CAPITULO 3
“Se negro sou, ou sou bode, pouco importa, o que isso
pode?” inclusdo e cidadania na pena de Luiz Gama
Elciene Azevedo
..08 S6is produzem mundos.
Luiz Gama, 1880,
O rabula Luiz Gonzaga Pinto da Gama foi um dos grandes militantes
do movimento abolicionista de seu tempo. Saido da escraviddo, em pouco
tempo se fez notar no universo dos homens de letras de Sao Paulo do século
XIX, tendo atuado como poeta e jornalista de grande prestigio nas folhas
locais. Antimonarquista, foi um dos fundadores do Partido Republicano
Paulista e figura publica proeminente da magonaria paulistana.
Em 1930, quando Sud Mennucci escreveua que seria até entao a biografia
mais completa desse personagem, anedotas sobre ele ainda eram bastante
vivas entre os que frequentavam o universo juridico paulistano. Uma dessas
histérias Ihe foi narrada por Filinto Lopes, primeiro tabelido da cidade de
Sao Paulo:
Numa audiéncia em que Luiz Gama, como advogado, tevea necessidade
de ouvir 0 Brigadeiro Carneiro Leao, homem que gostava de referir-se
nm
Digitalizado com CamScanner4
Fizemos amizade intima, de irmios diletos, ¢ cle comegou a ensinar-
meas primeiras letras.
,e tendo obtido ardilosae
Em 1848, sabendo euler e contar alguma cous
secretamente provas inconcussas de mina liberdades retire" fugindo,
dacasa do alferes Antonio Pereira Cardoso, que allés votava-?e 8 maior
estima, e fui assentar praca. Servi até 1854 seis anos: cheguei a cabo de
esquadra graduado,e tive baixa deservigoy depot
por ato de suposta insubordinagio, quando tinh:
‘um oficial insolente, que me havia insultado ¢ ave soube conter-se'.
.sde responder a conselho,
a melimitado a ameagar
O trecho todo é nebuloso, € nenhuma documentagao para além desse
relato foi encontrada para esclarecé-lo. Assim, levanta mais dtividas do que
oferece respostas sobre os caminhos percorridos para alcangar a alforria,
sobretudo em relacao as “provas inconcussas” que teriam permitido fugir
com seguranca do dominio senhorial e assentar Prasa na policia da capital.
Devemos lembrar que, na primeira metade do século XIX, Sao Paulo era uma
cidade de pequenas dimensoes, com caracteristicas fortemente rurais; logo,
‘um escravo nio permaneceria muito tempo fugido nessa situagao descrita
por Gama sem que 0 senhor tomasse conhecimento do seu paradeiro -
elemento que reforca a hipétese da prova juridica da escravizacao ilegal.
E sintomitico, entretanto, o fato de Luiz Gama atrelar na sua narrativa 0
aprendizado das primeiras letras 4 restituicao de um direito que lhe havia
sido usurpado ao ser comercializado como escravo.
Mais adiante na carta pode-se observar logica parecida como explicagao
de novas e bem-vindas mudangas em sua vida:
Durante o meu tempo de praca, nas horas vagas, fiz-me copista; escrevia
para o escritério do escrivao major Benedito Antonio Coelho Neto, que
tornou-se meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento, desempenha
ocargo de oficial maior da Secretaria do Governo; e, como amanuense,
no gabinete do Exmo. Sr. Conselheiro Francisco Maria Furtado de
Tree ears earn
Saat nsddtics i eae 1a. aC ein policia e judicatura,
lade de Direito, fui eu seu ordenangas Po
Digitalizado com CamScannermeu cariter, por minha atividade e por meu comportamento, conquistei
a sua estima ¢ a sua protegio; ¢ as boas ligdes de letras e de civismo,
que conservo com orgulho’.
O dominio das letras franqueou ao soldado exercer a fungio de escrevente
no Ambito da administragao publica, carente de bragos alfabetizados, ¢ a
possibilidade de convivere tecer relagdes de amizade e protegao com homens
am, ou passaram a ocupar mais tarde, cargos importantes do
que ocupa
funcionalismo provincial. O Conselheiro Furtado de Mendonca, lente da
faculdade de Direito e delegado de policia da capital por muitos anos, 0 elegeu
seu homem de confianga. A “estima e protecio”, assim como as “ligdes de
letras e civismo”, que Luiz Gama cuidadosamente afirma ter “conquistado”
gragas.a suas qualidades pessoais e profissionais, certamente foram decisivas
para a sua nomeago, em 1856, como amanuense da Secretaria de Policia,
onde trabalhou até 1869.
Nao toa é para o Conselheiro Furtado a dedicatéria do livro de poesias
satiricas que publicou nesse mesmo periodo, Primeiras Trovas Burlescas
de Getulino, de 1859, onde se lia: “como mesquinha prova de profundo
reconhecimento, o seu humilde servo, L. G. Pinto da Gama’*. Se na carta
escrita em 1880 0 reconhecimento da prote¢ao de um alto funciondrio
da provincia vinha necessariamente acompanhado da justificativa de
seu merecimento, em 1859 as palavras de agradecimento carregam tom
subserviente, indicando a importancia das relagdes de dependéncia na sua
recente inser¢ao no mundo das letras, reservado a homens livres e brancos
provenientes das familias mais abastadas. As contradi¢gées e dificuldades
dessa situa¢do, no entanto, nao passaram ilesas pela pena de Luiz Gama e
foram tratadas em uma das poesias do livro, talvez a que mais abertamente
aborda as tensdes e preconceitos por ele vivenciados na condicéo de um
liberto letrado aspirante a poeta, intitulada “No album - do meu amigo J.
A. da Silva Sobral”:
Se tu queres, meu amigo,
No teu album pensamento
Ornado de frases finas,
Ditadas pelo talento;
75
Digitalizado com CamScannerNio contes comig>»
Que sou pobretio:
Em cousas mimosas
Sou mesmo um ratio.
‘Mas se queres que alinhave
Palavras desconchavadas,
Desculpa, com paciéncia,
Sandices que vio ritmadas.
ul
Que estou a dizer?!
Bradar contra o vicio!
Cortar nos costumes!
Luis, outro oficio.
Nio lutes com isso,
‘Trabalhas em vi
E podes tocar
Nalgum paspalhdo.
Vai i para a tenda
Pegar na sovela,
Coser teus sapatos
Com linha amarela.
Mordendo na sola,
Empunha o martelo
Nao queiras, com brancos,
Meter-sea tarelo,
Ll
Gitnciase letras
Nao sio para ti
Pretinho da Costa
Nao é gente aqui.
Digitalizado com CamScannerA sitira era um género iterétio popular no periodo, segundo os jornais da
cidade, acometia principalmente jovens aspirantes ao mundo das letras*, Luiz
Gama aproveitou-se da monlacidade permitida pelo género, transformando-0
em instrumento de critica politica e de costumes que se estende ao longo
de todo o livro e revela sua posicao sobre os mais diferentes assuntos, Nas
estrofes acima, entretanto, Gama refletia sobre os
ignificados ¢ os riscos
wa de
de sua presenga negra e ponto de vista critico nesse universo, temati:
forma irdnica o que seria visto como um atrevimento aos olhos da classe
senhorial, ocupar lugar tio incomum para um homem de cor, ex-cativo.
Aos homens como ele, de ascendéncia africana, cabia oficios como 0 de
sapateiro, aprendido em tempos de escravizagio, e nao as “ciéncias e letras’,
reservadas aos brancos, aos quais nao poderia igualar-se no refinamento
dos versos. A deniincia da exclusio gerada pelo preconceito racial vinha
acompanhada da aparente impossibilidade de ultrapassé-la, em um primeiro
momento. Restava a ele “ouvir o conselho” de sua “razao” e render-se aos
designios da sociedade escravista. As estrofes seguintes, no entanto, elevam
0 tom politico da reflexao:
Desculpa meu caro amigo,
Eu nada te posso dar,
Na terra que rege o branco,
Nos privam té de pensar!...
Ao peso do cativeiro
Perdemos razao e tino,
Sofrendo barbaridades,
Em nome do Ser Divino!!
E quando la no horizonte
Despontar a Liberdade;
Rompendo as férreas algemas
E proclamando a igualdade;
Do chocho bestunto
Cabega far
‘Mimosas cantigas
Entao te darei’,
7
Digitalizado com CamScannerjema na verdade apontava
das desigualdades ¢ intolerancias
entre eles a Igreja, a
es” sofridas pelos
erdade mas, no
defensores+
apenas de sua lib
erpassava todo
ferioridade
s naturals
atensao que P
uma suposta in!
va ° Pe
a sr ated regimes ao por causa de caracteristica
deascendéncia africana. Uma vez rompidas “as algemas”
Idade, “mimosas cantigas” sairiam da sua pena. Luiz
contexto nO qual o fim da escravidao era algo muito
itico brasileiro, a abolia0 do cativeiro ea necesséria
de.
ousadia de um
0 poe!
geradap'
jnerentes a0s €scTavos
e restabelecida @ igual
Gama defendia em 1859»
distante no. horizonte po!
equidade na inclus40 do negro como cid
CO tema “fora do lugar’ ou Se}2 do incéi
ponto de vista negro que se expressava por
sociais de seu tempo, é uma constante nos seus
aborda a questio de for
equidade. Em “Quem sou eu?” o mais
6 que dessa vez sob perspectiva bastante diferente, € eluci
teorizava 0 encontro das ragas na formagaéo da nacao, em estreit
jadao nessa socieda'
modo causado pela
meio das letras sobre
poemas, mas um em especial
contudo, a defesa dessa
volta a baila,
as mazelas
ma muito original, retomando,
conhecido deles, 0 assunto
da como Luiz Gama
0 didlogo com 0
romantismo, movimento literdrio que neste momento dava o tom da literatura
brasileira:
‘Amo 0 pobre, deixo 0 rico,
Vivo como 0 Tico-tico;
Nao me envolvo em torvelinho,
Vivo sé no meu cantinho:
Da grandeza sempre longe
Como vive o pobre monge.
‘Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que sao antigos,
Fujo sempre a hipocrisia,
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Digitalizado com CamScannerA sandice, | fidalguia;
Das manadas de Bardes?
Anjo Bento, antes trovoes.
Fago versos, nio sou vate,
Digo muito disparate,
Mas sé rendo obediéncia
A virtude, & inteligéncia:
Eis aqui o Getulino
[..]
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De magante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hao de chamar-me tarelo,
Bode, negro, Mongibello;
Porém eu que nao me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode"?
Sob 0 pseudénimo Getulino, o autor constréi um personagem narrador
nesse poema que valorizava virtudes em detrimento de posi¢des soci;
mantendo distancia dos ricos, fidalgos que ostentavam titulos, “os homens.
poderosos”. Enunciando o género da sua poesia, 0 personagem Getulino
aparece aqui como um sujeito de cardter inflexivel em relagio aos seus
principios, curvando-se apenas “h virlude, & inteligéncia” ~ em uma clar
alusio & busca da independéncia com a qual te
Em “Quem sou eu?” a discriminagio ‘acial & tratada com irreveréncia,
expressa tanto na revelagio da conotagao pejorativa dos termos que seriam
para atingi-lo e difamd-lo, quanto na
Acidos comentirios,
us
usados por esses homens brancc
desafiadora pergunta langada ao leitor sobr
desses termos - “o que isto pod
08 significados e importancia
zo?
Digitalizado com CamScannerHodes ha de toda a casta,
Pois que aespécie é muito vasta..
s, hit rajados,
Ha cinzent
Baios, pampas ¢ malhados, 4
Bodes negros, bodes brancos, :
F, sejamos todos francos, 1
Uns plebeus, ¢ outros nobres, :
Bodes ricos, bodes pobres, 3
Bodes sibios, importantes, 4
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
(ou)
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos hi meus parentes. :
=] ‘
Pois se todos tém rabicho, 4
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria, i
Folgue e brinque a bodaria; :
Cesse pois a matinada,
Porque tudo ¢ bodarrada"!
Como o leitor deve ter notado,a semelhanga com a anedota contada
no comeco deste capitulo nao é mera coincidéncia, e é mesmo poss{vel que
tenha vindo desses versos a inspiragio para o jocoso episédio.O mesmotom
debochado em relagio a alta comenda do Brigadeiro Carneiro, dirimindo as
diferengas sociais e raciais na afirmagao do parentesco entre um fidalgo que
ostentava seu brasio e um ribula negro, pode ser observado nesses versos:
Esse desdém possivel classficagio racial revela uma visio bastante particul
do que seria para Gama ser negro ou “bode” no Brasil escravista. O que st
€ que tal caracteristica de
cor nao poderia ser pejorativa, ou um elem
que apontasse uma possivel inferioridade determinada biologicamente P
raga, uma vez que guardava uma dive
rsidade enorme, bodes eram todo
nobres ¢ plebeus, ricos e pobres
sdbios e nem tanto, homens importantes,
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Digitalizado com CamScannere também 0s tratantes ~ todos seriam seus “parentes”. O pressuposto dessa
afirmacao estava no entendimento de que ser branco ou negro no Brasil nao
era uma questo de pigmentagio da pele ou da origem e condigao social de
cada um, mas sim de ascendéncia, Essa mesma ideia sustenta a dentincia
condenagio explicita do racismo em outros poemas das Trovas Burlescas,
como, por exemplo, em “Sortimento de Gorras”:
Se nobres desta terra, empanturrados,
Em Guiné tém parentes enterrados;
E, cedendo a prosdpia, ou duros vicios,
Esquecem os negrinhos, seus patricios;
Se mulato de cor esbranquigada,
J4 se julgam de origem refinada,
E, curvos & mania que os domina,
Desprezam a vové que é preta-mina:
Nio te espantes 6 leitor da novidade,
Pois que tudo no Brasil é raridade*!
Para um homem que era filho de africana, os critérios de diferenciagao
e hierarquiza¢ao sociorraciais, fossem eles a ostentacdo de titulos de
nobreza ou da brancura da cor da pele como garantias de pureza racial,
nao tinham nenhum valor, simplesmente porque nao eram possiveis
em terras brasileiras. Ao fim e ao cabo, a Africa, que havia sustentado
com seus bracos a escravidao no pais durante quatro séculos, acabava
sendo o ber¢o de todos os brasileiros, por mais que muitos buscassem
negé-la a qualquer custo. A cor “esbranquicada’, o “refinamento” e os
titulos de nobreza poderiam disfarcar uma procedéncia indesejada que se
manifestaria fisicamente; no entanto, antepassados enterrados em Guiné
revelariam uma mae em comum, a mie Africa. Essa porgao africana
que caberia a todos aparece como um vinculo de sangue, de parentesco,
um mito de origem que conformava o povo brasileiro: e se todos tem
“rabicho”, como afirmava em “Quem sou eu?’, “para que tanto capricho”
em designacées e atribuigdes de valores pejorativos, construidos a partir
da cor da pele? Na carta escrita em 1880, ao descrever o pai, Luiz Gama
retomaya esse ponto de vista ¢ reforgava a concepgio expressa no livro
vinte anos antes: “Meu pai, no ouso afirmar que fosse branco, porque
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Digitalizado com CamScanneri
tituem grave perigo 4 verdade, no que
ais ivas nesse pals, CO!
tais afirmativas atituer Bo ty
01 4 melindrosa presungao das cores humanas’
concerne a ‘ u
Os nae .s publicados em 1859 deixam evidente que os objetivos de
ee di a ia isto, um negro
Luiz Gama iam muito além da forma como poderia ser vist 8
uuiz Gama ial
inserga ndo dos brancos letrados. Era