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CAPITULO 2 Maria Firmina dos Reis: na contracorrente do escravismo, 0 negro como referéncia moral* Eduardo de Assis Duarte Tinha chegado 0 tempo da colheita, ¢ 0 mitho e o inhame e o mendubit eram em abundancia em nossas gas. Era um destes dias em que natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhs risonha e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coragéo. [1 ‘Ainda nao tinha vencido cem bragas de caminho, quando um assobio, que ai me que repercutiu nas matas, me velo orientar acerca do perigo iminente, aguardava. E logo dois homens apareceram, ¢ amarraram-me com cordas. 8 uma prisioneira era uma escraval Foi embalde que supliqueiem nome de minha filha, que me restitulssem a liberdade: os bérbaros sorriam:se de minhas ligrimas, ceolhavam-me sem compaixdo,Julguel enlouquecer, jlaue morrer, mas nome foi possivel..a sorte me reservava ainda longos combates.[-1 Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de in s de cruéis tormentos, fortinio e de cativeiro no estreito e infecto pordo de um navio. Trinta dia ede falta absoluta de tudo quanto énecessrio vid passamos nessa sepultua até que abordamos as praias brasileiras. Maria Firmina dos Reis, 1859 #20 romance Ursula, mais precisamente a0 rao momento de sua escravizagao ¢ as do navio negreiro até a chegada A epigrafe acima pertenc: capitulo IX, em que Mie Susana nar} agruras que se seguem, vividas no porao 20 Novo Mundo, Publicado ha mais de século e meio, mas nent assim 49 Digitalizado com CamScanner ografia literariay Ursula se destag, vos de abordagem daqueles q,, ae forga de trabalho submiss, explicitam a perspectiy, Os agentes do “coméreig, sede nossa histori lembrado pelos manuais de nosst hiSIO expe 08 1 pela contundéncia com que expo & Jos em mereador transformam seres human 0 ocabulat ea propria escolha vocab entos A diegese, 0 tom, autoral, identificada aos sof nefando” a servigo dos interesses MOF", prontamente classificados ¢ dirbaros das vitim ; vcantis € colonials eUrOPeUS sig Jaa mulher transformada cs -ganizagao social que é obrigag, vAssim fazendo, 0 romance gq a brasileira. Pe, omo “b idade ea or “peca” tem destacada a sua fumanidade ie Et a's a abandonar: “patria, esposor mae © AIM Tear i 6 é entao ine mo fendmeno até ent | z ae esas letras, a Africa é tematizada e SUTge ~ para além o espaco de civilizagao em que rio do sequestro ~, com jzam, em que Se planta e se colhe Jores e sentimentos de familia primeira vez em no: de ser apenas 0 cendi ‘eo comunitario se harmon! -xistem val dido por traficantes a servico do embora corriqueiro desde g 0 individual se casa e se fazem filhos, em que © e de patria. Espago este subitamente inva i aspecto mais nefasto da expansio europelay inicio dos descobrimentos. ‘Além da Africa ~ e, sobretudo, a agressao sofrida por seus habitantes =, outzo espago também surge pela primeira vez na literatura brasileira: 9 porto do navio negreiro. Descrito em detalhes; este espago submerso na dor é 0 palco onde se expdem os métodos adotados para atender aos reclamos dos acorrentados - mulheres e homens famintos e sedentos: Davam-nosa gua imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida mé imos morrer ao nosso lado muitos companheiros eainda mais porca: 4 falta de ar, de alimento e de agua. E horrivel lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que nao lhes doa a consciéncia de levé-los 4 sepultura asfixiados e famintos*. 0 ia evidenci no apelo ético. Em ambos,uma inédita voz narratiy: primeira pessoa . bos, Voz ni i di ‘ativa em prii expressa o drama das vitimas € acusar é julgar seus sequestradores. PI fimas a fim de a Julg i questradore Este eu negro subjugado logo se transmuta coragem histérica do enredo, um nds a fim de ampliar a licita-. Explicita-se tanto o empenho de informar Digitalizado com CamScanner se constitufa em fundamento central do modo s de produgio in a erente ao expansionismo colonial nas Américas. : a Pp eguindo esse Propdsito, o tom da narrativa seaproxima da oralidade. E, apesar de casti » apesa ‘astigo - exigéncia da horma lite as reiteragé » As reiteragdes nominais ¢ verbais, objetivando 0 reforgo da verossimilhanga, A estratégia é bem sucedid: : : : a sucedida e marca em cores vivas tanto o discurso da Personagem, que ganha foros d } que ganha foros de testemunho, quanto os préprios fatos narrados: a de entio -, apela, entre outros, Nos dois tiltimos dias nao h is ali louve mais alimento. Os mais insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lancaram sobre nés gua e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabecas do motim. As dores da perda da patria, dos entes caros, da liberdade foram sufocadas[sic] nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades. ‘Nao sei ainda como resisti - é que Deus quis poupar-me para provar a paciéncia de sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavan. A narrativa de Mae Susana mescla 0 relato do aprisionamento e da resistencia com 0 poder judicativo do discurso antiescravagista de Firmina. O texto reitera o libelo que debita ao colonizador nao apenas 0 roubo de seres humanos, tratados por seus captores como “animais ferozes das nossas matas que se levam para recreio dos potentados da Europa”s, mas igualmente sofridas durante a viagem. Contra a barbarie se imp6e a humanidade dos prisioneiros, cientes do risco De imediato,cabe ressaltar que 0 navio eméria, conforme nos ensina do lugar de meméria as atrocidades resisténcia, o que s6 atesta a edoalto prego a pagar pelo protesto. e seu porio configuram-se como lugares de m a “razio de ser fundamental” ar o trabalho do esquecimento, fixar um estado éa tinica Pierre Nora. Para ele, é “parar o tempo, bloque de coisas, imortalizar a morte, m: meméria do dinheiro ~ prender o méxim Ao nomear 0 porao como “sepultura’, designacao de “tumbeiro” para o navio utilizado na condu humana’, Segundo Nei Lopes, tal nomeagio “alude as condigas cram transportados os africanos escravizados para as ‘Américas’, Derivado de “tuba? remete ainda ao individuo responsavel por levar 0 mortos & aterializar o imaterial - 0 ouro ode sentido num minimo de sinais™. ‘o texto de Maria Firmina ecoaa cio da “mercadoria ices em que 5 Digitalizado com CamScanner Bs sepultura’, A inscricao conflui, portanto, Para a constituigao de um ¢; ‘AMpo semantico marcado pelos signos da agonia e da morte. Assim fazendo, o texts traz para a lingua portuguesa a fala ~ e a perspectiva ~ do africano, fruto da escuta atenta de suas perdas: civilizagao, liberdade, patria, familia e, parg muitos, a propria vida. E 0 faz sem perder de vista e, mesmo, enfatizando a Perspectiva de quem sobreviveu para contar a historia. Sobressai de imediato a postura de Sujeito de rememoragao, na qual © pessoal se irmana ao coletivo. E 0 discurso do Outro fazendo ouvir a fala dos escravizados. O romance prossegue com 0 verismo da descricio sobrepujando-se 4 ficco propriamente dita. Com isto, o texto ganha em densidade histérica e humana, 0 que perde porventura em termos de aprofundamento psicolégico dos personagens e do proprio andamento da trama, suspendendo-se esta para que se ouga a versio das vitimas. A narrativa da vida de Mae Susana em Africa e de seu aprisionamento ocupa todo 0 nono capitulo, e foi inserida no texto justamente no momento em que se dé a alforria de um jovem cativo, da liberdade. Essa perspectiva de leitura se confirma quando(otejada}entre outras, com as memérias de Mahommah Gardo Baquaqua - aqui chamado José da Costa -, escravo que chegou ao Nordeste brasileiro no final da década de 1840 e viajou anos depois para os Estados Unidos, lé conseguindo escapar de seu senhor e ganhar a liberdade, Alfabetizado em inglés, Baquaqua escreveu uma autobiografia e tornou-se um dos primeiros africanos a publicar suas memérias. Considerado uma preciosidade documental,seu texto antecede em cinco anos o romance de Maria Firmina dos Reis e confirma em muitos momentos 0 tom e, mesmo, diversos detalhes do inferno narrado pela romancista. Ao descrever a travessia do oceano, ele afirma: a fim de relativiza-la como conquista A Unica comida que tivemos na viagem foi milho seco cozido, Nao posso dizer quanto tempo ficamos presos assim, mas Pareceu um tempo muito longo. Sofremos muita sede, mas negaram a dgua que necessitivamos. Uma caneca por dia foi a dose permitida, nada mais; e muitos, muitos escravos morreram na travessia. [...] Quando um de nés se rebelava, cortavam a pele com faca, e esfregavam pimenta ou vinagre para 0 52 Digitalizado com CamScanner acalmar (! Softi € 0s outros também, muito por causa do enjoo do mar no inicio, mas isso n8o causou problema para nossos donos brutais. Nossos sofrimentos eram somente nossos. Nao tinhamos ninguém com quem compartilhar nossas misérias, nem cuidar de nds, nem para dizer uma s6 palavra de conforto, Alguns foram jogados no mar antes do tiltimo suspiro, Quando suspeitavam que alguém nao sobreviveria, era liquidado dessa maneira’, Como se vé, a ficcio e a autobiografia se iluminam e confluem na descrigio do trafico e na condenagao de sua desumanidade. A semelhanca ostentada pelos dois textos, distantes linguistica e geograficamente um do outro, é espantosa: est4 no tom indignado, transposto numa discursividade que apela a Deus como emblema maior da justica, passa pela dentincia do assassinato como forma de coergao, até descer a detalhes escabrosos da “sepultura” e do “tumbeiro” Tanto na tortura sddica e prolongada quanto na eliminacdo pela queimadura, enfatizam o embrutecimento dos mercadores. Deste modo, a especificidade que distingue a narrativa biogréfica da ficcional os porées onde habita a meméria da dor. E a distancia que separa Detroit - local de publicagao dos escritos de Baquaqua - de Sio Luis do Maranhao desaparece nas historias comuns vividas no Atlantico Negro, se dissolve n a inaugurar uma perspectiva transnacional, em que ficcio e depoimento ria da didspora africana nas se somam para edificar outra visdo da hist Firmina e Mahommah Américas*. Vozes aparentemente isoladas, Maria Baquaqua tém a uni-los a_mao_que busca na escrita o gesto politico, e se. irmanam na construcao da identidade diasporica. que remete.d Africa.e levam o leitor a indagar sobre a tepudia a escravidao, Ambos os textos barbarie e a respeito de quem verdadeiramente éo civilizado. Note-se ainda proprio ao memorialismo de Baquaqua € que o relato da experiéncia, se é e também presente na ante cena vem a ser o cerne de sua narrativa, faz-s de Ursula, como fonte documental de uma ficgéo empenhada num acerto de contas com o modo de produgao ainda vigente naquele momento em Muitos pontos das Américas. Assim fazendo, tanto Firmina quanto Baquaqua polemizam com © Pensamento filosdfico hegeménico em seu tempo ~ ¢ enfatizado Digitalizado com CamScanner 7 exemplarmente por Hegel na Fenomenologia do espirito, de 1807.6 12 Liog, de flosofia da histria universal, vindas a piiblico duras décadas mais tardy As Ligdes hegelianas simplesmente excluem a Africa do “Espirito’, isto é,q, mundo civilizado, por suposta incapacidade em atingir a “Ideia da Raza: Vista etnocentricamente como “mundo crianga, envolto na negrura q; noite’ estaria mergulhada na ignorancia eno canibalismo, sem cultura e sem, religido, submersa na “arbitrariedade sensual” que aproximna humanos de animais...}i a Fenomenologia do espirito idealiza 0 escravizado como aquele aque entregaaliberdade para néo perder a vida, conferindo a ele uma espéce de livre arbitrio sobre o proprio futuro, como se essa opgio existisse de fato e de direito para os milhdes de africanos deportados rumo as ‘Américas?,Os esctitos de Firmina, ¢ especialmente Ursula, assim como 0 depoimento de Baquaqua, posicionam-se nos antipodas desse discurso a0 desconstruirem a pretensa “escolha” entre morte ou escravidao e inserirem 0 europeu - ¢ seus agregados ~ como protagonistas maiores da desumanidade. O fato, hoje largamente comprovado, é que boa parte da “mercadoria humana’ faleciae era jogada ao mar e, neste ponto, ficgao ¢ memorialismo vao ao encontro da historiografia, o que confere a ambos uma fidelidade aos fatos que autoriza sua critica ao pensamento eurocéntrico. Inscrita também como depoimento, a fala da preta Susana contesta a verdade do discurso hegeliano e o desmistifica, Parte do ponto de vista de quem perdeu aliberdade para, nao s6 detalhar 0 processo em seus momentos mais cruéis, como também questionar a légica que reduz o africano a animal. fim de justificar seu aprisionamento e escravizagao. Ao chegar ao mundo em que passard a viver, a mulher recém-escravizada “gela de horror” e st compadece de seus irmaos, vitimas de um senhor de “coracdo de tigre” & de seus instrumentos: os agoites, 0 “anjinho”, o “cepo’, e as prisdes, onde os “sepultava vivos’, “carregados de ferros”’. Amplia-se desta forma 0 campo semantico da morte, j4 evidenciado nas cenas acima. Estende-se agora 4 toda uma vida de submissio e anulacao do sujeito - novo destino dos que acabavam de chegar, Cummpre destacar ainda a distancia que separa o textode Firmina em relagio, por exemplo, a0 O Guarani, de José de Alencar, publicado dois anos antes, Nesse, o narrador nao apenas entroniza Dom Antonio de Mariz. como herdi, mas confere endosso ideoldgico ao poder e a autoridade ai Digitalizado com CamScanner psolutos do “senhor de barago e cutelo’, Ao fazd-to, a abs 3 Narrativa alencarit ina jo diferencia os usos correntes dob: ni ‘araco, instrumento utiliz: 1 1 ‘ado tanto para oaprisionamento do gado ou das feras encontradas Nos mat ‘08, prendendo- os pelo pescogos quanto Para cercear os movimentos dos escravinnion possibilitando até mesmo levé-los ao enforcamento, Por outro lado, o discurso de Maria Firmina é habil em evitar o maniquefsmo excessivo, Os conflitos narrados nio sofrem a generalizacio que deposita toda a virtude de um lado e toda a vilania em outro, Isto possibilita a Mae Susana reconhecer que ha bondade e compaixio também entre os meandros do estamento opressor, 0 que mitiga, mas nao extingue, seu sofrimento. A escrava devota 4 jovem Ursula um amor de mae, 0 que sé amplia seu humanismo. Mas nem por isso esquece suas perdas: “a dor que tenho no cora¢ao sé a morte podera apagar! - meu marido, minha filha, minha terra... minha liberdade/*". ) Emi paralelo, a autora valese, habilmente, diga-se de passagem, da axiologia crist para estigmatizar o regime e seus métodos. Apesar de tudo, ‘Mie Susana reproduz em sua fala a crenga no catolicismo e em seus valores, endo é voz isolada. A todo instante, as alusdes a Deus permeiam a fala dos escravos, e dos homens e mulheres livres, sensiveis aos predicados crista tanto quanto o discurso do narrador. Com isso, 0 texto apela as conviccdes do piblico leitor, 20 mesmo tempo em que alveja indiretamente a hipocrisia da Igreja que dava sustenta¢ao moral 4 escravidao: “Senhor Deus! Quando calara no peito do homem a tua sublime maxima - ama a teu préximo como a ti mesmo -, e deixar de oprimir com tao repreensivel injustica ao seu semelhante!... aquele que também era livre no seu pais... Aquele que é seu irmao?!”", A assertiva do narrador se faz presente nas primeiras paginas do livro, quando este encena o encontro do escravo com um jovem “da alta Sociedade’, perdido numa estrada deserta. Ao representar brancos e negros como “irmaos’, 0 romance se apropria do discurso cristéo para fazé-lo Voltar-se contra seus pretensos adeptos instalados na casa-grande colonial, Ue, aliés, sobrevive e ganha forca politica com a Independencia. Nao ¢ 0 Caso de percorrer neste artigo as muitas posi¢des expressas por prelados Digitalizado com CamScanner ida 4 lembr; como Antonio Vieira e outros sobre a escravidio, Para tanto, basta ‘ar Gi i Arios presente: as imtimeras capelas e até igrejas erguidas nas fazendas, cendrios pr Sy seja nos romances da época, s em narrativas posteriores, ficcionais ou historiogréficas, Além de serem batizados - e ganharem, portanto, um novo nome ¢ um novo deus para crer e adorar - tinham os africanos seus descendentes que Cumprir a liturgia, com sua rotina de cultos e rezas, estando ou nao presente 0 vigirio da regio. No romance, 0 trat: ‘amento diferenciado conferido a questao percorre © texto do principio ao fim. No Primeiro capitulo, 0 jovem Tilio, em cujas veias “refervia 0 sangue africano’ ", depara-se com um homem branco rvitima de um acidente em que fica sob 0 corpo do cavalo morto, Seu nome é Tancredo & mais tarde, formard com Ursula o par Fomantico que protagoniza a narrativa. Perante o sol escaldante do trdpico, Tulio se compadece “em presenca d ena que se lhe ofereceu vista’, j4 que“a escravidio nao lhe a alma’, Ressalte-se de inicio que nao se trata de condenar a escravidio unicamente Porque um. Scravo especifico possui um caréter elevado, como se Pode ler em narrativas abolicionistas da época, brasilei Beiras. Trata-se de condenar a ligiéoea moral, Ea autora o faz gemonia branca, Se Pensarmos nginqua provincia do Maranhio, tem de avan scravagista se confundia desde se natureza das coisas e desmaiado na estrada, a dolorosa « embrutecera escravidao enquanto sistema que afronta are 4 Partir do préprio discurso oriundo da he €m termos do longinquo ano de 1859 e da lor pode: ‘Mos aquilatar o quanto tal postura cado, num contexto €m que o regime e fundia de Mpre com a Préprig Pautava as relagdes sociais, A composigio do persona gem indica a perspectiya Tepresentacao da coe: ‘xisténcia entre senhore: to de i . ee ae Ma Firmina dos Reis, A escravidao é “odiosa’, mas nem Por isto oe Sensibilida de do jovem negro. E autoral de comb: leitores brancos, ; ni nao tem mej ee N20 05 sabot . ‘abota ne; Touba, todavia, Como 0s escravos presentes em Vitimas.qy, mm . S0zes, de Manoel de Macedo, publicado dez anos depois do Surging Jo: a nto de On Digitalizado com CamScanner isa chave para compreendg, eetece a ate ao regime sem agredir em demasia as convic, ‘ratégia Tilio é vitima, nao algoz. Sua revolta se faz, emsila $Oes dog ios para confrontar o poder dos senhores, Nios 6 primeiro capitulo objetiva apresentar os dois personagens maseulinos positividade moral do texto: um branco ¢ um negro e irio encarnar a qui ae ‘Assim eles entram ent cena: primeiro Tancredo; depois, Tiilio, Entretanto, ao utilizar-se do artificio do acidente, a autora faz com que 0 segundo tome «frente do primeiro ecresca como personagem. fide inicio, oleitor pasiaa ecé-lo em suas Virtudes, enquanto do outro sabe apenas do atordoamento conhe ental que provoca sua queda. O negro busca entio de todas as formas reanimar 0 cavaleiro. Consegue a custo rea seu intento ¢ transportar o jover ferido até a sede da fazenda onde cumpre seu destino de cativo. ‘Ao despertar do desmaio, Tancredo depara-se com o negro A sua frente e, apesar do atordoamento que comegava a lhe turvar novamente os sentidos, yislumbra no escravo o homem bom que o salvou. De antemio, cabe destacar as primeiras palavras trocadas entre ambos: = Quem és? - perguntou 0 mancebo ao escravo apenas saido de seu letargo. ~ Por que assim mostras interessar-te por mim? ~ Senhor! ~ balbuciou o negro - vosso estado... Eu - continuou com acanhamento, que a escravidio gerava - suposto nenhum servico vos possa prestar, todavia quisera poder ser-vos util. Perdoai-mel... ~ Eu? ~atalhou o cavaleiro com efusio de reconhecimento - eu perdoar- te! Pudera todos os coragées assemelharem-se ao teu" Jana cena de abertura, portanto, 0 texto deixa a mostra os fundamentos da visio de mundo que o sustenta, Diante da pergunta, 0 escravo titubeia, pois sabe estar diante de um representante do estamento senhorial. Jé Tancredo é grato a quem o salva e, mais tarde, saberd o leitor ter sido ele traido pelo proprio pai, que abusa de sua confianga e amor filial. Diante disso, sua fala ganha um sentido especialissimo: é o branco jovem e sensivel ~ ideal de um novo homem, para uma nova sociedade -que encontra no negro desconhecido nada menos que um modelo de virtude. Apesar da febre, que despontava, 0 cavaleiro comegava a coordenar suas ideias, ¢ as expressdes do escravo, ¢ os servigos que Ihe prestara, tocaram-Jhe o mais fundo do coragao, £ que em seu coragdo ardiam sentimentos to nobres e generosos como os que animavan a alma do Jovem negro: por isso, num instante de intima e generosa gratidio 0 57 Digitalizado com CamScanner cel jc Vi Igava a destra, estendeu a luya, que Ihe a ao homem que o salvara”, sendo tinica em toda a literatura brasileira do periodo, . il, 0 gesto inusitado do branco - fala por Em pleno apogeu do escravismo no Br: emelhante ~ganha sentiq, de cumprimentar 0 escravizado como a um semell " Bi - to ‘i ‘ltimo a mera forca paradigmatico frente ao contexto de redugao deste Ui! sade trabalho bra agal. A mao estendida vem coroar a elevagio do negro a ‘ierénca moral da narrativa, Charles Martin analisa a cena e destaca acerta lamente que a autora faz dlo escravo a “base de comparagio para o jovem heréj branco”’, Todavia, o gesto humanitario soa natural ao ee elevado de ‘Tilio, que agradece a Deus Por ter chegado ao local do acidente naquele momento, Desde entdo, 0 romance estabelece a forte empatia que liga 9 escravo ao branco deprimido pelo mandonismo paterno, em consonancia, alids, com 0 titulo do capitulo; “Duas almas generosas” A narrativa Prossegue dest acando o desconcerto experimentado por Tilio diante da tude do acidentado, Premido por sua condigao e da “distancia que os separa’, quer beijar a mio branca estendida a sua frente, ‘Ao que retruca Tancredo:" ntura o meu salvador?" para em lealdadee cuavalio a grandeza de dores sem alma, compreendo tua amargura, e amaldicoo “0 Primeiro homem que escravizou seu semelhante™™ COM 0 gesto, 0 negro nio se contém de felicidade, Narrativa: “era o primeiro branco que tio No discurso do narrad moral. Tal postura iny, ainda com as teo; africanos, A, ~ nio foste por ve Seguida apertar a “mao Grosseira’, n, 3 qual “escobria com satisfacio | pureza”® io meu amigo, lenitivo, que te borbulha na em teu nome . Surpreso 40 que arremata a voz doces palavras Ihe havia dirigido’™, ‘Or onisciente, o neg erte Os valores da so, 70 €, pois, parimetro de elevacio ciedade escravo, crata e polemiza 58 Digitalizado com CamScanner Aoabrigar o cavaleiro ferido na casa de sua senhora,o escravo propicia io que os lev, oencontro dos dois e 0 inicio da pai A breve felicidade, Mais uma vez, sobressaem nesses momentos 0 zelo ¢ a dignidade de Tiilio, que termina ganhando a alforria como sinal de gratidio do homem branco. Um forte elo de amizade passa a uni-los ¢, a partir de entao, 0 negro torna-s companhia inseparivel de Tancredo. Ele faz a figura do jovem de bom carater, que respeita a senhora por nao té-lo maltratado, ¢ que se julga em divida com aquele que 0 libertou. No entanto, sua nova condigio é questionada por Mae Susana, quando esta ironiza a “liberdade” do alforriado ~ que, afinal, iré conduzi-lo & morte - comparando-a a vida que levava em Africa: ~ Tu! tu livre? Ah no me iludas! - exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. [...] Liberdade... eu gozei em minha mocidade! - continuou Susana com amargura. Tilio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, néo houve mulher alguma mais ditosa do que ew, Além de reforcar a propria identidade afro-brasileira do texto, a entrada em cena da velha africana confere maior densidade a seu sentido politico. Mais uma ve7, 0 territ6rio de origem é mencionado sem rodeios, ao contrario do que se vé em outros escritos do século XIX, inclusive assinados por afrodescendentes. Sobressai, entéo, a condigao diaspérica vivida pelos Personagens arrancados de suas terrase familias para cumprir no exilio a pFIs%6 Tepresentada pelo trabalho forgado, De acordo com Zahidé Muzart, “Mae Susana quem vai explicar a Tilio, aforriado pelo Cavaleiro, o sentido da verdadeira liberdade, que nao seria nunca a de um alforriado num pais racista’®, A propésito da tensao que funda o conflito central do romance, observa Cristina Pinto-Bailey: Em Ursula, a inica solucio concreta para sanar a injustiga da escravidio 6a alforria de um escravo em particular, Tilio, pelo herdi branco. [..] Esta poderia ser vista como uma das falhas do romance, pois realmente nao chega a oferecer nenhuma solugao estrutural para a questio da escravidao, Pode-se argumentar, porém, que a principal fungio social de uma obra lterdria nao éa de resolver problemas, mas simplesmente denuncid-los ¢ expé-los, 0 que Maria Firmina faz muito bem e com grande apelo ao publico leitor™, Digitalizado com CamScanner Além das sofridas lembrangas da velha africana e da motg lém D inda de um gti side a existéncia de Tulio, Ursula trata ainda de um que pre Sutra tis, de escravo: 0 que perde a autoestima e se entrega ao vicio, Surge eNtig le escravo: i i m coracdo, mas figura decrépita de Pai Antero, sujeito de bo! 0, mas dominagn alcoolismo. Saudoso dos costumes de sua terra e do “vinho de bebido no ritual africano do descanso semanal ~ que Maria Firm lo Palmeir,» M2 Nomeja ‘AMatico ag icio do personagen tanto de Negros Quanto “festa do fetiche” -, Antero cumpre na trama o contraponto dr: carater elevado de Tilio. Além disso, ao ressaltar 0 © texto busca escapar a uma excessiva idealizacao, de brancos, regra geral em nossa produgio ficcional de cunho romantico, Com Antero, fecha-se a estrutura trina encimada por Mie Susana, e essa triade negra vai aos poucos mobilizando a atencao do leitor e superando em importincia o previsivel triangulo amoroso vivi Ho pelos personagens palmeira ea festa africana las no processo de monico. Mais uma vez, cabe brancos. Por outro lado, a remissio ao vinho de teforga 0 elo textual com tradicies apagad. colonizagio e ausentes do discurso hi a0 texto ficcional costumes deixados para Vizagio. A propésito da representacio dos comenta Juliano Carrupt do Nascimento: atuar como lugar de memoria e remeter a priticas ¢ trds durante o processo de escray escravos no romane Tilio, Preta os difer sana ¢ Antero agregam caracterizagées morais que rem dos estereétipos articulados pel los processos culturais ¢ literarios do século XIX, sua fun io de Personagens impée a narrativa contecimentos que nao seriam possiv ‘eis caso fossem construidos de outra maneira, Suas vozes aparecem em dissonancia com os discursos ‘rio tradicionais, POrque se caracterizam como africanas © Persuasoras, e nao aparecem a ; , ines» . Situando. Ursula no Contexto da narrativa folhetines 60 4 Digitalizado com CamScanner e aquilatar 0 quanto a escritora se apropria das técnicas do romance pode-s is : a fim de utilizé-las como instrumento a favor de de facil aceitagao popular, seu projeto de dignificagio dos oprimidos ~ e nao apenas dos escravizados, Otridngulo amoroso formado por Ursula, Tancredo e o tio Comendador ncarnagao de todo o mal sobre a terra) ocupa o plano (que surge como ¢ s. Além de assassinar 0 pai e abandonar a mae da principal das age protagonista, durante anos entrevada numa cama, o Comendador compée a figura sddica do senhor cruel que explora a mao de obra cativa até o limite de suas forgas. Esse tio velho e sem limites encena a paixao incestuosa cara a0 que Northrop Frye denomina romance ou “estéria romanesca” na tradugao brasileira. Acrescentem-se ainda outras marcas do género ainda hoje caro ao grande publico: a multiplicidade de tempos, espagos e ages; o maniquefsmo na construcao dos protagonistas e do vilao; os sentimentos exacerbados, a aproximar amor e morte; a presenga do remorso e da loucura como puni¢ao; mito do amor 4 primeira vista (o amor tanto pode adoecer quanto curar); 0 império dos sentimentos, que leva a cenas tipicas do Romantismo (a tristeza mata, a surpresa desagradavel leva a0 desmaio); tudo isto coroado por uma estratégia narrativa marcada por antincios e pressagios de toda ordem, com 0 propésito de prender a atengao do leitor. Ao final, enlouquecido de citimes, o Comendador mata Tancredo na prépria noite do casamento deste com Ursula, o que provoca a loucura e posterior falecimento da heroina eo inconsolavel remorso que também leva 0 tio 4 morte, nao sem antes passar pela libertacao de seus escravos e pela reclusdo num convento. O texto descarta o happy end e opta pelos esquemas consagrados no romance gético, a que se pode acrescentar a trajetoria cheia de obstéculos a vencer. O romance situa a escravidéo num contexto de supremacia da vontade senhorial como poder absoluto, E percebe-se logo a insercio da mulher também como individualidade sequestrada e elemento submetido, em sintese, uma personalidade moldada para a obediéncia. Ursula é a tipica mulher presa a terra e a sua condicio de orfa. Algo semelhante ocorre com sua mae, cujo estar no mundo é agravado pela doenga. Ao abrigar Tancredo e antever a possibilidade do enlevo amoroso que o ligara a filha, ela agradece Digitalizado com CamScanner a:Deus pela chegada do possivel noivo, snica Possibilidage de ate, ‘oina. Por outro lado, pela voz do jovem Manceb, Pelo pate: Deste mos? r oe Soloca a yn el a oprimir os que estio sob sua tutele ame esting €0 da ~ : 2 “tirenia” do casamento nos moldes estabelecidos a m as daqueles tempos como incapaz de gerar amo; romance denuncia o triangulo social em cujo vértice se do senhor como int eoescravo. E, portanto, como mulher e como afro-brasileira a narrar o drama da jovem Ursula e de sua desafortun, acrescentam 0s i We 2 autor. .~ | ada mie, a Bese | fortinios de Tancredo e a tragédia dos escravos Tig Marcado Pelo js de 8 histérs nip dade pare com quela existente em Susana e Antero, que recebem no texto um tratamento assinalado ponto de vista interno, Pautado pela fidelida oficial da diéspora africana em nosso pais. Essa solidarj oprimido é absolutamente inovadora se comparada a outros romances abolicionistas do século XD Digitalizado com CamScanner omancista, a personagem configura aquela vor. feminina portadora da verdade hist6rica e que ponttia as ages, ora com comentirios ¢intervengdes moralizantes, ora como: verdadeira pitonisa a tecer pasado, presente e futuro ntincios e previsdes que, por um lado, preparam o espirito do leitor e nos a aceleram o andamento da narrativa ¢, por outro, instigam a reflexio e acritica. Essa vor emerge, pois, das margens dla agio para carregé-la de densidade, do mesmo modo que sua autora, que também emerge das margens da literatura brasileira para agregar a ela um instigante suplemento de sentido: oda afro-brasilidade. Pode-se afirmar que esta lateralidade esté em homologia com o proprio desempenho da intelectual afrodescendente, que vai aos poucos superando a exclusio 2 que foram relegados seus irmaos de cor, para desempenhar uma fungao distinta e outra na arena discursiva em que literatura, cultura e politica se mesclam, em meio as tensdes que vao construindo os varios rostos do pais recém-saido da Independencia. Ao antecipar o Castro Alves poeta dos escravos, cuja producao vai de 1876 a 1883, o Joaquim Manoel de ‘Macedo de Vitimas-algozes (1869) eo Bernardo Guimaraes da virtuosa Escrava Isaura (1875), para ficarmos na literatura antiescravagista mais conhecida, Maria Firmina dos Reis desconstréi nao apenas a primazia do abolicionismo branco, masculino e senhorial. Nao nos esquecamos que esse discurso, com sua aura paternalista, ao fim e ao cabo prepara o terreno para as teses do “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda e outros, bem como da “democracia racial” freyreana. Ao estabelecer uma diferenga discursiva que contrasta em profundidade com o abolicionismo hegem@nico na literatura brasileira de seu tempo, a autora busca construir para seu texto um outro lugar: 0 da literatura afro-brasileira. Maria Firmina dos Reis desconstréi igualmente uma historia literdria etnocéntrica e masculina. Ursula nao é apenas o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira. E também 0 primeiro romance da literatura afro- brasileira, entendida esta como producao de autoria afrodescendente, que tematiza o assunto a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em recuperar e narrar a condigao do ser negro em nosso pais. Texto fundador, polemiza também com a tese segundo a qual nos falta um s 6 Digitalizado com CamScanner Js, apesar de centrado nas vicissitudes da herojng bran Le ca, on ida zida segundo esta pe . ‘romance neg rrativa da escravidio conduzida seg 8 perpen’ em-se uma narra rida seg aaaae ae ance da scritora maranhense vem fazer companhia as 7, im, o romance Ga é , No Momento inaugural . scas de Luiz Gama, também de 1859, ‘ gural emo, $ » scent . s remanescente Ze 405 0 son me struir um pafs sem escravidao e sem discriminaci rae literatura, co’ , De acordo com Luiza Lobo, ‘A consciéncia da negritude em Maria Firmina dos Reis em sua obra pioneira consiste em ver a questo da aboli¢ao nao sob UM prism, universalista, europeizado e distante do cotidiano, mas sob a Otica dy vencido, descrevendo as condi¢des concretas do escravo, Ela insere em toda a sua obra preciosos aspectos antropol6gicos que permitem ver a existéncia do escravo no seu aspecto real, sob 0 jugo de senhores ¢ feitores que agiam sob o amparo das leis, como na cena do assassinato da escrava Susana, em Ursula”. Odiscurso emancipatério Perpassa praticamente toda a obra de Maria Firmina. Seu conto “A escrava”, publicado na Revista Maranhense em 1883, no auge da campanha pela abolicao, contém igualmente 0 testemunho de uma velha cativa, representada agora na Personagem Mie Joana. Essa voz africana traz para a literatura brasileira o sentido suplementar configurado Pelo traco ancestral oriundo de outro continente e de outra civilizacio, @parentemente deixada para tras e, talvez por isso mesmo, recalcada pelo discurso hegeménico, Esse discurso, Presente em José de Alencar e em dibilidade abalada Pelas vozes postas em circulagao Digitalizado com CamScanner Outro aspecto a destacar: ambas as personagens refutam em sua configuragao dramitica o papel de objetos disponibilizados ao apetite sexual dacasa-grande eadjacéncias. Rompem deste modo com o lugar estabelecido pelos costumes implantados desde a colonizagio, pelo qual entre suas fungées até mesmo na etimologia estava.a de corpo desfrutavel, conforme se verifi ‘oncubina’ “escrava amante do termo “mucama’ - do quimbundo mukanta,* Tal fungio é lembrada, até com certa dose de saudosismo, de seu senor”, por Gilberto Freyre em Casa grande ¢ senzala, texto em que ressalta o papel da “mulata que nos iniciou no amor fisico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensacao completa de homem””. De Gregorio de Matos a Guimaraes Rosa, a literatura brasileira sempre trouxe a baila a mulher afrodescendente como portadora do prazer sempre disponivel a0 homem branco. Além disso, notabilizou-se por construir tal imagem com os aderecos do prazer sem consequéncias ou compromissos. E 0 fez de modo sutilmente dissimulado, pois nelas 0 sexo nunca leva 4 procriagao”. Com as personagens de Maria Firmina dos Reis dé-se justamente 0 oposto. Tanto Susana quanto Joana, além de desprovidas dos encantos da “mulata sensual’, figuram como procriadoras e maes zelosas. A primeira lamenta até o fim a auséncia da filha deixada em Africa; e a segunda acompanha o crescimento dos filhos, sofre diante do tratamento que estes recebem do feitor, e chega a enlouquecer quando presencia os menores serem vendidos e partirem para local desconhecido. Mie Susana, Tilio e Antero, embora figuras secundarias na trama romantica vivida por Ursula e Tancredo, recobrem de humanismo antiescravagista 0 romance publicado em Sao Luis por uma desconhecida que assina simplesmente “Uma maranhense’ Nao satisfeita com o disfarce de autoria, acrescenta no prologo sero livro obra de mulher e “mulher brasileira, de educacao acanhada e sem 0 trato e conversagao dos homens ilustrados”. A autora destaca ainda sua “educacao misérrima, apenas conhecendo a lingua de seus pais” Indica deste modo o lugar que ocupa na sociedade em que nasceu, E desse lugar intermediério, mais préximo da pobreza que da riqueza, que Maria Firmina corajosamente levanta sua voz por intermédio do que chama “mesquinho e humilde livro’: E, mesmo sabendo do “indiferentismo glacial de uns” e do “riso mofador de outros’, desafia: “ainda assim 0 dou alume” Digitalizado com CamScanner Jogo estabelece o territério cultural que embas 0 prilogo esta Estamos em 1859, momento em que a prosa de omance. Esta seu gesto Maria Firmi ro ros passos entre nds, Com seu gesto Maria Firming api imeiros pas i iti inci a mance romantico como atitude politica de deniincig do roma los arraigadas na sociedade patriarcal brasileira e que ti séculosarraigadas » Proje, og Freed ga ts M8 cant inj ithe a utc nham he NO e5¢ ore . ti ambém na mulher suas principais vitimas. Luiza Lobo TeSsalta aings *% Esta posigao, bastante rara na literatura nacional, devese 20 fate 4 4 autora ser mulata e ocupar as camadas sub 7 alternas q Soci brasileira, como professora primaria, Péde observar g Vida conga” é ay do escravo porque também ocupava um lugar social de oprimid oy 2 Com mulher e afrodescendente, Maria Firmina dos Reis nasceu em Sio Luiz do M faranhio, em 4 te outubro de 1825, sendo registrada como filha de Joao Pedro Esteve vivendo num context } 0s cinco anos, teve que S€ Leong, 0 de extrema Se mudar para a vila no municipio de Viamao, situado no cont apital pela baia de Sio Marcos, O tia materna teria sido crucial p Felipedos Reis, Menina bastarda e mulata, segtegagio racial e social, Sio José de Guimaraes, inente separado da acolhimento em casa de ung ara a sua formagio. Aos Finmina vence concurso piiblico para a “Cade cidade de Guimaries-MA, conforme escreve ainda segundo esse autor, ao se vinte © dois anos, ira de Instrucao Primaria’ ng Nascimento Morais Filho», E, no inicio da década de 1880, fundaz stado e volta para a sala de aula, Mantém, 4 constante na imprensa local, enigmas e charadas¥, relevante como cidade intele Vida dedicada a ler, escre Preservai aposentar, primeira escola mista e gratuita do e: em paralelo, uma preseng: publicando poesia, Maria Firmina teve Participagéo ‘ctual ao longo ficgdo, crdnicas e até dos noventa e dois anos deuma Ver e ensinar. Atuou como folclorista, na recolhae 0 de textos da literatura oral e atuou também como compositor, Sendo responsavel, inclusiy. ©, pela composicao de um hino para a aboligio da escravatura, Como era comum numa época em que as mulheres viviam submetides aintimeras limitagdes e Preconceitos, Santo na folha de rosto de “Uma Maranhense”, ac a autora omite seu nome ey ioe : dd Ursula, ali consignando apenas ops ae i iada ain ~ Desta forma, a auséncia do nome, aliada 66, Digitalizado com CamScanner daautoria feminina e, ainda, a procedéncia da distante provincia nordestina, juntam-se ao tratamento dado ao tema da escravidao. O resultado é que uma espessa cortina de siléncio envolveu a autora ao longo de mais de um século. Silvio Romero e José Verissimo a ignoram, E muitos entre os expoentes de nossa historiografia literdria canénica fazem 0 mesmo, a excegao de Sacramento Blake e Raimundo de Menezes, Somentea partir da edicao fac-similar preparada por Horacio de Almeida evinda a publico em 1975, Ursula passou ao conhecimento dos estudiosos. Neste ano, sai também o volume Maria Firmina, fragmentos de uma vida, de Nascimento Morais Filho, e Josué Montello, conterraneo da autora, dedica- Ihe artigo no Jornal do Brasil, publicado no ano seguinte em espanhol na Revista de Cultura Brasileyia®.O preficio de Charles Martin a terceira edigio (1988), 0 artigo de Luiza Lobo, e 0 citado estudo assinado por Zahidé Muzart deram inicio 4 redescoberta do livro nos meios académicos, hoje objeto de varios estudiosos. Para finalizar, transcrevemos unico fragmento ainda existente do “Hino a liberdade dos escravos’, composto pela autora e incluido por José do Nascimento Morais no volume Maria Firmina, fragmentos de uma vida: Hino a liberdade dos escravos Salve Patria do Progresso! Salve! Salve Deus da Igualdade! Salve! Salve o sol que raiou hoje, fandindo a Liberdade! Quebrou-se enfim a cadeia Da nefanda Escravidao! Aqueles que antes oprimias, Hoje terés como irmao! Em sua singeleza, 08 versos reiteram 0 tom e a forma dos escritos que abordamos neste trabalho. Acreditava a autora no Deus da Igualdade e no sol que traria finalmente a luz da Liberdade a todos os oprimidos. A segunda estrofe nao deixa duividas quanto ao destinatario pretendido pela compositora. 0 hino louva a patria que ps fim ao “comércio nefando’, mas o7 Digitalizado com CamScanner xr * que ante; : iqos senhores: “aqueles : se especificamente aos antigos senh “OPrimiay dirig | ae o clamor por una igualdade sem cong / Hoje terés como irmac ! basa a trajet6ria ¢ a utopia que move a cidada, professora @ embasa a tra ‘mulher do . 2. inaugurar a primeira sala de aula de scu estade, letras, E que a faz inaugurar a primeira s estado, en) ue Assim, oby meninos e meninas puderam conviver e aprender juntos Ve Vidy » Sobretudy searticulam e nos dao belos exemplos nao s6 de re: de resiliéncia, Notas “0 presente trabalho incorpora e amplia escrito anterior ~ “Maria Firmina dox Reis egy primérdios da ficgio afro-brasileia’, publicado como posficio & qu ta (2004) € & quinn (2009) edigdes de Ursula, bem como no volume critco Literatura, poltica lemedes (2005) 3. Maria Firmina dos Reis, Ursula, 5. ed. Atualizagio do texto e posticio de Eduardo de Assis Duarte, Edigio comemorativa do sesquicentendrio do romance. Belo Horizonte: PUC Minas, Florian6polis: Editora Mulheres, 2009, p. 17. 2. Idem, op. cit. pp. 17. 3. Idem, op. cit. pp. 117-18, 4,Idem, op. cit. } [lew Nora, “Entre memériae historia: a problematica dos lugares in Les Liewe de memoie I La République. Paris: Gallimard, 1984. ‘Trad, Yara Aun Khoury, in Projeto Histéria, n. 10, dez, 1993, p. 22. &.Nei Lopes, Enciclopédia brasileira da didspora africana, Sio Paulo: Selo Negro, 2004, p. 639, 7, Mahomah Gardo Baquaqua, Biografia ¢ narrativa do ex-escravo ‘afro-brasileiro, Trad, de Robert Krueger. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, poy p.86. 9. Georg Wilhelm Friedri 4 colaboragio de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Mechada. zed. rev. Petropolis: Vores: ich Hegel, Fenomenologia do espirito. Trad. de Paulo Menezes, com Braganga Paulista: Universidade Sio Francisco, aoos, ‘Ver também Lecciones sobre la filosoia de la historia universal (1837), Trad. José Gaos Madrid: Alianza Editorial S.A. 1989. Ey nd 21) acrescenta 0 fildsofo: “Se um homem & um escravo, sua propria Yontade é responsavel por sua escravidio, assim como é sua vontade a responsivel pela sueisi0 de um povo. Portanto, a injiria da escravidao nao se deve simplesmente a escravizadores OU Conquistadores, mas também aos Préprios escravizados e conquistados” (apud Susan Buck Morss, “Hegel eo Haiti Novos Estudos CEBRAP, n, 90, jul. 2011. Disponivel em http://¥W¥ cielo, bricclophp?scriptsc\artextéeid-Soros nonroroenoee ‘Acesso em 10 fev2014 >P.uns, +P. clts pig, it Idem, 68 Digitalizado com CamScanner

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