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NEUROPLASTICIDADE

Professora: Ms. Letícia Cavalieri Beiser de Meloo


DIREÇÃO

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Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho
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NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

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C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação


a Distância; MELO, Letícia Cavalieri Beiser de;

Transtornos do neurodesenvolvimento e
neuroplasticidade. Letícia Cavalieri Beiser de Melo.
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017.
49 p.
“Pós-graduação Universo - EaD”.
1. Neurodesenvolvimento. 2. Neuroplasticidade. 3. EaD. I.
Título.

CDD - 22 ed. 155


CIP - NBR 12899 - AACR/2

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sumário
01 |9 A COMPREENSÃO ACERCA DAS FUNÇÕES
COGNITIVAS NA HISTÓRIA

02 |19 FUNCIONAMENTO CEREBRAL A PARTIR DA


PERSPECTIVA LURIANA

03 |27 ENTENDENDO OS PROCESSOS DE


NEUROPLASTICIDADE

04 |33 O PODER DA MEDIAÇÃO NOS PROCESSOS DE


DESENVOLVIMENTO E REABILITAÇÃO
NEUROPLASTICIDADE

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
•• Apresentar um breve panorama histórico acerca da evolução dos conhe-
cimentos sobre as funções cognitivas;
•• Discorrer sobre os fundamentos da neuropsicologia de Luria;
•• Explicar os processos de neuroplasticidade a partir de estudos da neurociência;
•• Apresentar os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural sobre desen-
volvimento e aprendizagem, com foco no processo de mediação e sua
importância para o desenvolvimento normal, bem como para os proces-
sos de compensação com fins de reabilitação.

PLANO DE ESTUDO

A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:


•• A compreensão acerca das funções cognitivas na história
•• Funcionamento cerebral a partir da perspectiva Luriana
•• Entendendo os processos de neuroplasticidade
•• O poder da mediação nos processos de desenvolvimento e reabilitação
INTRODUÇÃO

Prezado (a) aluno(a),


Hoje iniciaremos um mergulho em um tema que sempre intrigou os homens
desde os tempos mais remotos. Muitas foram as perguntas sobre como funcionam
os nossos processos mentais e, consequentemente, muitas foram as respostas dadas
por diferentes povos, filósofos, cientistas de diversas áreas, ao longo da história da
humanidade.
Nesse extenso e árduo caminho, o que a história nos ensinou é que de fato somos
seres complexos e, mesmo que já tenhamos alcançado muitas respostas que consi-
deramos seguras, ainda existe uma infinidade de conhecimentos a serem construídos
nesta área.
O conceito de plasticidade, ou seja, a ideia de que as células de nosso cérebro
podem se modificar em sua função e em sua forma, revolucionou a maneira de se
entender o funcionamento cerebral e abriu uma nova perspectiva para a pesquisa
científica, que vem ganhando força, unindo informações de diversas áreas do conhe-
cimento, como da medicina, biologia, psicologia, linguística, química, entre outras.
Essa confluência de informações recebeu o nome de neurociência, ou melhor, neu-
rociências, como destaca Lent (2010).
Com o objetivo de entender o conceito de neuroplasticidade e suas implica-
ções no processo de intervenção escolar ou clínica com crianças com transtornos do
neurodesenvolvimento, iniciaremos nosso estudo (aula 1) fazendo uma uma breve
revisão histórica acerca da compreensão da ciência sobre as funções cognitivas e o
modo de funcionamento de nosso sistema nervoso, pautando nossas discussões
nos estudos da neuropsicologia.
Pós-Universo 7

Na sequência, (aula 2) apresentaremos os principais conhecimentos sobre o fun-


cionamento cerebral, conforme os fundamentos da neuropsicologia de Luria, visando
entendê-lo em sua relação dinâmica com o meio externo.
Posteriormente, (aula 3) passaremos pelo conceito de neuroplasticidade e co-
nheceremos suas principais características e os diferentes tipos.
Também, apoiados nos pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural, so-
bretudo nos estudos de Lev Sememovich Vigotski (1896-1934), Alexander Romanovich
Luria (1902-1977) e Alexei Nikolaievich Leontiev (1903-1979), discutiremos (aula 4)
sobre como se dá o processo de desenvolvimento humano em sua relação dialética
com o processo de aprendizagem, na tentativa de tornar clara a importância da me-
diação planejada do professor ou do profissional da saúde, para o desenvolvimento
das funções humanas, tanto das pessoas consideradas normais, como aquelas com
alguma patologia/transtorno.
Por fim, consideramos importante assinalar que, devido a complexidade de
nosso tema e dos inúmeros conhecimentos desenvolvidos pelas diferentes aborda-
gens dadas a ele, sabemos que apenas iniciaremos nossa jornada na compreensão
de nosso funcionamento cerebral e psíquico, sendo este um campo que necessita
de intenso estudo e constante atualização.Vamos lá!
8 Pós-Universo
Pós-Universo 9

A COMPREENSÃO
ACERCA DAS FUNÇÕES
COGNITIVAS NA
HISTÓRIA
Prezado(a) Aluno(a),
Nesta aula vamos fazer uma rápida viagem para conhecer a evolução dos conhe-
cimentos acerca das funções cognitivas ao longo da história. Venha comigo!
O desejo de compreender melhor nosso funcionamento corpo e mente não é
nada novo. Já na antiguidade os homens tentavam identificar qual parte do corpo
era responsável por nossas funções mentais e, embora hoje isso possa soar estra-
nho, nem sempre o cérebro foi reconhecido como o órgão da mente. (Nitrini, 1996).
De acordo com Hamdan et al (2011), se considerarmos a forma de compreensão
da relação entre corpo, comportamento e cognição e não a organização cronológica
da história clássica, podemos dividir a história da neuropsicologia em três períodos.
São eles: a) hipótese cardíaca versus hipótese cerebral; b) localizacionismo versus
holismo; e c) funcionalismo versus cognitivismo. A seguir discutiremos cada uma delas:

Hipótese cardíaca versus Hipótese


cerebral
Caracteriza-se pela divergência quanto à localização da mente no corpo, havendo
a ideia de que o coração era a sede da atividade mental (hipótese cardíaca) e, em
oposição, a visão de que era o cérebro (hipótese cerebral) o locus responsável pelos
processos cognitivos. Para Aristóteles (384-322 a. C.) o coração era a sede da ativida-
de mental, sendo responsável pelas “faculdades mentais” do pensamento, julgamento
e imaginação.
10 Pós-Universo

Já para o filósofo naturalista grego, Alcmaeon de Crotona (500 a.C.) e para Hipócrates
(460-370 a. C.), o pai da medicina, o órgão responsável pela função mental era o
cérebro. Hipócrates afirmava que o controle dos movimentos, dos juízos e o proces-
samento das sensações eram realizados pelo cérebro.
Embora ao longo da história a hipótese cerebral tenha predominado em relação
à hipótese cardíaca, devido às evidências conquistadas por diferentes estudos, como
as do médico romano Galeno (130-201 a. C), que por meio da dissecação de animais
e de cadáveres humanos, investigou detalhes anatômicos/fisiológicos que foram im-
portantes para a elaboração da Teoria Ventricular (mente localizada nos ventrículos
(espaços) cerebrais), foi somente com a ciência moderna, já no século XVII, que se es-
tabeleceu definitivamente que o cérebro era o órgão de controle das funções físicas
e mentais. (Hamdan et al, 2011).

Localizacionismo versus Holismo


Como pontua Hamdan et al (2011), aqui a controvérsia se dá pela crença de que
existem regiões específicas do cérebro (estruturas cerebrais) responsáveis por facul-
dades mentais também específicas, o que recebeu o nome de localizacionismo.
Contrariamente, a concepção holística (holismo) defendia a ideia de que as funções
mentais são realizadas pelo cérebro como um todo, não havendo nenhum tipo de
vinculação entre uma função e uma determinada parte do cérebro.
O principal representante do localizacionismo foi o médico alemão Franz Gall
(1758-1828), cujos estudos deram origem à uma nova especialidade médica - a
frenologia.
Seu maior opositor, o fisiologista francês Jean Pierre Flourens (1794-1867), defen-
dia o funcionamento integrado do cérebro, sem qualquer tipo de delimitação das
funções em locais específicos do córtex cerebral.
Pós-Universo 11

saiba mais

A Frenologia de Franz Gall (1758-1828) consistia na mensuração do crânio


(craniometria) com o objetivo de avaliar as capacidades mentais dos indi-
víduos. Tal prática estava apoiada na hipótese de Gall de que o cérebro era
um órgão complexo, responsável pelo comportamento, pensamento e
emoção, sendo o córtex cerebral um conjunto de órgãos com funções dis-
tintas e específicas. A partir de seus estudos ele presumiu a existência de 27
faculdades afetivas e intelectuais, que estariam localizadas em áreas especí-
ficas do córtex cerebral. Para ele, como o nível de atividade de cada função
determinava o tamanho da área cortical correspondente e, isso causava pro-
tuberâncias no crânio, era possível avaliar a personalidade dos indivíduos
por meio da craniometria. Vale dizer que embora sua aplicação prática es-
tivesse incorreta, a hipótese de funções específicas serem localizadas em
áreas determinadas estava certa, levando ao início dos estudos da neuro-
ciência experimental.
Fonte: HERCULANO-HOUZELl, Suzana. A frenologia e o nascimento da neuro-
ciência experimental. (p. 26-27) In: LENT, Roberto. Cem bilhões de neurônios?
conceitos fundamentais de neurociência. 2 ed. São Paulo: Editora Atheneu,
2010.

Segundo Luria (1981), foi nesse período, na idade moderna, que os estudos da neu-
rociência tiveram grande avanço, principalmente a partir do final do século XIX e
início do século XX, em especial, com os resultados de inúmeras pesquisas realizadas
com ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, que haviam sofrido algum tipo de
lesão cerebral e precisavam ser reabilitados.
O autor afirma que a descoberta do neurologista Paul Broca, em 1861, de uma
região cerebral diretamente responsável pela fala motora, a partir de estudos reali-
zados com um paciente com lesão no terço posterior do giro frontal esquerdo, que
sofreu a perda da fala expressiva (afasia), é considerada um marco da ciência no que
se refere ao estudo dos distúrbios dos processos mentais.
12 Pós-Universo

““
Monsieur Laborgne foi um paciente que possibilitou uma grande desco-
berta da Neurologia. Depois de um acidente vascular encefálico, Laborgne
não conseguiu mais falar. Após sua morte, seu cérebro (à direita) foi estu-
dado pelo neurologista francês Pierre-Paul Broca (1824-1880) (à esquerda),
que lançou a hipótese, hoje muitas vezes confirmada, de que a linguagem e
muitas outras funções neurais são precisamente localizadas em regiões es-
pecíficas do encéfalo (LENT, 2010, p.28)

Figura 1: O neurologista Pierre-Paule (à esquerda) e o cérebro de Monsieur Laborgne (à direita)


Fonte: LENT ( 2010)

Luria (1981) afirma que os resultados obtidos por Broca inauguraram um novo
momento nos estudos neurológicos, e outras descobertas de mesma natureza foram
realizadas por diferentes pesquisadores, que passaram a buscar correspondência entre
áreas locais do córtex cerebral e funções mentais complexas. Dentre eles, destaca-se
também o psiquiatra alemão Carl Wernicke (1848-1909), que descreveu o terço pos-
terior do giro temporal superior esquerdo como o centro da compreensão da fala.)
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Córtex
motor primário

Área de
Broca

Córtex
visual

Córtex
auditivo Área de Giro
Wernicke angular
Figura 2: modelo de Wernicke Geschwind da linguagem
Fonte: adaptado de BEAR (2006)

Como pontua Luria (1981) o sucesso destas pesquisas determinaram uma forte tendên-
cia na realização de mais estudos nesta mesma linha. Contudo, concomitantemente
a elas, foram desenvolvidas outras hipóteses acerca da organização cerebral dos pro-
cessos mentais complexos, destacando-se nessa outra forma de entendimento, as
ideias do neurologista inglês Hughlings Jackson, o primeiro a considerar os processos
mentais complexos a partir de seus níveis de construção e, não em relação à locali-
zação circunscrita em uma região cerebral.
Luria (1981) enfatiza que a concepção de Jackson só ganhou força e foi apro-
fundada cerca de 50 anos mais tarde, quando outros neurologistas começaram a
questionar a adequação do princípio de localização específica no córtex cerebral de
funções complexas. Para eles, era claro que as funções elementares (sensação tátil,
visão, audição, movimento) possuíam uma correspondência com áreas definidas do
cérebro. No entanto, no que se refere às funções complexas, como as que envolviam
linguagem, comportamento ativo, foram por eles consideradas como resultado de
todo o cérebro.
14 Pós-Universo

Com relação a isso, Luria (1981) explica que se por um lado eles estavam certos
ao questionarem a visão mecanicista do localizacionismo estreito, por outro eles re-
tomaram antigas crenças sobre a natureza espiritual dos processos mentais. Nas
palavras de Luria (1981, p. 11):

““
Enquanto a visão mecanicista da localização direta de processos mentais
em áreas circunscritas do cérebro levou a um beco sem saída a investiga-
ção da base cerebral da atividade mental, as idéias “integrais” (ou, como elas
são às vezes chamadas, “noéticas”) dos processos mentais claramente não
puderam prover a base necessária para a pesquisa científica ulterior; elas ou
preservaram idéias obsoletas de separação da vida “espiritual” do homem e
da impossibilidade, em princípio, de descobrir a sua base material, ou revi-
veram idéias igualmente obsoletas do cérebro como uma massa nervosa
primitiva, não diferenciada.

Diante desse impasse, surgiu então a necessidade de novas formas de explicar os


fenômenos psíquicos em sua relação com as bases anatômicas. De acordo com
Hamdan et al (2011), os estudos do psicólogo bielo-russo Lev Sememovich Vigotski
(1896-1934) e do neuropsicólogo soviético Alexander Romanovich Luria (1902-1977),
realizados no início do século XX, quando as divergências se davam por meio da
compreensão localizacionista ou holística do funcionamento mental, contribuíram
para a reflexão acerca das ideias predominantes, pois traziam uma nova compreen-
são ao afirmarem que

““
as funções das partes e do todo se encontram organizadas em inter-relações
funcionais complexas que variam em conformidade com os diferentes está-
gios de desenvolvimento humano. (HAMDAN et al, 2011, p. 50).

Como pontuam Bastos e Alves (2013), essa compreensão dinâmica do funcionamento


cerebral trazida por Vigotski e Luria, considera a base anatômica do funcionamento
mental em sua interação com o mundo exterior, que por meio de diversos estímu-
los promovem alterações na forma de funcionamento dos processos cognitivos. Tal
compreensão contraria a teoria idealista clássica, que considera o funcionamento
cognitivo como originário das estruturas anatômicas do cérebro e dos mecanismos
fisiológicos, sem sofrer qualquer tipo de influência dos estímulos externos.
Pós-Universo 15

O modelo dinamicista, que se apoia nos estudos da psicologia soviética, é assim


resumido por Bastos e Alves (2013, p. 43):

““
De fato, não desconsideramos a importância biológica das conexões den-
dríticas e sinapses constituindo o contato funcional entre neurônios e
proporcionando o aprendizado. Porém, este importante mecanismo neu-
roanatomofisiológico é complementar aos sistemas funcionais complexos e
diferenciados e à influência de variados estímulos do mundo exterior, numa
relação ativa sociocultural, modificável historicamente.

Os estudos de Luria trouxeram uma nova e revolucionária compreensão acerca do


funcionamento cerebral, pois ao postular que ele é influenciado pelos estímulos do
mundo externo, afirmou-se que não existe um processo cognitivo universal, isto é,
ele estará condicionado às relações que cada sujeito singular estabelece no mundo
concreto.
Para Luria (1981) as funções superiores se organizam como sistemas funcio-
nais complexos, cuja ação se dá analogicamente como os instrumentos em um
concerto, atuando em conjunto, mas cada um tendo sua função específica.
Segundo Nitrini (1996) essa concepção solucionou as divergências entre locali-
zacionistas e globalistas, constituindo-se como base para os estudos posteriores em
neuropsicologia.

quadro resumo

“Funções mentais superiores são processos cognitivos que envolvem atenção,


memória, gnosias ou percepções, pensamento, consciência, comportamen-
to emocional, aprendizagem e linguagem, e refletem o modelo dinamicista
discutido anteriormente, em que as áreas cerebrais (auditiva, sensorial e
tátil-cinestésica, visual, planejamento consciente do comportamento e pro-
gramas de ação) se integram funcionalmente e são influenciadas
ativamente pelo meio sociocultural, nas relações sociais do homem. Estas
funções mentais superiores são congnitivamente importantes para a aprendi-
zagem numa relação intrínseca com a linguagem, mediando nossas funções
psicointelectuais”.
Fonte: BASTOS (2013, on-line)
16 Pós-Universo

Funcionalismo versus Cognitivismo


De acordo com Hamdan et al (2011), essa controvérsia é atual e se refere à discor-
dância quanto ao objetivo primário e secundário da avaliação neuropsicológica. Para
o funcionalismo, o desempenho do indivíduo é o objetivo primário da avaliação e,
o constructo psicológico o objetivo secundário. De maneira invertida, para o para o
cognitivismo o constructo psicológico corresponde ao objetivo primário, enquan-
to o desempenho do indivíduo fica como segundo objetivo.
Hamdan et al (2011) explica que em função do desenvolvimento tecnológico,
com a criação de modernas técnicas de investigação cerebral (eletroencefalograma,
tomografia computadorizada, ressonância magnética funcional) o foco de pesquisa
dos neurologistas deixou de ser a localização das funções mentais no córtex cerebral,
uma vez que tais instrumentos permitem a visualização da atividades cerebrais, por
meio da ativação de áreas corticais e subcorticais. Sendo assim, a discussão passou
a girar em torno da construção dos testes psicológicos, ou seja, as questões meto-
dológicas e interpretativas dos processos de avaliação neuropsicológicas.
Lent (2010) explica que essas novas técnicas de investigação, além de permitirem
a observação de áreas específicas que são ativadas de acordo com atividade mental
realizada pelo sujeito, possibilitaram a comprovação de que embora existam regiões
responsáveis por determinadas funções, estas não operam isoladamente.

““
Ao contrário, o grau de interação entre elas é altíssimo, pois o número e a
variedade de conexões é muito grande. E é natural que seja assim, pois não
há função mental pura, mas sempre uma combinação muito complexa
de ações fisiológicas e psicológicas em cada ato que os indivíduos reali-
zam. (Lent, 2010, p. 28, grifos nossos).
Pós-Universo 17

Figura 3: Imagem de ressonância magnética funcional possibilita visualizar as áreas cerebrais com
maior nível de ativação durante a realização de uma tarefa específica.
Fonte: Lent, 2010, p. 28.

Figura 4: Mapa do funcionamento cerebral na atualidade, baseado em dados científicos obtidos


por meio de experimentos com animais e confirmados em seres humanos através do estudo de
lesões e de técnicas de imagem funcional.
Fonte: Lent, 2010, p. 29.
18 Pós-Universo

Tomando a trajetória histórica dos estudos da neurociência, em especial, os da


neuropsicologia, podemos afirmar hoje que o cérebro é o órgão da mente e do
comportamento humano. A união dos estudos desenvolvidos nos diferentes níveis
e por diferentes áreas, conduziram ao avanço significativo acerca da compreensão
do funcionamento das estruturas cerebrais em relação aos processos cognitivos. No
entanto, entender plenamente seu funcionamento ainda é um desafio para a ciência.
Pós-Universo 19

FUNCIONAMENTO
CEREBRAL A PARTIR
DA PERSPECTIVA
LURIANA
Prezado(a) aluno(a), Luria é considerado o pai de neuropsicologia, pois seus estudos
trouxeram uma imensa contribuição para a compreensão do funcionamento mental.
Por isso, nesta aula vamos conhecer os principais conceitos elaborados por ele nessa
área de conhecimento.

Funções mentais: funcionamento


em concerto
Você já assistiu a algum concerto musical? Se sim, você certamente percebeu que
cada um dos membros componentes da orquestra realizou sua função (tocou seu
instrumento ou regeu os músicos), no tempo e na intensidade certa, contribuindo
para a perfeita execução da música, que por nós é ouvida como uma totalidade, cujas
partes estão integradas harmonicamente.
20 Pós-Universo

Pois bem. Para Lúria, de maneira análoga ao funcionamento de um concerto é o


nosso funcionamento cerebral, sendo esta forma de explicação uma de suas prin-
cipais contribuições para a compreensão do funcionamento cerebral, isto é, a ideia
de que as funções mentais complexas estão organizadas como sistemas funcio-
nais complexos, que operam de maneira integrada. Por esse motivo, ele afirma que:

““
[...] as funções mentais, como sistemas funcionais complexos, não podem
ser localizadas em zonas estreitas do córtex ou em agrupamentos celulares
isolados, mas devem ser organizadas em sistemas de zonas funcionando
em concerto, desempenhando cada uma dessas zonas o seu papel em um
sistema funcional complexo, podendo cada) um desses territórios estar lo-
calizado em áreas do cérebro completamente diferentes e freqüentemente
bastante distantes uma da outra (LURIA, 1981, p. 16, grifo nosso).

Essa concepção confrontou as duas tendências de pesquisas neurocientíficas da


época, que buscavam relacionar as funções mentais superiores com áreas restritas do
cérebro (Localizacionismo) ou afirmaram que o cérebro atuava como um todo, sem
subdivisões de funções em regiões (Holismo ou Globalismo). Entretanto, ao mesmo
tempo que as colocou em questionamento, trouxe uma abertura na maneira de
pensar o funcionamento cerebral, ao diferenciar funções simples de funções com-
plexas, sendo as últimas por ele denominadas de “sistema funcional”, por englobar
várias funções.
Portanto, seus estudos sintetizaram os dois pensamentos, na medida em que
não negavam a existência de áreas cerebrais relacionadas às funções mentais, mas
explicavam que as atividades complexas são realizadas por um “sistema funcional”,
cujas partes deste sistema podem ser entendidas como instrumentos distintos de
uma orquestra, que atuam de maneira ordenada e controlada, cada qual desempe-
nhando sua função, o que implica dizer que não podem ser localizadas em partes
específicas do córtex cerebral.
Pós-Universo 21

saiba mais

Os estudos de Luria sobre o funcionamento mental estão fundamenta-


dos nos pressupostos teóricos de Vigotski, que por sua vez se apoiou no
materialismo histórico-dialético e considera o ser humano um ser sócio-his-
tórico. Para eles, o homem se diferenciou dos animais à medida que passou
a produzir instrumentos para intervir na natureza, por meio da atividade do
trabalho, modificando a sua própria estrutura anatômica, na filogênese. A
busca pela sobrevivência fez com que os homens se agrupassem e reali-
zassem atividades em conjunto, surgindo a necessidade da comunicação.
Isso levou ao início do desenvolvimento da linguagem e, por meio dela, foi
possível o armazenamento dos conhecimentos desenvolvimentos pelos
homens, sua cultura, seu modo de organização social.

Tais fatos estão na base do desenvolvimento das funções psicológicas su-


periores, exclusivas do ser humano, mas não são dadas aos indivíduos pela
hereditariedade. Em outras palavras, cada um ao nascer tem as condições
físicas (conquistadas na filogênese) para se desenvolver e tornar-se humano,
mas seu processo de humanização dependerá da apropriação dos conheci-
mentos produzidos pelos homens ao longo da história, por meio da interação
com outros homens no espaço social. Assim, as funções psíquicas superio-
res são formadas durante a ontogênese.

Fonte: a autora

Para melhor explicar sua teoria, primeiramente Luria (1981) revisou os conceitos de
função, localização e sintoma. Segundo ele o conceito de função se aplica adequa-
damente em situações em que determinada estrutura realiza uma ação específica,
como é o caso da função pancreática de secreção de insulina. No entanto, quando
falamos em função digestiva, por exemplo, temos a clareza de ela envolve uma gama
de estruturas corporais e, portanto, não deve ser entendida como uma função simples,
mas sim como um sistema funcional completo.
22 Pós-Universo

Para o autor, se até mesmo esses processos anatômicos e somáticos como é o


caso da digestão são executados por sistemas funcionais, sua afirmativa é de que as
funções complexas do comportamento também se realizam por meio da integra-
ção de diferentes funções, constituindo-se assim, como sistemas funcionais.
Dessa explicação, deriva sua compreensão acerca do conceito de localização
da função mental no córtex cerebral, que por sua natureza complexa, não é execu-
tada por uma zona restrita do cérebro, mas envolve várias áreas que funcionam em
concerto. Sendo assim, o foco de estudos deve ser desvendar quais áreas estão arti-
culadas na realização de cada atividade mental complexa, buscando descobrir qual
a função de cada uma delas nesse sistema.
Nessa perspectiva, a identificação dos sintomas não é o mais importante, pois
como ele explica, um sintoma indica uma falha no sistema funcional. No entanto,
essa falha pode ser resultado de lesões de diferentes áreas, havendo a necessidade
de investigar como essa perturbação se apresenta, para tentar “localizar” qual a “peça”
que está com problema.
Partindo da lógica de que os processos mentais humanos envolvem grupos de
estruturas cerebrais que atuam em concerto, Luria (1981) buscou identificar as unida-
des funcionais básicas que compõem o cérebro e qual a função de cada uma delas.

As três unidades funcionais


De acordo com Luria (1981), todos os processos mentais do homem e, principalmen-
te a atividade consciente, se realizam por meio da ação de três unidades funcionais
do cérebro, que estão organizadas hierarquicamente, da mais simples à mais com-
plexa. São elas:

a. Unidade I - para regular o tono, a vigília e os estados mentais;

b. Unidade II - para receber, analisar e armazenar informações;

c. Unidade III - para programar, regular e verificar a atividade.


Pós-Universo 23

•• A Unidade funcional I, é responsável pela regulação do tônus cortical e


pela vigília, condição essencial para a realização de processos mentais de
maneira regulada, o que não é possível durante o sono. Localiza-se, ana-
tomicamente, abaixo do nível do córtex, no tronco cerebral (ou tronco
encefálico), que possui em sua parte posterior uma rede nervosa denomi-
nada formação reticular, cujos processos de excitação se dão de maneira
gradual. Tal característica explica porque despertamos e adormecemos len-
tamente, devido a modulação gradativa realizada pelo sistema nervoso por
meio dessa estrutura (Luria, 1981).

•• A Unidade funcional II é responsável pela recepção, a análise e o arma-


zenamento de informações. Devido a sua função receptiva de estímulos,
possui, segundo Luria (1981, p. 49) “grande especificidade modal, isto é, que
suas partes componentes estão adaptadas para a recepção de informações
visuais, auditivas, vestibulares ou sensoriais gerais”. Esta unidade também
recebe as informações gustativas e olfativas. Sua localização anatômica
engloba as regiões laterais do neocórtex, sobre a superfície dos hemisfé-
rios cerebrais, incluindo as regiões occipital (visual), temporal (auditiva) e
parietal (sensorial geral).

•• A Unidade funcional III responde pela organização da atividade consciente,


que envolve programação, regulação e verificação. A estrutura anatômica
desta unidade funcional está localizada nas regiões anteriores dos hemis-
férios, à frente do giro pré-frontal. Como afirma Luria (1981), essa região, ou
seja os lobos frontais são muito mais desenvolvidos nos humanos do que
nos macacos superiores, pois o homem não apenas reage aos estímulos,
mas avalia, cria intenções e planos de ação, além de regular seu compor-
tamento. Ele destaca a linguagem como a atividade base dos processos
mentais superiores, sendo esta a principal característica que diferencia a
regulação da atividade consciente humana.
24 Pós-Universo

Conheça a organização anatômica do sistema nervoso central.

Figura 5: Sistema Nervoso Central


Fonte: LENT (2010, p.12)

Após essa pequena explanação sobre as unidades funcionais, devemos retomar a


ideia base de Luria sobre o funcionamento cerebral: “Cada forma de atividade cons-
ciente é sempre um sistema funcional complexo e ocorre por meio do funcionamento
combinado de todas as três unidades cerebrais, cada uma das quais oferece a sua
contribuição própria” (Luria, 1981, p. 78, grifo nosso).
A fim de facilitar a compreensão sobre a maneira como essas três unidades se ar-
ticulam na realização de uma atividade consciente humana, tomemos como exemplo
o processamento dos movimentos voluntários. Imaginemos a atividade de pegar um
copo sobre uma mesa. Antes de qualquer coisa, é preciso que estejamos acordados e
com tônus muscular ativo, o que será controlado pela Unidade funcional I. Também,
necessitamos das informações acerca da localização do copo, formato, tamanho, bem
como informações sobre a nossa posição em relação a este objeto, sendo todas elas
captadas por nossos receptores sensoriais (visuais, táteis, sensoriais gerais) e analisadas
Pós-Universo 25

e integradas pela Unidade funcional II. Por fim, é necessária a ação da Unidade fun-
cional III, para a programação e ordem para a realização do movimento.
Definida a realização da atividade de pegar o copo, a unidade funcional I con-
trola o tônus muscular para a execução do movimento, que ao ser iniciado modifica
as informações em relação a posição de nosso braço/mão em relação ao objeto. A
unidade II, recebe e analisa informações constantes sobre o movimento durante a
sua realização e a Unidade III vai controlando, fazendo a verificação do curso do mo-
vimento e os ajustes necessários para que a mão consiga alcançar o copo. Vale dizer
que tudo isso acontece simultaneamente e em fração de segundos, devido a intensa
capacidade de nosso sistema nervoso de captar, receber, analisar e organizar infor-
mações, bem como de processá-las e definir programas de ação a fim de produzir
uma resposta corporal eficaz e condizente com as informações recebidas e com a
ordem voluntária do sujeito.
Embora tal exemplo seja bastante simples, por meio dele podemos perceber a
integração entre as três unidades funcionais, que trabalham em sintonia, cada qual
realizando uma função. Pelo exemplo também, fica evidente que o controle deste
movimento é realizado pela combinação de impulsos aferentes e eferentes, havendo
um intenso trânsito de informações do meio externo para o sistema nervoso e deste
para o meio externo, em forma de resposta voluntária.
Por fim, a compreensão desse movimento interfuncional no processamento
das funções mentais, elucida a incapacidade de localizar em uma única porção do
córtex cerebral a responsabilidade exclusiva sobre determinada função complexa.
Da mesma forma, delimita atividades diferenciadas, realizadas por partes específicas,
que em combinação altamente organizada, realizam as funções.

quadro resumo

Componentes aferentes são aqueles responsáveis por levar informações da


periferia para o sistema nervoso central, ou seja, chegam ao SNC.

Componentes eferentes levam informações do sistema nervoso central para


algum ponto periférico do organismo, isto é, saem do SNC.

Fonte: adaptado de LENT (2010)


26 Pós-Universo
Pós-Universo 27

ENTENDENDO OS
PROCESSOS DE
NEUROPLASTICIDADE
Nesta aula vamos estudar sobre os processos de neuroplasticidade a partir das
construções teóricas da neurociência. Esse é um assunto muito interessante, porém
bastante complexo, uma vez que reúne conhecimentos de diversas áreas. Para fa-
cilitar a compreensão, optamos por uma explanação mais geral, evitando o uso de
termos anatômicos/fisiológicos mais específicos. Vamos começar?

O que é neuroplasticidade?
Como explica Lent (2010), diferentemente do que se acreditava há algum tempo, as
células do sistema nervoso (os neurônios) possuem a capacidade de se modificar,
em sua forma e função, de maneira permanente ou temporária, a partir da interação
do homem com o meio externo. Essa capacidade recebe o nome de neuroplasti-
cidade ou plasticidade e, está presente no desenvolvimento dos indivíduos, de
maneira mais intensa durante a infância e adolescência, com redução significativa
na vida adulta, embora não se extingua por completo.

A influência do meio sobre o sistema


cerebral
A influência do meio externo sobre o sistema cerebral ocorre de diversas maneiras
e intensidades. Lent (2010) explica essa variação apresentando o seguinte exemplo:
uma pessoa sofre um acidente automobilístico e, por estar sem cinto de segurança,
tem uma fratura de crânio e perda de tecido cerebral. Fica em coma e se recupera
lentamente, embora sem restauração de todas as funções. Outro indivíduo presen-
cia o acidente e se impressiona com os ferimentos do motorista, e nunca mais se
28 Pós-Universo

esquece da cena vista. Outro sujeito, por sua vez, lê uma notícia no jornal sobre a
efetividade de proteção do cinto de segurança e, a partir de então, passa a usá-lo
constantemente.
Segundo o autor, nestas três situações distintas a experiência promove uma al-
teração no sistema nervoso. Na primeira delas, a influência do meio externo se dá
de maneira direta e intensa, devido à lesão anatômica ocasionada no cérebro do mo-
torista. No caso da pessoa que viu o acidente, ocorre um registro no sistema nervoso
devido a intensa impressão emocional provocada. E o leitor da notícia, por meio da
apropriação deste conhecimento, modifica seu comportamento.
Segundo essa explicação, nos três casos o cérebro respondeu ao ambiente externo
e, essa resposta é entendida a partir do conceito de plasticidade, pois

““
A capacidade de adaptação do sistema nervoso, especialmente a dos neurô-
nios, às mudanças nas condições do ambiente que ocorrem no dia a dia
da vida dos indivíduos, chama-se neuroplasticidade, ou simplesmente
plasticidade, um conceito amplo que se estende desde a resposta a lesões
traumáticas destrutivas, até as sutis alterações resultados dos processos de
aprendizagem e memória. Toda vez que alguma forma de energia provenien-
te do ambiente de algum modo incide sobre o sistema nervoso, deixa nele
alguma marca, isto é, modifica-o de alguma maneira. E como isso ocorre em
todos os momentos da vida, a neuroplasticidade é uma característica mar-
cante e constante da função neural (Lent, 2010, p. 149).

Segundo Eslinger (2003), o processo de desenvolvimento cerebral se dá durante


toda a vida, existindo uma dependência entre seu crescimento e maturação e as in-
fluências ambientais e biológicas. Sendo assim, a riqueza de experiências no início
da vida, momento em que há maior potencial plástico no sistema nervoso, podem
ter um impacto significativo sobre o potencial posterior da cada indivíduo.
Complementando essa ideia, Cardoso e Sabbatini (2000), citam pesquisas reali-
zadas com ratos, que evidenciam o crescimento e a modificação de células nervosas
mediante exposição a um ambiente mais rico em estímulos diversos. Tais estudos
apontam para a influência do meio no processo de estruturação do sistema nervoso
central. “A cada nova experiência do indivíduo, portanto, redes de neurônios são rear-
ranjadas, outras tantas sinapses são reforçadas e múltiplas possibilidades de respostas
ao ambiente tornam-se possíveis.” (CARDOSO e SABBATINI, 2000).
Pós-Universo 29

Essas novas descobertas acerca do funcionamento cerebral, coadunam-se aos


princípios defendidos por Vigotski e Luria acerca do desenvolvimento das funções
humanas a partir das relações que os sujeitos estabelecem no meio social, median-
te a apropriação que fazem da cultura, sendo a linguagem o maior instrumento de
potencialização do desenvolvimento humano.

Características e tipos de
plasticidade
De acordo com Lent (2010) embora a plasticidade seja algo que nos acompanhe ao
longo da vida, os estudos realizados por neurocientistas constaram que essa capaci-
dade do sistema nervoso possui graus que se modificam de acordo com a idade do
indivíduo. Como já assinalado, durante o infância e a adolescência, período no qual
o organismo se molda em função das influências ambientais e do genoma, a neuro-
plasticidade é maior. Já a partir certa idade, quando o organismo já está maduro, há
uma redução desta capacidade.
O autor ainda destaca que mesmo durante a infância, existe uma variação com
relação a intensidade do potencial de plasticidade, o qual é denominado de período
crítico. Este corresponde a “uma fase na infância durante a qual a influência do
ambiente é determinante para o estabelecimento das características fisiológicas e
psicológicas do indivíduo”. (Lent, 2010, p. 160).
O desenvolvimento da linguagem humana, por exemplo, tem seu período crítico
até a adolescência. Tal fato tem sido investigado por meio de estudos com animais
(aves e primatas), que isolados de seu grupo, não desenvolvem o canto e certos
comportamentos característicos de sua espécie, principalmente se essa privação se
der no início da vida. Casos famosos como o dos “meninos selvagens”, crianças que
foram encontradas vivendo com animais, ou seja, cresceram fora da cultura humana
e, portanto, não tiveram a oportunidade de aprender hábitos humanos, constitui-
ram-se também como importante fonte de informações sobre os períodos críticos
para o desenvolvimento do sistema nervoso.
Isso porque, quanto mais velhos foram encontrados e resgatados, menor foi sua
capacidade para aprender a falar e adquirir comportamentos sociais humanos.
30 Pós-Universo

saiba mais

Para saber mais sobre o processo de reinserção na cultura de “crianças selva-


gens” e das tentativas de humanizá-las , leia o texto disponível em <http://
www.educacional.com.br/articulistas/luca_bd.asp?codtexto=220>.

Além de destacar a necessidade da interação dos indivíduos com o meio externo


nos períodos críticos para o desenvolvimento, Lent (2010) expõe que existem dife-
rentes tipos de plasticidade estudadas pela ciência, classificadas a partir das
mudanças anatômicas observadas nos neurônios.
Segundo ele, temos que ter em mente que a capacidade de regeneração ou
proliferação de novas células para recuperação do tecido, quando estamos nos refe-
rindo às células nervosas, se encerra muito precocemente. Sendo assim, quase todo
tipo de restauração funcional do sistema nervoso se dá pelos processos de plasti-
cidade, os quais se realizam por meio do recrescimento dos prolongamentos dos
neurônios, que podem ser de diferentes tipos: regeneração axônica periférica, bro-
tamentos colaterais, plasticidade dendrítica, de acordo com o local onde se observa
a variação anatômica.
Há também estudos que investigam o modelo celular e molecular da memória,
e apontam para a existência de plasticidade sináptica, ou seja, “a transmissão de
mensagens entre os neurônios poderia ser regulada: não seria um fenômeno rígido
e imutável, mas sim algo modulável conforme as circunstâncias” (p. 165).
Também, com os avanços nas técnicas de pesquisa, no início deste século os
estudos da neurociência trouxeram uma mudança radical acerca da possibilidade de
neurogênese (nascimentos de novos neurônios) no sistema nervoso de mamíferos
adultos, devido a existência de locais específicos do cérebro com possibilidade proli-
ferativa, em especial em áreas receptoras olfativas e auditivas. Ainda, há estudos que
indicam neurogênese no hipocampo, em decorrência da permanência de células
tronco, as quais possuem capacidade de autorregulação e multipotencialidade.
Por se tratar de estudos muito recentes, os cientistas ainda não tem certeza se o
processo de neurogênese adulta é um mecanismo de reposição de neurônios, ou
se resulta dos mecanismos de plasticidade cerebral. Contudo, há maiores evidências
de que a neurogênese esteja associada à plasticidade, pois tem sido relacionada à
influência de atividades desenvolvidas pelo sujeito.
Pós-Universo 31

Por fim, Lent (2010) cita que alguns estudos demonstram que a plasticidade
pode tanto ser benéfica, como prejudicial aos indivíduos. Alguns estudos têm com-
provado que a plasticidade pode levar a uma reorganização que leve a resultados
mal adaptativos, como é o caso da “dor fantasma” sentida por pessoas que tiveram
membros amputados.
Entretanto, como o autor aponta, é o valor compensatório da neuroplasticida-
de que mais tem sido explorado pelos cientistas. Ideias do senso comum de que
pessoas cegas desenvolvem maior acuidade auditiva e percepção tátil hoje podem
ser explicadas por meio de estudos com animais, não só pela comparação do compor-
tamento entre sujeitos normais ou com a deficiência, mas também pela constatação
de alteração anatômica, tendo ocorrido a invasão de neurônios auditivos ou táteis
em regiões antes responsáveis pela visão.

““
Em seres humanos, exemplos de plasticidade compensatória tem sido mos-
tradas através de modernas técnicas de imagem, capazes de revelar as regiões
funcionalmente ativas do cérebro. Desse modo, já se mostrou que as regiões
linguísticas de indivíduos surdos que utilizam linguagem de sinais são bastante
diferentes em sua organização e extensão; que os cegos apresentam ativa-
ção das áreas visuais quando submetidos à estimulação auditiva e quando
realizam leitura Braille (Figura 5.22), e além disso possuem uma representa-
ção maior da região do córtex motor que controla os dedos que leem em
Braille; e até que os violinistas treinados desde a infância possuem maior re-
presentação cortical dos dedos da mão esquerda! (Lent, 2010, p. 178).
32 Pós-Universo

A figura a seguir ilustra o que foi explicado por Lent (2010, p. 179):

Figura 6: Nos cegos, a imagem de ressonância magnética funcional mostra ativação do córtex
visual (V) quando o indivíduo realiza uma leitura em Braille, ao contrário do vidente, que prati-
camente só apresenta ativação das regiões somestésicas do córtex cerebral.
Fonte: Adaptado de LENT (2010).

Como destaca Lent (2010) todos estes mecanismos ainda estão sendo melhor inves-
tigados, de forma que novas informações podem comprovar ou contrariar o que se
sabe até o momento. De qualquer maneira, o que temos claro, é que o nosso sistema
nervoso é plástico e, os limites desta plasticidade ou como fazer com que ela ocorra
constituem-se como as novas perguntas que a ciência tentará responder.
Pós-Universo 33

O PODER DA MEDIAÇÃO
NOS PROCESSOS DE
DESENVOLVIMENTO E
REABILITAÇÃO
Prezado(a) aluno(a), antes de falarmos dos processos de reabilitação, precisamos
entender como se dá o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Para
tanto, começaremos nossa aula pelos principais conceitos elaborados pela Psicologia
Histórico-Cultural, em especial por seus precursores: Vigotski, Lúria e Leontiev, para
depois trabalharmos com o conceito de compensação. Venha comigo!

O processo de humanização e a
formação das funções psicológicas
superiores
Segundo a Psicologia Histórico-Cultural, o homem é um ser social, que se constrói
a partir das inter-relações que estabelece com outros homens na sociedade.
De acordo com Leontiev (2004), quando nascemos não estamos prontos. Embora
tenhamos condições biológicas para desenvolver nossas potencialidades humanas,
isso só ocorre por meio da apropriação da cultura, do conhecimento produzido e
organizado pela humanidade ao longo da história. Isto é,

““
podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natu-
reza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É lhe ainda
preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histó-
rico da sociedade humana” (LEONTIEV, 2004, p. 285 – grifos do autor).
34 Pós-Universo

Segundo ele, o processo de humanização teve início quando o homem primitivo


começou a construir ferramentas para intervir na natureza e a se organizar coleti-
vamente para realizar atividades práticas, o trabalho. Nesse processo, mediante a
necessidade de se comunicarem, o homem deu início ao desenvolvimento da lin-
guagem, criando signos cada vez mais complexos.

quadro resumo

Chamamos signos os estímulos – meios artificiais introduzidos pelo homem


na situação psicológica que cumprem a função de auto estimulação; outor-
gando a este termo um sentido mais amplo e, ao mesmo tempo, mais exato
do que se dá habitualmente a essa palavra. De acordo com nossa defini-
ção, todo estímulo condicional criado pelo homem artificialmente e que se
utiliza como meio para dominar a conduta – própria e alheia – é um signo.
Fonte: adaptado de VYGOTSKY (1995), traduzido pela autora

Como explica Vygotsky (1995), ao construir e empregar ferramentas (instrumentos


concretos) para intervir na natureza, bem como ao elaborar e utilizar os signos (ferra-
mentas abstratas) para se comunicar, o homem passou a agir de maneira mediada
com o meio, isto é, sua relação com o mundo deixou de ser direta como a dos animais,
havendo um instrumento de mediação: entre ele a natureza, entre ele e os outros
homens.
Os signos, inicialmente utilizados para comunicação, foram sendo internalizados
pelos indivíduos, constituindo-se como ferramenta psicológica. Como instrumento
interno, a linguagem está na base da formação das demais funções psicológicas su-
periores, como a percepção verbalizada, a atenção voluntária, a memória mediada,
a formação de conceitos e o pensamento generalizado e a consciência.
Como sabemos, ao nascer não temos a linguagem desenvolvida. Nossa comuni-
cação no início da vida se dá pelo choro, que é uma resposta instintiva. No entanto,
nascemos em um meio cultural e, desde o primeiro momento, o outro começa a nos
apresentar a cultura, a nos ensinar na relação cotidiana, a linguagem, o nome dos
objetos, sua função, de forma que vamos nos apropriando dos signos produzidos ao
longo da humanidade. Assim, gradativamente aprendemos os conhecimentos pro-
duzidos pelos homens e, vamos nos humanizando.
Pós-Universo 35

No entanto, como a linguagem possibilitou o acúmulo de conhecimentos e sua


transmissão às novas gerações, nem tudo pode ser ensinado espontaneamente nas
relações cotidianas e, por isso, a escola torna-se o lugar de transmissão dos conhe-
cimentos científicos produzidos pelo homem.
Como explica Leontiev (2004, p. 291),

““
Quanto mais progride a humanidade,mas rica é a prática sócio-histórica acu-
mulada por ela, mais cresce o papel específico da educação e mais complexa
é a sua tarefa. Razão por que toda a etapa nova no desenvolvimento da hu-
manidade, bem como no dos diferentes povos, apela forçosamente para
uma nova etapa no desenvolvimento da educação: o tempo que a socieda-
de consagra à educação das gerações aumenta; criam-se estabelecimentos
de ensino, a instrução toma formas especializadas, diferencia-se o traba-
lho do educador do professor; os programas de estudo enriquecem-se, os
métodos pedagógicos aperfeiçoam-se, desenvolve-se a ciência pedagógi-
ca. Esta relação entre o progresso histórico e o progresso da educação é tão
estreita que se pode sem risco de errar julgar o nível de desenvolvimento
histórico da sociedade pelo nível de desenvolvimento do seu sistema edu-
cativo e inversamente.

Pensando em nossa sociedade atual, com alto grau de desenvolvimento da ciência,


da tecnologia, dos meios de produção, enfim, do alto grau de complexificação da or-
ganização social como um todo, temos a clareza de que a escola torna-se mais e mais
necessária a todos os indivíduos, sendo imprescindível frequentá-la para o pleno de-
senvolvimento das funções especificamente humanas. É importante salientar que
a educação espontânea também promove o desenvolvimento das funções psíqui-
cas superiores, mas não em sua máxima potencialidade.
Segundo Vigotski (2009), o psiquismo humano se constrói a partir da aprendiza-
gem dos sujeitos, inicialmente de forma espontânea e, posteriormente, de maneira
organizada por meio do ensino escolar. Assim, a criança inicia a construção de seu
conhecimento acerca do mundo a partir de suas vivências concretas, nas quais as
relações de mediação entre os sujeitos são imprescindíveis. Nessas relações ela vai
construindo os conceitos espontâneos e opera com eles praticamente, mas não con-
segue ter consciência dos mesmos, pois seu conhecimento parte do empirismo. No
entanto, quando a criança passa a ir à escola e entra em contato com os conceitos
36 Pós-Universo

científicos, que por sua vez já são organizados dentro de um sistema e possuem rela-
ções mediadas com os objetos, por meio de outros conceitos, consegue generalizar
e, portanto, tomar consciência dos mesmos. A aquisição dos conceitos científicos,
por sua vez modifica a estrutura do pensamento, possibilitando maior capacidade
de generalização e de estabelecimento de relações. Isso altera o funcionamento psí-
quico, em especial no que tange ao pensamento e à formação da consciência.
Portanto, o ensino sistematizado tem um papel decisivo no processo de desen-
volvimento do psiquismo infantil. Vale destacar que tal processo não ocorre apenas
com o passar do tempo, não sendo determinado pelo amadurecimento biológico,
ou seja, é preciso que sejam realizadas mediações adequadas, que levem a criança a
adquirir conhecimentos científicos, estabelecendo relações com os conhecimentos
que já possui e assim, vá aumentando a sua capacidade de compreensão do mundo,
havendo não só um acúmulo de conhecimentos, mas uma paulatina complexifi-
cação de seu pensamento, ou seja, uma mudança qualitativa em suas funções
psíquicas.
Como explica Vygotsky e Luria (1996), no processo de desenvolvimento a criança
se reequipa, desenvolvendo neoformações.

““
O desenvolvimento começa com a mobilização das funções mais primitivas
(inatas), com seu uso natural. A seguir, passa por uma fase de treinamen-
to, em que, sob as influências de condições externas, muda sua estrutura e
começa a converter-se de um processo natural em um “processo cultural”
complexo, quando se constitui uma nova forma de comportamento com a
ajuda de uma série de dispositivos auxiliares externos. O desenvolvimento
chega, afinal, a um estágio em que esses dispositivos auxiliares externos são
abandonados e tornados inúteis e o organismo sai desse processo evoluti-
vo transformado, possuidor de novas formas e técnicas de comportamento
(VYGOTSKY, LURIA, 1996, p. 215).

Considerando o que foi exposto até o momento, podemos entender a máxima


Vigotskiana de que é a aprendizagem que promove o desenvolvimento, ou seja,
à medida que o sujeito vai aprendendo, vai adquirindo conhecimento, e esse co-
nhecimento vai produzindo alterações em seu psiquismo, que se transforma e se
complexifica.
Pós-Universo 37

Educação e compensação cultural


De acordo com a Psicologia Histórico-Cultural o desenvolvimento das características
humanas se dão sobre a base biológica, mas dependem do processo de apropria-
ção da cultura, necessário tanto para o desenvolvimento das pessoas consideradas
normais, quanto das pessoas com alguma deficiência, pois “o homem é uma criatu-
ra social e as condições socioculturais o modificam profundamente, desenvolvendo
toda uma série de novas formas e técnicas em seu comportamento…” (VYGOTSKY,
LURIA, 1996, p. 220).
A diferença se dá em relação ao tipo de mediação, pois de acordo com o trans-
torno ou deficiência que a pessoa possui, é necessária a realização de uma mediação
diferenciada, ou seja, uma mediação que possibilite ao indivíduo a aprendizagem de
técnicas culturais, que lhe auxilie a resolver tarefas complexas.
Dentro dessa perspectiva de desenvolvimento, Vigotski (2011) elaborou o con-
ceito de “compensação cultural”, que consiste na compensação de um defeito
(deficiência) por meio da aquisição de ferramentas culturais (meios auxiliares - ini-
cialmente exteriores e posteriormente, por meio da internalização, interiores) para
resolver tarefas por caminhos indiretos, que não seriam utilizados, caso não houves-
se um obstáculo ao seu uso.
Para melhor compreender tal conceito, tomemos como exemplo a pessoa com
deficiência visual: sua limitação física é uma barreira para sua boa adaptação, uma
vez que como aponta Vigotski (2011), nossa cultura está organizada para a pessoa
normal. A locomoção, a alfabetização, entre tantas outras habilidades, estão estru-
turadas a partir do sentido da visão. Privada desse sentido, a criança com deficiência
visual precisa desenvolver caminhos indiretos para se adaptar. No caso da alfabeti-
zação, por exemplo, isso ocorre por meio da aprendizagem de um técnica cultural, o
código Braille. Para tanto, o sentido do tato será solicitado de tal maneira, que ocorrerá
um maior grau desenvolvimento do mesmo em relação ao nível de desenvolvimen-
to deste sentido nas pessoas videntes.
Estudos citados por Vygotsky e Luria (1996) demonstram que os órgãos dos sen-
tidos da audição e do tato das pessoas com deficiência visual não possuem nada
de superior em relação às pessoas normais. O que as diferencia é que a pessoa com
deficiência
38 Pós-Universo

““
desenvolve para si mesma uma capacidade de utilizar esses órgãos de modo
que ultrapassa de longe essa capacidade nos videntes. As sensações auditivas
e táteis que, numa pessoa vidente, permanecem adormecidas, sob o domínio
de sua visão, são mobilizadas pelo cego e utilizadas como um grau incomum
de plenitude e sensibilidade. A atividade auditiva e táctil surpreendentemente
do cego não resulta de uma acuidade fisiológica, inata ou adquirida, desses
receptores, mas é produto “da cultura dos cegos”, resultado de um capaci-
dade de utilizar culturalmente os demais órgãos dos sentidos; desse modo
ocorre a compensação da deficiência natural (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 223).

Tais constatações conduziram Vygotsky e Luria (1996) ao entendimento de que se


por um lado a deficiência limita o indivíduo de se adaptar pelo caminho direto, essa
mesma deficiência serve de estímulo e faz com que outros caminhos de desenvol-
vimentos sejam acionados, de forma que a deficiência promove uma reorganização
no funcionamento cultural da personalidade, possibilitando a compensação e, por
vezes, até a supercompensação, devido ao intenso desenvolvimento alcançado em
outro aspecto.

saiba mais

Os estudos desenvolvidos por Vigotski e Luria com pessoas com deficiên-


cias, denominados de Defectologia (termo utilizado na época) permitiram
a elaboração do conceito de compensação cultural. Além de inúmeras pes-
quisas e revisões teóricas, eles realizavam atendimentos práticos, testes e
acompanhamento de pacientes, o que lhes garantiu a produção de um rico
material que até hoje é referência para a compreensão e orientação do tra-
balho com pessoas especiais.
Fonte: elaborado pela autora.
Pós-Universo 39

““
A estrutura do caminho indireto surge apenas quando aparece um obstáculo
ao caminho direto, quando a resposta pelo caminho direto está impedida; em
outras palavras, quando a situação apresenta exigências tais, que a resposta
primitiva revela-se insatisfatória. Como regra geral, podemos considerar isso
como operações culturais complexas da criança. A criança começa a recorrer
a caminhos indiretos quando, pelo caminho direto, a resposta é dificultada,
ou seja, quando as necessidades de adaptação que se colocam diante da
criança excedem suas possibilidades, quando, por meio da resposta natural,
ela não consegue dar conta da tarefa em questão. (VIGOTSKI, 2011, p. 865)

No entanto, Vigotski (2011) afirma que se deixada ao curso de seu desenvolvimen-


to natural, a criança com deficiência não se desenvolverá. É preciso que a educação
seja um auxílio, “criando técnicas artificiais, culturais, um sistema especial de signos
ou símbolos culturais adaptados às peculiaridades da organização psicofisiológica
da criança anormal” (p. 867).
A partir dessa compreensão, segundo Vigotski e Luria todas as pessoas podem
se desenvolver, pois nossas características inatas são apenas nosso ponto de partida.
É necessário que sejam feitas as mediações para que isso ocorra, de maneira que cada
sujeito, com suas peculiaridades, tenha a chance de se apropriar da cultura e faça
dela seu instrumento auxiliar para a resolução dos problemas de adaptação. Ainda
que, em casos muito graves, essa apropriação se dê dentro de certos limites, já pro-
moverá uma ampliação de possibilidades para o sujeito.
Da mesma maneira, o processo de reabilitação se fundamenta no mesmo prin-
cípio: desenvolver caminhos alternativos onde o caminho direto foi interrompido.
Vigotski propõe que no trabalho com crianças com deficiência (ou transtornos),
o olhar seja para o sujeito como um todo, não focando no que lhe falta, em sua li-
mitação, mas sim em tudo que possui que pode lhe ajudar em seu processo de
humanização.
Há uma imensa necessidade de assumir um olhar mais global sobre as crianças
que são diagnosticadas como deficiências ou transtornos, pois a maneira de condu-
zir o trabalho com elas pode levar ao seu desenvolvimento ou não.
40 Pós-Universo

Por isso, embora os diagnósticos sejam importantes para a comunicação entre


os diferentes profissionais que trabalham com a criança, em suas diferentes especia-
lidades, fornecendo também direcionamentos com relação a possíveis prognósticos
e tratamentos, o mais importante é não reduzir o indivíduo ao seu diagnóstico.
Portanto, temos que ter claro que a criança tem um transtorno (ou deficiência) e não
é o transtorno (nem a deficiência). Essa pequena diferença na linguagem pode fazer
com que compreendamos de maneira completamente diversa e, portanto, tenha-
mos uma atuação profissional que respeite as pessoas como seres integrais, sendo
mais eficientes e mais éticos em nossa atuação profissional.
atividades de estudo

1. Os conhecimentos sobre o funcionamento cerebral alcançaram significativo avanço


a partir do final do século XIX e início do século XX. Sobre as teorias localizacionis-
tas, marque verdadeiro ou falso e, em seguida, assinale a alternativa que apresenta
a sequência correta:

( ) Os cientistas localizacionistas consideravam que existiam regiões específicas do


córtex cerebral responsáveis por funções mentais específicas.

( ) Os localizacionistas entendiam que as funções mentais eram realizadas pelo


cérebro como um todo.

( ) A frenologia de Franz Gall é uma teoria localizacionista.

( ) A descoberta de Paul Broca contrariou os estudos localizacionistas da época.

a) VFFF;
b) VFVF;
c) VFVV;
d) FVFF;
e) Nenhuma das alternativas anteriores está correta.
atividades de estudo

2. O russo A. Luria, também conhecido como o pai da neuropsicologia, elaborou uma


teoria sobre o funcionamento mental que não concordava plenamente nem com
as teorias localizacionistas e nem com as teorias holistas. Considerando a forma de
compreensão luriana acerca do funcionamento mental, leia o trecho abaixo e, em
seguida, assinale a alternativa que preenche correta e respectivamente as lacunas:

Nossas funções mentais............................. estão organizadas como ................................ com-


plexos, que funcionam de maneira ................................... Portanto, as funções mentais não
podem ser localizadas em ................................... celulares isolados, já que encontram-se
organizadas em sistemas de zonas que funcionam em .............................

a) superiores, sistemas funcionais, compartilhada, partes, conjunto.


b) complexas, conjuntos, articulada, regiões, combinação.
c) complexas, sistemas funcionais, integrada, agrupamentos, concerto.
d) superiores, sistemas integrados, combinada, conjuntos, combinação.
e) simples, conjuntos, interdependente, grupos, concerto.
atividades de estudo

3. Neuroplasticidade é a capacidade de modificação das células do sistema nervoso a


partir da interação do homem com o ambiente externo. Com base nas características
da neuroplasticidade, marque com V ou F as afirmativas a seguir e, depois assinale a
alternativa com a sequência correta:

( ) A capacidade plástica do sistema nervoso está presente durante toda a vida do


indivíduo, sem variação de intensidade nas diferentes fases do desenvolvimento.

( ) Apenas eventos muito intensos são capazes de interferir nos processos de


neuroplasticidade.

( ) Período crítico corresponde a um momento no desenvolvimento em que a in-


fluência do ambiente é determinante para o estabelecimento de características físicas
e psicológicas do indivíduo.

( ) O recrescimento dos prolongamentos de neurônios é um dos comprovantes ana-


tômicos que confirmam a capacidade plástica do sistema nervoso.

a) FVVV.
b) FFVV.
c) VFVV.
d) FFVF.
e) Nenhuma das alternativas anteriores correta.
atividades de estudo

4. A compreensão dos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural sobre o desenvolvimen-


to humano é fundamental para se entender a proposta de Luria sobre a capacidade
de reabilitação dos indivíduos. Sobre isso é correto afirmar:

a) A ideia de que a aquisição de ferramentas culturais possibilita o desenvolvimento


de novas habilidades e formas de conduta que permitam a adaptação, faz parte
do conceito de compensação cultural.
b) Os indivíduos com transtornos ou deficiências somente podem superar suas
dificuldades e melhor se adaptarem ao mundo, se a compensação cultural for re-
alizada antes do início da escolarização.
c) No processo de avaliação, se for constatado que a criança nasceu sem funções
psicológicas superiores, será necessário realizar um trabalho educativo que pos-
sibilite a compensação por meio da aquisição de ferramentas culturais de apoio.
d) Dependendo da deficiência ou transtorno será inviável qualquer tipo de trabalho
educativo que vise melhorar a adaptação via compensação cultural.
e) Nenhuma das alternativas anteriores está correta.
resumo

Estamos finalizando nosso estudo acerca da neuroplasticidade. Em nossa trajetória, conhecemos


um pouco sobre a evolução histórica dos estudos da neurociência, passando por algumas desco-
bertas revolucionárias sobre o funcionamento cerebral, que ditaram os caminhos subsequentes
de estudos e investigações nessa instigante área de conhecimento.

Também tivemos acesso ao pensamento de Luria sobre o funcionamento em concerto das


funções mentais, na integração de partes distintas do cérebro, em sua atividade vinculada ao
mundo externo. A partir desse conhecimento, começamos a entender que o cérebro é um órgão
plástico, que se modifica e se desenvolve a partir das relações, exigências e condições ofereci-
das pelo ambiente externo.

Pelos estudos da neurociência vimos que a plasticidade pode resultar em alterações sinápticas,
funcionais e/ou anatômicas no sistema nervoso. Quebrando com velhas ideias acerca da plasti-
cidade, ficamos sabendo que ela está presente durante toda a vida dos indivíduos, mas em graus
e intensidades diferentes.

De maneira complementar, os estudos específicos da neuropsicologia, principalmente os desen-


volvidos por Luria e Vigotski, demonstraram a possibilidade plástica do funcionamento cerebral,
em função da compensação que se realiza por meio da aquisição de ferramentas culturais.

Foi possível ainda, compreender a importância da aprendizagem, cotidiana e sistematizada pela


educação, para que os indivíduos, que possuem alguma deficiência ou não, desenvolvam suas
funções psíquicas superiores e assim, conquistem as características humanas que nos diferen-
ciam dos animais e nos dão condições de intervir sobre o mundo e também de compreendê-lo.

Tomamos conhecimento de que o desenvolvimento e a reabilitação são possíveis para todos os


indivíduos, por meio de mediações adequadas e específicas a cada necessidade, o que implica
entender que apesar dos limites que determinadas deficiências ou transtornos impõem aos su-
jeitos, há como superá-los ou minimizar seus prejuízos pela compensação cultural, ou seja, pela
construção de um caminho novo e diferente, quando o caminho direto encontra-se bloqueado.
material complementar

NA WEB

Neste documentário você poderá visualizar o conceito de compensação pela via do desenvolvi-
mento cultural aplicado no trabalho com crianças com deficiências visual e auditiva. Aqui, o que
parece impossível torna-se realidade pela trabalho educativo, pela adequada mediação realiza-
da. O documentário se chama The Butterflies of Zagorsk (Original) ou As borboletas de Zagorsk,
produzido pela BBC em 1990 que trata do trabalho desenvolvido em uma escola russa com crian-
ças surdas e cegas, inspirado nos estudos de Lev Vygotsky. A obra tem 60 minutos de duração e
se passa na cidade de Zagorsk, a 80 km de Moscou.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tiVBQGbjch0

Você também pode assistir aos filmes “O garoto Selvagem” e “O enigma de Kaspar Hauser”, dis-
poníveis, respectivamente, em <https://www.youtube.com/watch?v=K6GZPuxuBTU> e <https://
www.youtube.com/watch?v=Wplj0ITkwho>.
referências

BASTOS, L. S.; ALVES, M. P. As influências de Vygotsky e Luria à neurociência contemporânea e


à compreensão do processo de aprendizagem. In: Revista Práxis. v. 5, n. 10, p. 41-53, 2013.
Disponível em: <http://web.unifoa.edu.br/praxis/ojs/index.php/praxis/issue/view/8>. Acesso em
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te.org.br/n11/mente/eisntein/rats-p.html> Acesso em 12 março, 2017.

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Universidade Estadual de Campinas, 2003. Disponível em: <http://www.cerebromente.org.
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<file:///D:/25373-92516-1-PB.pdf> Acesso em 06 março, 2017.

LENT, R. Cem bilhões de neurônios?: conceitos fundamentais de neurociência. 2.ed.- São Paulo:
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pdf> Acesso em 09 março, 2017.
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VYGOTSKY, L.S.; LURIA, A.R. Estudos sobre a história do comportamento: símios, homem pri-
mitivo e criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
resolução de exercícios

1. b) VFVF;

2. c) complexas, sistemas funcionais, integrada, agrupamentos, concerto.

3. b) FFVV.

4. a) A ideia de que a aquisição de ferramentas culturais possibilita o desenvolvimento


de novas habilidades e formas de conduta que permitam a adaptação, faz parte do
conceito de compensação cultural.

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