “o asceta Gautama não é negro, mas sim
moreno”; outros ainda: “o asceta Gautama não é negro, nem moreno, é sim
amarelo”. Vê até que ponto, Aggivessana, a cor pura e límpida da minha pele
se desluziu, e tudo isto por causa de eu comer [tão] pouco» (ibid., pp 26-27).
Cada vez mais descrente quanto aos resultados espirituais que resultavam da
opção de dormir sobre colchões de picos, de ingerir as próprias fezes e urina ou de
praticar um jejum tão rigoroso que fazia os ossos salientar-se como «uma fileira de
fusos (…) ou as traves de um velho alpendre», Siddhârta acabaria por ser
abandonado pelos seus companheiros e deixado à beira da estrada, como morto.
Tendo sobrevivido, decidiu criar o seu próprio método.
III
No extremo final dessa semana decisiva, tendo saído do samâdhi (um termo do
Yoga que significa «concentração intensa e prolongamento da mente», com o que
ocorre a supressão dos processos mentais que conduzem ao transe), durante o primeiro
terço da última noite debaixo da árvore, Siddhârta refletiu profundamente sobre a
«Geração Condicionada» (ou «Surgir Dependente»: «patichchasamuppâda») e, com
isso, lançou as bases do seu sistema filosófico. No final do seu transe, o agora já
verdadeiramente «Buda», contemplou o sofrimento do mundo com o seu olhar de
«Iluminado» (ou «Desperto») e concluiu:
3
proclama que o seu ser é a dor.
O mundo é instável,
IV
4
Assim, junto ao monumento sepulcral de Châpala e tendo Mâra e Ânanda
como testemunhas, o Buda anunciou que dentro de três meses entraria em
parinirvâna, ou seja, libertar-se-ia dos «fatores condicionantes da existência», o que fez
com que se tivesse produzido «um grande tremor de terra terrível e horripilante, e
estalaram os tambores celestiais» (Udâna VI: 1, p. 130). Chegada a hora…
De acordo com a informação que nos dá o Sermão n.º 21 (p. 253) do Majjhima
Nikâya, o Buda histórico (Shâkyamuni) exalou o seu último suspiro entre duas árvores
Shorea robusta, de bela flor branca, num bosque à entrada da cidade de Kusinâra, no
território dos Malla (na parte norte do atual Estado de Uttar Pradesh), um lugar que
Siddhârta Gautama visitava regularmente com os seus companheiros. A morte do Buda
terá ocorrido entre 486 e 410 a.C.
5
autodomínio. Por exemplo, logo primeiro capítulo do Udâna (I: 10, p. 47) podemos ler
a seguinte descrição da personalidade do Buda:
(resumo JGM de Sûtra dos Infinitos Significados, Parte I: 7-11, pp. 33-35)
6
profunda e que se difunde até longe,
VI
O cânone pâli
[estas duas primeiras «cestas» devem ter ficado definidas nos dois primeiros
concílios, realizados em Râjagriha (séc. V a.C.) e em Vesâli (386 a 283 a.C.]
1
Segundo Dragonetti/Tola (2000: 38, nt. 93) no cânone pâli, no Dîgha Nikâya (II, pp. 211 e 227),
mencionam-se as oito características ou qualidades próprias de uma voz perfeita: fluida, inteligível, doce,
agradável ao ouvido, inteira, nítida, profunda e ressonante.
7
seus discípulos; existem sermões para todo o tipo de pessoas, com ajustamentos de
linguagem, mas também há debates, por exemplo com jainas, com brâmanes, com
renunciantes, ou com reis que procuram o Buda para polemizar com ele, para obter
conselho, ou para testar a solidez da sua formação. As cinco coleções do Sutta Pitaka
são as seguintes:
VII
- c. 100 a.C. – 100 d.C.: possível início da composição dos primeiros Sûtras da escola
Mahâyâna, os sermões sobre a perfeição do conhecimento/sabedoria
(Prajñapâramitâ). Chegada do Budismo à China.
8
- c. 100-200 d.C.: chegada do Budismo ao Camboja.
- 334-417: vida de Hui Yuan, primeiro patrono chinês da escola da Terra Pura.
- c.500-600: possível origem do budismo tântrico. Chegada do Budismo ao Japão (c. 552,
proveniente da Coreia).
- 538-597: vida de Zhi Yi, fundador da escola Tien Tai («Tendai», em japonês).
- 573-621: vida de Shotoku, um rei que foi decisivo para a fixação do Budismo no Japão.
9
- 742-798: vida de Padmasambhava, fundador da escola do budismo tibetano mais antiga,
a Nyingmapa.
- 1133-1212: vida de Honen [Masiá 2003, p. 110: Hoonen], que fundou a escola Jodo
(Amidismo da terra pura) no Japão.
- 1141-1215: vida de Esai (Masiá 2003: 107: Eizai), fundador da escola Rinzai de Zen.
- 1858-1919: vida de Soen Shaku, que representou o budismo Zen no Parlamento Mundial
das Religiões (Chicago, 1983) e mestre [de?] D. T. Suzuki.
- 1870-1966: vida de D. T. Suzuki que difundiu no Ocidente uma conceção do Zen muito
popular. [será o Suzuki Taisetsu, autor de «Lições de Budismo Zen», de 1960, de
que fala Masiá 2003: 49 ??]
- 1873: grande debate de Panadura (Sri Lanka), entre monges da escola Theravâda e
missionários cristãos. Publicação do texto deste debate.
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- 1897: Anagârika Dharmapâla funda a primeira organização budista no Ocidente: o ramo
americano da Mahâbodhi Society.
- 1904: o alemão Anton Guth (sob o nome Nyanatiloka) torna-se monge theravâda; foi o
segundo monge budista europeu.
- 1959: o XIV Dalai Lama abandona o Tibete e estabelece-se em Dharamsala (na Índia).
- 1967: fundação da Friends of the Western Buddhist Order pelo monge inglês
Shangharakshita.
- c. 1970: o monge japonês Taisen Deshimaru inicia o seu ensinamento do Budismo Zen
pela Europa.
VIII
11
Na sua última noite sentado debaixo da figueira-de-benguela, Siddhârta
Gautama reconstitui o funcionamento da cadeia dos dharmas da forma que o Majjhima
Nikâya reconstitui assim:
«(…) Temos assim, monges, que, tal como vós dizeis, eu o digo também:
“Quando isto é, isto existe, aquilo existe, ao surgir isto, aquilo surge”, quer
dizer: condicionadas pela ignorância [surgem] as composições mentais,
condicionada pelas composições mentais [surge] a consciência, condicionada
pela consciência [surge] o organismo psicofísico, condicionadas pelo organismo
psicofísico [surgem] as seis esferas dos sentidos, condicionado pelas seis esferas
dos sentidos [surge] o contacto, condicionada pelo contacto [surge] a sensação,
condicionado pela sensação [surge] o desejo, condicionado pelo desejo [surge] o
apego, condicionado pelo apego [surge] o chegar-a-ser [a existência],
condicionado por este [surge] o nascer, condicionados pelo nascer [surgem] o
envelhecer, o morrer, a mágoa, o lamento, a dor, a aflição e a atribulação, eis a
origem de todo este montão de sofrimento».
(Majjhima Nikâya Sermão n.º 38, p. 235)
12
ii) composições mentais (samskâra): da ignorância resulta um determinado
perfil de caráter ou estado mental, definido sob o efeito dos «resíduos kármicos» 2
acumulados em vidas anteriores; ou seja, hábitos, fatores e atitudes (por exemplo:
paixão, ódio, confusão mental) adquiridos pelas nossas ações voluntárias,
passadas e presentes.
v) tais «agregados» condicionam», por seu turno, as seis esferas (ou campos)
dos sentidos (shadâyatana): os cinco sentidos físicos tradicionais (visão, audição,
olfato, tato e paladar) e ainda a mente (ideias, pensamentos, impressões ou
representações mentais);
2
Resíduos kármicos (em pâli: «sankhâra»; em sânscrito: «samskâra»): a expressão tem múltiplas aceções
e não é de tradução fácil (atividade, processo, operações mentais do indivíduo, em especial as suas
vontades; os resíduos ou efeitos diferidos do karma, literalmente ‘ato’, ‘ação’; cf. Tola/Dragonetti 1980:
32, nt. 12). Esta expressão conduz à vida anterior do indivíduo, intervindo então o conceito de karma (o
que se faz durante uma vida tem efeitos na seguinte, o que liga o passado e o futuro entre si: todo o ato
amadurece numa existência posterior.
13
condicionadas pela ofuscação (moha, que decorre de uma perceção distorcida da
realidade);
viii) é assim que nasce o desejo (trishnâ): não só de prazeres não controlados
dos sentidos (sexo; gula; ver, ouvir, tocar e contemplar mentalmente: recordo que
a mente também é um sentido!), mas também de sucesso, de ambição de estar
junto daquilo que é agradável, de existência ou mesmo, no limite, de não-
existência3…
ix) em íntima conexão com as sensações (em especial com a avidez e o ódio) e
com o desejo estão os apegos (upâdâna) ou afeições (que podem ser do corpo, da
palavra ou da mente). Os apegos são uma amplificação do desejo e assumem
formas diversas: apego da forma material, da sensação, da perceção, das
composições mentais, da consciência...
3
É interessante reter uma passagem do Sûtra da transmigração da existência (3: p. 32), onde se pergunta:
existe a super-mulher com que se sonhou? Não! É sensato desejá-la? Não: isso só conduz ao sofrimento,
pois ela não existe… Da mesma forma, o homem comum não deve desejar nem apegar-se às formas
nascidas da paixão, da aversão e da confusão mental (Tola/Dragonetti 1980: 32).
14
Veja-se a conclusão do Sûtra de Shâlistamba sobre o Surgir Condicionado e os
seus doze braços:
15
estão apegados ao seu apego a eles,
IX
Trata-se de uma questão delicada, uma vez que pode facilmente colocar-se a
seguinte questão: se no Budismo não existe um «eu», como se concilia isso com o
princípio do karma e da reencarnação, herdado do Hinduísmo? O que é que passa de
nós, de uma vida para outra? A melhor resposta é a que se encontra num passo do Sûtra
da Transmigração da Existência, explicado por Fernando Tola e Cármen Dragonetti:
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«O “rio da consciência (vijñâsrotas)”, ou seja, a série-de-consciências
que constituem o indivíduo, não se detém com a morte, se o indivíduo
que falece tiver realizado atos que têm como consequência uma nova
“reencarnação”.
4
Sûtra da transmigração da existência 7, p. 33. Tola/Dragonetti 1980: 27-28.
17
X
18
Uma luminosa desmontagem didática da doutrina das Quatro Nobres Verdades
deve-se a Juan Masiá (2003: 82-85):
a) a Primeira Verdade diz-nos que há algo que não funciona bem nesta humanidade,
que tropeça com o sofrimento e com a falta de felicidade por todo o lado. Não devemos
dissimular o lado obscuro da realidade; este é o primeiro passo para nos desenganarmos e
libertarmos. Estamos como que amarrados à roda do devir por causa do nosso apego ao «eu», o
que nos impede de dar conta da transitoriedade e relatividade de tudo. Em linguagem médica,
diríamos que esta verdade inicial corresponde ao reconhecimento dos sintomas da doença;
b) a Segunda Verdade indica que a cada qual toca uma certa parte na acumulação do
sofrimento que há no mundo. Todo o mal se liga de algum modo às raízes do mal que existem
em cada pessoa. As sementes de ódio presentes dentro de nós têm algo que ver com a crueldade
dos terroristas. Tudo tem que ver com tudo. Isto está na origem dos conceitos de karma, de
sãsâra e de dukkha. Nesta Segunda Verdade temos, portanto, a identificação da etiologia ou
causa da doença;
c) na Terceira Verdade surge uma visão mais otimista, que mostra a luz que pode
permitir a nossa saída do túnel onde as duas verdades anteriores nos tinham metido. Aqui,
mergulhamos ainda mais fundo dentro de nós, até ao nosso melhor fundo, «ali onde somos
infinitamente melhores do que julgamos» (p. 83). Podemos recuperar a paz, a alegria, a
tranquilidade, mediante a reorientação do desejo; temos a possibilidade e a capacidade para
renascer. «Quando ajo de modo sensato, reorientando o desejo, dá-se o nirvana nesta vida,
descubro e realizo o divino em mim. (…) Há no nosso interior um poder de nos libertarmos que
nos ultrapassa» (p. 84). Medicamente falando, temos aqui como que uma pronúncia de
diagnóstico favorável.
d) por fim, a Quarta Verdade recorda-nos que o nirvâna e o que ele significa não se
alcançam da noite para o dia: há um longo caminho a percorrer, composto por oito braços.
Consegui-lo, exige que sejamos capazes de sair de nós, isto é, de percorrer «um caminho de
terapia, iluminação e praxis que nos liberta. É um caminho de sair de si duplamente: na
contemplação, que dá lucidez, e na compaixão, que nos faz sair em direcção ao outro de modo
libertador» (p. 85). Numa palavra apenas, a terapêutica.
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É muito curioso verificar que, na doutrina das Quatro Nobres Verdades, o Buda
é implicitamente comparado a um médico (Majjhima Nikâya, n.º 36, pp. 20-32). Não
estranhemos, pois, que, num texto publicado em 1990, o XIV (e atual) Dalai Lama
tenha escrito que «o sofrimento é como uma doença curável». Porém, não basta não
querer sofrer (isso seria apenas mais um desejo!); é preciso arrancar os apegos pela raiz
(tal como se faz com os ramos de uma palmeira, que não crescem outra vez), libertar-se
da ilusão do fugaz. Para tanto, há que aceitar a doença e, depois, tratar-se:
(XIV Dalai Lama, The Dalai Lama at Harvard, 1990 (cit. Vélez de Cea 2000:
82-83)
20
Porém, depois de ter explicado em detalhe e de forma bem colorida e impressiva
a sua doutrina sobre a iluminação, sobre os sentidos, sobre as amarras que prendem os
homens ao ciclo do sãsâra e sobre a importância de superar o material e o sensorial, os
monges acabaram por se render:
Abraham Vélez de Cea (2000: 33-34) chama ainda a atenção para cinco aspetos
da Primeira Verdade que passam por vezes despercebidos:
2.º- a Primeira Verdade joga com a Terceira, ou seja, o Buda denuncia o mal
mas também afirma que este tem cura, que é possível travar o ciclo impiedoso dos
renascimentos, purificando a mente com boas ações e ausência de mal.
3.º - Siddhârta Gautama apenas difundiu a sua doutrina depois de ter alcançado o
nirvâna, circunstância que pressupõe a existência da suprema felicidade.
4.º - nos seus sermões, percebe-se que o Buda entende que o grau de sofrimento
é variável e que não é permanente, dependendo das pessoas e das circunstâncias do
momento. Por fim, o Budismo admite que existem diversos tipos de prazeres e de
felicidade dentro do sãsâra, quer dizer, «o ser humano não está sempre a sofrer, no
sentido literal da palavra»!
21
«É um facto natural da vida que cada um de nós tem um desejo
inato de ansiar pela felicidade e de superar o sofrimento»; essa aspiração
configura o nosso estado natural de ser e a pergunta é como é que
devemos proceder para conseguir realizá-la? As Quatro Nobres Verdades
oferecem um entendimento da relação entre causas e efeitos, entre
sofrimento e felicidade; há causas que produzem sofrimento e outras que
produzem felicidade. Ao mostrar como podemos distingui-las nas nossas
próprias vidas, as ensinanças «pretendem nada menos do que concretizar
a nossa aspiração mais profunda: ser felizes e superar o sofrimento».
(XIV Dalai Lama, The Fourth Noble Truths, 1998, cit. por Vélez de Cea 2000: 80-81).
XI
«Não se deixar arrastar pelo que nos centra obcecadamente no próprio eu;
libertar-se da avidez avarenta, da agressividade, da violência, da malevolência e
de tudo quanto distorce a relação com os outros tal como são. Libertar-se do
22
modo de pensar dominador e manipulador, tornar-se receptivo para com a
realidade e deixar que seja pensada tal qual é».
«Evitar os exageros, tanto por excesso como por defeito, com os quais
desfiguramos a realidade. Evitar injúrias, mentiras, linguagens duplas e enganos
dissimulados; superar com linguagem amável os males da língua»
«Tanto o luxo como a miséria formam parte dos exageros a evitar; também
aqui se recomenda a via do meio, que se contenta vivendo sensatamente com o
que tem».
23
«Em vez de perdermos o momento presente, fugindo para o passado e para o
futuro, prestar atenção para estar no que se está; em vez de nos dispersarmos aqui
e ali com mil coisas, detemo-nos no único necessário; tanto ao olhar o mundo
como ao olhar-se a si mesmo, tanto ao imaginar como ao recordar, atendemos ao
essencial que está para lá do superficial».
«Não deixar seduzir-se pelas distracções que nos afastam do caminho; não
extraviar-se nem perder de vista o essencial: deixar-se iluminar».
24
que remata nas últimas três etapas do Caminho, centradas na importância da
meditação. Trata-se aqui de aprimorar e purificar a mente, de renunciar aos
estados malévolos, desviando os maus pensamentos e fomentando o desprezo
pelo mundano e a contemplação.
Muitas das prescrições do Caminho dos Oito Vias e dos seus três grandes grupos
são de extrema atualidade, enquanto outras acusam mais a usura do tempo. É
interessante evocar a reformulação moderna proposta por Thich Nhat Hanh (um
monge budista, pacifista, escritor e poeta vietnamita, n. 1926), no sentido da construção
de uma ética budista criativa, empenhada e moderna. A proposta inclui 14 aspetos:
iv) não evites o contacto com o sofrimento, nem feches os olhos perante ele;
25
viii) não pronuncies palavras que possam criar discórdia e causar a rotura da
comunidade;
xi) não ganhes a vida por meio de uma profissão que seja prejudicial aos seres
humanos e à natureza;
(Thich Nhat Hanh, Interbeing: Fourteen Guidelines for engaged Buddhism, 1997,
citado por Vélez de Céa 2000: 83-85).
26
prejudicial, a cobiça é prejudicial, a malevolência é prejudicial, a opinião
incorreta é prejudicial. A isto, amigos, se chama o prejudicial. (…) Qual
é, amigos, a raiz do prejudicial? A avidez é a raiz do prejudicial, o ódio
é a raiz do prejudicial, a ofuscação é a raiz do prejudicial». (Majjhima
Nikâya, n.º 9, p. 188).
XII
Sobre o Nirvâna
27
A mesma fonte explica-nos, noutra passagem, que o nirvâna é difícil de
entender porque não é uma tarefa simples reconhecer a verdade:
a cessação, o nirvâna.
alcançou o nirvâna:
Venceu Mâra,
ganhou a batalha
Um outro aspeto relevante tem que ver com aquilo que acontece a quem
acabou de alcançar o nirvâna. Trata-se de matéria que o Budismo deixa muito em
aberto: chegado ali, perde-se o rasto do homem, destroem-se os caminhos da linguagem
que conduziam até ele. O Udâna exprime simbolicamente esta ideia, ao dizer que,
quando o venerável Dhabba entrou no Nirvâna supremo e sem retorno, o seu corpo foi
consumido e não ficaram dele «nem cinzas nem pó de cinzas» (Udâna VIII: 10, p. 174).
Assim sendo, o homem não pode levar nada consigo para o nirvâna: tudo
acaba ao deixar-se a realidade contingente e ao entrar-se na realidade transcendente e
heterogénea do inefável. No estado mais avançado do transe ióguico regista-se o fim das
sensações, das perceções, dos sentimentos, do intelecto e da vontade (é como que um
«nirvâna transitório»); a partir daqui, o desafio consiste em alcançar o nirvâna
supremo, em que «a consciência chegou ao fim» (Udâna VIII: 9, pp. 173-174).
29
Aqueles dois autores recordam também que existem grandes parecenças entre
o Absoluto upanixádico (Brahman) e o Absoluto budista (Nirvâna), os quais são
objeto de descrições muito parecidas. Todavia, assinalam uma diferença essencial:
30
partes e a todos como a si mesmo. Vive irradiando todo o mundo com a
mente plena de compaixão, de alegria partilhada, com a mente equânime,
magnânima, elevada e incomensurável, sem ódio nem malevolência»
(Majjhima Nikâya, n.º 55, p. 111).
Ora, não é fácil, no mundo moderno e tão possessivo em que vivemos, imaginar
e aceitar um conceito destes. Alguns dos episódios da vida do Buda e dos seus
companheiros que melhor ilustram a ideia de equanimidade não deixam até de nos
suscitar algum arrepio. Por exemplo, no Udâna surge a história de um «samán»
(monge errante) chamado Sangâmaji, que não ligou nada à visita que a sua ex-
exposa e o seu filho pequeno lhe fizeram, no local onde estava acampada a
comunidade de bikkhus. Apesar de a mulher ter pedido três vezes para ele lhes dar de
comer, «o venerável Sangâmaji nem olhou para a criança, nem sequer falou com ela»;
as visitas acabaram, pois, por se ir embora. Na ocasião o Bhagavant (isto é, Siddhârta
Gautama) observou à distância, consolado, e proferiu então o seguinte udâna:
eu chamo bráhman
31
Um episódio de significado semelhante pode ler-se um pouco mais adiante, na
mesma fonte. Uma personagem chamada Visâkhâ procura o Buda após a morte da neta
e do banho ritual. Durante a conversa, Buda pergunta-lhe se gostaria de ter muitos filhos
e netos? Sim, gostaria muito, responde o interlocutor do Tathâgata. Este último recorda
então que, em Sâvatthi, morre muita gente diariamente. Por isso, Visâkhâ teria de sofrer
muito com a morte de familiares! Ou seja, só quem não tem nada de querido não tem
sofrimento; está livre de dor, de paixão e de preocupação:
de múltiplas formas
nada de querido.
5
Udâna, VIII: 1-4, pp. 157-159. A Terra simboliza a solidez ; o ar representa a vibração; o fogo evoca a
radiação, e a água a fluidez (Solé-Leris/Vélez de Cea 2015: 120, nt. 195).
32
Conclui Juan Masiá, não devemos conceber o nirvâna como «uma mera
extinção, o cessar do carrocel da cadeia causal ou o simples desaparecimento do
sofrimento ao extinguir-se um desejo, facilmente confundível com
imperturbabilidades estóicas. O nirvâna conota algo de muito mais positivo: beatitude,
paz, libertação, segurança, tranquilidade, profundidade, lucidez. Tudo isto tem as suas
raízes dentro de nós mesmos» (Masiá 2003: 84). Este ponto é crucial, precisamente
porque acentua que «o nirvâna, o paraíso ou a vida eterna não são algo para depois da
morte, após a passagem para “a outra margem”. Estão já aqui entre nós e dentro de nós.
O que se passa é que nós não damos conta, não tomamos consciência disso. É como
uma paisagem alpina oculta pela névoa. Ao dissipar-se a névoa, descobre-se a
maravilha que era o lugar em que já estávamos antes» (Masiá 2003: 237).
Realce-se, por fim, que o Budismo admite ser possível uma vida feliz e lúcida
neste mundo (já!) para quem se libertou. Tudo depende do nosso esforço. Não
6
Nâgârjuna, citado por Vélez de Cea 2000: 76-79 (Texto n.º 9).
33
esqueçamos também que à bodhi (iluminação) e ao nirvâna sucede o nirvâna
supremo e definitivo, isto é, o parinirvâna. No Udâna (VIII: 9, pp. 173-174)
encontramos a história do venerável Dhabba (do clã dos Mallas), que visitou o Buda e
lhe anunciou o seu parinirvâna; dito isto, elevou-se no ar em postura pallanka (ióguica),
penetrou na esfera do calor e, depois de sair dela, no parinirvâna. O sermão afirma que
não apareceram cinzas, nem pó de cinzas do seu corpo que se tinha queimado e
consumido (tal como se se tivesse queimado e consumido um pouco de manteiga ou
azeite):
os samskâras cessaram;
XIII
Uma tradição é, de certo modo, filha da outra (ou, pelo menos, do respetivo
contexto cultural e mental). Todavia:
34
c) no Budismo, não vale a pena sacrificar aos deuses, pois estes não são
responsáveis nem pela criação, nem pelo estado do mundo;
Para o Buda, a tradição védica explicativa das quatro castas não tem
qualquer fundamento7: elas não são a expressão da ordem cósmica, mas
antes um produto histórico-cultural, baseado em convenções sociais. Os
7
O Udâna mostra como Siddhârta era contra as castas, e como os brâmanes não gozavam de simpatia
entre os budistas: tinham uma conduta mesquinha e tratavam os monges de forma rude e altiva (VII: 9, p.
154; e III: 6, pp. 76-77). O verdadeiro brâmane era aquele que revelava ter superioridade moral, e não um
nascimento superior
35
Vedas não refletem a lei do cosmo, não são revelados e os sábios que os
compuseram não estavam iluminados! Todas as pessoas têm as mesmas
obrigações morais e não faz sentido falar de deveres específicos de cada
casta; quem age mal, acaba mal; quem age bem, tem um bom destino;
«todos os membros das quatro castas são capazes de tomar uma esponja e
sabão, ir ao rio e limpar a sujidade e o suor» (Majjhima Nikâya, n.º 93, p.
352); o que diferencia as pessoas é a pureza, e não a casta; a riqueza de
cada um resulta da Ensinança e da Disciplina, e não da casta.
36
j) o Buda afirma a superioridade da Ensinança sobre a dos outros
mestres e acrescenta o conceito de «apego» às doutrinas sobre o «eu».
Uma nota distintiva consiste em ensinar o desapego relativamente às
doutrinas do «eu», seja este universal ou individual. O meio para induzir o
dito desapego é a doutrina do «não eu» (anattâ») (Sermão n.º 11 do
Majjhima Nikâya, p. 412).
A bússola dos Budistas, a sua «jóia tripla da devoção» (Masiá 2018: 21) é a
chamada «fórmula de refúgio», que se pode ler, por exemplo, no final do Sermão n.º
107 do Majjhima Nikâya, em que Moggalâna declara:
Pouco antes, Moggalâna dissera, em nome do muito que devia ao seu guru:
XIV
Os bodhissatvas
37
seres humanos a alcançarem, também eles, a libertação do sofrimento. Como escreveu
Nikkyô Niwanno, «a salvação isolada não é verdadeira salvação».
38
iv) purificar todas as etapas, de maneira a gerar o estado mental que aspira à
Iluminação;
ix) praticar todos os modos de conduta dos bodhisattvas e fazer com que os
seus esforços não sejam inúteis;
XV
A decisão de «trocar a vida num lar» (isto é, em família) pela «vida sem lar» (tal
como é próprio dos renunciantes) corresponde ao momento radical em que se abraça uma
nova forma de existência física e espiritual. Na Índia do tempo de Siddhârta Gautama, o
ascetismo errante configurava a instituição religiosa por excelência.
39
da princesa Yashodhâra) e de Upâli, o ativo barbeiro que era, também, o melhor
conhecedor dos preceitos da disciplina monacal transmitida oralmente).
No seu discurso, o Buda lembrou aos chefes de família presentes que existem cinco
males para o «homem imoral», em consequência de se ter afastado da disciplina moral:
i) perda de fortuna;
ii) má reputação;
iii) timidez e desorientação (em qualquer grupo em que se integre);
iv) morrer cheio de inquietações;
v) renascimento no inferno, como castigo.
Pelo contrário, há cinco grandes riquezas a que o «homem moral» consegue aceder:
i) fortuna;
40
O quotidiano das primeiras gerações de monges budistas é fácil de reconstituir, a
partir das fontes disponíveis: saíam de manhã com os seus mantos e tigelas de madeira em
busca de esmola; descansavam durante as horas de calor e dedicavam as suas horas livres a
conversar acerca da Doutrina. Mas, algumas vezes, discutiam temas demasiado frívolos,
coisa que o Buda não apreciava:
Em Udâna III: 3 (pp. 71-74), o Buda manda embora 500 monges que
o tinham vindo visitar, mas que eram muito barulhentos; tiveram de ir
acampar para outro sítio.
Em Udâna II: 2 (pp. 52-53), III: 8 (pp. 79-81) e III: 9 (pp. 81-83), os
bikkhus discutem apaixonadamente vários temas: qual dos reis é mais
poderoso (o de Mâgadha, ou o de Kosala)? Qual a melhor das técnicas ou
artes (a esgrima, a dos gestos, a aritmética, o cálculo, a poesia, a dialética, ou
a agricultura?). O raspanete do Buda não engana:
liberto de tudo,
vive solitário,
Quanto às orações, marcam lugar nas escolas que se centram no esforço meditativo
pessoal do adepto, mas não alcançam a mesma relevância que têm, por exemplo, na escola
da Terra Pura (amplamente desenvolvida na China), onde a simples recitação de uma
oração dedicada a um Buda (Amida) conduz ao despertar graças à ação compassiva desse
ser sobrenatural. Em síntese: «num caso, o esforço rumo ao despertar recai no adepto; no
outro, o adepto imagina que, graças à mera devoção, será o Buda quem o há-de salvar»
(Díez de Velasco 2008: 158).
O trânsito da «vida com lar» para a «vida errante» não era, decerto, coisa fácil.
E nem todos os que experimentavam esta mudança se davam bem com ela, ou a levavam a
sério. O Udâna recorda muitos episódios em que os monges, não apenas se envolvem em
conversas inoportunas, como travam também rixas entre si (como sucedeu em Kosambi,
segundo relata o Sermão n.º 128 do Majjhima Nikâya:
42
«Os deuses invejam o bhikkhu
se não sente apego pelo elogio e pela fama» (Udâna III: 8, pp. 79-81)
A acreditar nos seus discípulos, o Buda dava o exemplo: recolhia a sua esmola em
cidades como Sâvatthi, «afável, inspirando confiança, com os seus sentidos acalmados,
com a sua mente serena, tendo alcançado a mais perfeita calma e autocontrolo, um elefante
domado, alerta, com os seus sentidos subjugados» (Udâna I: 10, p. 47).
O exemplo do Buda era decisivo para evitar as «tentações» e ciladas que Mâra
(«o Maligno», «o Tenebroso», inimigo do homem e do seu caminho) armava aos incautos,
recorrendo a um «exército» de vícios e de prazeres. Enquanto senhor da sensualidade, Mâra
era capaz de gerar o desejo e o apego que amarravam o homem à existência (e, portanto, à
doença, velhice e morte). O Buda tinha de fazer perceber aos seus bikkhus que a felicidade
que resulta do gozo dos prazeres sensoriais não é a mais importante de todas:
XVI
43
aos textos utilizados para a confissão dos bikkhus e que podemos, de maneira simplificada,
comparar com uma regra monástica. O Majjhima Nikâya constitui uma fonte estupenda e
muito abrangente para a reconstituição dos preceitos da vida daqueles homens (e, a partir
de certa altura, também mulheres) que «deram o passo» e optaram por entrar «na forma de
vida e disciplina dos monges». Aqui recordo as passagens principais do Sermão n.º 27,
relativas a esta matéria:
«Não é fácil, vivendo num lugar, praticar a vida de santidade na sua máxima
integridade e completamente pura até ao final, brilhante como a madre-pérola. E
se eu cortasse o cabelo e a barba, vestisse o hábito alaranjado e deixasse o
lugar para ir para a vida sem um lar fixo? (…) E ao cabo de pouco tempo,
tendo-se desprendido de todos os seus bens, sejam muitos ou poucos, tendo
cortado o cabelo e a barba e vestido o hábito cor de laranja, dá o passo da vida
num lar para a vida sem lar fixo. (…) O asceta que assim deu o passo, entra na
forma de vida e de disciplina dos monges [a saber]:
44
Ensinança e da Disciplina, no tempo devido, diz palavras dignas de serem
entesouradas, razoáveis, moderadas e benéficas.
Abstém-se de estragar sementes ou plantas vivas. Come uma só vez ao dia, não
se alimenta a desoras, nem de noite. Abstém-se de bailes, de cânticos, de
músicas e de espetáculos frívolos. Abstém-se do uso de grinaldas, perfumes e
cosméticos, assim como de jóias e outros adornos pessoais. Abstém-se do uso
de camas, altas ou largas. Não aceita ouro nem prata. Não aceita grão sem
cozer, nem carne crua. Não aceita mulheres, sejam elas velhas ou novas; não
aceita escravos nem escravas, nem cabras, nem ovelhas, nem veados, nem aves
de curral, nem gado, cavalos ou elefantes, nem campos ou terrenos.
8
O Udâna (II: 2, p. 54) reforça esta ideia nuclear: «Todos os seres desejam a sua própria felicidade. /
Aquele que buscando a sua própria felicidade / lhes causa dano com violência, / aquele não alcança a sua
felicidade depois da morte (…)».
45
Dotado deste Nobre conjunto de virtudes, dotado deste Nobre controlo das
faculdades e dotado desta Nobre atenção e lucidez, instala-se num lugar de
residência isolado, um bosque, o sopé de uma árvore, uma colina, um
barranco, uma gruta na montanha, um cemitério, uma selva, uma planície,
um monte de palha. Quando regressa de recolher a comida que lhe oferecem,
após ter comido, senta-se com as pernas cruzadas e, tendo cruzado as pernas,
endireita o seu corpo e foca a atenção em torno da boca». [é a chamada «postura
pallanka»].
9
Majjhima Nikâya, n.º 27, pp. 284-286. Para o último aspeto referenciado, veja-se também o Sermão n.º
38, p. 240.
46
Em relação à presença de mulheres na comunidade budista, Siddhârta Gautama
hesitou muito em fundar a primeira ordem monástica feminina, et pour cause… Tal como
observaram Solé-Leris e Vélez de Cea (2015: 72, nt. 112), «não esqueçamos que a cultura
indiana tradicional, assim como a quase totalidade das culturas, são ou foram machistas.
Isto explica por que razão, tradicionalmente, a comunidade monástica feminina tinha
mais preceitos do que a masculina e se subordinava a ela». Terá sido Mahâjâpatî (a
cunhada e 2.ª mulher de Siddhârta), com a ajuda de Ânanda, a convencer o Buda a admitir
mulheres na congregação, tendo sido ela própria a primeira a ser recebida como monja.
E a alimentação dos monges? O Buda não era vegetariano e, para se ser budista,
não é condição necessária ser-se vegetariano. O que o Buda refuta é o sacrifício de animais
em qualquer tipo de cerimonial, incluindo no rito de oferecer comida aos monges (ainda
praticado em muitos países budistas).
«Jîvaka [médico pessoal do Buda], eu digo que há três casos em que não
se deve comer carne: quando se sabe, quando se diz ou quando se suspeita
[que o animal foi sacrificado especialmente para aquela ocasião]. (…)
entretanto, há três casos em que se pode comer carne: quando não se sabe,
quando não se diz ou quando não se suspeita [que o animal foi sacrificado
especialmente para aquela ocasião]”». (Majjhima Nikâya, n.º 55, p. 109)
47
«Monges, eu como uma vez ao dia, e graças a isso, monges, estou livre
de doenças e de achaques, estou são e forte, e vivo aprazivelmente. Vinde,
monges, comei uma vez por dia e, graças a isso, monges, estareis livres de
enfermidades e de achaques, saudáveis, fortes e vivereis com prazer»
(Majjhima Nikâya, n.º 21, p. 252).
XVII
49
búfalo, de veado ou de macaco (…), se a flecha tem a ponta em forma de
úngula, ou se a ponta é curva, dentada, em forma de dente de bezerro ou
feita de adelfa [arbusto venenoso]”. Esse homem, Mâlunkyâputta, morreria
antes de conseguir inteirar-se de tudo isso» (Majjhima Nikâya, n.º 63, p.
344)!
A Siddhârta apenas interessa o que possa ser útil para a resolução do dilema
da infelicidade humana. Tudo o mais é dispensável, ou mesmo contraproducente:
Mas quererá isto dizer que o Budismo nega a existência de seres sobrenaturais,
como os deuses? Não parece que assim seja. Num outro sermão do Majjhima Nikâya pode
até ler-se: «Acaso existem deuses, mestre Gautama? Bhâradvâja, é um facto conhecido por
mim que existem deuses» (Majjhima Nikâya, II. 212). Portanto, o Budismo não é uma
religião não-teísta ou ateia, não nega a existência dos deuses e, como vimos, aceita os do
Hinduísmo, quer os grandes deuses como Indra, Bramá ou Yama, quer as divindades
inferiores, como yakshas, gandharvas, nâgas e apsaras (vide o capítulo anterior).
Todavia, o Budismo atribui a esses deuses um papel muito secundário: eles não
criaram o mundo, não podem modificar a ordem cósmica, nem conceder ao homem uma
reencarnação boa ou má, muito menos o bem supremo (o nirvâna). Tal como os homens,
50
os deuses do Budismo estão sujeitos ao sãsâra; nasceram como deuses em resultado das
suas obras, e deixarão de o ser quando terminar o mérito acumulado por elas.
Qualquer um pode renascer como deus, se tiver méritos suficientes para tal. Esta é
que é a distinção principal a reter; em vez de eliminar os deuses, Siddhârta Gautama
rejeitou pacificamente a ideia de deus(es) personalizado(s), isto é, limitadores,
autoritários e omnividentes, que considerava constituírem um entrave à iluminação; os
textos em pâli nem sequer referem o «brahman»! O Budismo integrou nas suas crenças
os deuses védicos e bramânicos, mas outorgando-lhes um estatuto inferior.
Claro que o contraste de perspetivas tem muito que ver com a própria conceção
que Cristianismo e Budismo têm de «Deus». Não se pode, por exemplo, comparar a
transcendência do Deus abraâmico com a de um Buda ou Tathâgata (o «Assim-sempre-
presente»). Aliás, existem textos budistas que claramente rejeitam a ideia de um deus visto
51
como supremo criador e senhor do universo. O Budismo concebe é os deuses de uma outra
forma (inaceitável para os monoteísmos);
mostrar que cada um, pelas suas ações, é responsável pelo mal de que
sofre; como se pode ler no Dhammapada 165: «É cada um de nós quem
pratica o mal, é cada um de nós quem se corrompe, é cada um de nós que
deixa de fazer o mal, é cada um de nós quem se purifica; pureza e corrupção
existem em resultado de nós mesmos, ninguém pode purificar outra pessoa».
induzir o esforço individual para erradicar esse mal: «O esforço tem de ser
feito por vós mesmos, os Tathâgatas apenas indicam o caminho»
(Dhammapada 276)10.
10
Dhammapada citado por Vélez de Cea 2000: 61-62.
52
XVIII
As Escolas
53
Fase 3: Budismo Mahâyâna (vulgarmente designado por «Grande Veículo»), a
partir do séc. I d.C.. Neste período, surgem as diversas seitas mahâyânistas, que
apresentam diferenças relevantes em relação ao Hînayâna. Podem referenciar-se
duas escolas principais: a dos Mâdhyamikas e a dos Yogâchâras. Quanto a
literatura própria, temos diversos Sûtras tardios (mas atribuídos ao Buda!) e
alguns Shâstras e Comentários (penso em tratados de grandes mestres como
Nâgârjuna, Âryadeva ou Maitreya).
Ora, era justamente esta segunda doutrina que permitia autenticar os escritos
novos, que reclamavam traduzir as palavras certas de Buda e que justificavam novos
pontos de vista! Assim, se os escritos antigos já de si eram numerosos, o Mahâyâna
multiplicou os textos sagrados; desse modo, «o budismo, mais do que uma religião do
livro, poderia ser chamado de religião da biblioteca» (Diéz de Velasco 2008: 157)!
54
Mas o Budismo também foi uma religião do poder, que construiu sistemas
hierocráticos elaborados, como por exemplo aquele que governou o Tibete até à
invasão chinesa de 1950. É interessante isto, tanto mais que a escola budista que mais
influência tem hoje no mundo ocidental é precisamente a Mahâyâna, em especial
através do Zen japonês e da tradição tibetana do Dalai Lama. Lembro que a escola
mahâyânista constitui também a versão do Budismo que inscreveu como ponto de honra
no seu código genético a ideia da libertação de TODOS os seres humanos; nesse
sentido, foi no seio do Budismo Mahâyâna que se consolidou a figura do bodhisattva.
Deve ainda notar-se que a escola Mahâyâna reverencia o Buda histórico (Shâkyamuni),
mas fala também de um Buda eterno, usando para o efeito expressões que lembram aos
ocidentais um Absoluto que, ainda que não se afirme teisticamente como pessoa, está
envolto numa certa aura pessoal.
XIX
Grande parte da síntese apresentada até aqui foi construída com base no cânone
pâli do Budismo Theravâda. Trata-se, agora, de perceber quais foram as nuances
55
introduzidas pela outra grande escola (Mâhâyana), surgida nos inícios da era cristã,
no NW da Índia.
56
permanente e eterna, todavia reconhecia a presença de dharmas transitórios mas reais
(cf. a escola Theravâda: os dharmas são fugazes e instantâneos, mas efetivos e
objetivos). Esta conceção da instantaneidade dos dharmas foi justamente o ponto de
partida para a doutrina Mahâyâna do «vazio».
57
(entende que não basta refutar os outros!) e funda a subescola Svâtantrika (com
argumentos e conceções próprios, mais lógicos do que metafísicos).
XX
Por volta do ano 500 d.C. (na datação convencional: entre 470 e 573 d.C.)
surgiu na China aquele que foi considerado o 28.º sucessor («hassu») em linha do Buda
histórico Shâkyamuni e o primeiro patriarca chinês do Budismo Ch’an (em japonês, por
equivalência fonética: Zen). Falo de Bodhidharma, que, de acordo com a tradição, se
manteve durante nove anos imóvel, virado para uma parede. Mais tarde, juntou-se-lhe
um discípulo chamado Hui-k’o, que veio a tornar-se o 2.º patriarca do Ch’an / Zen).
58
múltiplo» (Masiá 2003: 106-107). Eram quatro as regras e ideias chave preconizadas
por Bodhidharma para se atingir a Iluminação:
Foi a escola do Zen que mais se destacou, inicialmente pela mão de um monge
chamado Eisai (1141-1215), que viveu na China entre 1187 e 1191. Aí conheceu e
praticou o Budismo Ch’an e, no regresso, beneficiando da proteção do Xogunado,
fundou a escola de Rinzai, edificando templos em Kamakura e em Quioto e lançando,
com tudo isso, as bases do Zen no Japão. A escola de Rinzai recorria a um método que
fez história, com recurso a perguntas e respostas desconcertantes, a narrativas de antigos
mestres e a problemas sem solução, todo este conjunto de técnicas visando suscitar a
Iluminação dos discípulos (Masiá 2003: 117).
59
primeira linha uma citação de Siddhârta Gautama que Juan Masiá traduz desta forma:
«A mente no passado, a mente no presente, a mente no futuro, inalcançável sempre»;
como o erudito jesuíta reconhece, também se poderia traduzir a mesma linha
acrescentando uma paráfrase (na esteira do grande comentarista japonês K. Tamaki):
«Concentra-te em aprender com todo o corpo. Desvelar-se-te-á o enigma inapreensível
da mente, o segredo da vida, o Dharma». (Masiá 2003: 102).
agora transmitiu-se
o dharma de não-dharma.
Será que alguma vez houve dharmas?» (cit. por Masiá 2003: 10).
60
racional, e, portanto, tão pouco atreita a lidar com estes enigmas, que visam quebrar o
circuito da lógica.
61
e amplo é o raio dos seus raios de luz, mas cabe toda numa gota de água.
A Lua toda e o céu todo estão reflectidos em cada gota de orvalho. Não
pôr obstáculo à iluminação é deixar-se, sem mais, ser reflexo, do mesmo
modo que a gota de orvalho não impede que nela se reflictam céu e Lua»
(Dogen, Shooboogenzoo, citado por Masiá 2003: 108).
62
do Zen ao serviço dos governantes chineses (que não o proíbem, apesar de no século IX
proscreverem outras religiões), ou ao serviço da multinacional actual que envia os seus
empregados a um templo por uns dias para que, tranquilizando-se, rendam mais» (Masiá
2003: 109)…
XXI
63
assegurou que o Budismo Tibetano se desenvolveria segundo os princípios indianos (e
não chineses).
A influência de Atîsha sobreviveu até aos dias de hoje. Durante os nove séculos
que se seguiram à sua morte, o Budismo tibetano desenvolveu uma identidade
11
Segundo John Bowker (2005: 64), o Lojong implica meditação e a ideia de que, numa encarnação
anterior, cada um de nós foi mãe de si próprio.
64
própria. Pode ter assimilado algo da tradição nativa Bön, sim, mas parece dever muito
mais ao Vajrayâna indiano.
Como se pode ver pelas biografias dos Dalai Lama e dos Panchen Lama 12, o
Tibete pagou pelo seu próprio imperialismo pré-budista, através de ciclos
implacáveis de invasões, quer mongólicas, quer chinesas. Acabou por manter a sua
independência e a sua religião incólumes até à anexação pela China, em 1950, e à
condução ao exílio na Índia, nove anos mais tarde, do XIV.º e atual Dalai Lama.
65
padroeiro. Numa troca solene envolvendo o Lago Kokonor, em 1578, Altan Khan da
Mongólia (1507-1582) deu a Sonam Gyatso o titulo mongol de Ta le («Oceano», em
mongol, com o sentido de «Mar do Conhecimento») Lama («mestre» ou «guru»), o
qual, foi retrospetivamente aplicado aos seus dois antecessores; esta circunstância fez de
Gendun Drub o primeiro Ta le (‘Dalai’ é uma transcrição ocidental) Lama.
66
Referências bibliográficas principais
Fontes:
Estudos:
67
MASIÁ, Juan, «Verdad, Vida y Camino del Bodisatva. Lectura Inter-
Confesional del Sutra del Loto», Revista de História das Ideias, 36, 2.ª série,
2018, pp. 13-33.
MASIÁ, Juan; SUZUKI, Kotarö: O Dharma e o Espírito, Coimbra, Angelus
Novus, 2007 (trad. port. de Anselmo Borges).
NIWANO, Nikkyô, Budismo para el mundo de hoy. Comentario al «Sûtra del
Loto», Salamanca, Sígueme, 2013.
PANNIKAR, Raimon, The Rythm of Being. New York, Orbis Book, 2010.
THOMAZ, Luís Filipe, «Introdução» a Anaryan, Contos Clássicos Indianos,
Lisboa, Acontecimento, 2002, pp. 9-24.
VÉLEZ DE CEA, Abraham, El Buddhismo, Madrid, Ediciones del Orto, 2000.
68