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ópera de nãos

salgado maranhão

ópera de nãos
© 2015 Salgado Maranhão

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial
Isadora Travassos

Produção editorial
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Victoria Rabello

Capa
Fernando Sehvenn

cip-brasil. catalogação na publicação


sindicato nacional dos editores de livros

M26o

Maranhão, Salgado
Ópera de nãos / Salgado Maranhão. – 1. ed. – Rio de Janeiro : 7Letras, 2015.

isbn 978-85-421-0343-4

1. Poesia brasileira. i. Título.

15-22059 cdd: 869.1


cdu: 821.134.3(81)-1

2015
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá 580, sobreloja 320 – Ipanema
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
sumário

Da titulação à ação dos títulos:


o novo livro de Salgado Maranhão
Charles A. Perrone7

lacres
Lacre 1 17
Lacre 2 18
Lacre 3 20
Lacre 4 21
Lacre 5 22
Lacre 6 24
Lacre 7 25
Lacre 8 27
Lacre 9 28
Lacre 10 29
Lacre 11 30
Lacre 12 31
Lacre 13 32

chão de mitos
Magna 1 35
Magna 2 37
Magna 3 39
Magna 4 40
A filha de Atlas 41
Al-Batrã42
Cidade perdida 43
Ilhéu44
Reinança45
Esgrima46
Seppuku48
Pastinha zen (“o princípio sem o método”)  49
Sertânica 4 50
Viajor52
Águarar54
Chão de mitos 55

louçaria do amor partido


Lenda59
1. Novelo  60
2. Sequia  62
3. Nudez 64
4. Amada 65
5. Febre 66
6. Capricho 67
7. Cais 68
8. Prisma 70
9. Louçaria 71
10. Ira 72
11. Cigana 73
12. Uivo 75
13. Grei 76
14. Clivagem 77

O esfacelar da univocidade:
a Ópera de nãos de Salgado Maranhão
Iracy Souza79

Sobre o autor 85
da titulação à ação dos títulos:
o novo livro de salgado maranhão

O responsável pela seção de poesia brasileira de uma con-


ceituada publicação da maior biblioteca do mundo assim se
manifestou na introdução de sua contribuição ao mais recente
volume: “Um acontecimento que assaz deu o que pensar no
domínio da lírica da segunda metade da primeira década do
novo século e milênio foi o lançamento teatral de “Os desman-
damentos” (1/8/2009, O globo), um autodeclarado manifesto
“contra a banalização indiscriminada da poesia” dedicado
“aos que julgam que ela... é ...artigo de primeira necessidade.”
Esta proclamação de onze itens de Geraldo Carneiro (1952) e
Salgado Maranhão (1953) (re)afirma a vitalidade e a pluralidade
do gênero, que pode oferecer suas próprias marcas de realidade,
verdade e sinceridade. Traços essenciais como a imaginação
linguística, a musicalidade e o paradoxo se ponderam na atua-
lidade, quando ainda se pode apreciar os melhores legados da
tradição ocidental. Já sobre o livro correspondente do segundo
manifestante, o acadêmico escrevia ...A cor da palavra..., poe-
mas reunidos (1978-2009) de um dos poetas mais admirados
e benquistos da nação. Sem deixar jamais de aperceber-se da
conjuntura e da experiência coletiva relevante, o poeta con-
sistentemente contempla as palavras em si em agrupações
multicromáticas.” *

* Traduzido do verbete “Brazilian Literature, Poetry”. In: McCann, Katherine


D.; North, Tracy (Eds.). Handbook of Latin American Studies. Vol. 66. Austin:
University of Texas Press, 2011, p. 580-591.

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O título do presente livro, o segundo do poeta após o da
poesia reunida (o anterior foi O mapa da tribo, vencedor do
Prêmio Pen Clube de Poesia em 2014), é notavelmente suges-
tivo. Os polos de Ópera de nãos – encenação de espetáculo
lírico-musical erudito e recusa(s)/negações – fazem pensar
no próprio modo de ser do título, da denominação do veículo
particular do produto de poeisis. A inscrição ou nome de um
poema, de uma sequência, ou de um poemário, tem numero-
sas possibilidades expressivas. Sobre tudo, supondo uma leitura
convencional linear, é o início, a primeira enunciação que pode
afetar uma resposta ao corpo do texto. O título existe autono-
mamente antes de que a leitura (ou a audição) em si comece, e
vai ganhando significado em associação com o que segue nos
versos, à medida que vai figurando no volume que o engloba,
ou mesmo em relação a outros poemas do mesmo autor. Em
The title to the poem (Stanford, 1996), Anne Ferry afirma que
o título, ao indicar algo sobre o poema, pode ser seletivo ou
guardar segredo, pode ser direto ou obtuso. Títulos que “pare-
cem extravagantemente sem relação aos poemas cometem um
assalto mais violento sobre os tipos de autoridade reivindicados
pela presença do título.” Pois bem, nas fases (pós) modernas,
os títulos poéticos, tanto no Brasil quanto noutros países, reve-
lam a influência de uma miríade de aplicações da linguagem:
etiquetas, anúncios-propaganda, publicidade, escrita comercial
e científica, manifestos, sinalização rodoviária, artes visuais, e
claro, toda a história da literatura. Há que contemplar as veredas
de Ópera de nãos.
Ópera é opus, obra, peça músico-dramática, que pode ser
bufa ou cômica mas sempre se realiza como desempenho gru-
pal, de muitas vozes, sem deixar de haver solos (árias), solistas
(cantores) e um regente. Assim figura-se um contraste entre
um impulso coletivo(da tribo, épico) e outro lírico (do eu pri-
vado). A opção por esta palavra titular poderá induzir quem

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lê a esperar ou buscar poemas com título de índole musical,
motivos musicais, e frases que caibam no paradigma. Havê-
los-á, mas caberá determinar em que proporção. Por sua parte,
o parceiro titular nãos se impõe no plural e nos instiga a indagar
o quê será recusado ou negado no desenrolar da obra a seguir.
E claro, nada surpreenderia que ficássemos no aguardo do apa-
recimento do título do livro no decorrer dele, podendo surgir
a especulação: será o poema onde aparecer aquele que melhor
defina a coleção? Antes disso, já no texto que serve como epí-
grafe geral do livro, “Ladainha”, teremos uns primeiros “man-
damentos” (“não”-----ás) capazes de nos levar a contemplar os
motivos do <eu lírico> da ocasião. A palavra ladainha funciona
tão bem poeticamente por ter várias acepções (referentes a reli-
gião, rito, discurso, valoração, até à iniciação de uma roda de
capoeira). Para muitos o sentido oracional há de dominar, daí
nascendo uma expectativa de dimensão espiritual no que segue.
Os livros de Salgado Maranhão costumam ter uma estru-
tura externa trabalhada, e esta vez não será exceção. A nova
coleção possui algumas séries de poemas numerados e se divide
em três partes (breves sequências todas coesas ou mais livres?,
leitores atentos dirão), cada uma com sua respectiva epígrafe. A
primeira divisão é “Lacres” e se desenvolve sob o signo rítmico
da melopeia: “Cantar é a respiração / que atravessa as coisas.”
Como não se atribui, havemos de calcular que se trata do poeta
de A cor da palavra? Gostosa conjetura. A segunda parte “Chão
de mitos” é introduzida por uma citação de um artista da pala-
vra chamado Jorge Luis Borges, que foi poeta ultraísta e bonae-
rense antes de destacar-se no mundo das ficções. Seguindo o
toque da epígrafe, este conjunto de poemas – que viaja entre
múltiplas alusões civilizacionais, gregas e incaicas, do sertão ao
samurai et al. – se nos afigura a parte mais “universal” do livro,
mas certamente haverá quem opine que a terceira seção o seja,
pois não pode existir tema mais perene que a paixão, e a divisão

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se intitula “Louçaria do amor partido,” tendo uma epígrafe amo-
rosa do destacado escritor português Helder Macedo. É lógico
que domine aqui no terceiro ato da obra um relacionamento
eu-tu, mas o nós-vós (vocês) que impera noutras páginas do poe-
mário nunca está longe. Ao longo dele, entre outras tensões que
estruturam confrontos destaca-se a de sonoridade (v. grafia).
Outro traço do fazer poético de Salgado Maranhão é a fun-
cionalidade de palavras chaves recorrentes. Essas podem ser
as que integram títulos ou aquelas que aparecem e reaparecem
suficientes vezes para tornar-se especiais, eleitas, carregadoras
de significância adicional. O paradigma canto tem uma dúzia
de ocorrências em Ópera de nãos, e há uma “partitura”, mas
os nomes musicais são bem menos do que se vê/ouve em, por
exemplo, Viagem e Vaga música, de Cecília Meireles, poeta com
quem o autor do presente volume compartilha sensibilidades
neossimbolistas. Nele a música – seja duma grandiosa operação
imaginada ou duma modesta canção individual – pode tocar
mais na mente, na alma, no coração do que nos ouvidos que rece-
bem ondas sonoras. Outra maneira de idear criativamente esta
Ópera: ela não compõe uma programação em palco com canto-
res, atores, disfarces, orquestra, cenários e props, senão elabora
uma fazenda-tecido de dizeres-cantares, imagens, pensamentos,
sentimentos, símbolos. Palavras que, sim, ressoam em tantas
instâncias que chamam a atenção, formam um elenco, são da
equipe do essencial, dos chamados “temas eternos”: mar, cidade,
amor, flor, Deus, sangue, noite, dia, rio, pedra, tempo. Contudo, o
vocábulo que mais se faz presente nos versos desta Ópera é nada
menos que não, portanto qualifica como tom maior.
E o título completo com seus dois membros? As leitoras
e os leitores o/os encontrarão no trímero “Sem donatário ou
domínios/ insisto em reger esta ópera/ de nãos.” Esta linha – a
central do livro? – convida a meditar e provoca interrogações.
Por que, na primeira, um substantivo é singular e outro plural?

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Esta aliteração destina-se a trazer acontecimentos de séculos
passados à baila (as capitanias, o colonialismo, etc.)? ou mais
serve esta enunciação para formar uma metáfora pelo avesso do
reino da arte (desde tempos medievais)? Os tropos aqui confor-
mam uma interface da vivência lírica, particular, estética e do
plano pátrio, material, histórico? Enfim, continuando a leitura
até o final do livro mais um par de grupo de perguntas nascidas
do título: se esta é uma ópera, mesmo figurada, qual a trama?
Completa-se um perfil lírico-épico-dramático? ou terá simples-
mente um enredo além-convenção naturalmente amorfo? E, ao
mesmo tempo, um bis: o que – na matéria, no corpo,na alma,
ou até na moral – é alvo de negação? Esses nãos plurais não
acabarão sendo, afinal, no prazeroso espírito paradoxal dessa
performance paginada que se chama poesia moderna, uma
multifacetada afirmação?
charles a. perrone
Professor da Universidade da Flórida, Gainesville.
abril de 2015.

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ladainha

... porque erguemos palafitas


sobre as distâncias que nos secam
as juntas; sobre

a fuligem dos piolhos


onde almoçamos estatísticas –

e amamentamos víboras
com a seiva dos ossos.

Porque vendemos as pupilas


por um prato de sonhos

e só temos lágrimas
para o jantar – nesse

X-tudo de fuck you!

Porque turvaram-se as runas


e os olhos dos videntes;

porque nos encerraram às vielas


e nos assassinam por amor...
ii
Não secarás as raízes
do teu sopro
no abismo da noite púrpura;
não seguirás o fantasma
que atravessa os trilhos;
não cantarás aos muros de arrimo
tua fantasia de pássaro.

Escarpado é o chão
dos teus sapatos;
escarpado é o azul
rabiscado de estrelas;
escarpada é a rima
que lateja a alegoria
da palavra.
lacres

Cantar é a respiração
que atravessa as coisas
lacre 1

Uma larva de espinho


mordeu-me o sonho. E
atravesso a noite
sangrando pétalas.
Com esses uns
que alumbram meus arco-íris
– através dos olhos –

durmo sob a Via Láctea


e a cortesia dos predadores.

Desolada em seu próprio


couro,
geme a poesia
na porta do matadouro.

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lacre 2

Sonhei uma flecha Karajá


chispando o vento. Da taba
à Civilização do prepúcio. Sonhei
um ramo de espírito: o urucum
no Corão.

Que mar é esse


que inunda meus guizos?
que arcabouço alçará
minhas ramas de luz?

Um sol há de haver
para os que têm fome
de aurora, para
os roedores de silêncio.

Há um tempo de negar
o sangue ao sepulcro (negar
o osso ao machado).

18
A vingança entornou-se
no furor que devassa
o nosso umbigo (e
onde Deus esqueceu-se
dos anjos?).

São matilhas uivando


o que resta.

19
lacre 3

O mundo em seu lacre


de vidro,
agenda-se
para nutrir abismos: seu
pacote de raios; seu
tempo em demasia.

(E os anjos jantando crack,


e os porcos na sacristia).

Por isso edito esta cruz de sabres


nesse cardume de ontens,
nesse arremedo de eternidade.

Juro que vi
o século enfermiço decapitado
na cara da TV (a morte globalizando-se
em Pedrinhas ou em Kandarhar);

juro que vi
a morte narcísica
e seu personal trainer: não matam
para infamar os céus, matam pelo prazer de doer, matam
para querer ser Deus.

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