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Digitalizada com CamScanner onseho Editor c ; pra, Andrea Domingues =o Fernando Gems Profa. cane Catlos Giuliani Profa. Dra. Magali Rosa de So prof. De oni Cesat Galhardl Prof. Dr. Marco More} ony Prol. Dr. Ant iaant'anna —_Profa. Dra. Milena prota. Ora. Benedita CASS Prof. Dr. Ricardo André fee ea Bauer rod cise ramer Rocha ‘Prol.Dc Romualio Digs My prof bx Erabdo Leme Batista Prot Dt. Sérgio Nunes de seus prof Dr. Fabio Régio Bento Profa. Dra. Thelma Lessa pro. i Jase Ricardo Caetano Costa Prof. Dr. Victor Hugo Veppn (©2015 Elenice Maria Nery; Elio Ferreira Sllvia Mara Fernandes Aves da Sie peor desta ego adqurids pela Paco Edltorial. Nenhuma parte desta tea gy « estocada em sistema de banco de dados Ou processo similar, esr qualquer feng py wre, sea eletbeica, de fotoctpla, gravarde, eC, $e a permlssdo da eter eo aa N359 Nery, Elenice Maria; Souza, Elio Ferreira de; Costa, Silvia Maria Femandes Alves da Silva Entre Negros @ grancos, 0 que ficou? — Diasporas, identidades e represen- tages em literaturas africanas € afrodescendentes nas Américas/Elenice Maria Nery; Elio Ferreira de Souza; Silvia Maria Fernandes Alves da Siva Costa (orgs.), Jundiai, Paco Editorial: 2015. 304 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-462-0172-3. 1. Ensaios 2. Literatura Afrodescendente 3. Identidades Hibridas |. Nery, Elenice Maria. I. Souza, Elio Ferreira de. Il Costa, Silvia Maria Femandes Alves da Silva Indice para catalogo sistemdtico: Coleco de Ensaios 808.84 Digitalizada com CamScanner GONGALVES DIAS AFRO-ERASLERO E ABOLICIONISTA Filia Ferreira! spies a icasticacdirng egg ee = z ‘AgIO ao repressar da Europa, no navio Wille de Boulogne, nas costas do Maranhio, Filho de um portugués prance e de uma brasileira, de origem negra ¢ indigena. Reconhecido pela critica como o maior pocta do in- dianismo brasileiro, é também um dos nomes mais importantes da poesia nacional de todos os tempos. Embora tenha preferido escrever poesias de temas indianistas e amorosos, na sua obra es- tio incluidos textos que problematizam a escravidio do africano, como o poema “A escrava”, a ptosa poética Meditagio e a tradu- gio do romance Byg-Jargal, esta obra de autoria de Victor Hugo. Logo apés 0 nascimento do menino Anténio, o pai, Manuel Gongalves Dias, embarca para Portugal, deixando a crianga com amie, Vicéncia Mendes Ferreira. O pai retorna em 1825 e reini- cia seus negécios em Caxias. De 1825 a 1829, a familia volta a vi- ver junta, Aqueles quatro anos teriam sido os mais felizes da vida do pequeno “Tonico”, apelido carinhoso do poeta. Ainda em 1829, Manuel deixa a amdsia Vicéncia ¢ se casa com uma mulher branca, Este homem rispido tira o filho da mie negra, niio mais permitindo que o menino voltasse a vé-la. A partir de entao, o futuro poeta indianista passa a viver no meio de brancos, com 9 pai ea madrasta. Em 1837, morre 0 pai, mas, mesmo assim, a madrasta realiza o desejo do marido e manda 0 jovem Gongal- vn 1.0 presente ensaic foi revisto por mim part & esta publicagio. oa ee a de um dos capitulos da minha Dissertagio de Mestrado: Ideatidade ene 1 : literatura do negro bnutitéve: de Padce AntOnio Vieira 9 Luiz Gama. Realizado pel Universidade Federal do Ceari, em Fortaleza, concluido on 200 se i publienda £om 6 titulo original na edi¢io Coneursas Literirios do Piaul, oe 2 see Pundasio Cultural do Piauf, 2005. Trechos do artigo foram também publicados no : s re SPI, 2013-2014. livros Literatinne cultures afre-brasieina edge, “Teresina, NEAD/UESPI, 2013-20 133 Digitalizada com CamScanner ya Fersea “Te Mere Fernandes Abe das, Coa ortugale onde cursarA Dircito na Univers, i ves Dias Pat sa por constrangimentos financeitos, ma.» _ Alt pas a acaba por supera-los. Em Portuga] i: : ‘ano, alemio € filosofia. Em 1845, i francés, ts BANDEIRA, 1998, p. 13-56) : CONSTRUGAO DA IDENTIDADE NEGRA No POEMA “A ESCRAVA” Cabe especular o que teria levado 9 escritor aftodescendent a preterir o negro em beneficio do indio? Porque teria esctito tig pouco acerca dos antepassados africanos, interrompendo as trajetoria negra “no meio do caminho”? Estas indagaces suse. tam alguns acontecimentos da vida do poeta que dizem respeito a sua origem ¢tnica, a fatores sociais ¢ histéricos ¢ as influén. cias do romantismo francés. Ponto de confluéncia de autores do romantismo brasileiro, foi na Franga de 1836, que se fundoua revista Nilerdi, Este movimento colocaria em primeiro plano os temas nacionalistas ¢, particularmente, 0 indianismo. Neste sen- tido, Heloisa Toller Gomes (1988, p. 28) observa que: O romantismo oitocentista embarcou deleitado no mito do bom selvagem ¢ encontrou no indio o herdi de um passado lendisio que buscivamos, Em fase de afirmagio patriot- ca € nacionalista, vidos de um passado que nos afirmasse como pave ¢ como nagio, [...] 0s rominticos brasileiros oo 9 indio em scu proprio pais e o idealizaram a forma que conhecemos, A visa - gem Knee oe nio seria tio diferente d# show ; 84S romanticos em relacio a representagnn nas €m poemas como “O canto do Pia88 * 'm’, indio transcende a imagem do aurscror Curopeu e a abordapem se realiza na persP ‘ 134 Digitalizada com CamScanner Entre Negros @ Brancos, « que ficau? a indigenista, quando a empresa colonial Tepresenta a ruina do indigena: © ainda “onde a mescla de lirismo amoroso e alteridade rind” do poema antoldgico “Maraba” (LAJOLO, 2011, p99) rjorizada cm lugar do espirito nacionalista dos rominticos. pS Em 1 1843, ainda em Portugal, a saudade da patria e da mie nega provavelmente inspira Dias a escrever a “Cancio do exi- , Wore “A escrava”. Apesar de admitirmos 0 legado do romantis- "To europeu sobre a obra do autor negro, n3o poderiamos deixar de associat 4 personagem de “A escrava™ 4 imagem da mie do poeta, de quem ele sempre sentiu a falta. Nas vezes em que es- teve na sua terra natal, nunca deixou de visiti-la e Ihe instiruiu uma mesada fixa a partir de 1848. Em mengao 20 segundo texto, Raymond Sayer (2002, p. 165) assinala que é também uma cangio do exilio, Trata-se de um sonho de escrava com a sua doce terra do Congo, com scu sol c arcias escaldantes, sua lua ¢ seu amado esperando-a sob bananciras 4 margem de uma corrente liquida, sonho que a aspera voz do scu senhor faz cessar. Esse poema, que apa- rece no /Irguiio cm 1846, combina os temas da melancolia, do eseravo ¢ da Africa exética, com o do senhor cruel. Por outro lado, ha de se considerar as imagens € lembrancas da terra natal do poeta. A paisagem descrita nos versos do po- ema lembra a cidade natal do jovem poeta: “sol, “luar”, riachos em abundancia, cascatas ou a “banancira” que costumamos avis- tarde uma margem a outra do rio que corta © centro de Caxias, além dos pequenos cimos ¢ rochedos que podem estar ligados as memdrias de suas andangas pelas cercanias da cidade ou mesmo do sitio onde nascera. A memoria da cultura oral do Nordeste brasileiro € até hoje Muito rica. Se pensarmos nos termos de século XIX e mesmo nos dias de hoje, seria um erro grave ignorar 0 legado das narrativas do Negro na construcio da obra literiria dos nossos escritores afto- 135 Digitalizada com CamScanner ira de Souzo; Sivia Moria Fernand, Meio Nery: Elio Fereira de ool ™ Alda, Etenice ndentes. Nesse sentido, teriaa mie negra de Gone | desce tado historias da Africa, dos avés maternos, §, nok am dessas lembrangas gravadas na sua Memérig sh ao ay = ma “A escrava”, incluido em Sua Obta orignn feet ie (1847), Gongalves Dias fala das memér; c Dy. ae exilada longe da terra natal. O texto Temete Ae eee afticana, a0 seu passado livre © & sua hint amor. O texto refere-se 4 Africa, imprimindo um diet a colico 4 narrativa da escrava, que conta a sua PrOptia bigs’ teconstruindo as paisagens natural ¢ humana da terra distane, querida, o “Congo”, AESCRAVA Oh! Doce pais de Congo, Doces terras d'akém mar! Oh! Dias de sol formosol Oh! Noites d'almo luar! Onde a leda caravana Rasga o caminho Passando, Onde bem longe se escuta As vozes que vio cantando! @1As, 1998, p, 171), idenciados na volta as origens do usca se di no plano a Méria histérica © aos vocibulos Movimentam uma série de a FO: “Vozes [...] cantantes!”, eer tia da Person, ‘”, “cinta do Africano!”, “Congo”. A hi age, n ca 2 ‘ de poet? fOmantico g li “Bra € reinscrita pelo primeiro gran ? Mteratura Nacional. antepassad °S Negros. Esta b fecorréng) 4 cultura, 4 me Cana, Os Versos bs © mundo Neg: Digitalizada com CamScanner Entre Negros @ Broncos, 6 que hccat Onde longe inda avista O turbante muculmano. O lataga recurvado, Preso 4 cinta do Africano! Onde o sol na arcia ardente Se espelha, como no mar; Oh! Doces tetras de Congo, Doces terras d’além-mar! (op. cit. 171-172). A Africa que temos descrita seria a que sofreu 0 processo da islamizagio. Aqui, a Personagem principal do poema narrative é negra ¢ tem um nome africano-muculmano: “Alsga”. A pai- sagem exdtica serve de cenirio para a africana recordar os seus sonhos de liberdade. Tudo conspira para a felicidade dos aman- tes. A natureza se mostra em todo o seu esplendar, acolhendo os jovens amantes no seu seio. A\ narrativa poética recupera o negro para sua humanidade, devolve ao escravo o lugar de pessoa dotada de sentimentos ¢ capaz de amar, numa em que os textos literirios escritos pelos autores brancos negavam a humanidade do escravizado. O pon- to de vista de Dias é do poeta que fala como negro, identifica-se com o “a escrava”, deslocando o estigma da inferioridade racial ou outro tipo de estercétipo negativo, forjado pela literatura do colonizador europeu. : Em varias passagens do texto, 0 autor alude ao universo simbélico do mundo africano, recorrendo A estética dos cantot Populares, como aos versos de metros curtos ¢ sonoros, ficeis de serem cantados ou entoados, com paralelismo, andloreetey Fepetigdes de palavras no inicio ¢ no interior dos versos. ed da tradigio do verso ibérico, como as cantigas dos ce medicyais, a origem musical da poesia reporta a Africa os "adicao oral, quando a poesia era feita para ser cantada ¢ aco Panhada por instrumentos musicais. WwW Digitalizada com CamScanner le Elenice Maria Nery; Efio Ferreiro de fone Maria Fernandes Ave, a ‘ Fissas formas antigas ainda sao preservadas 205 can orixas do candomblé ¢ noutras expressies da tradies, Os, africana, Assim, 0 poerma mantém sua leveza fips Sey apoia nos recursos melédicos ou na musicalidade de ‘A narragio é na primeira pessoa, 0 que também Catactey discurso da poesia negra, quando © poeta fala numa Ag va de aproximagio, de “dentro” dos fatos narrados, Na afro-brasileira, essa atitude também é precursora, uma y eseritor fala como se fosse a propria escrava, * que CUS ve “ 495 Peer. 82 due g [ veaes me dizia: ‘Minha Alsga, ndo tenhas medo; Vem comigo, vem sentar-te Sobre o cimo do rocheda’, I; eu respondia animosa: ~‘Trei contigo, onde fores!” E tremendo e palpitando Me cingia aos meus amores. Ele depois me tornava Sobre 0 rochedo — sorrido: —‘As dguas desta corrente Nio vés como vio fugindo?” (idem, ibidem). A fala do amante africano é inclufda no discurso er : diilogo desenvolve o tema universal do amor entre dois joven Parece-nos que, até entio, a escrita literiria brasileira sind ° havia se ocupado do tema do amor entre africanos ov es negros. Neste sentido, a Krica negra de Gongalves Diss sn ‘ssume uma posigo que contraria a hegemonia do cinor bes tio brasileiro, quando restitui ao negro a sua espritvalicnee** Scus sentimentos nobres, 138 Digitalizada com CamScanner Entra Negros @ Broncos, o que ficout Nas trés ultimas estrofes do poema, o poder escravista entra em cena € intervém nos acontecimentos. A africana vivia feliz pa sua terra natal, mas essa liberdade Ihe é arrancada pelo exi- fo seguido de escravidio cm terra estranha, Aqui também se jnaugura a figure do “senhor cruel”, o que se tornaria comum no romantismo brasileiro a partir do final da década de 1850, consolidando o texto de demincia contra a vitimizagio do afri- cano escravizado. Isso acabaria redundando em paternalismo e comiseragao, elementos que marcariam intensamente a poética do condoreirismo romantico. Do rispido Senhor a voz irada Rapida soa, Sem o pranto enxugar a triste escrava Pavida voa Mas era cm mora por cimas na terra, Onde nascera, Onde vivera tio ditosa, ¢ onde Morrer devera! Sofrey tormentos, porque tinha um peito. Qu’inda sentia; Misra escrava! No sofrer cruento. “Congo!” dizia (Gadem, ibidem), Mas hi de convirmos que ainda faltava, aos versos de “A escrava”, a rebeldia dos tambores negros, a batida forte “do tam-tam”, No livro de ensaios criticos, intitulado 4 poesia afro- brasileira, Roger Bastide (1943, p. 65) admite a presenga do preto na obra do poeta indianista, mas ressalva que o discutso goncal- viano apresenta unicamente a sensibilidade do branco, gracas a influéncia do romantismo europeu. Por conseguinte, © critica francés assinala que 139 Digitalizada com CamScanner . Silvia Moria Fernand: Maria Nery: Ho Ferreira de “— les Alves do 3, Elenic® aria orgs snica sensibilidade que demonstra éa de um branco, A S ee sles’ de Huge concediam um grande lugar 4 Af, (Orient $ ana e Gonealves Dias segue-o nesta descriag3,, ca muguiman’ na Berberia desceu ainda mais, para og 4 is da Berberia, ™* ao Bantus. Sua escrava congalesa poderia aliis ser uma escray, vet, A nao ser um Erago (além mat) nio ha mais nady aa recordar 0 Brasil. Os sentimentos que ch cy. prime sto a saudade do pals natal e nostalgia do amor sa dido. Mas a sua nostalgia nio tem nada do banzo cruel que levava o escravo das fazendas a se enfocar para othe e que na macumba contemporinca suscitou ° mito da arvore cujas raizes atravessam oceano para levar 4 terra do exilio a seiva das florestas de além. Semelha antes a nostalgia de Goncalves Dias, saudoso em Coimbra, em meio de olivais triste ¢ ciprestes negros do Brasil luminoso (BASTIDE, 1943, p. 66-67, geifo do autor). qualqu no poem: Na verdade, esse poema niio possui o mesmo vigor dos ver- sos indianistas. Nem possui o arrebatamento do indio guerreiro. O negro de Goncalves Dias se deixa aniquilar sem resistencia, 0 que de fato nio condiz com as revoltas escravas que sucederam nas proximidades de Caxias do final da década de 1830 a0 inicio de 1840, culminando com a Balaiada. Por esse tempo, Cosme Bento das Chagas, “negro Cosme”, lider calhambola, havia reunido no seu quilombo mais de 3 mil quilombolas, dos quais muitos integraram as forgas rebeldes qt dominaram a cidade maranhense, Caxias, durante quase um 8° sre a cidade foi sitiada pelos rebeldes balaios, em 1839, 0 pe oe encontrava em Portugal. _— ouves Car ee no modernismo brasileiro, oi {A escrava”| se sie: 88, p. 40) considera que neste P ed ta realmente aquele sentimentalism° siderade : Rie > como africano que alguns criticos reprovam 108 poets § tracos da Negritude” 149 Digitalizada com CamScanner Entre Negros @ Broncos, o que cout fiscrito duas décadas antes do surgimento dos movimentos de abolicao da escravatura no Brasil, ainda faltava aquele cenit mento de explosio ¢ rebeldia arrcbatadora dos poetas shale. nistas afro-brasileiros, que surgiram a partir da segunda metade do século XIX. No plano politico, até entio, s6 se ouvira a voz jsolada de José Bonificio de Andrade ¢ Silva que, em 1825, ma- nifest As pressdes que sc ouviam a respeito da abolicio da escravatura eram do exterior (SKIDIMORE, 1976, p. 30) ¢ tinham interes- ses mais econdmicos do que propriamente humanitarios. Ainda a respeito de “A escrava”, um leitor escreveu ao poeta louvando 0 seu pocma, mas, a0 mesmo tempo, acrescentava quc cle havia deixado de tocar nas feridas mais profundas da escravidio: ava-se publicamente em favor da abolicao da escravatura Oh! Que vil presente o seu; que rudes prilhdes mancham aqueles bragos outrora livres; que horrivel jugo verga essa cabeca que sem senhor se levantava para o edu; que nuvem cobre esses olhos que dantes alhavam para a imensidade do oceano; que caricias Ihe foram furtadas dos filhos que tanto amava (apud SAYERS, 2002, p. 166). Aresposta a essa carta logo viria, quando 0 poeta regressou a terra natal em 1845 e escreveu Meditagao. De volta ao Maranhio, viu a realidade de perto: a condigio humana degradante do ne- gro escravizado ¢ ouviu os relatos sobre a guerra civil, registran- do-os na sua prosa civada de paribolas ¢ ideais abolicionistas. 141 eee Digitalizada com CamScanner . 20; Silvia Maria Fernandes Al ; ery; Elo Ferreira de Seu as) "8 da Si, SMO PRECURSOR NA PRog Oe GONCALYES DIAS Elenice Mario Coy va biblica de Meditagao, comegada em Caxias, Princira prin A pros abolicionista da poesia brasitein, (BANDEIRA, 1998, p25) Se atentarmos para as entrelinhas da ptosa Poctica Meditai percebemios que se trata de uma alegotia, de sentido MOralizado, em tom de parabola, onde o autor, além de mostrar q Violéncia da escravidio, recorre 4 passagem biblica, quando os filhos dos hebreus sio levados ao sactificio pelos prdprios pais; coma Abraio levou a Isaque, seu filho” (DIAS, 1998, p. 830). Meditaiia parece revelar um apocalipse maranhense, contextualizado mace dade de Caxias, onde 0 poeta se sentia “como em terra estranha” (1998, p. 73). Na sua breve passagem de menos de um ano, nio seria visto como rapaz inteligente, conhecedor de cinco linguas € tespectivas literaturas ou advopado promissor. Era o “cabo- clinho” filho de Joio Manuel e da preta c pobre Vicéncia, ¢ que vivia 4s expensas da madrasta. E também neste periodo que pas- sa pelo constrangimento de ter que exibir o diploma de bachard a0 juiz de direito da comatca, “querendo por este meio”, cont © ptdprio poeta ao amigo, “fazer-me passar por impostor diante dos nus concidadios" (DIAS, 1998, p, 24). ay ‘mosfera que 0 poeta escreve 0 primeiro texto - ical oe Pottica brasileira, Ao referir-se de ae tica Ce ; : oe brasileira, Dias narra a partir de umDe es de nas da miséria humana, esta instituida por uma socicda Parasitaria que mantinha an BE a . trabalho se vil do negro. Nao ¢ Scus priv ilégios Bracas a8 eget © tom de piedade ou comiscragio (4 a sua esc ‘Serita, mas o sentimento de etal ta. Digitalizada com CamScanner _ = Entre Negros @ Broncos, o qua ficou? WI E.cu vi que esses homens tentavam desligar-se das suas ca- deias, ¢ que dos pulses roxeados thes corria a sanguc sobre as suas algemas (DIAS, 1998, p. 726), Contam os caxienses que © pocta costumava se deixar em reflexdes, olhando ao longo do rio Ttapecuru que passa no cen- tro da cidade. Dai, em Meditagéo, 0 registro da vida cotidiana do cativo negro de uma margem a outra do rio, Naquele tempo, 0 transporte fluvial era o principal canal de escoamento da produ- gioda mio-de-obra escrava das cidades ribeirinhas, que garantia as grandes transagdes comerciais com as povoagdes ¢ centros urbanos, lecalizados nas margens dos rios e nas costas litoraneas. Eos seus rios — obstruidos por alguns troncos desen- raizados — cram cortados por jangadas mal tecidas, ou por miseriveis canoas de um sé toro de madeira. E nessas cidades, vilas e aldeias, nos seus cais, pracas ¢ chafarizes - vi somente — escravos! F.nas jangadas mal tecidas — ¢ nas canoas de um sé toro de madeira-escravos; — e por toda a parte — cscravostt. (1998, p. 27). O poeta retrocede cronologicamente ao momento do de- sembarque no porto de Sio Luis, onde finaliza o regresso de Portugal, depois de ter concluido o curso de Direito em Coim- bra. O jovem escritor vé-se surpreendido pela explosio demo- Brifica de escravos negros. Percebe que o Brasil € um pais essen- Cialmente negro, mas que explora ¢ brutaliza a forga de trabalho deste homem negro. © discurso é marcado pela eloquéncia ¢ a ética em torno da escravidio, ao mesmo tempo em quc sc ave 2 oe es ‘oluma um tom profético ¢ premonitorio: 143 Digitalizada com CamScanner , Siva Maria Fernandes _ gt Ferrera de SOUT Alves do Si, IV isso O estrangeiro que chega a algum porto do vaste iss ic novo a sua derrota c observa aten. a, — consulta d imperio . Bescon i tk gstros — porque julga que um vento inimign ¢ ta s Jevow 4s costas d’Africa. E conhece pot fim que est terra ataviada de primorcs ¢ esclarecido por um céy ol Mas grande parte de sua populacig eza consiste NOs ¢scravos — mas 9 4 no Brasil — ma terra liberdy. de, na : estrelado € magnific mas a sua siqu cite do seu comerciante — do seu agricola -¢ habirantes € comprado 4 custa écscrava — sorriso — 0 del oalimenta de todos os seus do sangue escravo! E nos libios do estrangciro, que aporta ao Brasil, des- pont um sortiso irnico ¢ despeitoso — ¢ ele diz consigo, ~ de escravidio — nao pode durar muito; porque que a terra ¢ sabe que os homens sio feitos do mesmo ele é crente, barro— sujeitos 4s mesmas dores ¢ as mesmas necessidades (1998, p. 727). Odiscurso adquire um tom profético que reprova sarcastica: mente a escravidio, e vishumbra o fim irrefutavel dessa institui- cio. Acreditamos que © poeta afro-brasileiro metaforiza 0 det- ramamento de sangue contra os rebeldes balaios, representados pela populacdo descontente que tomou a cidade de Caxias, ¢° massacre dos quilombolas maranhenses pelas forcas de extrd- to monirquico. As imagens de violéncia e traumas dessa gue fae coe anos antes do retorno do pa inspirado nas aco: : ies = He eds da por pga ntecimentos histéricos ¢ na realidade 4” da soci : eee escravista, Goncalves Dias incorpom 4 sua pro 4UM Carater apocaliptico: r Os he . VII 7 omens, que sofriam, reuniram-se como um S0 ho nem © soltas ram ui i 3 mundos, m grito horrissono, como seria 0 desabat Digitalizada com CamScanner Entre Negros © Broneos, o qua cout fj pareceu-me que eles se transformavam em unidade como um colosso enorme ¢ valido, cuja fronte se perdia nas nuvens, € eujos pés se enterravam em uma sepultura imensa, ¢ profunda como um abismo, Eo colosso tinha as feigdes horrivelmente contraidas pela raiva, ¢ com os bragos erguidos tentava descarrepat As mios ambas um golpe que seria de exterminio. fa vitima cra um pova intciro; cram os filhos de uma nu- merosa familia, levados ao sacrificio por seus pais — como Abraio levou a Isaque seu filho. Lal E como Isaque também cles acordaram com as espadas sobre as suas cabecas, ¢ o scu despertar foi terrivel, porque somente Deus os poderia salvar, E um calafrio de terror percorreu a medula dos meus ossos, ¢ © Meu sangue parou nas minhas veias, ¢ Oo meu coracio cessou de bater (1998, p. 730-731). Meditapao é um relato de testemunho pessoal e coletivo sobre acondi¢io humana do negro escravizado no Maranhio da pri- meita metade do século XIX. Nesse belissimo texto, Gongalves Dias fala como negro ¢ ergue sua voz de engajamento ¢ solida- fiedade espiritual ao scu irmao de cor, que sofria sob 0 peso da arbitrariedade do regime de escravidio. O griot afro-brasileiro tinha consciéncia do que eserevera e contra quem escrevera. No dizer de Manuel Bandcira (1998, p. 26, grifo do autor), estava certo do que Havia de temeririo nas suas ideias que, remetendo a sMle- xandre Tedfilo o segundo capitulo de Meditagio para ser publicado no periddico O Arquivo, recomendava: Cortem sem dé — 6 que julgaram mau - ou perigaso de imprimir’. : Cettamente, Goncalves Dias procurava evitar conflitos mais Sttlos com o governo mondrquico e mesmo com os setores mais Poderosos da hierarquia social do Maranhio. Ali corria o risco de 145 Digitalizada com CamScanner . Souza; Sdvia Maria Fernandes Alves da ¢, Etenice Maria Nery; Elia Ferrera de Sov 75h Cou, sceslie, pois seu futuro profissional de advopadn sofrer fe sta anuéncia da classe dominante Em dependeria de ce! : vit na festara sua simpatia a ss BRUPO Politicg de oposigio aos iiberais, partido da ae $80 a Carta em ver, sos de 1° de agosto, publicada no jorna caxiente Fi ‘arol uma Siting ferina “A certa autoridade que ameagou os MUSICS POF te tocado no aniversario da independéncia de Caxias” (1998, p 24), jaeram suficientes para a elite da cidade ver, naquele homenzinho de 1,50 de altura, considerado pela classe dominante uma pessoq inconveniente e um adversario politico de ideias perigosas, A partir da década de 1830, 0 Maranhdo ocupava a posicig de um dos maiores centros importadores de escravos nepros, A historiografia da escravidio também considera que ali teria sido o “inferno do africano”, nao pelo excesso de trabalho a que o escravo era forgado a realizar, mas, acima de tudo, devido ao ex- terminio de negros pelas forgas repressivas, Tanto é assim, que os senhores de escravos de outros estados do Nordeste, como forma de represilia, enviavam para ali os negros considerados rebeldes ou incorrigiveis, Com a prosa alegdrica de Meditagao, Gongalves Dias faz um Panorama social e politico do Brasil Pés-independéncia, que, do Ponto de vista da escravatura ¢ da condigio humana do negro, m4o traria nenhum progresso plausivel para a emancipagio do escravizada, Assim, o poeta Negro identifica-se com a sua oF gem ¢tnica, recusa o Pessimismo dos rominticos contempora- neos ¢ faz de Meditag ‘ean a9 0 “primeiro grito abolicionista da pocsit brasileira (BANDEIRA, 1998, p. 25). o AUTORRECONHECIMENTO DA ORIGEM NEGRA A vida d. s 2 7 oe Geel. ee © Goncalves Dias foi matcada pela rejeigio de s¢¥ Casament 2 élia, em 1852, devido © que fora negado pelos pais de Ana Ame otigem humilde. Rea. ta pele negea do poeta maranhense € # * Este acontecimento se refletiria na melancolia 14g Digitalizada com CamScanner Entre Negros © Broncos, 0 qua ficou? sua lirica amorosa ¢, talvez, na “parada no caminho” (BAS mDF, 19434 P at da poesia negra. Tal episddio, seven, ulerapassou OS limattes da feustragio amorosa, afetando a wate. gma do poeta afro-brasileiro. Nos Ultimos cantos (1851), foi editado a Cangio de Bug-Jar- dugio em versos de Gongalves Dias do texto em “prosa » que Victor Hugo escreveu para o herdi negro do seu -Jargal. © herdi romanesco tinha sido principe na gal, tea iemica romance Bug: Africa ¢, escravizado no Haiti, tentara vingar-se dos assassinos go seu pai e dos seus filhos, além dos que submeteram sua mu- Iher a prostituigao (SAYERS, 2002, p. 164). Lm relacio 4 possi- vel identificacio do poeta afro-brasileiro com o herdi hugoano, Raymond Sayers (2002, p, 164) assinala que “Goncalves Dias 2 tenha encontrado analogia entre o caso do poema € 0 seu talve rio, pois 0 negro amava uma moga branca, cuja familia con- prop siderava semelhante situagio ridicula”. O caso da recusa amorosa a Goncalves Dias, por questio ra- arte da historiografia popular da nossa literatura, A mae 2. A partir de ‘© poema de cial, fa damoca negara o pedido do poeta em carta de 185 que 0 poeta niio mais escreveria outr a tradueiio da Cangio de Bug-Jargal, ira pessoa do entao, parece tema negro. © ultimo foi onde ele fala dos sentimentos do negro na prime! discurso, como se fosse 0 proprio herdi da narrativa. Sou preta, sim, tu és branca, Mas qu’ importa? Junto 20 dia A noite o poente cria Ficriaa aurora também Que mais luzentes belezas, Mais doces que ambos tém? (DIAS, 1998, p. 481). cem constituir © primeiro Os versos citados acima pare ‘ e se diz “prero de exemplo na nossa literatura cm que wm poet 147 Digitalizada com CamScanner ery; Elo Ferreira de Souza; Silvia Moria Fernandes Elenice Moria Mi {orgs.) Alvos da She cay forma direta. Caldas Barbosa afirmava sua neprity ee sifora da “cor de cobre”. Com Gongalves Dias, eel, f Ame. : : | ilei = a S de p.- de meio século, um afro: brasileiro voltaria a assumis 7 ersos a sua heranga etnica africana, agora, 4 el i proprios ¥ aga ican mais legivel, gravando a propria expressiio “Sou Preto”. a modo, sio dados os primeiros passos para a construgte ake fs au ie discurso de afirmagao da identidade negra ou afrodesce um i - . nde. ira e é sobretudo com Luiz Gama. e na poesia brasil’ 5 €M Prim tronas burleseat de Getulino (1859), que a poesia negra vai a dhads marcas mais definidoras ¢ ampliat o seu campo temitico, Na iL cio, ¢ importante também lembrar o primeiro romance abolicio. nista Ursnda (1959), da afro-maranhense Maria Virmina dos Reis O negro somente faria parte do projeto tematico do roman. tismo brasileiro a partir da atuagio dos movimentos abolicionisu ¢ republicano. Precisamente, na década de 1860, a aboligao deixa de ser uma causa de poucos homens idealistas ¢ se torna um as- sunto de interesse de muitos, af incluidos alguns setores da classe senhorial. Isso, no entanto, no mudaria tanto o perfil da litera ra romintica, que continuaria produzindo os modelos desejados ¢ inspirados na hegemonia cultural da sociedade escravista. Em geral, 0 pensamenta roméntico nao nos legou uma pre posta consciente no sentido de recuperar a identidade culterd do nepro através da literatura, Isso s6 aconteceria mais tarde," século XX, com os movimentos de intelectuais do Renascimerr to Negro do Harlem, na década de 1920, nos Estados sie Nas décadas sepuintes do mesmo século, terfamos 4 ee da Negritude nos anos 30/40 em Paris, este representado S ‘ tudantes ¢ exilados politicos negros do Caribe, das A Africa; a Negritude Brasileira das anos 40/50/60 €@ i nb bot fa “pul Cadernos Negros, editado pelo uae »m Sio Paulo, a partir de 1978. 148 Digitalizada com CamScanner Enire Negros 0 Brancas, 0 qua ficou? gEFERENCIAS pANDEIRA, Manuel. A vida ¢ a obra do Poeta. In: BUENO, ae! (Org): Textos eriticos de Manuel Bandeira. Rio de ‘Janciver Nova Aguilar, 1998. pASTIDE, Roger. Al poesia afro-brasileira, Sic Paulo: Martins, 1943, pAMASCENC ), Benedita Gouveia, Poesia negra no modernismo bra- sifire, Campinas: Pontes, 1988. 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