Você está na página 1de 8

Para

Onde!?, Volume 6, Nú mero 2, p. 155­162, jul./dez. 2012 ISSN 1982­0003


Instituto de Geociê ncias, Programa de Pó s­Graduaçã o em Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, RS, Brasil.

Nas rimas do cururu do Médio Tietê (SP)1


Neusa de Fá tima Mariano

Profa. Dra. do Curso de Licenciatura em Geografia da Universidade Federal de Sã o Carlos – Campus Sorocaba.

Recebido em 04/2012. Aceito para publicaçã o em 12/2012.


Versã o online publicada em 01/02/2013 (http://seer.ufrgs.br/paraonde)

Resumo: O cururu serviu de instrumento de catequizaçã o indıǵena pelos jesuıt́as no perıo ́ do colonial.
Assim, este tipo musical que envolvia també m a dança, constituiu­se em uma prá tica ritualizada nas
festas da religiosidade popular, sobretudo nas do Divino Espıŕito Santo. Alé m de abordar passagens
bıb
́ licas, o cururu pode ser “profano”, num embate entre os cantadores com desafio de rimas. A regiã o
do Mé dio Tietê é o “ló cus” desta manifestaçã o, que se revela no bojo das contradiçõ es do espaço
geográ fico.
Palavras-chave: Cururu. Festa . Religiosidade.

Para começar... cururu, como dança e mú sica juntos, era realizado
durante as festividades da religiosidade cató lica,
O cururu consiste em um desafio de canto sobretudo em datas comemorativas em dias de
improvisado, tendo a viola caipira como principal santos.
instrumento musical. Suas origens remetem à cate­ Tendo sido o cururu difundido por todo o
quizaçã o indıǵena no perıo ́ do do Brasil Colonial Brasil pelos bandeirantes, tornou­se forte expres­
tendo, portanto, suas rimas referentes a passagens sã o cultural no Mé dio Tietê , principalmente naque­
bıb
́ licas. les municıp ́ ios onde homenagens ao Espıŕito Santo
Segundo Lyuten (1987), a palavra cururu sã o realizadas. Atrelado a estas festas populares, o
significa “sapo” em tupi­guarani, sendo uma dança cururu, com o tempo, delas nã o depende mais para
indıǵena tıp ́ ica dos tupi misturada com elementos se realizar. Neste ın ́ terim as suas temá ticas passa­
cristã os. Este autor nã o descarta, entretanto, a pos­ ram a abordar també m temas do cotidiano e a apre­
sibilidade da ligaçã o da palavra “cururu” com “cu­ sentar disputas com teor polıt́ico, alé m de ofensas
ruçu” do guarani, que significa “cruz”, o que eviden­ relativas à s qualidades fıśicas e morais, e condiçã o
cia a influê ncia cristã . Conforme Araú jo (2004), o financeira dos cantadores.
cururu é definido como dança de roda de fundo Apresentaremos neste singelo trabalho, as
religioso, nascendo junto com a mú sica, ou seja, origens do cururu e o seu desenvolvimento na
dança e mú sica nã o estavam originariamente sepa­ regiã o do Mé dio Tietê . Hoje, o cururu denuncia, em
rados no cururu. No entanto, atualmente, nã o se suas rimas nas temá ticas diferenciadas, as contra­
tem notıćias da prá tica da dança, e o cururu é mais diçõ es do espaço geográ fico, na medida em que há
conhecido como um tipo musical que se desenvol­ uma espetacularizaçã o da mú sica popular e, ao
veu no bojo da cultura caipira. mesmo tempo, a permanê ncia deste popular no
A mú sica caipira, segundo José de Souza espetá culo.
Martins, medeia as relaçõ es sociais no ciclo do coti­
diano do homem do campo; ela é vivida ocupando o O cururu: a rima e a dança
tempo e o espaço, pois expressa o ciclo da natureza,
combinando as comemoraçõ es religiosas com o O cururu traz em suas origens a matriz indı­́
trabalho. “A mú sica caipira nunca aparece só , gena a partir do domın ́ io portuguê s, nã o havendo
enquanto mú sica. Nã o apenas porque tem sempre nesta matriz qualquer manifestaçã o cultural de
acompanhamento vocal, mas porque é sempre origem africana (ARAUJO, 2004). Um dos indicati­
acompanhamento de algum ritual de religiã o, de vos desta afirmaçã o é uso da viola caipira como
trabalho ou de lazer”. (MARTINS, 1975: 105). O principal instrumento, difundido no processo de
1
Este texto é parte das pesquisas realizadas com o auxıĺio do CNPq – Universal, intitulada “Manifestaçõ es Festivas da Religiosidade
Popular em Sorocaba (SP) e Regiã o”.

-155-
colonizaçã o do Brasil, pelos jesuıt́as.
Para Má rio de Andrade (2002: 82), o curu­ As carreiras referem­se à s rimas do desafio
ru refere­se à “louvaçã o historiada dum santo qual­ cantado. Por exemplo, quando o pedestre propõ e
quer, ou mesmo dum caso bıb ́ lico”, sendo o cururu cantar na carreira do Divino, as rimas devem ser
um exemplo de “adaptaçã o artıśtica dos jesuıt́as no em ino. Se se quiser lançar o desafio na carreira de
primeiro sé culo”. Sã o Joã o, as rimas tê m que ser em ão. E assim, a
Complementa Araú jo: cada desafio, as carreiras sã o colocadas com termi­
naçõ es difıćeis de serem rimadas, as chamadas
Cururu é , em ú ltima aná lise, um sincre­ carreiras duras.
tismo luso­brasileiro, inteligente Garuti (2003) apresenta uma lista de carrei­
forma lú dica de que o jesuıt́a lançou ras, cuja maioria recebe nome de santo: Sã o Joã o,
mã o, para ensinar Histó ria Sagrada aos Sagrado, Virgem Pura, Sã o Vicente, Santo Antonio,
catecú menos. Definirı́ a mos entã o: Santa Julieta, Sã o Nicolau, Sã o Longuinho, entre
cristianismo à moda jesuı́tica, mais
outros. Mas també m há carreiras com referê ncia
dança de roda, tã o do sabor dos povos
primitivos, é igual a cururu. (ARAUJO, apenas à rima: rima do “a”, rima do “ano”, rima do “o”.
2004: 84). O canto do cururu é organizado da seguinte
maneira:
Assim, conforme Andrade (1992), o cururu
se constitui em uma pedagogia nã o formal da 1. Ordem ou súplica:
Bıb ́ lia, uma vez que sua origem remete a este passa­ pedido de licença para cantar;
do de domın ́ io colonial catequé tico, mantendo­se 2. Explicação, louvação:
até os dias de hoje, nas festas do Divino Espıŕito diz a que veio;
Santo do Mé dio Tietê .
O cururu nã o pode ser compreendido ape­ 3. Intimação, ameaça:
nas como uma mú sica que possui rimas improvisa­ o duelo está posto, o enfrentamento;
das, sob a temá tica bıb ́ lica ou com alguma liçã o 4. Pergunta:
moral como pano de fundo. Há , pois uma etiqueta desafio ao inimigo a se redimir;
que envolve a manifestaçã o. Cada um tem uma fun­
çã o dentro do cururu, desde o cantador, até o cha­ 5. Resposta:
mado pedestre. O canto també m nã o pode ser reali­ vı́tima, as respostas à s provocaçõ es sã o
zado de qualquer jeito. dadas calmamente;
Canturião é a palavra que designa o cantor, 6. Reconciliação:
ou o chamado cantador de cururu, sendo que can- o duelo termina;
turino é aquele cantador novato, aprendiz de can­
turiã o. Já o pedestre é o responsá vel por colocar as 7. Despedida.
carreiras para os canturiõ es, é aquele que canta
primeiro abrindo o caminho para a rima. Geral­ Com relaçã o à despedida, registrou Julieta
mente apresentam­se duas duplas de cururueiros, Andrade (1992: 60):
sendo um o tocador de viola e o outro o canturiã o,
em cada dupla. O poema aproxima­se do final. O canta­
O baixão, segundo Julieta Andrade (1992) é dor avisa que já vai terminar seu canto,
um canto em sıĺabas, entoado cada vez que os curu­ elogia os assistentes, elogia­se a si
mesmo com jeito de humildade consci­
rueiros apresentam, antes do tema, pois trata­se da
ente. Faz uma declaraçã o de amor aos
marca da identificaçã o do canturiã o. presentes (se houver alguma mulher
especial na plateia, nã o deixa esqueci­
Baixã o é canto de chegada. Tem a fun­ dos seus dotes de nobreza, perfeiçã o
çã o de um arauto cuja mensagem é : ­ semelhante à Virgem Maria) e passa à
Vou cantar. Sou trovador X e minha voz despedida (provisó ria, ainda voltará a
tem tais possibilidades, conforme cantar) pedindo que Deus abençoe a
estou demonstrando; minhas melodias todos.
sã o bonitas assim. Já que estou cantan­
do, com este Baixã o homenageio Fula­ Juntamente com o canto, a dança possui
no/a de Tal, que está presente, e para també m cará ter religioso de mesma origem cate­
quem estou me dirigindo. No cururu há
qué tica. Junto com a mú sica, ela teria sido dissemi­
uma comunicaçã o silenciosa, subja­
cente. (ANDRADE, 1992: 36). nada pelos bandeirantes, no tempo das entradas e

-156-
bandeiras, que partiam de Piratininga e desciam o Como dito anteriormente, a prá tica da
Anhembi e, nos pousos e ranchos, praticavam o dança nã o teve força para a continuidade de sua
cururu. (ARAUJO, 2004). difusã o, sendo da mú sica separada, cindindo os
Os movimentos da dança do cururu consis­ elementos do ritual. Talvez este fato se deva pela
tem em sapateado e palmeado, ao som da viola, do difusã o da mú sica nas rá dios e gravaçõ es em disco,
pandeiro e do reco­reco. Apó s as louvaçõ es aos em que ela apenas passou a ser ouvida, nã o haven­
santos do local onde o cururu está sendo realizado, do mais sentido dançá ­la.
cıŕculos sã o formados com uma variaçã o em sua Conforme Alberto Ikeda (apud SANTA­
coreografia, acompanhando o desafio, a declama­ ROSA, 2007: 15), houve um processo de transfor­
çã o e a postura de joelhos em direçã o ao altar com maçã o do cururu ao longo do tempo. De dança ceri­
as imagens dos santos homenageados. (CASCUDO: monial indıǵena a dança religiosa em roda, com
2001). Segundo Araú jo (2004), os cı́rculos da desafio implıćito em ambiente rural. Deste para o
dança à s vezes girava no sentido lunar, envolvendo cururu­cançã o em forma de desafio profano explı­́
“magia positiva”, à s vezes no sentido solar, no senti­ cito, em ambiente urbano e finalmente, a compre­
do dos ponteiros do reló gio, envolvendo a expulsã o ensã o do cururu apenas como ritmo da mú sica
dos males (ARAUJO, 2004). sertaneja.
Araú jo (2004: 95) assim descreve a dança Estas transformaçõ es, uma vez compreen­
realizada no municıp ́ io de Tietê (SP): didas no bojo do processo de urbanizaçã o, podem
ser lidas como uma simplificaçã o da cultura popu­
A dança constitui­se de movimentos lar, restando algumas peculiaridades que as identi­
lentos, de mudanças de passos para ficam. Cabe observar que neste processo tido como
frente e para trá s. O passo dado à frente contraditó rio, també m pode ocorrer o enriqueci­
é sempre maior, quase o dobro do que é
mento da cultura popular, já que ela pode utilizar­
dado para trá s, isso no caso do “cantu­
se do moderno (novas tecnologias da indú stria
riã o”, porque o “segunda” [voz], que
fonográ fica, por exemplo) para se difundir e se
fica defrontando o improvisador, exe­
cuta inversamente tais deslocamentos.
reproduzir.
Há perfeita sincronizaçã o nesse movi­ Neste sentido, as formas pelas quais o curu­
mento, pois quando o “canturiã o” avan­ ru é apresentado por Ikeda podem ocorrer ao
ça um passo para a frente, o “segunda” mesmo tempo, em ambientes diferenciados, tais
recua um passo, quando o “canturiã o” como os espaços rural e urbano; ou seja, uma forma
vem à ré um passinho, o “segunda” nã o exclui a outra.
adianta­se um passinho. Os demais Alceu Maynard Araú jo (2004) aponta para
componentes da roda seguem, andan­ a existê ncia de um cururu urbano em contraponto
do sob o ritmo do canto do “canturiã o” a um rural. O rural seria o religioso, praticado nas
e “segunda”. Os “segundas”, quando nã o festas de santos, enquanto que o urbano estaria no
estã o cantando, nã o se defrontam com plano das manifestaçõ es culturais profanas, pois
seu parceiro. Com exceçã o do violeiro, neste ú ltimo, o mote pode ser de conotaçã o polıt́i­
todos dançam com as mã os nas algibei­ ca, evidenciar problemas sociais e indicar a rivali­
ras; só ao finalizar o canto, quando
dade entre os canturiõ es com ofensas pessoais. No
todos dã o um giro de corpo, é que as
entanto, compreendemos que esta colocaçã o de
retiram, para ter maior liberdade de
Araú jo (2004) nã o pode ser tida como estanque,
movimentos. Quando o “canturiã o”
finaliza o seu canto numa carreira, ele e
uma vez que o cururu de teor religioso pode ocor­
seu “segunda” dã o um giro em torno de rer no espaço urbano, diante das temporalidades
si mesmo, movimento elegante, no diversas inerentes ao processo de urbanizaçã o.
qual os pretos sã o ım ́ pares para execu­ Embora distante do ciclo da natureza, o
tar um trejeito harmonioso e destro. As cururu no espaço urbano canta a sua religiosidade
batidas de palmas à s vezes també m de origem rural, camponesa, caipira. Temá ticas
aparecem no começo da dança, para profanas se espalham no meio rural (sıt́ios, ran­
“afirmar” o ritmo da mudança dos pé s. chos, vilas, etc.) com o advento da rá dio, ou seja, da
Uma vez firme, deixam de “bater as indú stria cultural, e també m pode ser apropriado
palmas de marcaçã o”. apenas como diversã o.

-157-
Jairo tinha uma filha doente, do corpo
bem franzino,
Pessoas que cuidavam dela, ele não
tavam conseguino.
Jairo tava junto com Cristo, um mensa-
geiro vinha vino,
O mensageiro esclareceu, a sua filha
morreu e tem muita gente sentino.

Jesus Cristo tava perto, a conversa tava


ouvino,
Disse pra Jairo: “Não temas”, disse: “Jairo
venha vino”.
E disse: “Creia somente”. E os dois foram
saíno.
Ali naquela ocasião, tava Pedro, Tiago e
João
Que atrás deles foram ino.

Chegaram na casa de Jairo, onde ele


tava residino,
A casa cheia de gente, dos grande até os
pequenino.
E quanta reclamação, quanta lágrima
caíno,
Quando Jesus apareceu, na hora ele
repreendeu
Cururueiros do Mé dio Tietê durante o Revelando Sã o Paulo – Tudo parou e ficaram ouvino.
Feira da Cultura Tradicional Paulista (Parque do Trote –
SP/2012). Foto: Neusa de Fá tima Mariano. Set/2012 Jesus Cristo disse para Jairo: “Chame a
esposa e venha vino”.
Para o cururueiro Sr. Jonata Neto (de Piraci­ Falou para Pedro, Tiago e João que eles
caba, SP), o cururu deve ser levado a sé rio, sem que fossem reunino.
haja ofensas. Acostumado a cantar em pousos do Quem tava dentro do quarto, ele se pôs a
Divino nos municıp ́ ios que compõ em o Mé dio Tie­ saíno.
tê , o Sr. Jonata Neto compõ e suas pró prias cançõ es Ali só tinha gente boa, mas só aquelas
na consciê ncia de estar reproduzindo o cururu cinco pessoas
Podia ficar assistino.
tradicional, uma vez que sua base é o Evangelho.
Seus versos, na carreira do Divino, sã o aqui rima­ Então na frente da menina, Cristo foi se
dos na sua sacralidade: dirigino,
Pegou na mão, disse: “Alevante!” Ela já
Eu quero cantar um verso, na carreira foi se ino.
do Divino, Vortou sua respiração, e os seus olhos foi
Um bom som de viola, com essas dez se abrino,
cordas tinino. Com as palavras que Cristo falou,
E também pras duas moça, que agora tá Talita ressuscitou como se tivesse dur-
me assistino, mino.
Vão prestando atenção, que eu vou fazer
uma inovação A menina ficou de pé, com muito prazer
Que meu coração tá sentino. sentino,
Quem tava dentro do quarto pegou a
Eu quero cantar louvando, na carreira porta e foi abrino.
do Divino, Quando aquele povo viu que Talita ia
Eu quero falar de um homem, por sinal saíno,
muito ladino. Quando eles enxergaram isso,
Seu nome chamava Jairo, homem de Tudo acreditaram em Cristo, uns cho-
grande raciocíno, rando, outros sorrino!!
Numa igreja ele ensinava, onde o povo
dialogava e recebia muito ensino.
O fato de o Sr. Jonata Neto cantar na carreira

-158-
do Divino nã o significa que ele vai contar episó dios va, o que cantava errado retrucava e assim seguia a
bıb
́ licos que remetem ao Divino Espıŕito Santo. discussã o em rima e canto. (GARUTI, 2003).
Assim acontece com a carreira de Sã o Joã o ou outra Nos versos rimados do cururu compreen­
qualquer, ou seja, importa a rima pela qual deter­ dido como “profano”, apó s as “ofensas” dos cantu­
minada histó ria será contada, ou o desafio lançado. riõ es, a despedida é amenizada com pedidos de
Para evidenciar a diferença temá tica dos desculpas à plateia, como parte da etiqueta das
cururus, transcrevemos aquele cantado por Abel boas maneiras, para que nã o fique nenhuma rusga.
Bueno, de Piracicaba, na Carreira de Sã o Joã o (SAO E o que registra Garuti (2003: 12):
PAULO Corpo e Alma, 2003: 36):
Agora vamo pará
A viola é sertaneja Com a nossa cantoria
Porque nasceu no sertão Voceis vão me descurpá
O violeiro traz no peito a raiz e a tradi- De tudo quanto eu dizia
ção Meus contrário vão perdoá
Como é bão ser brasileiro De eu usá de grosseria
Desta querida nação Se do ceis eu falei má
No Brasil nós não qué farra Oceis sabe que eu mentia
No Brasil não tem guitarra Com oceis eu nunca brigo
Só tem viola e tem violão. E pode conta comigo
Na tristeza e na alegria.
Sô filho de lavrador
Cheio de calo na mão Vale a pena transcrever uma situaçã o em
Tenho orgulho deste mundo que apesar desse tom de despedida e de esqueci­
D'eu nascê lá no sertão mento das ofensas, a rivalidade, mesmo que de
No ano de 34 brincadeira, continua.
Mundo viu minha feição
Assim que meu pai falô Senhores que está
Nasci pra sê cantado Assistindo a cantoria
E vô morrê c'o esta opinião [...] De voceis vô recordá
Muitos meis e muitos dia
Esse nosso cururu Se eu pudesse ia leva
É formado por religião As vossas fotografia
Foi na beira do Tietê Que é pra mim podê lembra
que nasceu esta função Das vossa fisionomia
Que eu com meu cumpanheiro Juro que eu não estragava
É o homem do chapeuzão Indo embora eu levava
Este aqui é Jonata Neto E quando voltasse eu trazia
Do cururu também é campeão
Mai esse aqui só tem tamanho E o canturiã o rival responde:
O homem não toma banho
por não podê compra sabão. Senhores, meu companheiro
É o fim da cantoria
E morava na cidade Desejo pro povo intero
Tinha uma bela profissão Muita paz e alegria
Resorveu muda pro sítio Mas ouvi o cumpanhero
Pra lidá com prantação Pedino fotografia
Mai prantá ele não sabia Só que ele é macumbeiro
Deu prejuízo pro patrão Acho que oceis não sabia
Resolveu muda de bairro Cuidado com esse ingrato
Procurá um terreno bão Vai leva vossos retrato
A mudança do Jonata Pra fazê feitiçaria.
Foi num carrinho de mão
Coitado deste rapaiz
Aparecido Garuti (Cido Garoto), curu­
Pra compra um bujão de gaiz
Teve de vendê o fogão. rueiro de Sorocaba, em seu livro Cururu: retratos de
uma tradição, nos presenteia com o registro dos
Conforme o cururueiro Zico Moreira, o desa­ cururueiros de Laranjal Paulista, inclusive do Dis­
fio teria começado porque um cantador cantava trito de Laras (ou Capela de Sã o Sebastiã o), onde a
errado e o outro chamava a sua atençã o. Na defensi­ Irmandade do Divino leva, em sua peregrinaçã o de

-159-
cerca de vinte e cinco dias, as bê nçã os do Divino aos Nhô Serra de Piracicaba, Pedro Chiquito e Mingo
moradores da regiã o. Pedro de Capivari, Zico Moreira, Luizinho Rosa de
Neste trajeto o cururu se faz fortemen­ Sorocaba, entre outros listados por Garuti (2003).
te presente nos pousos, sobretudo no meio rural;
portanto, pode­se dizer que há uma manifestaçã o
cultural territorializada e mantida pela tradiçã o. O cururu do Médio Tietê

Como vimos, a origem do cururu está no


processo de colonizaçã o e catequizaçã o jesuıt́ica,
tendo sido o ritual difundido pelos bandeirantes.
Por onde passavam e pediam pouso, o cururu se
manifestava solidificando o costume, criando a
tradiçã o e se territorializando.
Neste contexto, as homenagens ao Divino
Espıŕito Santo que se realizavam nos povoados ou
ranchos à s margens do Rio Tietê , foram sendo
incrementadas com o cururu; com o tempo foi cin­
dido em mú sica e dança, sobrevivendo a primeira.
Segundo Garuti (2003: 10), o cururu está
presente em todo o vale do Mé dio Tietê , sendo que
as cidades consideradas pelo autor como matrizes
Cururu durante o pouso da Festa do Divino no Distrito de sã o Sorocaba, Piracicaba, Tietê e Tatuı:́
Laras, em Laranjal Paulista (SP). Foto: Gabriela Lima.
Julho/2011.
Sorocaba, Votorantim, Piedade, Pilar
do Sul, Araçoiaba da Serra, Alambari,
Podemos destacar aqueles que cresceram Sarapuı́, Itapetininga, Capã o Bonito,
Angatuba, Porto Feliz, Tietê , Laranjal
neste ambiente de festa da religiosidade popular e
Paulista, Jumirim, Conchas, Botucatu,
desenvolveram a habilidade do canto do cururu,
Rubiã o Junior, Capivari, Saltinho,
expressando assim, uma determinada identidade Piracicaba, Rio das Pedras, Mobuca,
só cio­territorial. Elias Fausto, Quadra, Santa Bá rbara
Temos, portanto, o Senhor Natalino de Lara D'Oeste, Americana, Sã o Pedro, Aguas
(Natalino da Capela) que começou a cantar aos de Sã o Pedro, Anhembi, Rio Claro,
vinte anos de idade, e o Senhor Joã o Luiz da Silva Charqueada, Barra Bonita, Rio Bonito,
(Joã o Luiz da Capela), que, ainda criança, com oito Laras (distrito de Laranjal Paulista),
anos de idade já estava cantando o cururu. Nasci­ Maristela [també m distrito de Laranjal
dos em Laranjal Paulista, temos Joaquinzã o, Toni­ Paulista], Cesá rio Lange, Pereiras,
nho, Osé ias, Joã o de Lale (Joã o da Viola) – vale lem­ Guareı́, Torre de Pedra, Porangaba,
Salto de Pirapora, Itu, Salto, Indaiatuba,
brar que todos cantadores sã o de cururu em pou­
Aluminio, Cardeal, Iperó , Boituva,
sos da Irmandade do Divino de Laras. Ao que pare­ Cerquilho, Capela do Alto, Tatuı́ ,
ce, os cururueiros começam a desenvolver as suas Monte­Mor, Limeira, Pirambó ia e
habilidades de rimas para o desafio logo na infâ n­ Rafard.
cia. Isso faz com que o cururu com o tempo, se torne
de suma importâ ncia para as suas vidas, pois nã o é A partir de um mapeamento, podemos
só o tocar, cantar e rimar, mas é també m o louvar a compreender essa difusã o relacionada à s
Deus e aos santos, é ser devoto e demonstrar seu homenagens ao Divino Espıŕito Santo, sobretudo
respeito e fé por meio de uma tradiçã o que nã o à quelas realizadas em que o Rio Tietê participa do
pode acabar, porque é parte da vida deles. Por isso, ritual. E o que ocorre com o distrito de Laras, cuja
buscam també m ensinar a seus filhos, estimulan­ festa tem origem em promessa feita por uma
do, por exemplo, na participaçã o da Folia do Divino, senhora em virtude de surtos de febre amarela, no
em que o Foliã o també m canta improvisado e o sé culo XVIII. Levar a Bandeira do Divino rio acima e
“segunda voz” – sempre criança ­ o vai acompa­ rio abaixo, para abençoar os ranchos, por dias,
nhando. pedindo pouso e alimento tornou­se tradiçã o
Podemos citar ainda Agostinho de Aguiar, porque o resultado era visıv́el: a febre cessava.

-160-
O fato é que os tropeiros participavam ati­
vamente da Festa do Divino Espıŕito Santo por
meio da encenaçã o das cavalhadas, nos cururus e
fandangos, etc., conforme registra Perecin (1990)
em seu romance Candeias em Espelho D'Água.
O cururueiro Zico Moreira apresenta a sua
versã o para o surgimento do cururu:

Isso dizem que os Bandeirantes anda­


vam descobrindo terras e chegavam
num lugar, faziam uma barraca e leva­
vam uma bandeira do Espıŕito Santo
para inspirar, inspirar o que fazer. Colo­
Encontro de Canoas. Irmandade do Divino Espıŕito Santo,
cavam ali e cantavam em louvor ao
Festa do Divino de Laras (SP). Foto: Neusa de Fá tima Mariano.
Julho/2011. Divino. Depois acabou os bandeirantes
mas ficou a festa do Divino, com Pouso
cantado. Naquela é poca entravam de
As famıĺias que recebiam a Irmandade do quatro, cinco, sete, oito cantadores.
Divino, encarregada de levar a Bandeira, começa­ Hoje nã o pode mais, hoje o má ximo é
ram a receber també m demais devotos, que queri­ quatro, porque sã o pagos e mais do que
am o contato com o Espıŕito Santo e, assim, a oferta isso nã o dá . O má ximo sã o quatro. E foi
de alimentos e a celebraçã o em torno da visita assim, mais ou menos que começou o
foram sendo incrementadas com o tempo. O cururu Cururu com os bandeirantes... aı ́fazia a
começou a fazer parte do ritual, apó s as rezas e a festa do Divino e para passar a noite
janta oferecida pelos “festeiros” – a famıĺia que cantavam o Cururu. (GARUTI, 2003:
recebe a Irmandade. Os cururueiros começaram a 21).
ser contratados para receberem a Irmandade nos
pousos do Divino, proporcionando a descontraçã o A divulgaçã o do ritmo e da prá tica da rima
apó s as oraçõ es. improvisada foi ganhando novos temas, sendo que
Em Sorocaba, a prá tica do cururu se torna­ duplas de cururueiros começaram a ser conheci­
va cada vez mais só lida em funçã o, també m, da feira das pela regiã o de Sorocaba.
de muares, em que os tropeiros vinham do sul para Torneios de cururu costumavam ser orga­
comercializar seus animais. Em meados do sé culo nizados na regiã o do Mé dio Tietê , evidenciando e
XVIII, a feira movimentava a cidade, inclusive fortalecendo cada vez mais a modalidade musical,
durante as festividades em homenagem ao Divino a partir do enriquecimento que envolve o processo
Espı́ r ito Santo, organizada pela Igreja Nossa de criaçã o.
Senhora da Ponte.
Os tropeiros começavam a chegar em Soro­ A despedida...
caba para o comé rcio de mulas, no inıćio do ano, e
permaneciam até junho, conforme Perecin (1990), Uma leitura linear pode levar ao equıv́oco
mas tendo seu ponto alto em torno do mê s de de se pensar no cururu como uma manifestaçã o da
março (SILVA, 2004). Apó s a passagem dos tropei­ cultura popular que nasceu a partir de uma ordem
ros, Sorocaba caıá em calmaria. religiosa que foi apropriada pelo povo de forma
O municıp ́ io de Sorocaba foi considerado a espontâ nea, sendo cooptado mais tarde pela eco­
“capital” do tropeirismo, em funçã o da sua posiçã o nomia de mercado e transformado em espetá culo.
geográ fica: acesso de saıd ́ a para o sul, para o noro­ Ou seja, que o cururu tenha perdido a sua esponta­
este (Goiá s e Mato Grosso) e para o norte (Minas neidade, sobretudo no espaço urbano.
Gerais), e ainda, para Sã o Paulo, Vale do Paraıb ́ a e Ao mesmo tempo em que o cururu é prati­
Rio de Janeiro. cado em festas religiosas, nos pousos do Divino, em
O auge da feira de muares deu­se entre 1850 quermesses etc., ele també m existe apenas com o
e 1860, tendo sido comercializadas cerca de 100 mil teor de divertimento, apresentado em palcos, em
bestas por ano, conforme Silva (2004). Foi com o torneios e festivais.
advento da ferrovia que, nã o só a feira de Sorocaba O fato de os cururueiros serem contratados
entrou em decadê ncia, mas o tropeirismo como ati­ para apresentaçã o e terem a oportunidade de gra­
vidade socioeconô mica. A ú ltima feira teria aconte­ var suas rimas em vá rias carreiras, nã o lhes tira o
cido em 1897, portanto, já na Repú blica. mé rito do popular, uma vez que nã o é este um filã o

-161-
que enriquece a indú stria fonográ fica.
O cururu també m é eternizado pelas grava­ ANDRADE, Má rio de. Danças Dramáticas do Brasil. 2ª
doras, e por isso, manté m o patrimô nio imaterial ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2002.
cuja origem é toda a regiã o do Mé dio Tietê . Neste
CASCUDO, Luı́s da Câ mara. Dicionário do Folclore
sentido, podemos encontrar a contribuiçã o do curu­
Brasileiro. 11ª ediçã o. Sã o Paulo: Global, 2001.
ru para a memó ria de sua pró pria histó ria, como
nos versos: GARUTI, Aparecido. Cururu: Retratos de uma Tradi-
ção. Sorocaba: LINC, 2003.
Esse nosso cururu
É formado por religião LYUTEN, Joseph M. Desafio e repentismo do caipira de Sã o
Foi na beira do Tietê Paulo. In: Cultura Brasileira. Temas e situaçõ es. Ed.
que nasceu esta função. Atica, Sã o Paulo, 1987.

Ou seja, o que pode muitas vezes ser apre­ MARTINS, José de Souza. Capitalismo e Tradicionalis-
sentado como espetacular, traz també m no seu mo: estudos sobre as contradiçõ es da sociedade agrá ria
cerne, a sua espontaneidade, a sua simplicidade. no Brasil. Sã o Paulo: Pioneira, 1975.
Seja profano ou religioso, os canturiõ es
reafirmam, em seus versos, a identidade territorial, PERECIN, Marly Therezinha G. Candeias em espelho
buscando valorizar uma manifestaçã o considerada d'água (1777­1845). Sã o Paulo: Ediçõ es Loyola, 1990.
tradicional cuja ocorrê ncia originá ria e “autê ntica”
SANTAROSA, Sé rgio H. Prosa de cantador: a histó ria e
está na regiã o do Mé dio Tietê . as histó rias dos cururueiros paulistas. Botucatu: FEPAF,
2007.
Referências
SAO PAULO Corpo e Alma. Sã o Paulo: Governo do Estado
ANDRADE, Julieta Jesuın ́ a Alves de. Cururu: espetá culo de Sã o Paulo; Associaçã o Cachuera!, s/d.
de teatro nã o­formal poé tico­musical e coreográ fico. Um
cancioneiro trovadoresco do Mé dio Tietê . 1992. 3 v. Tese
(Doutorado em Comunicaçã o) – Escola de Comunicaçã o
e Artes, Universidade de Sã o Paulo, Sã o Paulo, 1992.

Rhymes in the Middle Tietê cururu (SP)

Abstract: The cururu served as an instrument of indigenous catechism by the Jesuits during the
colonial period. Thus, this type of music that also involved the dance consisted in a ritualized practice in
a popular religious party, especially in the Divine Holy Spirit. Besides addressing biblical passages, the
cururu can be "profane" in a contest between the singers with the challenge of rhymes. The Middle Tietê
is the "locus" of this event, which reveals itself in the contradictions of geographic space.
Keywords: Cururu. Party. Religiousness

Las rimas em el Tieté Médio cururú (SP)

Resumen: El cururu sirvió como un instrumento de catecismo de indígena por los jesuítas durante la
colonia. Por lo tanto, este tipo de música que también participa la danza fue una práctica ritual em las
fiestas religiosas populares, sobre todo en el Divino Espíritu Santo. Además de abordar pasajes de la
Biblia, el cururu puede ser "profano" en un enfrentamiento entre los cantantes com el reto de las rimas.
El Tietê Medio es el "locus" de este evento, que se revela em médio de las contradicciones del espacio
geográfico.
Palabras-clave: Cururu. Fiesta. Religiosidad.

-162-

Você também pode gostar