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ANTÍGONA E OUTROS CLAMORES: DIÁLOGOS SOBRE POLÍTICAS DE LUTO EM

JUDITH BUTLER E VLADIMIR SAFATLE

Alexandre Nunes de Sousa1

Resumo: Desde que apareceu em “Antigona's Clain” (2000), a heroína grega tem sido solicitada
por Judith Butler em sua obra não só para pensar as questões de parentesco, mas também para
propor uma política de luto contemporânea. Se a relação com o parentesco é tratada profundamente
na obra já citada e em “Undoing gender” (2004), a discussão propriamente do luto aparecerá em
“Precarious life” (2004) e “Frames of war” (2009). Assim, enquanto na década de 1990, a autora se
dedicava a escrever acerca os corpos que importam sob o foco da interpelação de gênero e sexo, a
partir dos anos 2000 suas preocupações se ampliarão para os diferentes corpos que valem como
vidas vivíveis e passíveis de luto. Na recepção brasileira do pensamento de Judith Butler, se
destacará o diálogo estabelecido por Vladimir Safatle. As formulações recentes da pensadora norte-
americana aparecem em “Grande hotel abismo” (2012) e “o circuito dos afetos” (2015a). Safatle
também utilizará o ato de Antígona para pensar as necessidades da política contemporânea em “o
que resta da ditadura” (2010); “dever e seus impasses”(2013) e em seu mais recente texto publicado
“quando as ruas queimam: manifesto da emergência” (2016). A inspiração no gesto de Antígona
aproximará e distanciará as apostas dos dois autores. Enquanto Butler aborda a política do luto
como a emergência de um espaço de aparecimento, Safatle discutirá tal política como a produção de
um desamparo necessário.

Palavras-chave: Antígona; Políticas de luto; espaço de aparecimento; desamparo.

Antecedentes: políticas de enlutamento da AIDS e queer

O início da epidemia de AIDS se deu marcado pelo pânico moral e pelo processo de
implementação das políticas neoliberais em diversas partes do mundo. Tal contexto levaria o então
presidente dos EUA, Ronald Regan, a pronunciar o nome da síndrome em público apenas em 1987,
próximo ao final do seu segundo mandato. Naquele momento, já faziam mais de quatro anos desde
que o vírus tinha sido identificado e se contabilizavam milhares de mortes.
Os meios de comunicação, por sua vez, paulatinamente, não apenas descreveram os
acontecimentos envolvendo a doença, mas promoveram sua existência discursiva, o que tornou a
AIDS a primeira pandemia midiática desde seu nascedouro. Isso levou alguns pesquisadores a
afirmar a impossibilidade de analisar a AIDS fora do contexto das mídias (Bessa, 1997). A imprensa
ocidental a denominou inicialmente como Gay-Related Imunodeficience – GRID (Imunodeficiência

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Doutorando em Cultura e Sociedade pela UFBA. Professor de Comunicação e Cultura na Universidade
Federal do Cariri – UFCA, Ceará.

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Relacionada a Gays, em português) e a popularizou nos primeiros anos como o “Câncer Gay”
(Daniel; Parker, 1991; Bessa, 1997).
Assim, o local das mídias não era apenas de reportar uma epidemia como acontecimento, mas
inventar as formas como as diversas populações viam, percebiam e vivenciavam a doença.
Entretanto, foi possível uma reação a essas formas de dizer a epidemia. Era a época do surgimento
do Queer Nation e do ACT UP nos EUA, este último com seu clássico slogan: “silêncio = morte”.
Diante da flagrante omissão das autoridades públicas e do sensacionalismo televisivo que
transformava os sofrimentos em espetáculo, era necessário falar e produzir contradiscursos, vindos
das artes. Logo, a temática da AIDS invadia as artes como estratégia política de enlutamento e de
visibilidade contra a necropolítica de Estado2.
Esse tensionamento esteve fortemente presente nas intervenções públicas daqueles grupos, os
quais realizavam as mais diversas performances, como interromper as negociações em Wall Street,
invadir igrejas, prefeituras e outras repartições públicas. Não raro, havia também os happenings
mórbidos, os chamados “die-ins” (Downing 2002) nos quais os pacientes terminais faleciam (ou
encenava-se a morte) em praça pública para denunciar o descaso dos governos com a síndrome.
Outro ato performático era o chamado Candlelight, uma vigília em praça pública para o luto em
alusão às vítimas da AIDS.
A questão da ocupação dos espaços públicos através da arte era posta em termos urgentes
como estratégia de enfrentamento da morte, bem como de desenvolvimento de políticas de
enlutamento. Debates acalorados sobre estética e política foram travados na imprensa daquele país,
dando início ao que ficou conhecido como “guerras culturais”3 (Yúdice, 2006). Como também
afirmam Lord e Meyer:

Artistas e ativistas queers – muitos deles HIV positivo ou amigos ou amantes daqueles que
eram – responderam com particular ferocidade à crise da AIDS através da produção de arte.
Agitpop, teatro de guerrilha na rua e movimentos de protesto de ação direta na forma do
ACT Up […] Os EUA testemunharam a erupção de suas próprias “guerras sexuais” por
liberdade de expressão e apoio federal às artes. (2013, p. 147, tradução minha)

É nesse contexto que a temática da AIDS invadia o teatro como estratégia política. Enquanto

2
Neologismo criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe em ensaio homônimo para designar as formas
contemporâneas de política estatais de morte nas quais numerosas populações são expostas a condições de
vulnerabilidade que lhes outorga o status de mortas-vivas.
3
Período em que se realizou o intenso debate acerca do financiamento público de artes consideradas
“degeneradas” por parte do estado. O protagonista desta polêmica foi o Senador republicano Jesse Helms
principalmente contra as artes visuais.

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no início dos anos 1990 os EUA viviam a criação do movimento Queer Nation e dos estudos queer,
valendo-se da performance como linguagem privilegiada de enfrentamento, no Brasil vivia-se o
processo de sidadanização (Pelúcio, 2009) do movimento então chamado de gay e, em especial, o
adestramento biopolítico das identidades de gênero como as travestilidades e transexualidades em
programas de prevenção e saúde.
Logo, pensar as políticas queer e da AIDS e os rastros de subversão em seus produtos
culturais de ontem e de hoje, parece ser um ato político de revolta contra o aniquilamento (Blanca,
2015). Como diz Rosa Blanca, refletindo sobre as resistências epistêmicas a partir do Sul, fazer
multiplicar essas rotas clandestinas “é a chave para escapar do ocaso, da violência e da morte”
(2016, p. 455). Parece estar aqui um liame entre política de enlutamento contemporâneo e as
resistências performáticas contra a AIDS. Ocupar a cena pública passa a ser uma estratégia central,
como se referiu o pensador queer cubano Estavan Muñoz:

Mais de duas décadas de epidemia devastadora, com crimes de ódio e legislação visando
queers e pessoas de cor institucionalizadas como protocolos de estado, o ato de performar e
teatralizar a queerneess em público carrega múltiplos significados […] A importância de tais
pronunciações públicas e semipúblicas do self híbrido não pode ser subestimada em relação
à formação de contrapúblicos que contestam a supremacia hegemônica da esfera pública.
(1999, p. i, tradução minha)

Políticas de enlutamento: da abjeção à precariedade

Butler nomeia como abjeções as margens produzidas pela heteronormatividade4. Ou seja, como
elementos que são considerados socialmente poluentes, corruptores ou como algo que não deveria existir.
Em seus próprios termos, a abjeção se relacionaria não apenas ao dispositivo de sexualidade:

O abjeto para mim não se restringe de modo algum a sexo e heteronormatividade.


Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas “vidas” e cuja
materialidade é entendida como ‘não importante’. Para dar uma ideia: a imprensa dos
Estados Unidos regularmente apresenta as vidas dos não-ocidentais nesses termos. O
empobrecimento é outro candidato freqüente [...] Poderia enumerar muitos exemplos do
que considero ser a abjeção dos corpos. Podemos notá-la, por exemplo, na matança de
refugiados libaneses: o modo pelo qual aqueles corpos, aquelas vidas, não são entendidos
como vidas. Podem ser contados, geralmente causam revolta, mas não há especificidade.
[...] Assim, recebemos uma produção diferenciada, ou uma materialização diferenciada, do
humano. E também recebemos, acho eu, uma produção do abjeto. (PRINS; MEIJER, 2007,
p. 160, grifo das autoras)

Parece traçar-se aqui uma espécie de condição de precariedade (Butler, 2015a). Vidas que são
lidas socialmente como não importantes. Corpos que se encontram em sua “despossessão”
4
Para Bento, a heteronormatividade é “a capacidade da heterossexualidade se apresentar como norma, a lei que
regula e determina a impossibilidade de vida fora destes marcos” (2008, p. 4).

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ontológica. É momento em que se delineiam os vínculos entre performatividade de gênero e
precariedade. Como afirmou a autora:

Precariedade é, obviamente, ligada a normas de gênero, a partir do momento em que


sabemos que aqueles que não vivem seus gêneros de formas inteligíveis estão expostos a
riscos e violências. Normas de gênero têm tudo a ver com nós podemos aparecer no espaço
público; como e de que forma o público e o privado são distinguidos; e como essas
distinções são instrumentalizadas a serviço de políticas sexuais. Quem vai ser criminalizado
tendo por base sua aparição pública; quem não será protegido pela lei, ou mais
especificamente, pela polícia, nas ruas, ou no trabalho, ou em casa. Quem será
estigmatizado; quem será objeto de fascinação e consumo do prazer? (BUTLER, 2009, p.
08, tradução minha)

Na verdade, o que a autora sinaliza é a passagem de suas reflexões desde uma política de subjetividade
mais centrada nas questões de gênero, como o clássico exemplo da paródia como política a partir das drag
queens, para políticas que pensam a precariedade e despossessão como ponto comum entre populações,
inclusive as que praticam dissidências sexuais e de gênero. Como afirma a filósofa:

Em Problemas de gênero (1989) às vezes parecia que certos atos individuais poderiam
performatizar, iriam ou poderiam ter efeitos subversivos nas normas de gênero. Agora estou
trabalhando sobre a questão de alianças entre várias minorias ou populações consideradas
descartáveis; mais especificamente estou preocupada em como a precariedade […] pode
operar, ou está operando, como um local de alianças entre grupo de pessoas que de outra
forma não achariam muito de comum entre si. (2015c, p. 26-27, tradução minha)

Tais vidas e resistências de corpos precários parecem promover uma rasura no local
estabelecido para suas existências. São as vidas nuas, nos termos de Agamben, através dos quais o
filósofo italiano argumenta como se dá a existência do que ele chamou de Homo Sacer:

[...] qualquer um pode matar sem cometer homicídio, sua existência é reduzida a uma vida
nua despojada de todo direito, que ele somente salva em uma perpétua fuga […] Justamente
por ser exposto a todo instante a uma incondicionada ameaça de morte, ele encontra-se em
perene relação com o poder que o baniu. (2014, p. 178)

O ato de viver nas bordas entre o banimento e a sobrevivência, seria o que Foucault (2008)
chamou de contra-conduta. Nas palavras do filósofo francês: “movimentos que tem como objetivo
outra conduta, isto é: querer ser conduzido de outro modo [...] São movimentos que também
procuram eventualmente, em todo caso, escapar da conduta dos outros.” (Foucault, 2008, p. 257).
Estes modos outros de conduta adentram o debate sobre uma vida visível e enlutável, o qual segue
na obra recente de Butler e na leitura feita pelo filósofo Vladimir Safatle.

Antígona e outros clamores: pensar políticas de luto com Judith Butler e Vladimir Safatle
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Podemos retornar até Antígona, na peça homônima de Sófocles (2011), quando a mesma
decide realizar publicamente os rituais de enlutamento do irmão morto, mesmo sabendo que estava
transgredindo a ordem do governador Creonte, que proibira tal ato. Muitos séculos depois, o ato de
Antígona continua a reverberar, seja nas reivindicações dos corpos e memórias dos desaparecidos
nas ditaduras latino-americanas, seja em movimentos como “black lives matter” ou “cadê o
Amarildo?”. Estratégia que mobiliza setores e populações frente à Necropolítica de Estado
(Mbembe, 2006).

Políticas de morte que nos remetem ao Seminário VII (1986) de Lacan e suas notas acerca da
tragédia em Antígona. Nelas, o psicanalista francês afirma que ao realizar o ritual de enlutamento de
Polinices, a heroína grega impedira que o Estado matasse-o pela segunda vez. Assim, a atitude
evitou a experiência radical da destituição, a qual, segundo Lacan, seria a morte física seguida da
morte simbólica. Ou seja, o aniquilamento não apenas da vida presente no corpo, mas do próprio
direito à memória. Discussão presente mais especificamente no capítulo XXI, quando tematiza
“Antígona entre duas mortes” (2008, p. 319).
Na leitura de Safatle (2010), é a compreensão de que ninguém pode ter o seu direito de
memória retirado. Matar alguém duas vezes seria, nesse contexto, eliminar da experiência social a
experiência do luto, ou seja, o apagamento simbólico é aquele no qual não haveria sequer alguém
para ser velado. Assim, o Estado conseguiria eliminar não só aquele corpo, mas a memória da sua
existência. Paradoxalmente, o gesto de Antígona também faz com que a mesma seja jogada na
condição entre-duas-mortes5, uma vez que, ao enfrentar Creonte, ela está transgredindo o papel que
é socialmente estabelecido para a mulher no contexto da sociedade grega. “Ela é expulsa do
universo simbólico que sustenta a pólis, e por isso, morta duas vezes, física e simbolicamente. No
entanto, sua ação não é apenas feita, mas repetida.” (Safatle, 2012, p. 236) quando questionada na
presença do governante. Nas palavras do filósofo:

Que a violência simbólica do desaparecimento do nome, da anulação completa dos traços


seja o sintoma mais brutal do totalitarismo, eis algo que explica porque, no momento em
que a experiência da democracia ateniense começava a chegar ao fim, o espírito do povo
produziu uma das mais belas reflexões a respeito dos limites do poder. Ela é o verdadeiro
núcleo do que podemos encontrar nesta tragédia que não cessa de nos assombrar, a saber,

5
Para Zizek, “Antígona […] põe sua vida em risco e entra no domínio 'entre duas mortes' precisamente para
evitar a segunda morte de seu irmão: dar a ele um rito funeral apropriado para assegurar sua eternização na ordem
simbólica” (2016, p. 181 – grifos do autor)

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Antígona. [...] vale a pena lembrar como no seu seio pulsa a seguinte ideia: o Estado deixa
de ter qualquer legitimidade quando mata pela segunda vez aqueles que foram mortos
fisicamente, o que fica claro na imposição do interdito legal de todo e qualquer cidadão
enterrar Polinices, de todo e qualquer cidadão reconhecê-lo como sujeito apesar de seus
crimes. Pois não enterrá-lo só pode significar não acolher sua memória através dos rituais
fúnebres, anular os traços de sua existência, retirar seu nome. [...] O desaparecimento deve
ser total, ele deve ser objeto de uma solução definitiva. Não são apenas os corpos que
desaparecem, mas os gritos de dor que têm a força de cortar o contínuo da história. “Não
haverá portadores do seu sofrimento, ninguém dele se lembrará. Nada aconteceu. [disse
Creonte]”. (SAFATLE, 2010, p. 239-240)

O grito de Antígona reverbera nas políticas de enlutamento quando estas questionam quais são
as vidas estabelecidas como passíveis de pesar. Tema sobre o qual a filósofa Judith Butler tem se
dedicado desde a publicação do livro Vida Precária (2006). Neste sentido, diz a autora, não é que o
luto seja o objetivo da política, mas sem esta sensibilidade para o pesar, seria perdido um sentido
mais profundo necessário para nos opormos à violência.
Ao confrontar o governante e assim assumir uma posição interditada ao seu gênero e
parentesco, Antígona teria transgredido os limites da ordem simbólica, jogando-se no campo do
impensável, do Real, do psicótico. A heroína grega afirma inclusive que já está morta antes mesmo
de sua condenação. Entretanto, para Butler esta operação de foraclusão é performativa e
discursivamente produzida. Frente àquelas conclusões psicanalistas, a pensadora queer prefere
apostar, em O clamor de Antígona (2014), no gesto da protagonista como um ato que explicita o
caráter contingente das normas que governam a ordem simbólica. Assim, garantiria o
questionamento acerca das possibilidades de outras formas de organização dos vínculos sociais e
familiares, e por extensão, outras formas de políticas de enlutamento. Como argumenta a autora
sobre sistemas de filiação alternativos:
algo como o sistema de companheiros que a Gay Men's Health Clinic organizou, em Nova
York, para cuidar daqueles que vivem com HIV e AIDS também seria qualificado como
parentesco apesar da enorme luta para as instituições médico-legais reconhecerem a
condição parental dessas relações; isso se torna manifesto, por exemplo, pela incapacidade
de assumir responsabilidade médica pelo outro ou, ainda, de obter permissão para receber e
enterrar a pessoa morta [que era abandonada pelos familiares de origem] (IDEM, 2014, p.
105)

O debate motivado sobre o gesto de Antígona, vai trilhar o caminho de políticas de enlutamento que se
farão presentes, a partir de então, em parte significativa da obra de Judith Butler. Como a autora afirma em
Quadros de guerra:

A distribuição desigual do luto público é uma questão política de imensa importância. Tem
sido assim desde, pelo menos, a época de Antígona, quando ela decidiu chorar
publicamente pela morte de um de seus irmãos, embora isso fosse contra a lei soberana.
Porque os governos procuram com tanta frequência regular e controlar quem será e quem
não será lamentado publicamente? (2015a, p. 6)

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A regulação do que aparece, daquilo que Butler nomeava até então como abjeto no campo da
sexualidade, se abre para o debate da relação entre luto e o que é reconhecido como uma vida
válida. É esta a conclusão de Safatle quando argumenta que “foi tal compreensão que levou Butler a
desenvolver sensibilidade às relações de poder e visibilidade, ou seja, à maneira como o poder se
impõe, criando múltiplas zonas de invisibilidade.” (2015b, p. 220). Pois, como afirma Butler,
citando a questão de Antígona em Vida precária, na morte de uma vida precariamente reconhecida
como vida, “Não haverá nenhum luto (disse Creonte em Antígona) […] nada daquilo pertence à
ordem do acontecimento. Não se passou nada. E esta falta de reconhecimento se impõe mediante
uma identificação destas vidas com a manutenção da violência.” (2006, p. 63, tradução minha).
Neste mesmo sentido e à sua maneira, nos lembra Vladimir Safatle6:

não enterrar alguém é a figura mais clara do apagamento do nome e do lugar, séculos e
séculos tentaram deslegitimar a natureza política de seu gesto […] [ao realizar o ritual de
luto público] Ela [Antígona] falava em nome do que fora expulso do convívio dos
humanos. Por falar em nome do que não é mais humano, ela podia falar em nome dos
deuses, podendo preservar o que os humanos apagam. (2016. p. 17-18)

Para Hardt e Negri (2016a), essa é uma potência disruptiva do inumano da multidão
contemporânea. Eles afirmam que a “revolução será monstruosa” ao fazerem eco com a noção de
“multidões queer” em Preciado (2011). Na esteira desse argumento, Safatle, ainda à sua maneira7,
completa: “um traço emancipador da queer theory de Judith Butler está vinculado exatamente a esta
noção de que o monstruoso ('queer', cuja tradução aproximada seria 'estranho', 'esquisito') no campo
da sexualidade é muitas vezes a figuração de novas formas de vida” (2012, p. 233-234).
Assim, Butler aponta que a inscrição da experiência de Antígona na linguagem levanta a
questão da possibilidade de abertura para que seu ato seja lido de outras formas em outros
acontecimentos e para além da tragédia. Na verdade, é a própria escritora que afirma o caráter
aberto dos efeitos de Antígona na linguagem: “Ela fala a linguagem do direito da qual está excluída
[…] então Antígona é a ocasião de um novo campo do humano, conquistado através da catacrese
política.” (Butler, 2014, p. 114).

6
A noção de ato em Lacan vai imprimir profundas diferenças entre as interpretações de Antígona feitas por
Butler e Zizek (2016; 2003). As formulações de Vladimir Safatle, um dos principais interlocutores do filósofo esloveno
no Brasil, não deixam de ser afetadas por este fato. Contudo, os limites deste artigo não permitem o desenvolvimento de
tal discussão.

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Safatle pensa a performatividade da política não como uma multidão, mas como despossessão.

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Nesse contexto, a autora se pergunta se Antígona conseguiria ser “diferenciada da destruição a
que busca resistir” (IDEM, p. 127). Dito de outra forma: poderiam os clamores de outras Antígonas
possuir outros desfechos para além da tragédia? Esses acontecimentos marginais que emergem,
apesar da inexistência de um local para os mesmos, são abordados como “espaços de
aparecimento”, através da leitura recente que Judith Butler (2015c) faz das formulações de Hannah
Arendt (2015). Daí surgem outras questões levantadas por Judith Butler:

como alguém consegue viver com a noção de que o seu amor não é reconhecível e que suas
perdas não são consideradas perdas? Como alguém vive dentro de uma vida não-
reconhecida? Se o que e como você ama já é uma forma de nada ou não-existência, como é
possível explicar a perda deste nada e como isto poderia se tornar passível de luto? […]
Como uma população apartada da fala consegue falar e fazer suas reivindicações? Que tipo
de disrupção é esta no campo do poder? (2009, p. 7-8, tradução minha)

Tais perguntas se toram indispensáveis para pensar a política de enlutamento hoje. No caso de
Butler, ao se perguntar o que é reconhecível como uma vida válida, parece haver a retomada de uma
cena pós-hegeliana de reconhecimento. Logo, não há aqui uma demanda por reconhecimento a
partir dos predicados/identidades nos termos clássicos da dialética senhor/escravo. Parece ser nesse
sentido que o pensamento da teórica queer aponta hoje para uma política da despossessão (Butler;
Athanasiou, 2013; Butler, 2015a, 2006). Em uma espécie de reconhecimento sem identidade. O
reconhecimento do outro não mais pelos predicados que possui, mas por uma espécie de
precariedade que atinge a todos e todas8.
Ainda no Brasil, temos as apropriações da despossessão butleriana por parte de Vladimir
Safatle (2015a). Para o filósofo, viveríamos em uma política do medo como afeto paralisador da
criação. E somente a circulação de afetos, para além da esperança ou do medo, que garantiria a
construção de uma política da despossessão. Uma política para além das identidades, dos
predicados. Em última instância, uma política do desamparo no sentido psicanalítico, na qual eu me
deixo ser despossuído pelo Outro e uma espécie de vínculo ético surge a partir da experiência de
precariedade. Esse desbloqueio possibilitaria a emergência do novo, do impensável, daquilo fora da
existência discursiva palpável. Aqui, a ação do luto se apresenta como estratégia fundamental. Nas
palavras e Safatle:

8
A despossessão é tratada em Judith Butler como uma aporia que diz respeito não apenas a uma possibilidade
induzida de privação, mas também uma exposição quase ontológica à alteridade. Neste sentido, como afirma Oliveira
(2015), não é clara na obra da autora a distinção entre precaridade e despossessão e muitas vezes os termos parecem ser
tratados como sinônimos.

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Podemos dizer que o trabalho de luto não é uma construção de processos de substituição
próprias a uma lógica de compensação. Ele é a produção de uma temporalidade que pode se
dispor em um presente absoluto. Não se trata assim de justificar a realidade, mas, de certa
forma, desrealizá-la mostrando como os espectros do passado ainda estão vivos e prontos a
habitar outros corpos, abrir outras potências […] [pois o] trabalho de construir tal
corporeidade [política], nunca poderia ser compreendido como uma astuta operação de
resignação, como várias vezes foi sugerido, de Marx a Deleuze. Ele [o luto] é o uso da força
do desamparo na dissolução dos bloqueios do presente, na transformação concreta da
experiência do tempo a fim de produzir uma forma inaudita de confiança e abertura (IDEM,
2015a, p. 180 - 181).

Assim é que as propostas de Butler e Safatle, guardadas as suas diferenças, problematizam a


insuficiência das formas como o indivíduo moderno faz política. Em ambos os casos, a discussão do
enlutamento não poderá ser negligenciada no processo de reabertura do campo da política.

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Antigone and other claims: dialogues on politics of mourning between Judith Butler and
Vladimir Safatle

Astract: Since appearing in "Antigona's Clain" (2000), the Greek heroine has been requested by
Judith Butler in her work not only to think about kinship issues, but also to propose a policy of
contemporary mourning. If the relationship with kinship is treated deeply in the work already
quoted and in "Undoing gender" (2004), the actual discussion of mourning will appear in
"Precarious life" (2004) and "Frames of war "(2009). Thus, while in the 1990s, the author dedicated
herself to write about bodies that matter under the focus of the interpellation of gender and sex,
from the year 2000 her concerns will be extended to the different bodies that are not taken as a
worth and grievable life. In the Brazilian reception of Judith Butler's thought, the dialogue
established by Vladimir Safatle will be highlighted. The recent formulations of the American
thinker appear in "Grande hotel abismo" (2012) and "O circuito dos afetos" (2015b). Safatle will
also use Antigone's act to think about the needs of contemporary politics in "O que resta da
ditadura" (2010); "O dever e seus impasses" (2013) and in his most recent text published "Quando
as ruas queimam: manifesto pela emergência" (2016). The inspiration in the gesture of Antigone
will approach and distance the bets of the two authors.

Keywords: Antigone; politics of mourning; space of appearance; helplessness

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