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Travessias – algumas percepções dos enlaces entre a Europa e a América na crise do

Antigo Regime
Autora: Profa. Dra. Wilma Peres Costa – Universidade Federal de São Paulo

“Eu me encontrei entre dois séculos, como na confluência de dois rios; eu mergulhei em águas
turbulentas, afastando-me com tristeza da velha margem onde nasci e nadando cheio de esperança em
direção à margem desconhecida”.1

Principiando a da travessia: futuro e passado da França, na América

No último quartel do século XVIII, os temas americanos ganharam centralidade no


debate ilustrado francês. O interesse vinha potenciado pela independência das colônias
inglesas na América do Norte, processo em que a França empenhara grandes energias
materiais e humanas e que fazia emergir uma nova forma de organização política. O
surgimento de uma República no Novo Mundo possibilitava novos enfoques para o
tratamento de alguns dos temas mais caros ao pensamento das Luzes: a capacidade de
autogoverno dos povos e a questão dos direitos naturais e políticos. Um dos críticos mais
veementes do colonialismo europeu chegou a propor uma espécie de desafio aos homens de
letras, convidando-os a responder à questão: quais teriam sido os efeitos da descoberta e da
colonização do Novo Mundo sobre a vida material, os costumes e a política do continente
europeu, em particular os da França? 2

1 François-René de Chateaubriand, Mémoires d'outre-tombe,


2 O desafio provinha de um prêmio proposto por Guillaume-Thomas Raynal (1713-1796), o Abbé Raynal, autor da
célebre Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des Européens dans les deux Indes, ácida
crítica do sistema colonial e da escravidão. A Histoire philosophique … foi publicada pela primeira vez em 1772, tendo
tido mais três edições aumentadas até 1780. A obra foi colocada no Index e queimada em praça pública, valendo ao seu
autor vários anos de perseguições e exílio . De volta a França em 1784, Raynal continuou seu trabalho de propagandista,
tornando-se propositor de diversos prêmios acadêmicos Alguns anos mais tarde, outro livro escrito por um eclesiástico
viria polarizar a discussão sobre o colonialismo :  Les Trois ages des colonies, ou de leur état passé, présent et à venir , de
Dominique-Georges-Frédéric de Pradt, (1759-1837), arcebispo de Malines, publicada em Paris : Giguet, 1801-1802.
Incluir João Paulo Garrido Pimenta, De Raynal a de Pradt, texto apresentado no Seminário Temático 2005, agora
programado para Almanack Braziliense

1
Procurando inserir-se neste debate, o Marquês de Condorcet (1743-1794) publicou 3

um opúsculo, em 1787, onde, ao tratar dos efeitos da Independência da América sobre os


interesses da França, nos dá a perceber uma visão bastante positiva da república norte-
americana. Segundo ele, os franceses haviam tomado sobre os temas americanos, posições
bastante extremadas: ao entusiasmo inicial gerado pelo envolvimento da França nas lutas
pela Independência na América do Norte havia se seguido um clima de grande pessimismo,
pois muitos associavam a crise econômica e social que se abatera sobre a França àquele
envolvimento. Condorcet buscava distanciar-se desses extremos, considerando a
independência dos Estados Unidos como um fato auspicioso, pelas condições
extremamente favoráveis que a república americana oferecia à proteção dos direitos
naturais e às liberdades dos cidadãos. É verdade que a nação americana conservava
algumas práticas que ele considerava condenáveis, como a manutenção da escravidão, a
existência de certo pendor para o fanatismo religioso, além de manter atitudes restritivas à
liberdade de comércio. Esperava-se, porém que essas ressalvas fossem superadas pelas
próprias energias criadoras que a liberdade política despertava.
Respondendo à questão proposta por Raynal, Condorcet entendia que a emergência
de uma entidade política nascida da livre organização dos cidadãos traria uma influência
benéfica para todos os povos, pois “o espetáculo de um grande povo onde os direitos do
homem são respeitados é útil a todos os outros, apesar da diferença dos climas, dos
costumes e das constituições”. 4
Além disso, e olhando diretamente para os interesses
econômicos e comerciais da França, Condorcet enfatizava a importância do surgimento, no
cenário mundial, de um poder independente e divorciado da Grã Bretanha, fato que
favorecia a conservação das colônias francesas e espanholas na América. Se os Bourbons
de França e da Espanha tivessem que enfrentar uma guerra com a Inglaterra, estando esta
do mesmo lado de seus colonos americanos, teria sido muito difícil para estas casas
reinantes a conservação de suas “ilhas de açúcar” na região do Caribe, pois “(...) [uma]
guerra com a casa de Bourbon que a França e a Espanha tivessem podido sustentar contra a
América e a Inglaterra reunidas teria levado à perda de uma grande parte das ilhas”. Essa 5

perda não lhe parecia uma grande infelicidade em si mesma, já que “o produto dessas ilhas,
3 Condorcet, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat; marquis de, De l'influence de la Révolution d'Amérique sur l'Europe , Extr.
de : "Oeuvres de Condorcet", t. 8, Paris : Firmin Didot frères, impr. de l'Institut, 1847
4 Idem, op.cit. p.13
5 Idem, op.cit. p. 23

2
subtraídos os custos da cultura, as despesas de administração e defesa, não acrescenta senão
uma soma muito pequena ao produto total (...) da França” , a questão não se colocava
6

apenas em termos materiais. Ela devia ser analisada também do ponto de vista das
rivalidades em torno de um produto (o açúcar) que se tornara um bem de primeira
necessidade, e que não poderia ser monopolizado pela Inglaterra. Para combater o
monopólio, “(...) o interesse de cada nação consumidora seria de ter um meio de buscar, ao
menos em parte, os gêneros tornados necessários, sem depender do capricho das outras
nações” , razão que justificava a presença das diferentes nações européias na colonização
7

das Antilhas. O argumento era caro aos fisiocratas franceses – uma nação não poderia
gozar de plena autonomia enquanto dependesse de alimentos provindos de fora – e se
manteria em vigor até o triunfo completo, em meados do século XIX, das doutrinas do livre
comércio e das vantagens comparativas. 8

Por extensão, a defesa dos interesses franceses e de sua marinha tornava-se também,
um interesse comum aos outros estados europeus, pois, sem o contrapeso da marinha
francesa, a Inglaterra “teria querido invadir o comércio da Índia, da África e das duas
Américas”. Possuidor de um imenso território, ainda inculto, o povo norte-americano não
9

teria interesse em novas conquistas, inclinando-se para o desenvolvimento do livre


comércio, inclusive com as ilhas do Caribe, o que viria a beneficiar a região em seu
conjunto.
Através dessa curiosíssima argumentação, o avanço das luzes se tornava
convergente com a política colonial e o colonialismo se fazia instrumento de combate ao
monopólio. A emergência da República Americana era entendida como contrapeso ao
temido poderio britânico, apresentando-se, desse modo, como uma forma de proteção dos
interesses das várias nações européias, dentre os quais aqueles que ligavam as dinastias

6 Idem, op.cit. p. 24
7 Idem, op.cit. p. 25
8 O estudo sobre os novos rumos da colonização no início do século XIX é tema que vem pedindo estudos mais
aprofundados, entre outras razões, pelas repercussões da metamorfose por que passavam, neste período as idéias e práticas
referidas à nação e ao estado nacional na Europa e no Novo Mundo. Para um estudo pioneiro sobre o tema ver Maria
Odila da Silva Dias, “O mito da descolonização liberal na Inglaterra pré vitoriana (1808-1842)”, Revista de História, vol.
LII, n. 103, 1975, pp. 297-314. Ver, para a posição francesa Marcel Dorigny et Marie-Jeanne Rossignol, La France et les
Amériques au temps de Jefferson et de Miranda, Paris, Centre Interdisciplinaire de recherches nord-américaines, Univ.
Paris 7), 2001. Para um enfoque recente dos « olhares cruzados » sobre a crise do sistema colonial europeu nas Américas
ver Marco Morel, « O abade Grégoire, o Haiti e o Brasil: repercussões no raiar do século XIX », in Almanack Braziliense,
n. 2, novembro de 1005, http://www.almanack.usp.br/

9 Idem, op.cit. p. 26

3
bourbônicas da França e da Espanha eram considerados como sendo convergentes e
associados.
Este olhar europeu sobre a América fincava-se no presente e mirava com otimismo
o futuro, procurando, entretanto, não desconsiderar a importância da preservação daqueles
interesses ainda enraizados na velha ordem – a convergência entre os interesses dinásticos
das duas dinastias bourbônicas e a proteção das “ilhas do açúcar”. Vista sob esse prisma, a
emergência da república americana favorecia os interesses da França, porque, acima de
tudo, ela fazia reduzir o poderio da Inglaterra. Nesse recorte, no momento em que se
precipitava a crise do Antigo Regime, mesclavam-se a sedução pelas instituições políticas
da república americana, a preocupação com a proteção dos interesses coloniais
(particularmente os referentes ao Caribe) e a rivalidade econômica e política com a
Inglaterra. Estes três aspectos se manteriam como pontos nodais da política francesa, na
longa travessia representada pelas guerras da Revolução e do Império em que profundas
transformações sacudiram a ordem social e a posição da França no concerto nas nações.

A América e o futuro do Império Português: territórios e contigüidades

Uma década depois, de outro ponto do velho mundo, D. Rodrigo de Sousa


Coutinho, em memória que se tornou célebre , dava a conhecer aos altos dignitários do
10

Império, sua visão sobre a situação do Império Português, e, em particular sobre suas
possessões na América. Falava na qualidade de Secretário de Estado da Marinha e
Domínios Ultramarinos, cargo que ocupou entre 1796 e 1801, reverberando as
modificações da ordem mundial que se impunham após a Independência dos Estados
Unidos e a emergência na França, de uma ordem revolucionária que desembocava em uma
guerra européia . 11

Olhando a partir dos interesses de um Império, cuja cabeça figurava em posição


periférica às grandes potências mundiais, D. Rodrigo também percebia a profunda relação
10 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua Majestade na América” (1797
ou 1798). Usamos aqui a versão publicada em Andrée Mansuy Diniz Silva (dir.), D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Textos
Políticos, Econômicos e Financeiros (1783-1811), Lisboa, Ed. Banco de Portugal, 1993, pp. 47-66.
11 D. Rodrigo de Sousa Coutinho assumiu a Pasta da Fazenda e na Presidência do Erário Régio em 1801, na difícil
conjuntura da Guerra das Laranjas (1801), que viria a se desdobrar na Guerra Peninsular e na invasão napoleônica (1807-
1814). Sendo um dos artífices da decisão da vinda da Corte para a América, viria aqui a ocupar a pasta da Guerra e dos
Negócios Estrangeiros. Ver, sobre ele, o erudito trabalho de Andrée Mansuy Diniz Silva, Portrait d’un homme d’État - D.
Rodrigo de Souza Coutinho, Compte de Linhares, 1755-1812, Paris entre Culturel Calouste Gulbenkian, 2006.

4
entre os acontecimentos que perpassavam a Europa e a América, no momento em a guerra
européia evidenciava a dimensão ampliada da crise. Como fizera Condorcet, procurava
divisar, a partir do pano de fundo dos acontecimentos, as possibilidades que se
apresentavam para o Império Português, caso este conseguisse delas se beneficiar. Se, para
o iluminista francês, a proteção dos interesses coloniais aparecia com relevância notória ao
avaliar os efeitos da Independência Americana sobre a França, muito mais forte seria a
percepção da soldagem de interesses de Portugal e os de seus domínios ultramarinos nas
reflexões do ilustrado português. A condição para que o Império pudesse atravessar as
dificuldades impostas pelo momento assentava-se no estreitamento dos laços que jungiam
as várias partes do Império, privilegiando, no interior deles, aqueles que ligavam o Reino às
suas possessões americanas. Desse modo, nesse documento impressionante e justamente
célebre, os domínios coloniais emergem como garantes da própria independência e
soberania do Reino.
“Os domínios de Sua Majestade na Europa não formam senão a capital e o
centro de suas vastas possessões. Portugal reduzido a si só, seria dentro de um breve
período uma província de Espanha, enquanto servindo de ponto de reunião e de assento à
monarquia, que se estende do que possui nas Ilhas da Europa à África, ao Brasil, às
Costas Ocidentais e Orientais da África e ao que ainda a vossa Real Coroa possui na Ásia,
é, sem contradição uma das potências que tem dentro de si todos os meios de figurar
conspícua, brilhante entre as principais Potencias da Europa”. 12

A formulação contém a chave que perpassa todo o texto da Memória, tecla que,
ferida em distintos matizes, sugere uma leitura ao revés: se os fundamentos do Império
eram tão visceralmente dependentes da unidade entre o Reino e os domínios, a
interdependência que aqui se afirmava mal ocultava o temor de que, sem seus domínios,
Portugal poderia perder sua própria soberania, tornando-se parte da Espanha.
A unidade do Império e a identidade que se procurava soldar sob a égide da
monarquia, esse “inviolável e sacrossanto princípio de unidade” apareciam a D. Rodrigo
como reverberação da crise que levara à independência das colônias inglesas da América
do norte, onde a unidade não fora preservada. A unidade buscada para o Império implicava
em fazer com que “o Português nascido nas quatro partes do Mundo se julgue somente
Português, e não se lembre senão da Glória e Grandeza da Monarquia a que tem a fortuna
de pertencer, reconhecendo e sentindo os efeitos felizes da reunião de um só todo,

12 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Memória sobre o melhoramento ...”, p. 48

5
composto de partes tão diferentes” (...) . Essa complexa operação se assentava sobre a
13

reiteração do sentido da complementaridade econômica entre o centro (o Reino) e as suas


partes (os domínios) de modo que cada uma das partes percebesse que “separadas jamais
poderiam ser igualmente felizes, pois que, enquanto a Metrópole se privaria do Glorioso
destino de ser o Entreposto comum, cada domínio ultramarino sentiria a falta das vantagens
que lhe resultam de receber o melhor depósito para todos os seus gêneros, de que segue a
mais feliz venda no Mercado Geral da Europa”. 14

A posição de entreposto comercial necessário e indispensável decorria da feliz


posição geográfica de Portugal, condição que fazia com que “este enlace dos domínios
ultramarinos portugueses com sua metrópole seja tão natural, quão pouco o era de outras
colônias que se separaram de sua mãe pátria (...).” Podemos entender que, na percepção de
15

D. Rodrigo, Portugal desfrutava de uma condição (dita “natural”) que faltava à Inglaterra
em sua relação com as colônias da América do Norte, o que levara à perda daquelas
colônias.
O princípio desembocava, em decurso lógico, na ênfase sobre o exclusivo
comercial, como embasamento da complementaridade proposta, sendo : “(...) uma
conseqüência natural deste princípio (...) de que as relações de cada Domínio Ultramarino
devem, em recíproca vantagem ser mais ativas e animadas com a metrópole, do que entre
si, pois que só assim a união e a prosperidade poderão elevar-se ao maior auge. Estes dois
princípios devem particularmente ser aplicados aos mais essenciais dos nossos Domínios
Ultramarinos, que são sem contradição as Províncias da América, que se denominam com o
genérico nome de Brasil.” 16

Reiterar o exclusivo, reforçando as ligações de cada parte com o centro, essa era a
maneira de coibir o desperdício das energias mercantis que deixavam na América recursos
que deviam se destinar à aplicação produtiva no Reino. Para isso, era preciso combater o
contrabando, evitar a circulação do ouro em pó, coibir os fluxos mercantis que se
estabelecessem diretamente entre as partes do Império. Dentre estes, podemos considerar
que ecoavam aqueles ligados ao tráfico direto dos luso-brasileiros nas feitorias africanas.

13 Idem, p. 49
14 Idem, p. 49
15 Idem, p. 48
16 Idem, p. 49

6
Já nas instruções enviadas, em 1779, ao Marquês de Valença, como governador da Bahia, a
Coroa cogitava em conceder “privilégios, graças ou isenções” aos comerciantes
portugueses para tentar contornar os “gravíssimos inconvenientes que podiam resultar a
este Reino em deixarmos o comércio da Costa d’África entregues nas mãos dos
americanos”. Essas compensações se faziam necessárias “para que na concorrência com os
ditos americanos nos referidos portos de África tivessem os portugueses a preferência, da
mesma sorte que a capital e seus habitantes o devem sempre ter em toda a parte sobre as
colônias e habitantes delas”. 17

O Brasil, “nome genérico” dessa vasta possessão, aparece na Memória como um


imaginário territorial integrado e também são definidos por uma singular situação
geográfica que, para além de suas riquezas e potencialidades, torna-os a porção mais
essencial do Império. Esta deriva do fato de que a contigüidade que se estabelecia entre os
dois reinos ibéricos na Europa, se reproduzisse na América entre as suas possessões,
dotada, entretanto, de forma peculiar inversão. Se na Europa, Portugal era a porção
territorial menor e mais frágil, permanentemente temerosa da rica e poderosa Espanha, na
América as possessões portuguesas se estabeleciam em franca vantagem, desde que se
fosse possível ter o controle das duas grandes bacias fluviais que deviam configurar seu
cinturão estratégico. Os sistema fluviais amazônico e platino formavam, assim, a fronteira
ambicionada, a proteção dos domínios portugueses e o meio através do qual os espanhóis
poderiam ser mantidos sob permanente pressão18.
Se o predomínio na América se fazia pressuposto da autonomia do reino na
Europa, a condição que para isso se estabelecia – o controle das duas grandes bacias
fluviais não era, nesse final do século XVIII, nada que pudesse ser firmemente assegurado.
O Tratado de Madri (1760) não havia se desdobrado em um efetivo trabalho de demarcação
em razão das guerras guaraníticas e da seqüência de disputas que iriam se suceder na
península a partir de então. De qualquer modo, ele impusera a Portugal um recuo territorial
importante, sem estabelecer, em seu lugar, a ambicionada “fronteira natural” no Rio
Uruguai. Tampouco na bacia amazônica, onde seus vastos e desconhecidos territórios eram

17 Arquivo Histórico Ultramarino, Documento da Bahia 10.319. Citado em Pierre Verger, Fluxo e Refluxo do tráfico de
escravos entre o Golfo de Benin e a Baía de Todos os Santos, São Paulo: Editora Corrupio, 1997, p. 22
18 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Memória sobre o melhoramento ...), pp. 49-50

7
disputados pelas mais ricas e importantes potencias européias (Inglaterra, França, Holanda
e Espanha), o domínio português se encontrava inquestionavelmente estabelecido. 19

No entender de D. Rodrigo, para que se desse o pleno aproveitamento das


virtualidades que a especial condição geográfica de Portugal na América propiciava, era
preciso desenvolver um vasto programa de reformas da administração dos domínios
ultramarinos. Estas principiavam por um plano de divisão daquele imenso território em
duas grandes regiões administrativas, uma delas com o centro no Pará e a outra com o
centro no Rio de Janeiro, de modo que se pudesse consolidar e defender aqueles pontos
estratégicos. Como desdobramento da primeira condição, devia-se paulatinamente buscar a
conquista da banda oriental do Uruguai, de modo a obter, no extremo sul, uma “fronteira
natural”. A repartição da administração (designada como “divisão” e “centralização”) do
governo da América, dizia ele, “não só nos porá, no caso de não temermos nada dos nossos
vizinhos, mais insensivelmente; e por meios progressivos nos chamará a ocupar o
verdadeiro limite natural das nossas possessões no Sul da América que é a margem
setentrional do Rio da Prata”. 20

Desse modo, em 1797 percebiam-se « os Brasis » a partir da Europa e de uma


visão do Império centrada naquele continente. Percebia-se também, no território americano,
uma unidade e uma continuidade territorial que derivava de sua alteridade (a vizinhança
com as possessões espanholas) fato que era tido por essencial para a soberania do Reino.
Ela se assentava na definição e defesa das duas « fronteiras » demarcadas pelas duas
grandes bacias fluviais, o que implicava na necessidade da divisão administrativa dos
domínios americanos em dois centros distintos, capacitando o Império para a expansão
territorial em direção a uma fronteira dita « natural », na região platina.
Se, da gestão correta das possessões americanas dependia a integridade
territorial do reino na Europa e sua soberania, esta se fundava em uma percepção interna do
conjunto do Império, em que as « partes » eram descritas como iguais e complementares,
« todas elas foram organizadas como Províncias da Monarquia, condecoradas com as
mesmas honras e privilégios que se concederam aos seus habitadores e povoadores, todas

19 Sobre o Tratado de Madri e os seus desdobramentos no imaginário territorial e no debate historiográfico ver Demétrio
Magnoli, O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912), São Paulo,
Unesp/Moderna, 1997.

20 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Memória para o melhoramento ...”, p. 50.

8
reunidas no mesmo sistema administrativo, todas estabelecidas para contribuírem à mútua e
recíproca defesa da Monarquia, todas sujeitas aos mesmos usos e costumes ».21 O sistema
assim estruturado como uma « igualdade », fundada na complementaridade, fazendo
decorrer o « inviolável e sacrossanto princípio da Unidade » que era o objetivo maior da
Memória.
O texto desembocava em um detalhado programa de reformas econômicas,
administrativas e fiscais. Nesse último aspecto, ocupando toda a segunda parte da Memória,
reponta com força um conjunto de proposições modernizadoras, que envolviam não apenas
a redução (e mesmo eliminação) de alguns impostos como a criação de um conjunto de
novas rubricas fiscais. D. Rodrigo empenhava-se principalmente, na transformação da
forma de arrecadação, abolindo o antigo sistema de contratos, pela qual os intermediários
ficavam com a maior parte das rendas que deveriam pertencer ao erário. Como ele
percebia, o poder dos contratadores fiscais nos negócios públicos fora parte importante na
eclosão da tormenta revolucionária na França e se mostrara também seu potencial de risco à
ordem na rebelião dos colonos de Minas Gerais, tratada com dureza pelas autoridades
metropolitanas.
A taxação incidia sobre uma multiplicidade de objetos – os impostos diretos
(como o dízimo de todas as produções e o quinto do ouro) e todos os impostos indiretos
(sobre as exportações, sobre os açougues, as aguardentes, o sal, a passagem dos rios, as
entradas para o interior da América), além dos que incidiam sobre a administração da
justiça e o desfrute dos cargos, como os donativos dos ofícios. Não obstante, a taxação era
considerada como sendo « improdutiva e morosa, não só porque recaindo desigualmente
sobre as primeiras fontes da riqueza nacional impede que a mesma se aumente e prospere, e
fica muito diminuta, mas porque é depois arrecadada por contratadores que deixam ficar
na sua mão a maior parte da renda que cobram e que sai mais pesada ao Povo pelas
muitas vexações que lhe fazem sofrer sem serem mais exatos nos pagamentos a fazenda
real, como prova o que desgraçadamente se experimentou em Minas Gerais ». 22

21 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Memória para o melhoramento ...”, p. 49.


22 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Memória sobre o melhoramento ...”, p. 56.

9
Como tem sido apontado pelos especialistas , D. Rodrigo tinha vasto conhecimento
23

teórico e empírico das experiências de organização política dos grandes estados europeus (e
também dos pequenos, tendo sido um estágio na Sardenha, parte importante de sua
formação como homem público). Ele mantinha um interesse especial nas trajetórias da
Inglaterra e da Prússia, experiências distintas e opostas na administração do domínio régio.
Na Inglaterra, parte significativa do domínio régio, as terras expropriadas aos conventos no
século XVI, havia sido transferida, por venda, aos agentes privados, iniciando a trajetória
peculiar que dava aos Tudor, simultaneamente, solvência econômica e dependência do
Parlamento para as questões fiscais e para o financiamento da guerra. A Prússia, ao
contrário, desenvolvia formas de racionalização da administração do domínio, fundando na
burocracia e na máquina militar, as bases do absolutismo monárquico. Essas idéias
ecoaram freqüentemente em seus projetos de reforma – o combate aos privilégios
econômicos do clero e das corporações de mão morta e a necessidade da racionalização
administrativa da máquina governamental . Nem uma nem outra, porém, poderiam servir
24

como modelos para Portugal, onde a porção mais valiosa do domínio régio, não se
encontrava contígua ao centro político, ou no interior de seu território, mas espalhados em
todos os continentes, apresentando desafios imensos e quase intransponíveis para os
reformadores ilustrados. Nos impérios coloniais, especialmente aqueles em que a “cabeça”
era diminuta como o Reino Português, os domínios não formavam um centro geográfico
capaz de irradiar o poder do rei. Antes, estavam a légua e léguas de distância, separados
pelo mar, por colonos rebeldes e por administradores venais . 25

23 Para uma visão sintética de formação intelectual de D. Rodrigo de Sousa Coutinho ver a Introdução de Andrée
Mansuy Diniz Silva (dir.), D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Textos Políticos, Econômicos e Financeiros (1783-1811),
Lisboa, Ed. Banco de Portugal, 1993, pp. XI-LII. Sobre o contexto da ilustração em sua reflexão sobre a crise, ver Ana
Rosa Cloclet da Silva, Inventando a Nação. Intelectuais Ilustrados e Estadistas Luso-Brasileiros na Crise do Antigo
Regime Português (1750-1822). São Paulo, HUCITEC / FAPESP, 2006.
24 Para uma comparação entre a Prússia e a Inglaterra nessa perspectiva ver Rudolph Braun, “Taxation, Sociopolitical
Structure, and the state-building: Great Britian and Brandemburg Prussia”, in Charles Tilly, (ed.) Charles Tilly, The
formation of national states in Western Europe, Princeton, Princeton University Press, 1975.
25 Ver, sobre esse ponto o brilhante conjunto de ensaios de Laura de Mello e Souza, O sol e a sombra – política e
administração na América Portuguesa do século XVIII, SP, Cia das Letras, 2006.

10
Outras travessias

O ponto a ser sublinhado, no confronto entre as duas visões da situação


internacional do final do século XVIII, mencionadas acima é que embora distintas em seu
conteúdo e desdobramentos elas mostravam um importante ponto de convergência: a
avaliação das posições relativas dos reinos europeus passava necessariamente pela
preservação e reconfiguração de seus domínios ultramarinos. Desse modo, cada movimento
no interior da crise sistêmica tendia a ser avaliado tendo em conta um complicado jogo de
perdas e ganhos, que produzia uma visão desses domínios refratada nos conflitos de
interesses entre as metrópoles, espelhando também relações de proteção, competição e
conflito, entre essas mesmas possessões. A “proteção” dos interesses coloniais franceses no
Caribe, a busca de vantagens relativas nas fronteiras entre as duas potências ibéricas na
América animavam um imaginário territorial que se desenhava no ultramar a partir de um
“ponto de fuga” europeu, buscando assegurar a estabilidade na iminência da tormenta.
Mantendo e estreitando o enlace entre os acontecimentos nos dois mundos, a
dinâmica violenta e errática da crise iria tensionar até o limite as referências estabelecidas
pelo pensamento ilustrado, tragando diagnósticos, vaticínios, estratégias e programas de
reformas e demandando novas e inesperadas atitudes.
Morto em 1794, Condorcet não teria oportunidade de assitir aos desdobramentos da
primeira abolição da escravidão e ao processo que levaria, em 1804 à Revolução de São
Domingos fazendo emergir no continente americano um estado republicano nascido de uma
rebelião escrava. Tampouco veria as « ilhas do açúcar » francesas e de outras possessões
européias caírem uma a uma sob o domínio britânico, sem que a vizinhança dos Estados
Unidos da América pudessem oferecer a elas qualquer proteção. Ao contrário, passo a
passo, em um movimento que começara com a Guerra dos Sete Anos (1757-1763) e se
completaria com a Independência da quase totalidade das colônias espanholas na América,
o continente americano tornou-se um dos locus principais da rivalidade anglo francesa, um
processo onde a França veria estreitar-se cada vez mais sua presença nas Américas. Desde
a venda da Louisiana francesa aos Estados Unidos (1803) e a eclosão da revolução de São
Domingos (1804), muito distante estava a idéia de um condomínio europeu protegido da
cobiça inglesa pela República Americana, como imaginava Condorcet. A perda da mais

11
rentável colônia no Caribe arrastara consigo vidas e propriedades de colonos franceses –
um episódio dramático que nem mesmo as forças napoleônicas haviam conseguido reverter.
Agindo em outra frente, a invasão da Península Ibérica por Napoleão em 1808, fora um
lance ousado no sentido de ganhar não apenas o controle político da península, mas
também o de suas colônias, mas ele se revelara um fracasso militar e político, mergulhando
a Península em uma profunda crise de legitimidade. - Portugal, ausente de seu rei,
refugiado nas Américas e a Espanha, igualmente acéfala e incapaz de estabelecer um
governo estável, seja sob as forças napoleônicas, seja sob os setores liberais que se
aglutinavam em torno da Constituição de Cádis (1812), documento que em breve se
tornaria referência política em toda a América Espanhola.
O movimento que se alastrava no conjunto da economia mundo desestabilizava os
Impérios e promovia uma profunda revisão de expectativas nas trajetórias de todas as
camadas sociais. Enfatizo aqui, particularmente, aquela camada de homens que dominavam
os signos da cultura e eram dotados de relativa fortuna, que em ondas sucessivas se
movimentaram entre a América e a Europa (em busca de formação cultural e oportunidades
de ascensão nos sistemas imperiais) e reversivamente, da Europa para a América, os
viajantes ilustrados, categoria peculiar de “vencidos da Revolução”. O impulso de deslocar-
se no espaço, torna-se, na dinâmica da crise, ferramenta de conhecimento e alimento de
processos comparativos que não nascem apenas dos imperativos da metodologia científica,
mas daqueles propiciados pelos novos campos de experiência em intensa transformação.
Que os homens de letras se tornem viajantes, ou reversivamente, que a experiência da
viagem se torne conteúdo integrante da carreira das letras e daí, para a experiência política,
é um dos traços distintivos desse tempo novo. Condorcet, comentando a viagem de
Bougainville, poderia colocar em dúvida o papel das viagens para o incremento do saber.
Seria realmente necessário deixar sua pátria em busca de mares distantes e povos e culturas
estranhos para fazer progredir o conhecimento? 26

Tal dúvida já não se colocaria para as décadas subseqüentes, onde o viajante letrado
ganhou o papel de produtor de novas classificações no mundo da natureza e de novas
semânticas no campo das instituições políticas e da invenção das nações antigas e novas.

26 Citar Condorcet, diálogo entre A e B, apêndice a Viagens de Bougainville.

12
A tormenta revolucionária que atingiu a toda a sua família levou René de
Chateaubriand à América, depois à Inglaterra e de volta à França, viagens que deram
combustível para suas reflexões sobre a história, o tempo e as revoluções, e para uma
imponente carreira literária. Seu prestígio literário trouxe alavancagem a uma breve e
intensa carreira política de Chateaubriand. Iniciada timidamente sob Napoleão, mas veio a
florescer plenamente com a Restauração Monárquica. Sob Luis XVIII, ele ocupou
sucessivamente as embaixadas de Berlim e Londres (1821), foi Ministro Plenipotenciário
no Congresso de Verona (1822) e Ministro dos Negócios Estrangeiros (1823). Sua 27

trajetória permite visualizar a cristalização de novos caminhos de peregrinação que


levavam os homens de letras para postos elevados do poder político na nova ordem,
atendendo exigências que operavam tanto no interior da vida interna dos estados, como nos
cenários da diplomacia. Nesta, seu último ato fora o de consolidar as condições para a
intervenção militar francesa na Espanha, para garantir o princípio dinástico e a casa de
Bourbon, enquanto ministro plenipotenciário da França no Congresso de Verona (1822).
Ao fazê-lo acabara por protagonizar o ato final do divórcio entre a Espanha e suas colônias
americanas, sem que conseguisse realizar aquilo que planejara para o continente americano:
a possibilidade de implantar lá monarquias constitucionais sob príncipes ligados à Casa de
Bourbon . A partir de 1826, além do seu célebre relato de viagem, uma série de trabalhos
28

memorialísticos e polêmicas pela imprensa trariam suas opiniões sobre os acontecimentos


que enlaçavam os destinos da Europa e da América.

Poucos anos depois da viagem de Chateaubriand, teve início uma outra travessia,
com resultados notáveis para o conhecimento europeu sobre o novo mundo, aquela
protagonizada por Alexander Von Humboldt, outro jovem de fortuna e talento, que buscava
o conhecimento nas viagem interoceânicas tangidas (e favorecidas) pela tormenta
revolucionária. Esta imprimia sua marca de imponderabilidade sobre a racionalidade e o

27 Sobre as relações entre letrados e política no período ver Paul Bénichou, Le sacre de l’écrivain1750-1830 Essai sur
l’avènement d’un pouvoir spirituel laïque dans la France moderne, Paris, Librairie José Corti, 1973. Para um profundo e
erudito estudo sobre a obra política de Chateaubriand ver a “Introdução” do especialista Jean Paul Clément a
Chateaubriand politique- François-René de Chateaubriand De l’Ancien Régime au Nouveau Monde- Ecrits politiques,
Paris, Hachette, 1997. Sobre o seu papel na diplomacia ver Guy Berger, « Chateaubriand et la politique », Numéro Hors-
Serie, "Politique et Littérature", La revue des Anciens Élèves de l'Ecole Nationale d'Administration, Décembre 2003.
28 Ver François-René de Chateaubriand, Congrès de Vérone. Guerre d'Espagne. Négociations. Colonies espagnoles.
Edition originale, Leipzig ; Paris : Brockhaus : Avenarius, 1838.

13
controle que costumavam presidir essas explorações. O próprio Alexander von Humboldt,
talvez o mais paradigmático viajante das Américas, acabou viajando pela América do Sul e
pelo Caribe entre 1799-1803, quando seu projeto original era o de acompanhar Napoleão na
expedição ao Egito. Quase ao mesmo tempo, um jovem dinamarquês, simpatizante de
Napoleão e dos ideários da revolução francesa, encontra-se como persona non grata em seu
país, depois de escrever em defesa da liberdade de imprensa. Emigrando para Paris, Conrad
Malte Brun viria a se tornar um dos maiores expoentes do pensamento geográfico francês e
um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Paris, a primeira de seu gênero, criada em
1823, cujas primeiras diretorias ele iria partilhar, precisamente com Humboldt e
Chateaubriand . Da Sociedade e de suas publicações se irradiariam poderosos movimentos
29

de inventariamento do mundo, de constituição de um pensamento geo-político onde se re-


processavam as idéia de “nação” e de “colônia” e de suas relações.
Esses eram alguns episódios de uma época turbulenta em que em sucessivas ondas
de depaysés, viajando individualmente ou nas diásporas promovidas pelas revoluções e
guerras revolucionárias, iriam contribuir para transformar as simetrias elegantes da visão
ilustrada, em um caleidoscópio de possibilidades abertas pela dinâmica errática da crise.
Por esse motivo, é mais do que uma coincidência, o fato de que, em 1822 tanto
Chateaubriand quanto Humboldt estivessem presentes no Congresso de Verona, embora em
posições de distinto protagonismo. Nem tampouco que, em meados da década de 1826 os
dois viajantes paradigmáticos das Américas decidissem incrementar a publicização de suas
experiências americanas. Humboldt fez publicar em separado, um excerto muito importante
de seu relato de viagem americano, que vinha sendo publicado em partes desde 1819.
Trata-se do Essai politique sur l’île de Cuba (Paris, 1826), contendo contundentes análises
sobre a escravidão e tráfico de escravos e vaticinando seu trágico futuro papel no futuro das
Américas. Chateaubriand e Humboldt, profundamente divergentes em sua visão sobre a
América e o futuro da Europa, contrastam com a visão otimista traduzida nas palavras de
Condorcet no início desse artigo, repontando perspectivas sombrias em ambas as análises.
Traziam também uma notória transformação das expectativas sobre o imaginário territorial
do continente, suas fronteiras e contiguidades.

29 Sobre a Sociedade de Geografia de Paris, ver Dominique Lejeune, Les Societés de Geographie em France et
l’expansion coloniale au XIXe siècle. Paris: Albin Michel, 1993.

14
Comentando a emergência das repúblicas sul americanas e o reconhecimento da
República do Haiti pela França, assum se expressava Chateaubriand em polêmica pela
imprensa, no ano de 1826:
“A criação de novos povos diminui a importância relativa dos povos antigos. Antes, só
havia a Europa no mundo civilizado; dentro da Europa, não havia senão cinco ou
seis grandes potências, cujas colônias não eram senão apêndices mais ou menos
úteis. Hoje, existe uma América independente e civilizada; nesta América existem
seis grandes Estados republicanos, dois ou três menores e uma grande monarquia
constitucional. Estas nove ou dez nações, surgidas de um golpe em um dos pratos
da balança política, reduzem comparativamente o peso das monarquias européias.
Não é mais uma querela entre a França, a Áustria, a Prússia, a Rússia e a
Inglaterra, que modifica o destino da sociedade cristã. A diplomacia, o princípio
dos tratados de comércio e de aliança, o direito político, vão se recompor sobre
novas bases. Os velhos nomes, as velhas lembranças perdem (...) sua autoridade em
meio às recentes gerações (...) [e] em meio a jovens esperanças de um universo que
se forma de outras idéias”. 30

Divergindo do tom otimista que cercara a Independência dos Estados Unidos, a


avaliação revestia-se agora de cores sombrias. À ampliação do número de nações
independentes no Novo Mundo, desligando-se de suas antigas metrópoles, correspondia
não mais o avanço das luzes e da civilização, mas uma redução do prestígio e da autoridade
do velho continente. A inexorabilidade do tempo e a inevitabilidade das mudanças são aqui
apreendidas com toda a sua carga de paradoxos, pois a Europa, centro irradiador das idéias
que formavam o mundo civilizado, enfraquecia-se, perdia energias, precisamente em razão
da expansão daquelas idéias e sua materialização.
Força e fraqueza, juventude e velhice, aparecem filtradas não apenas pelo olhar do
velho mundo para o novo, mas trespassadas pelo recrudescimento da rivalidade anglo
francesa. A extensão do regime republicano pelo continente trazia reverberações
ameaçadoras, não apenas por que fortalecia os Estados Unidos da América do Norte, mas
também por que favorecia a preeminência inglesa no novo continente.
Quanto a Humboldt, em 1826 fazia publicar seu libelo contra o tráfico, profetizando
efeitos perigosos para a contiguidade entre o Caribe escravista e os estados do sul dos
Estados Unidos. O tráfico era tratado em detalhes, com os números de seu fluxo, peso na
demografia das diferentes nações em estudo notável, que ultrapassava, em muito, o

30 Chateaubriand, François-René de (1768-1848), « Polémique », in Oeuvres complètes Tomo VIII, Paris : Garnier, s.d.,
[ prob. 1861], p. 129

15
horizonte filantrópico no qual a discussão normalmente se confinava. Ele alertava para o
perigo da grande concentração escrava na Ilhas do Caribe, que punha em risco não apenas o
destino dos colonos brancos naquelas ilhas, como a própria segurança dos Estados Unidos
da América do Norte, cujo sul escravista confinava perigosamente com o Caribe,
invertendo de forma notável, a análise geo-política feita por Condorcet quarenta anos antes.

Em todo o arquipélago das Antilhas, os homens de cor (negros e mulatos, livres e


escravos formam uma massa de 2.360.000 ou de 45% da população total. Se a legislação
das Antilhas e o estado das gentes de cor não experimentarem logo mudanças salutares,
se se continuar a discutir sem agir, a preponderância política passará para as mãos
daqueles que possuem a força de trabalho, a vontade de se libertar e a coragem de
enfrentar longas privações. Esta catástrofe sangrenta terá lugar como uma sequência
necessária das circunstâncias, e sem que os negros livres do Haiti aí se envolvam de
nenhuma forma, sem que eles abandonem o sistema de isolamento que tem seguido até
aqui. Quem ousará predizer a influência que exerceria uma Confederação Africana dos
Estados Livres das Antilhas, localizado entre a Colômbia, a América do Norte e a
Guatemala, sobre a política do Novo Mundo? 31

Dois aspectos parecem aqui especialmente dignos de nota. O primeiro aponta para a
evidência de que a intensa aceleração da história operada entre os movimentos de
Independência das 13 colônias da América do Norte e aqueles que se desenvolveram na
América Ibérica iria produzir uma notável rotação dos elementos nodais da crise sistêmica,
colocando na defensiva a Europa do continente e conduzindo à periferização dos reinos
ibéricos. O segundo aponta para a crise Americana naquilo que ela tinha de específico – a
peculiaridade de suas questões territoriais e a centralidade da questão escravista nesse
processo.

A grande travessia: a Corte na América

31 Humboldt, Alexander von, HUMBOLDT A VON. 1814/1825. Relation historique du voyage aux régions équinoxiales
du Nouveau Continent, fait en 1799, 1800, 1801, 1802, 1803 et 1804, par A. de Humboldt e A. Bonpland. Rédigé par
Alexandre de Humboldt. Paris, vol. III (1825), p. 389. O ensaio foi publicado em separado como HUMBOLDT A VON.
1845/1862Essai Politique sur l`Ile de Cuba, avec une carte et un supplément qui renferme des considérations sur la
population, la richesse territoriale et le commerce de l`Archipel des Antilles et de Colombia, 2 vols., Paris, Librairie Gide
et fils 1826

16
Olhando para o Império Português, com a perspectiva das transformações que
se operavam na economia mundo, voltemos, agora, para D. Rodrigo, que também teve que
experimentar uma longa e decisiva travessia. Coube-lhe assumir um grande protagonismo
na migração da família real portuguesa para a América e na instalação da corte e do
governo do Império no Rio de Janeiro. Nesse papel, foi levado a decisões que muito se
distanciavam dos os judiciosos planos que ocupavam por ele elaborados, quando projetava,
a partir do Reino, o programa de reformas necessário para soldar a unidade do Império.
Longe de cumprir um programa pré-estabelecido pela clarividência dos ilustrados, a
migração da máquina metropolitana de governo em direçao à sua mais importante
possessão viria tensionar até seu limite a visão que D. Rodrigo tinha da convergência de
interesses entre o Reino e os domínios e desvelar toda uma gama de conflitos.
O papel que ele desempenhou nessa travessia, como personagem emblemático
da crise, aproximava-o de muitas outras travessias entre a Europa e América, de
« vencidos da Revolução », viajantes ilustrados, naturalistas, membros da nobreza,
desertores, soldados desmobilizados, homens que, nas palavras de Chateaubriand haviam
visto « nascer e morrer um mundo », expressando de forma lapidar uma nova forma de
pensar o tempo e a história, em que o passado não servia mais de modelo ao presente . 32

Homem ilustrado pelas leituras e pelas viagens D. Rodrigo beneficiou-se


intensamente desse intercâmbio entre as classes letradas européias que caracterizou a época
das luzes. A promoção do que ele chamava o “sacrossanto princípio da unidade”,
assentava-se também em estratégias, incrementadas a partir do último quartel do setecentos
destinadas a fomentar valores, práticas e visões de mundo comuns nos súditos portugueses
dos vários quadrantes do Império. Dentre estas, destacava-se o oferecimento de
oportunidades aos jovens nascidos no ultramar para que aprimorassem seus estudos no
Reino, enviando-os também a viagens de estudos cuidadosamente programadas, onde
pudessem adquirir conhecimentos úteis para sua formação como quadros administrativos
do Império.33 Nesse sentido, Alexandre Rodrigues Ferreira, José Bonifácio de Andrada e
32 Sobre a idéia dos viajantes letrados como “vencidos da Revolução” ver Reinhardt Koselleck, L’Experience de
l’Histoire, Paris, Gallimard Le Seuil, 1997, p.239. Do mesmo autor, ver também Futuro Passado, 1a. ed. brasileira S.P.,
Ed. Contraponto, 2006. Sobre Chateaubriand e a transição das formas de pensar e escrever a História ver François Hartog,
Régimes d’historicité – présentisme et expériene du temps, Paris, Seuil, 2003 e, Anciens, Modernes, Sauvages, Gallade
Éditions 2005
33 DOMINGUES, Ângela.”Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação
no Império português em finais do Setecentos”, Hist. cienc. saude-Manguinhos ,  Rio de Janeiro2008 .  Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702001000500002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:

17
Silva, foram casos paradigmáticos dessa política de formação de quadros, da qual os
deslocamentos geográficos formavam parte essencial, seja para promover o necessário
desenraizamento e adquirir a visão de conjunto do Império, seja para apropriar-se dos
centros mais adiantados. A relativa prosperidade comercial vivia pela metrópole favorecia
essas políticas e alimentava o otimismo que transparece nas avaliações de D. Rodrigo.
Entre 1789 e 1806 o comércio geral português quadruplicou, ganhando espaço na
triangulação que se fazia a partir de Londres, com mercadorias coloniais e também com
manufaturados ingleses, já que o ouro deixava de ser a base fundamental do comércio
externo português.
De certo modo, a trajetória de Hypolito José da Costa (1774-1823), iniciada nos
quadros da política ilustrada, expressa de forma contundente o modo como a força dos
tempos novos impunha um caráter inesperado na viagem, sem que ela deixasse de ser
estratégia de conhecimento e preparo para a vida pública. Nascido naquele extremo da
América Portuguesa, ferrenhamente disputado aos espanhóis – a Colônia do Sacramento –
para onde devia levar a ambicionada “fronteira natural” mencionada na Memória, ele gozou
dos bons auspícios de D. Rodrigo. Foi enviado muito jovem a Portugal para fazer seus
estudos e, de lá, enviado por ele para conhecer a emergente república americana, com a
missão de conhecer suas novas técnicas industriais, no momento mesmo em que D.
Rodrigo redigia suas judiciosas considerações sobre o progresso econômico do reino.
Nessa viagem, divergindo do programa cuidadosamente traçado, ele filiou-se à maçonaria.
Nomeado para a Imprensa Real em 1801, fez nova viagem oficial, à Inglaterra e à França,
para comprar equipamentos para a Imprensa Régia.34 No retorno, foi feito prisioneiro pela
inquisição, de cujos calabouços escapou, vestido de criado, através da Espanha, indo
estabelecer-se em Londres, de onde começou, em 1808, a publicar o Correio Braziliense,
jornal que, circulando entre os dois mundos e difundindo-se pelas várias partes da América
Ibérica, iria constituir uma interlocução essencial dos acontecimentos que permeavam a
crise do Império Português em sua inserção americana e sistêmica, em companhia de
muitos outros jornalistas portugueses que iriam fazer de Londres um pólo de difusão do
debate político sobre os destinos do Império . 35

04  June  2008. doi: 10.1590/S0104-59702001000500002


34 Hypolito José da Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799, Ed. Academia Brasileira de Letrasm
1955
35 Ver José Tengarrinha, “O jornalismo da primeira emigração em Londres”, in Estudos, vol. XXX Tomo I da Edição fac

18
Um roteiro não muito distinto daquele seguido pelo jovem François René
Chateaubriand que, procurando fugir da tormenta revolucionária, foi também aportar nos
Estados Unidos, não em busca da técnica e da indústria, mas da liberdade e inocência do
homem primitivo que ele acreditava encontrar nos indígenas americanos.
Pensada à luz da crise, vale dizer, do imprevisto, da necessidade de adaptação de
idéias estabelecidas a novas e desafiadoras circunstâncias, a vinda da corte ganha uma nova
inteligibilidade. Pode-se, por um lado, iluminar o deslizamento de significados, próprio dos
momentos em que a eficácia dos antigos modos de agir é posta à prova por situações
inesperadas . Implica em sublinhar, naquele processo, algo que é próprio do nascimento da
36

contemporaneidade e que já enfatizamos acima: a intensificação dos deslocamentos de


diversas naturezas – viagens ilustradas, migrações, diásporas, produzidas em ondas
sucessivas (e às vezes simultâneas e convergentes) de revolucionários, de « vencidos das
revoluções », de exilados e perseguidos políticos de todas as nuances do espectro
ideológico. Em outras palavras, implica em focalizar a travessia, como distanciamento
fecundo, capaz de produzir outras possibilidades de conhecimentos e novas formas de
conceber identidades e alteridades.
Não há nada de comum ou corriqueiro no movimento de uma família real que
emigra, acompanhada de sua corte, de seus papéis de Estado, de sua biblioteca, vale dizer
dos signos e instrumentos do poder e do governo, transferindo-os para o outro lado do
oceano. Afinal, em situação ímpar na história da moderna colonização, um domínio
colonial se viu transformado em sede da monarquia e em capital do Império, estabelecendo
um enlace particular entre a crise do Antigo Regime e aquela do Antigo Sistema Colonial,
na América Portuguesa37.
Similar do Correio Braziliense, SP, Imprensa Oficial, 2002, pp. 219-259
36 Reformulada em diversos contextos como ferramenta heurística para re-significar a crise do Antigo Regime em seu
enlace com o Antigo Sistema Colonial, acredito que a idéia foi pela primeira vez apresentada por István Jancsó em Na
Bahia, contra o Império – História da sedição de 1798, São Paulo/Salvador, Hucitec/EDUFBa, 1996, p.203, onde lemos
“quer na sua dimensão particular, se restrita ao Antigo Sistema Colonial, quer naquela inclusiva, se referida ao Antigo
regime, apontava para ritmos e significados diferentes, cuja síntese contraditória inscrevia-se nas práticas dos homens que
aí se defrontavam. Essa afirmação (...) remete a outra, já menos evidente: a crise não aparece à consciência dos homens
como modelo em vias de esgotamento, mas como percepção da perda da operacionalidade de formas consagradas de
reiteração da vida social. Em outras palavras, é na busca de alternativas que a crise se manifesta, é nela que adquire efetiva
vigência”.
37 A perspectiva do enlace entre a crise do Antigo Regime e a do Antigo Sistema Colonial teve um tratamento
aprofundado em Jacque Godechot, que celebrizou o termo “revolução atlântica” para sublinhar este enlace. Ver
GODECHOT, Jacques, As Revoluções: 1770-1799. Trad. Port. São Paulo: Pioneira,1976, Europa e América no tempo de
Napoleão, (1800/1815). São Paulo, Ed. Pioneira, 1984. Na historiografia brasileira, o texto clássico é Fernando Novais,
Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, SP, Hucitec, 1974, que permanece fecundando o presente debate.
Para um tratamento dos ritmos distintos entre as duas porções da América Ibérica ver István Jancsó, “A construção dos

19
Por essa razão, sublinhar o caráter insólito da transmigração da corte é salutar
para nos ajudar a repensar este processo em seu próprio tempo e em seus desdobramentos,
por mais que saibamos que o alvitre da mudança da corte tenha sido pensado em outros
momentos e conjunturas38. No início do século XIX, quando a territorialidade era já há
muitos séculos um apanágio dos estados monárquicos, desterritorializar a coroa e a corte e,
com a elas, a sede do poder, implicava em repercussões enormes no plano do Império
Português e em todo o contexto europeu e americano. Assim, o esforço de re-colocar a
vinda da corte em sua contemporaneidade significa considerar que, se é verdade que a
fundação de um Império nos trópicos reverberava também utopias há muito inscritas no
imaginário da época moderna, retemperadas com as tinturas da Ilustração, o movimento
concreto que se fez em 1808 era algo de novo e inusitado, um movimento que rompia com
a ordem, que respondia a desafios coevos e abria perspectivas imprevistas para os atores
políticos das duas partes do Império, o Reino e o ultramar americano, unidos e separados
pelo rei ausente.
Entretanto, sem esquecer esse caráter insólito e inusitado, devemos também ter
atenção para aquilo que a mudança da corte partilha com os grandes movimentos de seu
tempo, vale dizer, uma sucessão de diásporas, em grande abrangência geográfica, no curto
espaço de pouco mais de uma geração, e que começou precisamente pela fuga (e patético
retorno) de um casal real e pela emigração de grande parte da nobreza francesa.
É assim que seria o mesmo D. Rodrigo, que tão bem formulara a idéia da
complementaridade indissociável entre colônia e metrópole e a pertinência do exclusivo
comercial, aquele que promoveria a abertura dos portos da América Portuguesa ao
comércio com as nações amigas, medida à qual se seguiria a supressão da lei que proibia a
instalação das manufaturas na América. Da mesma forma, este que se apresentava como
um apólogo das reformas pombalinas, em particular aquelas que deram a conformação a
todas as capitanias/províncias do Império de um sistema que deveria estar voltado para um

estados nacionais na América Latina - apontamentos para o estudo do Império como projeto. In: José Roberto do Amaral
Lapa; Tamás Szmrecsányi. (Org.). História econômica da Independência e do Império. 1 ed. São paulo: HUCITEC, 1996,
v. 1, p. 3-26. Para uma visão do enlace entre os dois processos, a partir do Brasil, ver João Paulo Garrido Pimenta, O
Brasil e a América espanhola (1808-1822), Tese de Doutorado FFLCH, USP, 2004.

38 Ver, sobre isso, Maria de Lourdes Vianna Lyra, A utopia do poderoso império - Portugal e Brasil: bastidores da
política: 1798-1822

20
centro único, o erário régio de Lisboa, viria a presidir a instalação do erário régio no Rio de
Janeiro, criando no interior do sistema uma nova e perturbadora polaridade.
Tudo se passava como se, naqueles breves e intensos anos vividos no Rio de
Janeiro, cada gesto, ao procurar responder aos sucessivos desafios de um cotidiano cada
vez menos previsível, estivesse destinado a desconstruir os sentidos cuidadosamente
projetados nas antigas intenções.
A guerra e a invasão apartavam o reino dos domínios, interrompendo os fluxos
mercantis e fiscais, e ferindo eu seu cerne a idéia de uma interdependência econômica entre
as duas porções do Império : o Brasil podia viver sem Portugal e, sendo agora, o lugar em
que se assentava a sede da monarquia, impunha-se abolir a proibição do desenvolvimento
das manufaturas, essência da divisão do trabalho que era defendida na memória de 1797, o
que, de fato se fez com o Alvará de 28 de janeiro de 1808. O texto da Carta Régia que
determina a abertura dos portos deixa transparecer o travo da hesitação e da transitoriedade
-  « sou servido ordenar interina e provisoriamente, enquanto não consolido um sistema
geral que efetivamente regule semelhantes matérias”, ao mesmo tempo em que se justifica
a medida « por  se achar interrompido e suspenso o comércio desta capitania, com grave
prejuízo de meus vassalos e da minha Real Fazenda, em razão das críticas e públicas
circunstâncias da Europa; e querendo dar sobre esse objeto alguma providência pronta e
capaz de melhorar o progresso de tais danos”. 39

Não é demais ressaltar que o estabelecimento do livre comércio, em 1808, era


uma medida que se estabelecia para o conjunto do Império, cujas partes principiavam a
partir daí a comerciar livremente com o estrangeiro. Ela nada dizia sobre as relações
internas ao Império, até então protegidas por uma rede privilegiada de relações mercantis.
Nelas, é bom lembrar, não figuravam apenas mercadorias produzidas no reino, como os
vinhos e os azeites, submetidos à legislação especial, mas avultava cada vez mais o trato
com mercadorias inglesas, que entravam na América através dos comerciantes portugueses.
A liberação das relações comerciais, contra uma tarifa que não diferenciava suficientemente
os comerciantes portugueses dos demais feria fundamente esses interesses, rompendo o
ideário de convergência na complementariedade caro ao pensamento ilustrado. A legislação
mercantil estabelecida entre 1808 e 1812 expressa essa ambiguidade entre um imaginário
39 Alvará de 28 de janeiro de 1808

21
territorial integrado, onde as relações mercantis entre o Reino e a América eram
« internas » e um territorialidade americana com feições autônomas, onde o comércio com
Portugal tornava-se tão « externo » quanto o era o comércio com o resto do mundo, para
fins de cálculo tarifário. Note-se, por exemplo, o tratamento que se dava em janeiro de
1809, um ano depois da abertura dos portos, a essa questão, procurando resgatar a diferença
entre o comércio de mercadorias « de propriedade » de portugueses ou transportadas em
embarcações de origem portuguesa, e os de outra proveniência. O Decreto de 28 de janeiro
de 1809 isentava dos direitos de importação as mercadorias estrangeiras vindas dos portos
de Lisboa e Porto, que aí tivessem pago o referido imposto, modificando o estabelecido na
Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que estabelecia a tarifa de 24% para as mercadorias
estrangeiras, independentemente de sua procedência, assim como do Decreto de 11 de
junho do mesmo ano que reduzia para 16% aquelas que fossem de « propriedade
portuguesa, importadas em navios nacionais”, quando procedentes de Lisboa e Porto, tendo
lá pago os competentes direitos. A medida se fazia por não convir “que paguem uns mais
direitos que os outros, o que faria embaraço no giro do comércio e causaria dano às
transações mercantis”, sublinhando seu caráter de provisoriedade, enquanto não eram
dadas “outras providências sobre tão importante objeto” . Reafirmando uma acepção da
40

nação como equivalente ao conjunto do Império, com sede no Reino, está a Legislação
protegendo as matérias primas para as fábricas nacionais Alvará de 18 de abril de 1809
isenta de direitos as matérias primas de uso das fábricas e concede outros favores aos
fabricantes e da navegação nacional (1809). Ela o faz, entretanto, invertendo o princípio da
complementaridade, propondo-se a fomentar as manufaturas do Estado do Brasil, igualado
assim, como território da nação, ao Reino.
A busca da preservação dessas relações privilegiadas, sem ferir os preceitos da
abertura comercial, iriam, como se sabe, ser o grande tema da discórdia das classes
mercantis, crescendo em azedume até a ruptura política em 1822. De qualquer modo, ainda
que por longo tempo sobrepostas as noções de liberdade comercial e as de privilégio
mercantil, a abertura comercial estabelecia com crescente nitidez essa territorialidade
americana, que tinha agora, frente ao Reino, uma externalidade cada vez maior, tornando
cada vez mais logínquo « o sacrossanto princípio da unidade » defendido dez anos antes.

40 Decreto de 28 de janeiro de 1809

22
Mas vale também lembrar que a legislação do período tampouco estabelecia a liberdade do
fluxo mercantil entre as capitanias, silêncio que não deixa de ser revelador de todo um
conjunto de ambiguidades que deveria se cronificar nas décadas seguintes, já que o
conceito de « exportação » e « importação » continuou a ser utilizada para designar a
circulação mercantil entre as capitanias.
Não resta dúvida que a criação do Erário Régio no Brasil, levada a efeito em 28
de junho de 1808 imprimia também uma modificação fundamental no sistema do Império,
criando no Rio de Janeiro, uma polaridade antes inexistente, para a qual deveriam fluir os
recursos que antes demandavam Lisboa, assim como aqueles provenientes dos novos
impostos que se deveria criar, para garantir uma base fiscal para a nova situação política.
As normas que definem sua criação expressam, à primeira vista, esse afã de organizar, de
racionalizar e de conduzir reformas, tão próprios ao estilo de D. Rodrigo. Mas a leitura
mais atenta daquela longa exposição, deixa logo transparecer o compromisso inevitável
entre o desejo de reforma e as necessárias concessões ao pragmatismo impostas pelas
dificuldades da situação nova, pela falta de funcionários adequados, pela imensidão do
território e, não menos importante, pela trama dos interesses que passavam a jungir os
« portugueses da América » às novas oportunidades criadas pela proximidade do poder. O
tratamento que aí se dada aos contratos é um exemplo eloquente desse deslizamento, pois,
lado a lado com as afirmações que enfatizavam a necessidade de reduzir ao mínimo as
rubricas contratadas, deixam-se abertas as possibilidades para a continuidade daquelas
práticas antes tão criticadas. O texto legal determina que não se podem mais contratar as
rendas das alfândegas, as da chancelaria-mor, algumas passagens de rios e registros
(Paraíba, Paraibuna, Juruoca, Taguaí e Parati); o subsidio do aguardente da terra, o dízimo
do açúcar; o equivalente do contrato do tabaco; o rendimento da casa da moeda, a
ancoragem dos navios e os direitos do sal. Logo abaixo, no artigo XII, deixa-se aberta a
possibilidade para que “quando o Presidente [do Erário] julgar necessário para o aumento
das rendas sobreditas que algumas se deve contratar”, deve fazê-lo, “mas proporá para eu
determinar o que for servido”. Na mesma direção, o artigo XIII considera ser “impraticável
que algumas das minhas rendas cobradas em espécie possam ser administradas, sem que se
evapore grande parte do seu produto nas mãos dos prepostos, que é preciso criar para o
recebimento dela e sua redução a dinheiro, maiormente em um país tão dilatado e falto por

23
ora de Ministros letrados que possam ocorrer com a necessária jurisdição à efetiva cobrança
das mesmas rendas, sem os subterfúgios, delongas e prevenções que costumam iludir os
juízes ordinários e câmaras das vilas do sertão do Brasil”. Desse modo, mantém como
submetidas à contratação rendas como o dízimo do pescado, a vintena do peixe salgado,
passagens pequenas e outros semelhantes ramos “cuja fiscalização absorveria em ordenados
ou salários das pessoas nela empregadas, a maior parte de seu produto anual”, além dos
vultosos contratos gerais da coroa, como o do tabaco, da urzela e do pau Brasil .
41

Ainda no plano da fiscalidade é relavante mencionar o conjunto de impostos


criados entre 1808 e 1809 : a cobrança de um imposto sobre os prédios urbanos (Alvará
27/06/1808); um percentual (a siza) sobre a venda dos bens de raiz (Alvará de
03/06/1809); a meia siza dos escravos ladinos (Alvará 3 junho 1809) ; a décima ou selo de
legados e heranças (Alvará de 17/06/1809); taxa do selo de papel (Alvará de 17/06/1809);
o imposto de 5 reis por libra de carne verde e o conjunto de impostos destinados a financiar
o Banco do Brasil, criados pelo Alvará de 26/10/1812 ; incidindo sobre as seges, as lojas
abertas e as passagens dos rios. Embora praticamente todas essas imposições tenham sido
pensadas antes, constando das memórias de 1797 e 1799, elas adquiriam agora um sentido
distinto agora que a Corte se achava na América. Se antes elas eram designadas para ajudar
a financiar as despesas do Reino com a iminente guerra européia, agora elas se voltavam
para financiar um centro instalado na América. Propiciam, como tais, uma novas e
complexas configurações de interesses. Chama a atençao, por exemplo, o fato de que, ao
serem impostas a todas as províncias, as novas rubricas fiscais parecem, a princípio
obedecer a uma lógica de simetria e homogeneidade desconhecida nos tempos antigos. Na
mesma direção opera o esforço que é explicitado na exposição de cada uma delas de que os
novos impostos devem ser arrecadados sob um novo sistema – o da administração, sob a
responsabilidade de funcionários régios, superando o antigo e tão criticado sistema de
contratos. Leitura mais atenta, entretanto, mostra uma intensa hesitaçao entre a antiga e a
nova forma, deixando perceber as enormes dificuldades que se opunham à extinção de um
sistema que, se não beneficiava a Coroa ou aos pagadores de impostos, certamente era uma
moeda de troca de crescente importância política. De qualquer modo, seja pelas
dificuldades em introduzir as práticas modernas, seja pela reiterada resistência das

41 Alvará de 28 de junho de 1808

24
capitanias em enviar as receitas para o Rio de Janeiro, seja pelas mazelas da evasão que se
operava no sistema de contratos, não se deve exagerar o sentido centrípeto dessa reforma
fiscal. Do mesmo modo que no caso da abertura dos portos, os mesmos movimentos
destinados a financiar a implantação da Corte no Rio, com seus imensos custos
administrativos e militares, criavam também ao lado da pressão extrativa, a virtualidade de
um aumento da renda no plano das capitanias, suscitando resistências e hipóteses de
autonomias no plano local. Não por acaso seriam precisamente estas rendas que seriam
atribuídas, décadas depois, à jurisdição das províncias, reconhecendo, na verdade, uma
situação de fato : a dificuldade em fazê-las reverter ao centro.
No conjunto, o traço mais notável da atividade legislativa desses primeiros anos
da presença da corte na América é que os interesses daqueles que antes eram apenas
« portugueses da América » passam a ganhar importância e a ser contemplados em sua
especificidade, apressando-se o administrador, em nome do Regente, a mostrar cuidado por
suas necessidades mais prementes.
Chama a atenção, por exemplo, a junção, no mesmo instrumento jurídico, do
imposto sobre a compra e venda de bens « de raiz », à criação de um imposto que, pela
primeira vez, distingue o escravo « ladino » (já habitante da América), dos escravos recém
chegados da África. De forma sutil, o enunciado justifica a imposição sobre compras e
vendas comoum imposto « menos gravoso », tido como um « método de arrecadação mais
suave », para que os súditos « no uso do direito de propriedade tenham a maior liberdade,
no que for compatível com o interesse da causa pública », reafirmando o compromisso da
Coroa com a propriedade escrava . O instrumento se completa com outro que transforma a
42

atividade de apreensão de escravos fugidos e combate aos quilombos em uma função


pública regulamentada por lei. 43

Configurando um centro e redesenhando fronteiras

A migração da máquina metropolitana para o interior do seu rico e distante


domínio implicaria em novos desafios e necessidade que iriam, ponto a ponto, modificar as
antigas proposições e suscitar novas medidas, que eram a resultante contraditória do
mosaico de composições e conflitos que atravessavam este imenso território, em face de
42 Alvará de 23de junho de 1809
43 Resolução da Guerra, n. 18, de 31 de maio 1809

25
uma situação que atingia as capitanias/províncias de forma distinta, trazendo poder a uma
parte, enfraquecendo outra, criando em todas novas expectativas e demandas.
De um lado, como observamos acima, a separação que a guerra e a invasão
impunham entre o reino e os domínios americanos, interrompendo os fluxos mercantis e
fiscais, iria ferir o coração mesmo da idéia de uma interdependência econômica entre as
duas porções do Império e da especial condiçao geográfica louvada por D. Rodrigo na
memória de 1797: o Brasil podia viver sem Portugal e, sendo agora, o lugar em que se
assentava a sede da monarquia, impunha-se abolir a proibição do desenvolvimento das
manufaturas, essência da divisão do trabalho que era defendida na mesm memória. Por
outro lado, a necessidade urgente de dotar a coroa de uma base fiscal capaz de responder a
um enorme conjunto de despesas destinadas a instalação da corte tornaram mandatória a
abertura comercial e a imposição de uma tarifa de importação adequadamente baixa para
prover, de forma extensiva, os recursos necessários, mesmo sob pena de ferir os interesses
dos comerciantes estabelecidos no Reino.
Talvez o ponto mais importante a ser enfatizado aqui é que, se a sede da
monarquia iria se estabelecer na América, ela deveria forçosamente escolher um centro
único, pois não se tratava mais de uma reformulaçao administrativa mas do proprio centro
do poder, de onde deveriam emanar as ordens para todo o Império.
A constituição de um centro político na América não era tarefa fácil, não apenas
pela dificuldade em gerir o imenso território, como pele fato de que ela iria colocar
intransponíveis dificuldades à gestão dos negócios e da administração nas duas partes do
Império. Exemplo expressivo dessas dificuldade é o fato de que, já em 1809, mal liberto
Portugal de invasão estrangeira, o Pará e o Maranhão voltam a tratar suas questões
judiciárias no antigo Reino , em razão da maior proximidade em que estava da Praça de
44

Lisboa do que do distante e quase inatingível Rio de Janeiro. Por outro lado, fatos
perturbadores emergiam também do antigo centro, fomentando autonomias e
desobediências dos funcionários agora separados do Rei por um oceano de distância e
ressentimentos, lançados à uma condição periférica que tenderia a crescer com o
prolongamento da ausência. Esse deslocamento que se tornará mais visível a partir da
libertaçao do território português dos invasores franceses, transparecia na Representaçao

44 Alvará de maio de 1809

26
feita por D. Rodrigo ao Regente, em 1810, em que este criticava a escolha de homens
inábeis para o governo do Reino, homens que se enfrentavam ao Regente em franca
desobediência, chamando a atenção sobre a « necessidade que há de fazer que os
Governadores do Reino obedeçam às suas reais ordens, por que neste ponto não posso
deixar de inisistir e de segurar com o devido respeito na augusta presença de V.A.R. que, se
eles hão de continuar a desobedecer formalmente a V.A.R. então é inútil escrever-lhes, nem
dar-lhes ordem alguma, pois que sustentar com semelhantes pessoas correspondência no
real nome de V.A.R. é autorizá-los a que façam o mal e realizem suas idéias e não dirigi-los
a que façam o que mais convém ao seu real serviço, que eles não querem executar ». 45

Não obstante, ao significar uma nova territorialização do poder, a presença da


corte na América impunha um centro único, desfazendo o cerne da projetada divisão
administrativa em dois centros, exposta na Memória de 1797. Um dos efeitos inevitáveis
dessa escolha foi o de fazer pender a balança do poder na direção sul-sudeste, fomentando
descontentamentos e pulsões centrígugas nas capitanias do Norte. Antigas veleidades
políticas na Bahia e Pernambuco vão se ver descontentadas, afastadas que estavam do
centro do poder, muito mais distante no Rio do que o fora em Lisboa. Ao mesmo tempo, a
liberdade comercial concedida em 1808 faria despertar nesses portos uma nova
prosperidade, capaz de dar fundamento material aos desejos de autonomia em relação ao
Rio. Na mesma direção iriam operar os novos impostos criados no plano de cada capitania,
que se buscava reter em benefício local. Nesse sentido, seria um desvio anacronístico
considerar a abertura comercial como causa suficiente para a consolidação de um centro
político no Rio de Janeiro, pois, se era verdade que o Porto do Rio se consolida como o
mais importante o território americano, a metade do movimento mercantil e das receitas
fiscais esteve dividida entre os portos de Salvador, Recife e Belém, situação que se manteve
durante todo o século XIX. Reciprocamente, o Rio de Janeiro vai imantar poderosamente as
capitanias do sudeste e as do sul, desenvolvendo as possibilidades econômicas associadas
às vocações milicianas no Rio Grande, e estabelecendo fortes vínculos com Minas Gerais e
São Paulo. 46

45 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Representação a S.A.R. o Príncipe Regente sobre a administração da Real Fazenda no
Reino”, de 31 de dezembro de 1810, in D. Rodrigo de Sousa Coutinho – Textos Políticos, Econômicos e Financeiros –
1783-1811, Lisboa, Publicação do Banco de Portugal, 1993, T II, pp.355-356.
46 Ver os artigos de Márcia Eckert Miranda, Ana Paula Medici, Erik e Vera, nesse volume.

27
É ilustrativo observar o interesse e cuidado com que a Coroa procura prover os
meios para o avanço dos paulistas sobre os campos de Guarapuava, de modo a abrir o
estratégico caminho que ligava as capitanias de São Paulo e Rio Grande e estas à região das
Missões jesuíticas. É assim que se promulga, em 1809, uma, aprova « o plano de povoar os
campos de Guarapuava e de civilizar os indios bárbaros que infestam aquele território »,
medida que responde a decisões tomadas pela Junta convocada pelo Governador Franca e
Horta sob os auspícios da Coroa. O empreendimento visava a « dar princípio ao grande
estabelecimento de povoar os Campos de Guarapuava, de civilizar os índios bárbaros que
infestam aquele território, e de por em cultura todo o país que de uma parte vai confinar
com o Paraná, e da outra forma as cabeceiras do Uruguai que, depois rega o país de
Missões, e comunica assim com a Capitania do Rio Grande,” buscando estimular a
colaboração das forças milicianas dos paulistas em troca do acesso a sesmarias e ao
controle sobre a mão de obra indígena. A carta se alonga nos cuidados que devem ser
observados nos contatos com os indígenas, evitando “mortandades e crueldades” e
procurando atraí-los por meios pacíficos para a civilização. O comandante da expedição
deveria “tratar o índios como filhos a respeito do castigo que merecerem, porém não se
fiando nunca, nem descuidando, visto que a experiência tem mostrado que os povos
bárbaros, ou por um mal entendido, ou por qualquer acidente caem em atos de violência
não esperados”. No caso em que a força fosse inevitável e o comandante fosse obrigado a
“declarar guerra aos índios”, estabelecia-se a permissão para que as bandeiras devidamente
autorizadas pelo comandante da expedição pudessem penetrar nos campos para fazer
prisioneiros entre os índios. Ficava entendido que “esta prisão ou cativeiro só durará 15
anos contados desde o dia em que forem batizados e desse ato religioso que se praticará na
primeira freguesia por onde passarem se lhes dará certidão (...) excetuando porém os
prisioneiros homens e mulheres de menor idade pois que nesses o cativeiro dos 15 anos se
contará ou principiará a correr aos homens da idade de 14 anos e nas mulheres da idade de
12 anos (...)”. Entendia-se também “que os serviços do índio prisioneiro de guerra poderão
vender-se de uns a outros proprietários pelo espaço de tempo que haja de durar o seu
cativeiro, e segundo e segundo mostrar a certidão que sempre o deve acompanhar. Os
prisioneiros de guerra feitos pela tropa se distribuirão pelos oficiais e soldados da mesma
tropa à exceção daqueles que for necessário deixar para o meu real serviço, no que

28
recomendareis ao comandante que haja com maior moderação, pois desejo que esta não
sirva para desanimar a Tropa de Linha e Miliciana do bom serviço que espero me faça nesta
importante expedição”. 47

Buscava-se assim atrair, com a moeda do controle sobre o trabalho compulsório


indígena, os milicianos paulistas para o avanço do povoamento na direção da fronteira
platina, antecipando o envolvimento que colocaria os milicianos gaúchos em marcha na
invasão da Banda Oriental do Uruguai em 1811.
A intensidade desse movimento manifesta-se na relação desigual, em homens,
recursos e repercussão geopolítica com que a Coroa pôde operar na belicosidade de suas
relações continentais externas, quando decidiu impor sua presença na fronteira Amazônica,
com a ocupação de Caiena (1809), e na fronteira platina, com a invasão da Banda Oriental
do Uruguai, em 1811. Enquanto a primeira permanceu um episódio circunscrito e pouco
significativo, apropriando-se de uma possessão francesa que lhe propiciasse um campo de
negociação no plano da diplomacia européia, a invasão do Uruguai iria revelar uma
multiplicidade de possibilidades, tanto na articulação dos interesses internos, quanto
externos. No primeiro caso, soldava profundos vínculos com a milícia gaúcha, beneficiária
de vastas apropriações territoriais, de contratos fiscais e militares . No segundo, a partir do
48

início da Revolução no Rio da Prata, a Bando Oriental se tornará o foco principal do


conflito geopolítico, ganhando uma multiplicidade de sentidos, que se sobrepõem na
medida em que avançam as forças republicanas na região : fronteira natural, defesa contra
as turbulências republicanas que se desenvolvian nas antigas províncias do Vice Reino do
Rio da Prata ; muro de contenção contra a ameaça representada pela Revolução Artiguista,
em seu favorecimento ao federalismo e sua crítica à escravidão ; reivindicações
expansinionistas fundadas nas pretensões dinásticas da Princesa Carlota Joaquina ao trono
espanhol. Em todas elas, ganhavam corpo os interesses das milícias rio grandenses,
movidas para uma guerra de conquista de terras e das oportunidades de negócios
favorecidas pela guerra. Com eles, estabeleciam-se de forma duradoura na Banda Oriental
do Uruguai, os estancieiros luso-brasileiros, levando consigo o gado e a escravaria que
transitavam livremente pele fronteira viva . 49

47 Carta Régia de 1 de abril de 1809


48 Cf. Marcia Eckert Miranda,
49 Sobre esse complexo e multifacetado envolvimento ver João Paulo Garrido Pimenta, op. cit., e também Brasil y las
independências de Hispanoamérica, Castelló de La Plana, Publicaciones de La Universitat Jaume I, 2007, especialmente

29
Ao mesmo tempo em que se priorizava a fronteira platina, no Atlântico Sul, os
negócios referentes ao tráfico de escravos começam a colocar em movimento uma nova
fronteira – aquela que conectava a América às fontes de provimento de escravos. Em
movimento que foi tido como acatamento das pressões inglesas, o Príncipe Regente assinou
o Tratado de 1810, no qual, pela primeira vez se estabeleceu, por escrito, uma condenação
formal à desumanidade do tráfico. Fazendo eco à Revolução de São Domingos, o tratado
mencionava, além das referidas intenções humanitárias, o perigo da introdução de uma
população “de espírito faccioso”, capaz de ameaçar a ordem da porção americana do
Império. A Coroa portuguesa propunha-se, assim a colaborar com a Inglaterra em seu
combate ao tráfico, comprometendo-se a restringir a permissão do comércio de escravos
exclusivamente às regiões africanas que eram possessões portuguesas. Entretanto,
precisamente nesse ponto (a definição de quais seriam as possessões portuguesas), o tratado
ocultava um pormenor curioso e significativo. A letra do tratado atribuía a condição de
possessão portuguesa, vale dizer, de regiões onde o tráfico seria lícito para os vassalos de
Portugal, regiões onde a soberania lusa não estava completamente estabelecida, e que eram
contestadas pela França. Desse modo ficava entendido que « as estipulações do presente
artigo não serão consideradas [que vedavam o tráfico] como invalidando ou afetando de
modo algum os direitos da coroa de Portugal aos territórios de Cabinda e Molembo, os
quais direitos foram em outro tempo disputados pelo governo de França, nem como
limitando ou restringindo o comercio de Ajuda e outros portos da África (situados sobre a
costa comumente chamada na Língua Portugueza a Costa da Mina), e que pertencem, ou a
que tem pretensões a Coroa de Portugal. Estando sua Alteza Real o Príncipe Regente de
Portugal resolvido a não resignar, nem deixar perder as suas justas e legitimas pretensões
aos mesmos, nem os direitos de seus vassalos de negociar com estes lugares, exatamente
pela mesma maneira que eles até aqui o praticavam ». Assim, em um mesmo movimento,
dava-se ao tráfico um sentido territorial, validando o comércio direto entre as porções
americana e africana do Império, e incrementava-se as pretensões territoriais portuguesas
na África, sob a proteção da Inglaterra, co-signatária do Tratado.
É evidente que, mesmo com essas concessões, o tratado deveria provocar
descontentamento e temor nos vassalos americanos, o que movia D. Rodrigo a buscar

o capítulo IV. Para uma visão da Questão Platina ao longo do Império, ver Wilma Peres Costa, A Espada de Dâmocles, o
Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império, SP, Ed. Unicamp/Hucitec, 1996, capítulos II e III.

30
amenizar seus efeitos, em carta ao representante inglês no Rio de Janeiro. Tentando
argumentar com a injustiça da medida que se exigia do Príncipe Regente, em relação às
dificuldades que medida similar haviam experimentado na Inglaterra, ele queixava-se de
que « (...) na Grã Bretanha, a maioria do Parlamento britânico teve que lutar mais de vinte
anos antes de obter da oposição a abolição do tráfico dos negros. Agora, mesmo que uma
população exuberante encha entre o território (exíguo) das ilhas ... [Antilhas]..., ela quer
exigir que Sua Alteza Real de Portugal possa abolir subitamente um comércio que é o único
a poder fortnecer os braços indispensávies às minas e às culturas do Brasil. É evidente que
mesmo em um meioséculo Sua Alteza Real não poderá acabar no Brasil com este comércio
triste mas necessário, como desejaria muito se a coisa fosse compatível com o bom público
e a existência de seus povos. Um tal resultado pode ser obtido somente lenta e
progressivamente, e nunca pela força, procedimento que o Governo Britânico parece querer
adotar, que irrita sem produzir nenhum bem ». Ao mesmo tempo, ele invectivava contra o
apresamento de navios de bandeira portuguesa pelos ingleses, em tom altivo e ameaçador,
afirmando que aquelas ações faziam temer « Sua Alteza Real que o povo e os negociantes
portugueses cheguem a um ponto de irritação tal que se tornará difícil à Sua Alteza Real
reprimir as manifestações sem que resulte em vinganaças contra as propriedades inglesas
no Brasil, o que causaria uma pena imensa à Sua Alteza Real. Tudo isso poderia assim
arruinar em um momento os esforços constantes de Sua Alteza Real para fundamentar
sobre bases permanentes a aliança e a amizade perpétua entre as duas nações. » 50

Observado em perspectiva, o repertório de medidas tomadas nos primeiros anos da


Corte no Brasil, a maior parte delas tomada sob por iniciativa de D. Rodrigo, ou sob sua
inspiração ajudam a desenhar, pouco a pouco, um imaginário geopolítico novo,
sobrepondo-se ao desenho que ele esboçara na célebre memória de 1797. Apontando para o
mundo platino e para a costa africana, essa projeção respondia aos desdobramentos da crise
do colonialismo ibérico que se agravava no cone sul da América e também às pressões
inglesas contra o tráfico, movimentos que tenderiam, ambos a se agudizar nos anos
subsequentes. A ameaça espanhola, tão vívida em 1797, se apagava, se tornava mais
distante, frente a uma nova geografia política buscava expandir a escravidão (ampliando a

50 Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Lord Strangford, enviado extraordinário e Ministro Plenipotenciário Inglês
no RJ (1811) AEB, 112, f. 522, citado em Pierre Verger, Fluxo e refluxo – do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e
a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX, São Paulo, Ed. Corrupio, 1897, p.301

31
fronteira africana do tráfico, fazendo expandir a ocupaçao da Banda Oriental do Uruguai
pelas estancieiros-milicianos gaúchos com seus escravos) e dar a ela um enraizamento
territorial.
Por outro lado, em iniciativas que procuravam enraizar a Corte e dar a ela bases
materiais e políticas, desenhava-se, pouco a pouco, um centro na América, mas esse
processo era o mesmo que insuflava possibilidades centrífugas, cujos desdobramentos iriam
ganhar enorme complexidade, na media mesma do aprofundamento da própria crise que
enlaçava os destinos do Antigo Regime do sistema colonial na américa Ibérica. Havia aqui
uma profunda modificaçao no sentido da unidade que a Memória de 1797 postulara como
essencial. Se lá, a unidade do Império fazia desejável a divisão administrativa dos
« Brasis ». Isso não impedia (antes se sobrepunha) à concepçao que era cara à
administraçao pombalina : a de que as capitanias eram unidades administrativas e fiscais
separadas, subordinadas a um centro em Lisboa. Nessa concepçao as capitanias da
América, administradas por homens de confiança da coroa, igualavam-se as provincias do
reino, e fundavam uma unidade politica no interior do Império e sob a égide da Monarquia.
O rascunho de m centro no Rio impunha, como procuramos apontar, pulsões centrípetas
novas, buscando imantar o Rio de Janeiro como polaridade nova no interior do Império.
Não podia fazê-lo, entretanto, sem suscitar fundos ressentimentos e veleidades centrífugas
tanto no velho Reino, quanto naquelas partes do Estado do Brasil (em breve Reino Unido a
Portugal e Algarves), que a nova situação tornava mais distantes do centro de poder.
Elas iriam, como se sabe, estabelecer novas polaridades disputando a adesão e a
lealdade das Províncias, na exacerbação da crise entre 1820 e 1822.

A imposição do retorno
Olhando a partir de Portugal, é oportuno mencionar um último conjunto de
Memórias, que, escritas na Inglaterra, e depois em Portugal, iriam analisar o enlace entre a
Europa e América. Refiro-me aquelas escritas pelo jornalista português João Bernardo da
Rocha Loureiro, amigo e confrade de Hypolito José da Costa, que editou entre 1815 e 1824
o periódico O Português, publicado em Londres e voltado para a comunidade portuguesa
do Reino. Os Memoriais a D. João VI resumem os principais conteúdos de sua longa
51

51 João Bernardo da Rocha Loureiro, Memoriais a Dom João VI, edition ET commentaire par Georges Boisvert, Paris,
Fundação Calouste Goulbenkian, 1973.

32
militância liberal. Eles são especialmente notáveis como exatos contrapontos da visão
ilustrada, invertendo e nulificando aqueles pressupostos à luz dos danos causados a
Portugal pela permanência do Rei na América. Assim, diz ele “Que somos nós hoje ?
Ainda possuímos, é verdade, uma extensa porção de território tal e tanto que poderia, sendo
bem aproveitado, formar domínios mui poderosos para dez nações independentes. Porém,
como o possuímos nós? Por a mercê, desprezo ou ciúme das outras nações. Estamos tão
fracos e desmantelados (por culpa do governo) (...) que ao momento que fôssemos
acometidos por um inimigo poderoso, veríamos cair em seu poder os vários membros da
monarquia portuguesa”. Longe de garantir a unidade e a força do Império, os domínios se
apresentavam como sua fraqueza, pois a drenagem do poder e dos recursos para a América
expunham Portugal à rapacidade de seus inimigos, colocando-o à mercê da Espanha e da
Inglaterra. Perguntava-se “quem defende Portugal de ser presa de Espanha tão fácil como o
foi a Filipe II? Só o mau governo e fraqueza de Espanha. Quem tolheria aos Ingleses (...) se
quisessem, o mandar uma expedição a tomar posse das nossas ilhas e possessões da Índia?
(...)” . Portugal estava indefeso porque os seus poucos recursos eram desviados para o
Brasil e dilapidadas em ações agressivas contra Montevidéu. Distanciando-se da percepção
que, no final do século XVIII, olhava o futuro a partir do presente, vemos agora elevar-se o
tema do contraste entre o passado e o presente, quando lemos que “(...) muito hei dito em
geral (...) sobre o estado comparativo do que fomos e do que somos. A distância e o
contraste são tão conhecidos a todo o livre entendimento, que essa distância me poupa o eu
comparar miudamente os fatos de nossa história antiga e moderna para aparecer ainda mais
52
claro o paralelo de nossa miséria atual e da nossa passada grandeza”. A decadência
advinha do esgotamento dos recursos do reino, do desvio de todas as atenções da coroa para
o Brasil, e, sobretudo da humilhante ausência do Rei, que “não forma tenção de tornar a
Portugal e o abandona depois de restaurado. Assim não conta de aí tornar, faz como o que
largam umas casas e delas levam para a nova habitação para onde se mudam, quanto podem
levar e julgam que lhes pode servir de proveito. Sim Portugal, depois de tantos serviços,
está abandonado, reduzido ao estado de colônia e com um governo que pode fazer todo o
mal e nenhum bem”. 53

52 Memória II, pp. 90-92, publicada originalmente em O Português, vol. VI, n. 36, abril, 1817.
53 Idem, p. 117

33
A permanente cobiça da Espanha sobre o território Português só tem tido
impedimento na própria fragilidade política daquele país devido à natureza tirânica e brutal
de seu governo, incapaz de lidar com suas próprias questões internas. Agora entretanto, o
interesse da fusão pode ser beneficiado pelas próprias conveniências do equilíbrio europeu
e do legitimismo que tende a proteger as pretensões bourbônicas, pois « Portugal, senhor, é
uma pequena parte da Espanha, ou grande península talhada por a natureza (e ainda mais
por as conveniências da atual política européia) para fazer um só todo, unido por um só
governo. (...) »
De todos os modos, o retorno do Rei se impunha, superando os maus conselheiros
que o faziam acreditar que o único modo de recuperar Portugal seria fazer-se poderoso e
temido na América, ou teria que forçosamente escolher entre Portugal e o Brasil. Ora, se
esse poder fosse obtido através de invasões injustas aos domínios espanhóis, Portugal
ficaria exposto a represália e retaliações, na Europa. Para fortalecer-se em Portugal e no
Brasil, a única solução era “uma livre Constituição que os cimente e una estreitamente.
Depois dessa lei fundamental virá a liberdade de consciência e da imprensa, a segurança
real e pessoal, e a responsabilidade pública que darão aos dois países a estabilidade dos
orbes celestes »54
Sem o retorno do rei, as próprias nações poderosas que ditavam as regras da política
européia, tomariam a iniciativa de separar Portugal do Brasil, já que o desenho dos
territórios europeus se refazia de acordo com os seus interesses. Argumentava ele, com as
maquinações da Santa Aliança: “(...) pergunte-se a  Gênova, Veneza, Parma Placência,
Guastalla, Noruega, Saxõnia, Polônia, Bélgica, Luca, Ragusa, etc. Etc. E logo milhões de
vozes me responderão : Olhai o que eles nos fizeram e vereis o que eles farão a Portugal se
nisso lhes for proveito. Não se pense agora que é de pouco proveito à política atual da
Europa o separar Portugal da obediência do Brasil. Pelo contrário é esse um ponto que eu
não duvido esteja ao presente em consideração do Areópago que formam as grandes
nações. Todas elas vêem claro que o Brasil, sendo bem governado e chegando ao estado de
grandeza que lhe cabe, pode vir dar leis à Europa, mormente tendo sempre um pé em
Portugal que lhe sirva de escala de comércio, telégrafo de luzes e de indústria. Que não tem
já feito na Europa sem aí ter um só ancoradouro a nascente República dos EUA, pobre

54 Memória II, pp. 122- 123

34
território que mal se pode comparar ao do Brasil ? (...) às grandes nações nenhuma conta
fará tirar Portugal ao Brasil para o dar a Espanha, porém faz-lhe boa conta o separá-lo de
Espanha e do Brasil. A Casa de Áustria tem tantos arquiduques !... Tem-se por vezes falado
tanto em dar um reino ao arquiduque Carlos !... »55. E demonstrava, citando um dos mais
finos analistas da política européia: « Portugal é de todo estranho à política geral do
Continente, que esse era já seu estado habitual quando o príncipe aí vivia e por isso, mais
fora do círculo e ordem geral estará agora que o rei mora noutro hemisfério. Em verdade,
mal podemos nós falar de um país como Portugal que não tem ainda um estado de assento,
pois não é ele destinado a ficar, como agora o está sendo, província dum reino americano.
Tal estado é contrário à natureza das coisas e à ordem geral da Europa que mal consente o
ser uma de suas partes colônia do Novo Mundo e o estar a Europa dependente do Brasil
para respostas em negócios europeus. »56
Desfazer essa que parecia uma insuportável anomalia iria exigir muitas outras
travessias – a do rei que retornava, a dos deputados das províncias do Reino do Brasil que
se dirigiam as Cortes e que depois voltavam, exercitando percepções, desenvolvendo novas
práticas, demandando outras margens.

O desenlace dessa crise, no conturbado processo que resultou na autonomia política


do Brasil, extrapola os limites desse artigo, onde se buscou, principalmente, recolocar
algumas dimensões contidas na transmigração da Corte para a América, apontando aspectos
que aquele processo teve de inusitado, ao lado de outros, que ele partilhava com as outras
travessias que marcaram o seu tempo. Talvez o ponto central a ser aqui frisado é que
refugiar-se no domínio, buscar fortalecer-se a partir do domínio era parte da lógica das
monarquias. Que para fazer isso era preciso transpor o oceano e instalar o aparato
administrativo no coração do Novo Mundo mostrava a radical diferença dos Impérios
coloniais daqueles Impérios territoriais da Europa, antigos ou coevos. De qualquer modo,
parece claro que, se abandonar o reino para salvar o Império foi a idéia-força que presidiu a

55 Memória III, p. 131. Publicada originalmente em O Portugues, vol. VII, n. 37,


maio de 1817, pp. 700-719

56 M. de Pradt, L’Europe après le congrès d’Aix la Chapelle, faisant suite ao Congrès de Vienne Paris 1819, F. Béchet
aîné, in 8o de XXVIII. Apud, Memória III, citada acima, p. 131.

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vinda da corte, os homens que buscaram realizá-la tiveram que adequar seus planos a uma
situação inteiramente nova, que se desdobra entre 1808 e 1815, onde o conjunto dos
domínios americanos, que em 1797 era designado com “o genérico nome de Brasil”,
ganham uma dimensão de continuidade territorial, concretizada na constituição de um outro
Reino, o do Brasil que, embora Unido a Portugal e Algarves, definia-se com uma
imponderável virtualidade conflitiva, urgindo por soluções que iriam romper os limites do
projeto ilustrado.
No lugar de dois pólos administrativos, a formação de um centro único, desafio
complexo que teria que lidar penosamente com poderosas pulsões centrífugas no plano das
províncias e negociar permanentemente com uma ordem privada impregnada pela
escravidão que, vitaminado pela reiteração do tráfico até 1850, entretecia-se com a
construção do Estado nacional. De dentro também passava a emanar também um
imaginário territorial que priorizava um “sistema de fronteiras” distinto daquele que
orientara a estratégia da ilustração: na fronteira que ganhava crescente visibilidade, a região
platina, os estancieiros sulistas e suas forças milicianas sustentariam, ao longo do século, o
conflito endêmico na fronteira viva, por onde transitavam homens em armas, gado e
escravos. Na “fronteira invisível”, o vasto arco de interesses articulado em torno da
manutenção do tráfico africano consolidava-se como e da reinvenção da escravidão no
interior da construção do estado nacional brasileiro. Apoiado de dentro, o projeto teria a seu
favor uma conjuntura internacional que beneficiava o princípio dinástico e em que até certo
ponto, a necessidade de se contrapor a hegemonia britânica colocava as potências
européias no refluxo conservador, dispostas a aceitar contemporizações tanto nas
veleidades de expansionismo territorial quanto na questão do tráfico, em nome do princípio
dinástico.

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