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Antigo Regime
Autora: Profa. Dra. Wilma Peres Costa – Universidade Federal de São Paulo
“Eu me encontrei entre dois séculos, como na confluência de dois rios; eu mergulhei em águas
turbulentas, afastando-me com tristeza da velha margem onde nasci e nadando cheio de esperança em
direção à margem desconhecida”.1
1
Procurando inserir-se neste debate, o Marquês de Condorcet (1743-1794) publicou 3
perda não lhe parecia uma grande infelicidade em si mesma, já que “o produto dessas ilhas,
3 Condorcet, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat; marquis de, De l'influence de la Révolution d'Amérique sur l'Europe , Extr.
de : "Oeuvres de Condorcet", t. 8, Paris : Firmin Didot frères, impr. de l'Institut, 1847
4 Idem, op.cit. p.13
5 Idem, op.cit. p. 23
2
subtraídos os custos da cultura, as despesas de administração e defesa, não acrescenta senão
uma soma muito pequena ao produto total (...) da França” , a questão não se colocava
6
apenas em termos materiais. Ela devia ser analisada também do ponto de vista das
rivalidades em torno de um produto (o açúcar) que se tornara um bem de primeira
necessidade, e que não poderia ser monopolizado pela Inglaterra. Para combater o
monopólio, “(...) o interesse de cada nação consumidora seria de ter um meio de buscar, ao
menos em parte, os gêneros tornados necessários, sem depender do capricho das outras
nações” , razão que justificava a presença das diferentes nações européias na colonização
7
das Antilhas. O argumento era caro aos fisiocratas franceses – uma nação não poderia
gozar de plena autonomia enquanto dependesse de alimentos provindos de fora – e se
manteria em vigor até o triunfo completo, em meados do século XIX, das doutrinas do livre
comércio e das vantagens comparativas. 8
Por extensão, a defesa dos interesses franceses e de sua marinha tornava-se também,
um interesse comum aos outros estados europeus, pois, sem o contrapeso da marinha
francesa, a Inglaterra “teria querido invadir o comércio da Índia, da África e das duas
Américas”. Possuidor de um imenso território, ainda inculto, o povo norte-americano não
9
6 Idem, op.cit. p. 24
7 Idem, op.cit. p. 25
8 O estudo sobre os novos rumos da colonização no início do século XIX é tema que vem pedindo estudos mais
aprofundados, entre outras razões, pelas repercussões da metamorfose por que passavam, neste período as idéias e práticas
referidas à nação e ao estado nacional na Europa e no Novo Mundo. Para um estudo pioneiro sobre o tema ver Maria
Odila da Silva Dias, “O mito da descolonização liberal na Inglaterra pré vitoriana (1808-1842)”, Revista de História, vol.
LII, n. 103, 1975, pp. 297-314. Ver, para a posição francesa Marcel Dorigny et Marie-Jeanne Rossignol, La France et les
Amériques au temps de Jefferson et de Miranda, Paris, Centre Interdisciplinaire de recherches nord-américaines, Univ.
Paris 7), 2001. Para um enfoque recente dos « olhares cruzados » sobre a crise do sistema colonial europeu nas Américas
ver Marco Morel, « O abade Grégoire, o Haiti e o Brasil: repercussões no raiar do século XIX », in Almanack Braziliense,
n. 2, novembro de 1005, http://www.almanack.usp.br/
9 Idem, op.cit. p. 26
3
bourbônicas da França e da Espanha eram considerados como sendo convergentes e
associados.
Este olhar europeu sobre a América fincava-se no presente e mirava com otimismo
o futuro, procurando, entretanto, não desconsiderar a importância da preservação daqueles
interesses ainda enraizados na velha ordem – a convergência entre os interesses dinásticos
das duas dinastias bourbônicas e a proteção das “ilhas do açúcar”. Vista sob esse prisma, a
emergência da república americana favorecia os interesses da França, porque, acima de
tudo, ela fazia reduzir o poderio da Inglaterra. Nesse recorte, no momento em que se
precipitava a crise do Antigo Regime, mesclavam-se a sedução pelas instituições políticas
da república americana, a preocupação com a proteção dos interesses coloniais
(particularmente os referentes ao Caribe) e a rivalidade econômica e política com a
Inglaterra. Estes três aspectos se manteriam como pontos nodais da política francesa, na
longa travessia representada pelas guerras da Revolução e do Império em que profundas
transformações sacudiram a ordem social e a posição da França no concerto nas nações.
Império, sua visão sobre a situação do Império Português, e, em particular sobre suas
possessões na América. Falava na qualidade de Secretário de Estado da Marinha e
Domínios Ultramarinos, cargo que ocupou entre 1796 e 1801, reverberando as
modificações da ordem mundial que se impunham após a Independência dos Estados
Unidos e a emergência na França, de uma ordem revolucionária que desembocava em uma
guerra européia . 11
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entre os acontecimentos que perpassavam a Europa e a América, no momento em a guerra
européia evidenciava a dimensão ampliada da crise. Como fizera Condorcet, procurava
divisar, a partir do pano de fundo dos acontecimentos, as possibilidades que se
apresentavam para o Império Português, caso este conseguisse delas se beneficiar. Se, para
o iluminista francês, a proteção dos interesses coloniais aparecia com relevância notória ao
avaliar os efeitos da Independência Americana sobre a França, muito mais forte seria a
percepção da soldagem de interesses de Portugal e os de seus domínios ultramarinos nas
reflexões do ilustrado português. A condição para que o Império pudesse atravessar as
dificuldades impostas pelo momento assentava-se no estreitamento dos laços que jungiam
as várias partes do Império, privilegiando, no interior deles, aqueles que ligavam o Reino às
suas possessões americanas. Desse modo, nesse documento impressionante e justamente
célebre, os domínios coloniais emergem como garantes da própria independência e
soberania do Reino.
“Os domínios de Sua Majestade na Europa não formam senão a capital e o
centro de suas vastas possessões. Portugal reduzido a si só, seria dentro de um breve
período uma província de Espanha, enquanto servindo de ponto de reunião e de assento à
monarquia, que se estende do que possui nas Ilhas da Europa à África, ao Brasil, às
Costas Ocidentais e Orientais da África e ao que ainda a vossa Real Coroa possui na Ásia,
é, sem contradição uma das potências que tem dentro de si todos os meios de figurar
conspícua, brilhante entre as principais Potencias da Europa”. 12
A formulação contém a chave que perpassa todo o texto da Memória, tecla que,
ferida em distintos matizes, sugere uma leitura ao revés: se os fundamentos do Império
eram tão visceralmente dependentes da unidade entre o Reino e os domínios, a
interdependência que aqui se afirmava mal ocultava o temor de que, sem seus domínios,
Portugal poderia perder sua própria soberania, tornando-se parte da Espanha.
A unidade do Império e a identidade que se procurava soldar sob a égide da
monarquia, esse “inviolável e sacrossanto princípio de unidade” apareciam a D. Rodrigo
como reverberação da crise que levara à independência das colônias inglesas da América
do norte, onde a unidade não fora preservada. A unidade buscada para o Império implicava
em fazer com que “o Português nascido nas quatro partes do Mundo se julgue somente
Português, e não se lembre senão da Glória e Grandeza da Monarquia a que tem a fortuna
de pertencer, reconhecendo e sentindo os efeitos felizes da reunião de um só todo,
5
composto de partes tão diferentes” (...) . Essa complexa operação se assentava sobre a
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D. Rodrigo, Portugal desfrutava de uma condição (dita “natural”) que faltava à Inglaterra
em sua relação com as colônias da América do Norte, o que levara à perda daquelas
colônias.
O princípio desembocava, em decurso lógico, na ênfase sobre o exclusivo
comercial, como embasamento da complementaridade proposta, sendo : “(...) uma
conseqüência natural deste princípio (...) de que as relações de cada Domínio Ultramarino
devem, em recíproca vantagem ser mais ativas e animadas com a metrópole, do que entre
si, pois que só assim a união e a prosperidade poderão elevar-se ao maior auge. Estes dois
princípios devem particularmente ser aplicados aos mais essenciais dos nossos Domínios
Ultramarinos, que são sem contradição as Províncias da América, que se denominam com o
genérico nome de Brasil.” 16
Reiterar o exclusivo, reforçando as ligações de cada parte com o centro, essa era a
maneira de coibir o desperdício das energias mercantis que deixavam na América recursos
que deviam se destinar à aplicação produtiva no Reino. Para isso, era preciso combater o
contrabando, evitar a circulação do ouro em pó, coibir os fluxos mercantis que se
estabelecessem diretamente entre as partes do Império. Dentre estes, podemos considerar
que ecoavam aqueles ligados ao tráfico direto dos luso-brasileiros nas feitorias africanas.
13 Idem, p. 49
14 Idem, p. 49
15 Idem, p. 48
16 Idem, p. 49
6
Já nas instruções enviadas, em 1779, ao Marquês de Valença, como governador da Bahia, a
Coroa cogitava em conceder “privilégios, graças ou isenções” aos comerciantes
portugueses para tentar contornar os “gravíssimos inconvenientes que podiam resultar a
este Reino em deixarmos o comércio da Costa d’África entregues nas mãos dos
americanos”. Essas compensações se faziam necessárias “para que na concorrência com os
ditos americanos nos referidos portos de África tivessem os portugueses a preferência, da
mesma sorte que a capital e seus habitantes o devem sempre ter em toda a parte sobre as
colônias e habitantes delas”. 17
17 Arquivo Histórico Ultramarino, Documento da Bahia 10.319. Citado em Pierre Verger, Fluxo e Refluxo do tráfico de
escravos entre o Golfo de Benin e a Baía de Todos os Santos, São Paulo: Editora Corrupio, 1997, p. 22
18 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Memória sobre o melhoramento ...), pp. 49-50
7
disputados pelas mais ricas e importantes potencias européias (Inglaterra, França, Holanda
e Espanha), o domínio português se encontrava inquestionavelmente estabelecido. 19
19 Sobre o Tratado de Madri e os seus desdobramentos no imaginário territorial e no debate historiográfico ver Demétrio
Magnoli, O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912), São Paulo,
Unesp/Moderna, 1997.
8
reunidas no mesmo sistema administrativo, todas estabelecidas para contribuírem à mútua e
recíproca defesa da Monarquia, todas sujeitas aos mesmos usos e costumes ».21 O sistema
assim estruturado como uma « igualdade », fundada na complementaridade, fazendo
decorrer o « inviolável e sacrossanto princípio da Unidade » que era o objetivo maior da
Memória.
O texto desembocava em um detalhado programa de reformas econômicas,
administrativas e fiscais. Nesse último aspecto, ocupando toda a segunda parte da Memória,
reponta com força um conjunto de proposições modernizadoras, que envolviam não apenas
a redução (e mesmo eliminação) de alguns impostos como a criação de um conjunto de
novas rubricas fiscais. D. Rodrigo empenhava-se principalmente, na transformação da
forma de arrecadação, abolindo o antigo sistema de contratos, pela qual os intermediários
ficavam com a maior parte das rendas que deveriam pertencer ao erário. Como ele
percebia, o poder dos contratadores fiscais nos negócios públicos fora parte importante na
eclosão da tormenta revolucionária na França e se mostrara também seu potencial de risco à
ordem na rebelião dos colonos de Minas Gerais, tratada com dureza pelas autoridades
metropolitanas.
A taxação incidia sobre uma multiplicidade de objetos – os impostos diretos
(como o dízimo de todas as produções e o quinto do ouro) e todos os impostos indiretos
(sobre as exportações, sobre os açougues, as aguardentes, o sal, a passagem dos rios, as
entradas para o interior da América), além dos que incidiam sobre a administração da
justiça e o desfrute dos cargos, como os donativos dos ofícios. Não obstante, a taxação era
considerada como sendo « improdutiva e morosa, não só porque recaindo desigualmente
sobre as primeiras fontes da riqueza nacional impede que a mesma se aumente e prospere, e
fica muito diminuta, mas porque é depois arrecadada por contratadores que deixam ficar
na sua mão a maior parte da renda que cobram e que sai mais pesada ao Povo pelas
muitas vexações que lhe fazem sofrer sem serem mais exatos nos pagamentos a fazenda
real, como prova o que desgraçadamente se experimentou em Minas Gerais ». 22
9
Como tem sido apontado pelos especialistas , D. Rodrigo tinha vasto conhecimento
23
teórico e empírico das experiências de organização política dos grandes estados europeus (e
também dos pequenos, tendo sido um estágio na Sardenha, parte importante de sua
formação como homem público). Ele mantinha um interesse especial nas trajetórias da
Inglaterra e da Prússia, experiências distintas e opostas na administração do domínio régio.
Na Inglaterra, parte significativa do domínio régio, as terras expropriadas aos conventos no
século XVI, havia sido transferida, por venda, aos agentes privados, iniciando a trajetória
peculiar que dava aos Tudor, simultaneamente, solvência econômica e dependência do
Parlamento para as questões fiscais e para o financiamento da guerra. A Prússia, ao
contrário, desenvolvia formas de racionalização da administração do domínio, fundando na
burocracia e na máquina militar, as bases do absolutismo monárquico. Essas idéias
ecoaram freqüentemente em seus projetos de reforma – o combate aos privilégios
econômicos do clero e das corporações de mão morta e a necessidade da racionalização
administrativa da máquina governamental . Nem uma nem outra, porém, poderiam servir
24
como modelos para Portugal, onde a porção mais valiosa do domínio régio, não se
encontrava contígua ao centro político, ou no interior de seu território, mas espalhados em
todos os continentes, apresentando desafios imensos e quase intransponíveis para os
reformadores ilustrados. Nos impérios coloniais, especialmente aqueles em que a “cabeça”
era diminuta como o Reino Português, os domínios não formavam um centro geográfico
capaz de irradiar o poder do rei. Antes, estavam a légua e léguas de distância, separados
pelo mar, por colonos rebeldes e por administradores venais . 25
23 Para uma visão sintética de formação intelectual de D. Rodrigo de Sousa Coutinho ver a Introdução de Andrée
Mansuy Diniz Silva (dir.), D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Textos Políticos, Econômicos e Financeiros (1783-1811),
Lisboa, Ed. Banco de Portugal, 1993, pp. XI-LII. Sobre o contexto da ilustração em sua reflexão sobre a crise, ver Ana
Rosa Cloclet da Silva, Inventando a Nação. Intelectuais Ilustrados e Estadistas Luso-Brasileiros na Crise do Antigo
Regime Português (1750-1822). São Paulo, HUCITEC / FAPESP, 2006.
24 Para uma comparação entre a Prússia e a Inglaterra nessa perspectiva ver Rudolph Braun, “Taxation, Sociopolitical
Structure, and the state-building: Great Britian and Brandemburg Prussia”, in Charles Tilly, (ed.) Charles Tilly, The
formation of national states in Western Europe, Princeton, Princeton University Press, 1975.
25 Ver, sobre esse ponto o brilhante conjunto de ensaios de Laura de Mello e Souza, O sol e a sombra – política e
administração na América Portuguesa do século XVIII, SP, Cia das Letras, 2006.
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Outras travessias
11
rentável colônia no Caribe arrastara consigo vidas e propriedades de colonos franceses –
um episódio dramático que nem mesmo as forças napoleônicas haviam conseguido reverter.
Agindo em outra frente, a invasão da Península Ibérica por Napoleão em 1808, fora um
lance ousado no sentido de ganhar não apenas o controle político da península, mas
também o de suas colônias, mas ele se revelara um fracasso militar e político, mergulhando
a Península em uma profunda crise de legitimidade. - Portugal, ausente de seu rei,
refugiado nas Américas e a Espanha, igualmente acéfala e incapaz de estabelecer um
governo estável, seja sob as forças napoleônicas, seja sob os setores liberais que se
aglutinavam em torno da Constituição de Cádis (1812), documento que em breve se
tornaria referência política em toda a América Espanhola.
O movimento que se alastrava no conjunto da economia mundo desestabilizava os
Impérios e promovia uma profunda revisão de expectativas nas trajetórias de todas as
camadas sociais. Enfatizo aqui, particularmente, aquela camada de homens que dominavam
os signos da cultura e eram dotados de relativa fortuna, que em ondas sucessivas se
movimentaram entre a América e a Europa (em busca de formação cultural e oportunidades
de ascensão nos sistemas imperiais) e reversivamente, da Europa para a América, os
viajantes ilustrados, categoria peculiar de “vencidos da Revolução”. O impulso de deslocar-
se no espaço, torna-se, na dinâmica da crise, ferramenta de conhecimento e alimento de
processos comparativos que não nascem apenas dos imperativos da metodologia científica,
mas daqueles propiciados pelos novos campos de experiência em intensa transformação.
Que os homens de letras se tornem viajantes, ou reversivamente, que a experiência da
viagem se torne conteúdo integrante da carreira das letras e daí, para a experiência política,
é um dos traços distintivos desse tempo novo. Condorcet, comentando a viagem de
Bougainville, poderia colocar em dúvida o papel das viagens para o incremento do saber.
Seria realmente necessário deixar sua pátria em busca de mares distantes e povos e culturas
estranhos para fazer progredir o conhecimento? 26
Tal dúvida já não se colocaria para as décadas subseqüentes, onde o viajante letrado
ganhou o papel de produtor de novas classificações no mundo da natureza e de novas
semânticas no campo das instituições políticas e da invenção das nações antigas e novas.
12
A tormenta revolucionária que atingiu a toda a sua família levou René de
Chateaubriand à América, depois à Inglaterra e de volta à França, viagens que deram
combustível para suas reflexões sobre a história, o tempo e as revoluções, e para uma
imponente carreira literária. Seu prestígio literário trouxe alavancagem a uma breve e
intensa carreira política de Chateaubriand. Iniciada timidamente sob Napoleão, mas veio a
florescer plenamente com a Restauração Monárquica. Sob Luis XVIII, ele ocupou
sucessivamente as embaixadas de Berlim e Londres (1821), foi Ministro Plenipotenciário
no Congresso de Verona (1822) e Ministro dos Negócios Estrangeiros (1823). Sua 27
Poucos anos depois da viagem de Chateaubriand, teve início uma outra travessia,
com resultados notáveis para o conhecimento europeu sobre o novo mundo, aquela
protagonizada por Alexander Von Humboldt, outro jovem de fortuna e talento, que buscava
o conhecimento nas viagem interoceânicas tangidas (e favorecidas) pela tormenta
revolucionária. Esta imprimia sua marca de imponderabilidade sobre a racionalidade e o
27 Sobre as relações entre letrados e política no período ver Paul Bénichou, Le sacre de l’écrivain1750-1830 Essai sur
l’avènement d’un pouvoir spirituel laïque dans la France moderne, Paris, Librairie José Corti, 1973. Para um profundo e
erudito estudo sobre a obra política de Chateaubriand ver a “Introdução” do especialista Jean Paul Clément a
Chateaubriand politique- François-René de Chateaubriand De l’Ancien Régime au Nouveau Monde- Ecrits politiques,
Paris, Hachette, 1997. Sobre o seu papel na diplomacia ver Guy Berger, « Chateaubriand et la politique », Numéro Hors-
Serie, "Politique et Littérature", La revue des Anciens Élèves de l'Ecole Nationale d'Administration, Décembre 2003.
28 Ver François-René de Chateaubriand, Congrès de Vérone. Guerre d'Espagne. Négociations. Colonies espagnoles.
Edition originale, Leipzig ; Paris : Brockhaus : Avenarius, 1838.
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controle que costumavam presidir essas explorações. O próprio Alexander von Humboldt,
talvez o mais paradigmático viajante das Américas, acabou viajando pela América do Sul e
pelo Caribe entre 1799-1803, quando seu projeto original era o de acompanhar Napoleão na
expedição ao Egito. Quase ao mesmo tempo, um jovem dinamarquês, simpatizante de
Napoleão e dos ideários da revolução francesa, encontra-se como persona non grata em seu
país, depois de escrever em defesa da liberdade de imprensa. Emigrando para Paris, Conrad
Malte Brun viria a se tornar um dos maiores expoentes do pensamento geográfico francês e
um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Paris, a primeira de seu gênero, criada em
1823, cujas primeiras diretorias ele iria partilhar, precisamente com Humboldt e
Chateaubriand . Da Sociedade e de suas publicações se irradiariam poderosos movimentos
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29 Sobre a Sociedade de Geografia de Paris, ver Dominique Lejeune, Les Societés de Geographie em France et
l’expansion coloniale au XIXe siècle. Paris: Albin Michel, 1993.
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Comentando a emergência das repúblicas sul americanas e o reconhecimento da
República do Haiti pela França, assum se expressava Chateaubriand em polêmica pela
imprensa, no ano de 1826:
“A criação de novos povos diminui a importância relativa dos povos antigos. Antes, só
havia a Europa no mundo civilizado; dentro da Europa, não havia senão cinco ou
seis grandes potências, cujas colônias não eram senão apêndices mais ou menos
úteis. Hoje, existe uma América independente e civilizada; nesta América existem
seis grandes Estados republicanos, dois ou três menores e uma grande monarquia
constitucional. Estas nove ou dez nações, surgidas de um golpe em um dos pratos
da balança política, reduzem comparativamente o peso das monarquias européias.
Não é mais uma querela entre a França, a Áustria, a Prússia, a Rússia e a
Inglaterra, que modifica o destino da sociedade cristã. A diplomacia, o princípio
dos tratados de comércio e de aliança, o direito político, vão se recompor sobre
novas bases. Os velhos nomes, as velhas lembranças perdem (...) sua autoridade em
meio às recentes gerações (...) [e] em meio a jovens esperanças de um universo que
se forma de outras idéias”. 30
30 Chateaubriand, François-René de (1768-1848), « Polémique », in Oeuvres complètes Tomo VIII, Paris : Garnier, s.d.,
[ prob. 1861], p. 129
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horizonte filantrópico no qual a discussão normalmente se confinava. Ele alertava para o
perigo da grande concentração escrava na Ilhas do Caribe, que punha em risco não apenas o
destino dos colonos brancos naquelas ilhas, como a própria segurança dos Estados Unidos
da América do Norte, cujo sul escravista confinava perigosamente com o Caribe,
invertendo de forma notável, a análise geo-política feita por Condorcet quarenta anos antes.
Dois aspectos parecem aqui especialmente dignos de nota. O primeiro aponta para a
evidência de que a intensa aceleração da história operada entre os movimentos de
Independência das 13 colônias da América do Norte e aqueles que se desenvolveram na
América Ibérica iria produzir uma notável rotação dos elementos nodais da crise sistêmica,
colocando na defensiva a Europa do continente e conduzindo à periferização dos reinos
ibéricos. O segundo aponta para a crise Americana naquilo que ela tinha de específico – a
peculiaridade de suas questões territoriais e a centralidade da questão escravista nesse
processo.
31 Humboldt, Alexander von, HUMBOLDT A VON. 1814/1825. Relation historique du voyage aux régions équinoxiales
du Nouveau Continent, fait en 1799, 1800, 1801, 1802, 1803 et 1804, par A. de Humboldt e A. Bonpland. Rédigé par
Alexandre de Humboldt. Paris, vol. III (1825), p. 389. O ensaio foi publicado em separado como HUMBOLDT A VON.
1845/1862Essai Politique sur l`Ile de Cuba, avec une carte et un supplément qui renferme des considérations sur la
population, la richesse territoriale et le commerce de l`Archipel des Antilles et de Colombia, 2 vols., Paris, Librairie Gide
et fils 1826
16
Olhando para o Império Português, com a perspectiva das transformações que
se operavam na economia mundo, voltemos, agora, para D. Rodrigo, que também teve que
experimentar uma longa e decisiva travessia. Coube-lhe assumir um grande protagonismo
na migração da família real portuguesa para a América e na instalação da corte e do
governo do Império no Rio de Janeiro. Nesse papel, foi levado a decisões que muito se
distanciavam dos os judiciosos planos que ocupavam por ele elaborados, quando projetava,
a partir do Reino, o programa de reformas necessário para soldar a unidade do Império.
Longe de cumprir um programa pré-estabelecido pela clarividência dos ilustrados, a
migração da máquina metropolitana de governo em direçao à sua mais importante
possessão viria tensionar até seu limite a visão que D. Rodrigo tinha da convergência de
interesses entre o Reino e os domínios e desvelar toda uma gama de conflitos.
O papel que ele desempenhou nessa travessia, como personagem emblemático
da crise, aproximava-o de muitas outras travessias entre a Europa e América, de
« vencidos da Revolução », viajantes ilustrados, naturalistas, membros da nobreza,
desertores, soldados desmobilizados, homens que, nas palavras de Chateaubriand haviam
visto « nascer e morrer um mundo », expressando de forma lapidar uma nova forma de
pensar o tempo e a história, em que o passado não servia mais de modelo ao presente . 32
17
Silva, foram casos paradigmáticos dessa política de formação de quadros, da qual os
deslocamentos geográficos formavam parte essencial, seja para promover o necessário
desenraizamento e adquirir a visão de conjunto do Império, seja para apropriar-se dos
centros mais adiantados. A relativa prosperidade comercial vivia pela metrópole favorecia
essas políticas e alimentava o otimismo que transparece nas avaliações de D. Rodrigo.
Entre 1789 e 1806 o comércio geral português quadruplicou, ganhando espaço na
triangulação que se fazia a partir de Londres, com mercadorias coloniais e também com
manufaturados ingleses, já que o ouro deixava de ser a base fundamental do comércio
externo português.
De certo modo, a trajetória de Hypolito José da Costa (1774-1823), iniciada nos
quadros da política ilustrada, expressa de forma contundente o modo como a força dos
tempos novos impunha um caráter inesperado na viagem, sem que ela deixasse de ser
estratégia de conhecimento e preparo para a vida pública. Nascido naquele extremo da
América Portuguesa, ferrenhamente disputado aos espanhóis – a Colônia do Sacramento –
para onde devia levar a ambicionada “fronteira natural” mencionada na Memória, ele gozou
dos bons auspícios de D. Rodrigo. Foi enviado muito jovem a Portugal para fazer seus
estudos e, de lá, enviado por ele para conhecer a emergente república americana, com a
missão de conhecer suas novas técnicas industriais, no momento mesmo em que D.
Rodrigo redigia suas judiciosas considerações sobre o progresso econômico do reino.
Nessa viagem, divergindo do programa cuidadosamente traçado, ele filiou-se à maçonaria.
Nomeado para a Imprensa Real em 1801, fez nova viagem oficial, à Inglaterra e à França,
para comprar equipamentos para a Imprensa Régia.34 No retorno, foi feito prisioneiro pela
inquisição, de cujos calabouços escapou, vestido de criado, através da Espanha, indo
estabelecer-se em Londres, de onde começou, em 1808, a publicar o Correio Braziliense,
jornal que, circulando entre os dois mundos e difundindo-se pelas várias partes da América
Ibérica, iria constituir uma interlocução essencial dos acontecimentos que permeavam a
crise do Império Português em sua inserção americana e sistêmica, em companhia de
muitos outros jornalistas portugueses que iriam fazer de Londres um pólo de difusão do
debate político sobre os destinos do Império . 35
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Um roteiro não muito distinto daquele seguido pelo jovem François René
Chateaubriand que, procurando fugir da tormenta revolucionária, foi também aportar nos
Estados Unidos, não em busca da técnica e da indústria, mas da liberdade e inocência do
homem primitivo que ele acreditava encontrar nos indígenas americanos.
Pensada à luz da crise, vale dizer, do imprevisto, da necessidade de adaptação de
idéias estabelecidas a novas e desafiadoras circunstâncias, a vinda da corte ganha uma nova
inteligibilidade. Pode-se, por um lado, iluminar o deslizamento de significados, próprio dos
momentos em que a eficácia dos antigos modos de agir é posta à prova por situações
inesperadas . Implica em sublinhar, naquele processo, algo que é próprio do nascimento da
36
19
Por essa razão, sublinhar o caráter insólito da transmigração da corte é salutar
para nos ajudar a repensar este processo em seu próprio tempo e em seus desdobramentos,
por mais que saibamos que o alvitre da mudança da corte tenha sido pensado em outros
momentos e conjunturas38. No início do século XIX, quando a territorialidade era já há
muitos séculos um apanágio dos estados monárquicos, desterritorializar a coroa e a corte e,
com a elas, a sede do poder, implicava em repercussões enormes no plano do Império
Português e em todo o contexto europeu e americano. Assim, o esforço de re-colocar a
vinda da corte em sua contemporaneidade significa considerar que, se é verdade que a
fundação de um Império nos trópicos reverberava também utopias há muito inscritas no
imaginário da época moderna, retemperadas com as tinturas da Ilustração, o movimento
concreto que se fez em 1808 era algo de novo e inusitado, um movimento que rompia com
a ordem, que respondia a desafios coevos e abria perspectivas imprevistas para os atores
políticos das duas partes do Império, o Reino e o ultramar americano, unidos e separados
pelo rei ausente.
Entretanto, sem esquecer esse caráter insólito e inusitado, devemos também ter
atenção para aquilo que a mudança da corte partilha com os grandes movimentos de seu
tempo, vale dizer, uma sucessão de diásporas, em grande abrangência geográfica, no curto
espaço de pouco mais de uma geração, e que começou precisamente pela fuga (e patético
retorno) de um casal real e pela emigração de grande parte da nobreza francesa.
É assim que seria o mesmo D. Rodrigo, que tão bem formulara a idéia da
complementaridade indissociável entre colônia e metrópole e a pertinência do exclusivo
comercial, aquele que promoveria a abertura dos portos da América Portuguesa ao
comércio com as nações amigas, medida à qual se seguiria a supressão da lei que proibia a
instalação das manufaturas na América. Da mesma forma, este que se apresentava como
um apólogo das reformas pombalinas, em particular aquelas que deram a conformação a
todas as capitanias/províncias do Império de um sistema que deveria estar voltado para um
estados nacionais na América Latina - apontamentos para o estudo do Império como projeto. In: José Roberto do Amaral
Lapa; Tamás Szmrecsányi. (Org.). História econômica da Independência e do Império. 1 ed. São paulo: HUCITEC, 1996,
v. 1, p. 3-26. Para uma visão do enlace entre os dois processos, a partir do Brasil, ver João Paulo Garrido Pimenta, O
Brasil e a América espanhola (1808-1822), Tese de Doutorado FFLCH, USP, 2004.
38 Ver, sobre isso, Maria de Lourdes Vianna Lyra, A utopia do poderoso império - Portugal e Brasil: bastidores da
política: 1798-1822
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centro único, o erário régio de Lisboa, viria a presidir a instalação do erário régio no Rio de
Janeiro, criando no interior do sistema uma nova e perturbadora polaridade.
Tudo se passava como se, naqueles breves e intensos anos vividos no Rio de
Janeiro, cada gesto, ao procurar responder aos sucessivos desafios de um cotidiano cada
vez menos previsível, estivesse destinado a desconstruir os sentidos cuidadosamente
projetados nas antigas intenções.
A guerra e a invasão apartavam o reino dos domínios, interrompendo os fluxos
mercantis e fiscais, e ferindo eu seu cerne a idéia de uma interdependência econômica entre
as duas porções do Império : o Brasil podia viver sem Portugal e, sendo agora, o lugar em
que se assentava a sede da monarquia, impunha-se abolir a proibição do desenvolvimento
das manufaturas, essência da divisão do trabalho que era defendida na memória de 1797, o
que, de fato se fez com o Alvará de 28 de janeiro de 1808. O texto da Carta Régia que
determina a abertura dos portos deixa transparecer o travo da hesitação e da transitoriedade
- « sou servido ordenar interina e provisoriamente, enquanto não consolido um sistema
geral que efetivamente regule semelhantes matérias”, ao mesmo tempo em que se justifica
a medida « por se achar interrompido e suspenso o comércio desta capitania, com grave
prejuízo de meus vassalos e da minha Real Fazenda, em razão das críticas e públicas
circunstâncias da Europa; e querendo dar sobre esse objeto alguma providência pronta e
capaz de melhorar o progresso de tais danos”. 39
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territorial integrado, onde as relações mercantis entre o Reino e a América eram
« internas » e um territorialidade americana com feições autônomas, onde o comércio com
Portugal tornava-se tão « externo » quanto o era o comércio com o resto do mundo, para
fins de cálculo tarifário. Note-se, por exemplo, o tratamento que se dava em janeiro de
1809, um ano depois da abertura dos portos, a essa questão, procurando resgatar a diferença
entre o comércio de mercadorias « de propriedade » de portugueses ou transportadas em
embarcações de origem portuguesa, e os de outra proveniência. O Decreto de 28 de janeiro
de 1809 isentava dos direitos de importação as mercadorias estrangeiras vindas dos portos
de Lisboa e Porto, que aí tivessem pago o referido imposto, modificando o estabelecido na
Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que estabelecia a tarifa de 24% para as mercadorias
estrangeiras, independentemente de sua procedência, assim como do Decreto de 11 de
junho do mesmo ano que reduzia para 16% aquelas que fossem de « propriedade
portuguesa, importadas em navios nacionais”, quando procedentes de Lisboa e Porto, tendo
lá pago os competentes direitos. A medida se fazia por não convir “que paguem uns mais
direitos que os outros, o que faria embaraço no giro do comércio e causaria dano às
transações mercantis”, sublinhando seu caráter de provisoriedade, enquanto não eram
dadas “outras providências sobre tão importante objeto” . Reafirmando uma acepção da
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nação como equivalente ao conjunto do Império, com sede no Reino, está a Legislação
protegendo as matérias primas para as fábricas nacionais Alvará de 18 de abril de 1809
isenta de direitos as matérias primas de uso das fábricas e concede outros favores aos
fabricantes e da navegação nacional (1809). Ela o faz, entretanto, invertendo o princípio da
complementaridade, propondo-se a fomentar as manufaturas do Estado do Brasil, igualado
assim, como território da nação, ao Reino.
A busca da preservação dessas relações privilegiadas, sem ferir os preceitos da
abertura comercial, iriam, como se sabe, ser o grande tema da discórdia das classes
mercantis, crescendo em azedume até a ruptura política em 1822. De qualquer modo, ainda
que por longo tempo sobrepostas as noções de liberdade comercial e as de privilégio
mercantil, a abertura comercial estabelecia com crescente nitidez essa territorialidade
americana, que tinha agora, frente ao Reino, uma externalidade cada vez maior, tornando
cada vez mais logínquo « o sacrossanto princípio da unidade » defendido dez anos antes.
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Mas vale também lembrar que a legislação do período tampouco estabelecia a liberdade do
fluxo mercantil entre as capitanias, silêncio que não deixa de ser revelador de todo um
conjunto de ambiguidades que deveria se cronificar nas décadas seguintes, já que o
conceito de « exportação » e « importação » continuou a ser utilizada para designar a
circulação mercantil entre as capitanias.
Não resta dúvida que a criação do Erário Régio no Brasil, levada a efeito em 28
de junho de 1808 imprimia também uma modificação fundamental no sistema do Império,
criando no Rio de Janeiro, uma polaridade antes inexistente, para a qual deveriam fluir os
recursos que antes demandavam Lisboa, assim como aqueles provenientes dos novos
impostos que se deveria criar, para garantir uma base fiscal para a nova situação política.
As normas que definem sua criação expressam, à primeira vista, esse afã de organizar, de
racionalizar e de conduzir reformas, tão próprios ao estilo de D. Rodrigo. Mas a leitura
mais atenta daquela longa exposição, deixa logo transparecer o compromisso inevitável
entre o desejo de reforma e as necessárias concessões ao pragmatismo impostas pelas
dificuldades da situação nova, pela falta de funcionários adequados, pela imensidão do
território e, não menos importante, pela trama dos interesses que passavam a jungir os
« portugueses da América » às novas oportunidades criadas pela proximidade do poder. O
tratamento que aí se dada aos contratos é um exemplo eloquente desse deslizamento, pois,
lado a lado com as afirmações que enfatizavam a necessidade de reduzir ao mínimo as
rubricas contratadas, deixam-se abertas as possibilidades para a continuidade daquelas
práticas antes tão criticadas. O texto legal determina que não se podem mais contratar as
rendas das alfândegas, as da chancelaria-mor, algumas passagens de rios e registros
(Paraíba, Paraibuna, Juruoca, Taguaí e Parati); o subsidio do aguardente da terra, o dízimo
do açúcar; o equivalente do contrato do tabaco; o rendimento da casa da moeda, a
ancoragem dos navios e os direitos do sal. Logo abaixo, no artigo XII, deixa-se aberta a
possibilidade para que “quando o Presidente [do Erário] julgar necessário para o aumento
das rendas sobreditas que algumas se deve contratar”, deve fazê-lo, “mas proporá para eu
determinar o que for servido”. Na mesma direção, o artigo XIII considera ser “impraticável
que algumas das minhas rendas cobradas em espécie possam ser administradas, sem que se
evapore grande parte do seu produto nas mãos dos prepostos, que é preciso criar para o
recebimento dela e sua redução a dinheiro, maiormente em um país tão dilatado e falto por
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ora de Ministros letrados que possam ocorrer com a necessária jurisdição à efetiva cobrança
das mesmas rendas, sem os subterfúgios, delongas e prevenções que costumam iludir os
juízes ordinários e câmaras das vilas do sertão do Brasil”. Desse modo, mantém como
submetidas à contratação rendas como o dízimo do pescado, a vintena do peixe salgado,
passagens pequenas e outros semelhantes ramos “cuja fiscalização absorveria em ordenados
ou salários das pessoas nela empregadas, a maior parte de seu produto anual”, além dos
vultosos contratos gerais da coroa, como o do tabaco, da urzela e do pau Brasil .
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capitanias em enviar as receitas para o Rio de Janeiro, seja pelas mazelas da evasão que se
operava no sistema de contratos, não se deve exagerar o sentido centrípeto dessa reforma
fiscal. Do mesmo modo que no caso da abertura dos portos, os mesmos movimentos
destinados a financiar a implantação da Corte no Rio, com seus imensos custos
administrativos e militares, criavam também ao lado da pressão extrativa, a virtualidade de
um aumento da renda no plano das capitanias, suscitando resistências e hipóteses de
autonomias no plano local. Não por acaso seriam precisamente estas rendas que seriam
atribuídas, décadas depois, à jurisdição das províncias, reconhecendo, na verdade, uma
situação de fato : a dificuldade em fazê-las reverter ao centro.
No conjunto, o traço mais notável da atividade legislativa desses primeiros anos
da presença da corte na América é que os interesses daqueles que antes eram apenas
« portugueses da América » passam a ganhar importância e a ser contemplados em sua
especificidade, apressando-se o administrador, em nome do Regente, a mostrar cuidado por
suas necessidades mais prementes.
Chama a atenção, por exemplo, a junção, no mesmo instrumento jurídico, do
imposto sobre a compra e venda de bens « de raiz », à criação de um imposto que, pela
primeira vez, distingue o escravo « ladino » (já habitante da América), dos escravos recém
chegados da África. De forma sutil, o enunciado justifica a imposição sobre compras e
vendas comoum imposto « menos gravoso », tido como um « método de arrecadação mais
suave », para que os súditos « no uso do direito de propriedade tenham a maior liberdade,
no que for compatível com o interesse da causa pública », reafirmando o compromisso da
Coroa com a propriedade escrava . O instrumento se completa com outro que transforma a
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uma situação que atingia as capitanias/províncias de forma distinta, trazendo poder a uma
parte, enfraquecendo outra, criando em todas novas expectativas e demandas.
De um lado, como observamos acima, a separação que a guerra e a invasão
impunham entre o reino e os domínios americanos, interrompendo os fluxos mercantis e
fiscais, iria ferir o coração mesmo da idéia de uma interdependência econômica entre as
duas porções do Império e da especial condiçao geográfica louvada por D. Rodrigo na
memória de 1797: o Brasil podia viver sem Portugal e, sendo agora, o lugar em que se
assentava a sede da monarquia, impunha-se abolir a proibição do desenvolvimento das
manufaturas, essência da divisão do trabalho que era defendida na mesm memória. Por
outro lado, a necessidade urgente de dotar a coroa de uma base fiscal capaz de responder a
um enorme conjunto de despesas destinadas a instalação da corte tornaram mandatória a
abertura comercial e a imposição de uma tarifa de importação adequadamente baixa para
prover, de forma extensiva, os recursos necessários, mesmo sob pena de ferir os interesses
dos comerciantes estabelecidos no Reino.
Talvez o ponto mais importante a ser enfatizado aqui é que, se a sede da
monarquia iria se estabelecer na América, ela deveria forçosamente escolher um centro
único, pois não se tratava mais de uma reformulaçao administrativa mas do proprio centro
do poder, de onde deveriam emanar as ordens para todo o Império.
A constituição de um centro político na América não era tarefa fácil, não apenas
pela dificuldade em gerir o imenso território, como pele fato de que ela iria colocar
intransponíveis dificuldades à gestão dos negócios e da administração nas duas partes do
Império. Exemplo expressivo dessas dificuldade é o fato de que, já em 1809, mal liberto
Portugal de invasão estrangeira, o Pará e o Maranhão voltam a tratar suas questões
judiciárias no antigo Reino , em razão da maior proximidade em que estava da Praça de
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Lisboa do que do distante e quase inatingível Rio de Janeiro. Por outro lado, fatos
perturbadores emergiam também do antigo centro, fomentando autonomias e
desobediências dos funcionários agora separados do Rei por um oceano de distância e
ressentimentos, lançados à uma condição periférica que tenderia a crescer com o
prolongamento da ausência. Esse deslocamento que se tornará mais visível a partir da
libertaçao do território português dos invasores franceses, transparecia na Representaçao
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feita por D. Rodrigo ao Regente, em 1810, em que este criticava a escolha de homens
inábeis para o governo do Reino, homens que se enfrentavam ao Regente em franca
desobediência, chamando a atenção sobre a « necessidade que há de fazer que os
Governadores do Reino obedeçam às suas reais ordens, por que neste ponto não posso
deixar de inisistir e de segurar com o devido respeito na augusta presença de V.A.R. que, se
eles hão de continuar a desobedecer formalmente a V.A.R. então é inútil escrever-lhes, nem
dar-lhes ordem alguma, pois que sustentar com semelhantes pessoas correspondência no
real nome de V.A.R. é autorizá-los a que façam o mal e realizem suas idéias e não dirigi-los
a que façam o que mais convém ao seu real serviço, que eles não querem executar ». 45
45 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, “Representação a S.A.R. o Príncipe Regente sobre a administração da Real Fazenda no
Reino”, de 31 de dezembro de 1810, in D. Rodrigo de Sousa Coutinho – Textos Políticos, Econômicos e Financeiros –
1783-1811, Lisboa, Publicação do Banco de Portugal, 1993, T II, pp.355-356.
46 Ver os artigos de Márcia Eckert Miranda, Ana Paula Medici, Erik e Vera, nesse volume.
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É ilustrativo observar o interesse e cuidado com que a Coroa procura prover os
meios para o avanço dos paulistas sobre os campos de Guarapuava, de modo a abrir o
estratégico caminho que ligava as capitanias de São Paulo e Rio Grande e estas à região das
Missões jesuíticas. É assim que se promulga, em 1809, uma, aprova « o plano de povoar os
campos de Guarapuava e de civilizar os indios bárbaros que infestam aquele território »,
medida que responde a decisões tomadas pela Junta convocada pelo Governador Franca e
Horta sob os auspícios da Coroa. O empreendimento visava a « dar princípio ao grande
estabelecimento de povoar os Campos de Guarapuava, de civilizar os índios bárbaros que
infestam aquele território, e de por em cultura todo o país que de uma parte vai confinar
com o Paraná, e da outra forma as cabeceiras do Uruguai que, depois rega o país de
Missões, e comunica assim com a Capitania do Rio Grande,” buscando estimular a
colaboração das forças milicianas dos paulistas em troca do acesso a sesmarias e ao
controle sobre a mão de obra indígena. A carta se alonga nos cuidados que devem ser
observados nos contatos com os indígenas, evitando “mortandades e crueldades” e
procurando atraí-los por meios pacíficos para a civilização. O comandante da expedição
deveria “tratar o índios como filhos a respeito do castigo que merecerem, porém não se
fiando nunca, nem descuidando, visto que a experiência tem mostrado que os povos
bárbaros, ou por um mal entendido, ou por qualquer acidente caem em atos de violência
não esperados”. No caso em que a força fosse inevitável e o comandante fosse obrigado a
“declarar guerra aos índios”, estabelecia-se a permissão para que as bandeiras devidamente
autorizadas pelo comandante da expedição pudessem penetrar nos campos para fazer
prisioneiros entre os índios. Ficava entendido que “esta prisão ou cativeiro só durará 15
anos contados desde o dia em que forem batizados e desse ato religioso que se praticará na
primeira freguesia por onde passarem se lhes dará certidão (...) excetuando porém os
prisioneiros homens e mulheres de menor idade pois que nesses o cativeiro dos 15 anos se
contará ou principiará a correr aos homens da idade de 14 anos e nas mulheres da idade de
12 anos (...)”. Entendia-se também “que os serviços do índio prisioneiro de guerra poderão
vender-se de uns a outros proprietários pelo espaço de tempo que haja de durar o seu
cativeiro, e segundo e segundo mostrar a certidão que sempre o deve acompanhar. Os
prisioneiros de guerra feitos pela tropa se distribuirão pelos oficiais e soldados da mesma
tropa à exceção daqueles que for necessário deixar para o meu real serviço, no que
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recomendareis ao comandante que haja com maior moderação, pois desejo que esta não
sirva para desanimar a Tropa de Linha e Miliciana do bom serviço que espero me faça nesta
importante expedição”. 47
29
Ao mesmo tempo em que se priorizava a fronteira platina, no Atlântico Sul, os
negócios referentes ao tráfico de escravos começam a colocar em movimento uma nova
fronteira – aquela que conectava a América às fontes de provimento de escravos. Em
movimento que foi tido como acatamento das pressões inglesas, o Príncipe Regente assinou
o Tratado de 1810, no qual, pela primeira vez se estabeleceu, por escrito, uma condenação
formal à desumanidade do tráfico. Fazendo eco à Revolução de São Domingos, o tratado
mencionava, além das referidas intenções humanitárias, o perigo da introdução de uma
população “de espírito faccioso”, capaz de ameaçar a ordem da porção americana do
Império. A Coroa portuguesa propunha-se, assim a colaborar com a Inglaterra em seu
combate ao tráfico, comprometendo-se a restringir a permissão do comércio de escravos
exclusivamente às regiões africanas que eram possessões portuguesas. Entretanto,
precisamente nesse ponto (a definição de quais seriam as possessões portuguesas), o tratado
ocultava um pormenor curioso e significativo. A letra do tratado atribuía a condição de
possessão portuguesa, vale dizer, de regiões onde o tráfico seria lícito para os vassalos de
Portugal, regiões onde a soberania lusa não estava completamente estabelecida, e que eram
contestadas pela França. Desse modo ficava entendido que « as estipulações do presente
artigo não serão consideradas [que vedavam o tráfico] como invalidando ou afetando de
modo algum os direitos da coroa de Portugal aos territórios de Cabinda e Molembo, os
quais direitos foram em outro tempo disputados pelo governo de França, nem como
limitando ou restringindo o comercio de Ajuda e outros portos da África (situados sobre a
costa comumente chamada na Língua Portugueza a Costa da Mina), e que pertencem, ou a
que tem pretensões a Coroa de Portugal. Estando sua Alteza Real o Príncipe Regente de
Portugal resolvido a não resignar, nem deixar perder as suas justas e legitimas pretensões
aos mesmos, nem os direitos de seus vassalos de negociar com estes lugares, exatamente
pela mesma maneira que eles até aqui o praticavam ». Assim, em um mesmo movimento,
dava-se ao tráfico um sentido territorial, validando o comércio direto entre as porções
americana e africana do Império, e incrementava-se as pretensões territoriais portuguesas
na África, sob a proteção da Inglaterra, co-signatária do Tratado.
É evidente que, mesmo com essas concessões, o tratado deveria provocar
descontentamento e temor nos vassalos americanos, o que movia D. Rodrigo a buscar
o capítulo IV. Para uma visão da Questão Platina ao longo do Império, ver Wilma Peres Costa, A Espada de Dâmocles, o
Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império, SP, Ed. Unicamp/Hucitec, 1996, capítulos II e III.
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amenizar seus efeitos, em carta ao representante inglês no Rio de Janeiro. Tentando
argumentar com a injustiça da medida que se exigia do Príncipe Regente, em relação às
dificuldades que medida similar haviam experimentado na Inglaterra, ele queixava-se de
que « (...) na Grã Bretanha, a maioria do Parlamento britânico teve que lutar mais de vinte
anos antes de obter da oposição a abolição do tráfico dos negros. Agora, mesmo que uma
população exuberante encha entre o território (exíguo) das ilhas ... [Antilhas]..., ela quer
exigir que Sua Alteza Real de Portugal possa abolir subitamente um comércio que é o único
a poder fortnecer os braços indispensávies às minas e às culturas do Brasil. É evidente que
mesmo em um meioséculo Sua Alteza Real não poderá acabar no Brasil com este comércio
triste mas necessário, como desejaria muito se a coisa fosse compatível com o bom público
e a existência de seus povos. Um tal resultado pode ser obtido somente lenta e
progressivamente, e nunca pela força, procedimento que o Governo Britânico parece querer
adotar, que irrita sem produzir nenhum bem ». Ao mesmo tempo, ele invectivava contra o
apresamento de navios de bandeira portuguesa pelos ingleses, em tom altivo e ameaçador,
afirmando que aquelas ações faziam temer « Sua Alteza Real que o povo e os negociantes
portugueses cheguem a um ponto de irritação tal que se tornará difícil à Sua Alteza Real
reprimir as manifestações sem que resulte em vinganaças contra as propriedades inglesas
no Brasil, o que causaria uma pena imensa à Sua Alteza Real. Tudo isso poderia assim
arruinar em um momento os esforços constantes de Sua Alteza Real para fundamentar
sobre bases permanentes a aliança e a amizade perpétua entre as duas nações. » 50
50 Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho a Lord Strangford, enviado extraordinário e Ministro Plenipotenciário Inglês
no RJ (1811) AEB, 112, f. 522, citado em Pierre Verger, Fluxo e refluxo – do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e
a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX, São Paulo, Ed. Corrupio, 1897, p.301
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fronteira africana do tráfico, fazendo expandir a ocupaçao da Banda Oriental do Uruguai
pelas estancieiros-milicianos gaúchos com seus escravos) e dar a ela um enraizamento
territorial.
Por outro lado, em iniciativas que procuravam enraizar a Corte e dar a ela bases
materiais e políticas, desenhava-se, pouco a pouco, um centro na América, mas esse
processo era o mesmo que insuflava possibilidades centrífugas, cujos desdobramentos iriam
ganhar enorme complexidade, na media mesma do aprofundamento da própria crise que
enlaçava os destinos do Antigo Regime do sistema colonial na américa Ibérica. Havia aqui
uma profunda modificaçao no sentido da unidade que a Memória de 1797 postulara como
essencial. Se lá, a unidade do Império fazia desejável a divisão administrativa dos
« Brasis ». Isso não impedia (antes se sobrepunha) à concepçao que era cara à
administraçao pombalina : a de que as capitanias eram unidades administrativas e fiscais
separadas, subordinadas a um centro em Lisboa. Nessa concepçao as capitanias da
América, administradas por homens de confiança da coroa, igualavam-se as provincias do
reino, e fundavam uma unidade politica no interior do Império e sob a égide da Monarquia.
O rascunho de m centro no Rio impunha, como procuramos apontar, pulsões centrípetas
novas, buscando imantar o Rio de Janeiro como polaridade nova no interior do Império.
Não podia fazê-lo, entretanto, sem suscitar fundos ressentimentos e veleidades centrífugas
tanto no velho Reino, quanto naquelas partes do Estado do Brasil (em breve Reino Unido a
Portugal e Algarves), que a nova situação tornava mais distantes do centro de poder.
Elas iriam, como se sabe, estabelecer novas polaridades disputando a adesão e a
lealdade das Províncias, na exacerbação da crise entre 1820 e 1822.
A imposição do retorno
Olhando a partir de Portugal, é oportuno mencionar um último conjunto de
Memórias, que, escritas na Inglaterra, e depois em Portugal, iriam analisar o enlace entre a
Europa e América. Refiro-me aquelas escritas pelo jornalista português João Bernardo da
Rocha Loureiro, amigo e confrade de Hypolito José da Costa, que editou entre 1815 e 1824
o periódico O Português, publicado em Londres e voltado para a comunidade portuguesa
do Reino. Os Memoriais a D. João VI resumem os principais conteúdos de sua longa
51
51 João Bernardo da Rocha Loureiro, Memoriais a Dom João VI, edition ET commentaire par Georges Boisvert, Paris,
Fundação Calouste Goulbenkian, 1973.
32
militância liberal. Eles são especialmente notáveis como exatos contrapontos da visão
ilustrada, invertendo e nulificando aqueles pressupostos à luz dos danos causados a
Portugal pela permanência do Rei na América. Assim, diz ele “Que somos nós hoje ?
Ainda possuímos, é verdade, uma extensa porção de território tal e tanto que poderia, sendo
bem aproveitado, formar domínios mui poderosos para dez nações independentes. Porém,
como o possuímos nós? Por a mercê, desprezo ou ciúme das outras nações. Estamos tão
fracos e desmantelados (por culpa do governo) (...) que ao momento que fôssemos
acometidos por um inimigo poderoso, veríamos cair em seu poder os vários membros da
monarquia portuguesa”. Longe de garantir a unidade e a força do Império, os domínios se
apresentavam como sua fraqueza, pois a drenagem do poder e dos recursos para a América
expunham Portugal à rapacidade de seus inimigos, colocando-o à mercê da Espanha e da
Inglaterra. Perguntava-se “quem defende Portugal de ser presa de Espanha tão fácil como o
foi a Filipe II? Só o mau governo e fraqueza de Espanha. Quem tolheria aos Ingleses (...) se
quisessem, o mandar uma expedição a tomar posse das nossas ilhas e possessões da Índia?
(...)” . Portugal estava indefeso porque os seus poucos recursos eram desviados para o
Brasil e dilapidadas em ações agressivas contra Montevidéu. Distanciando-se da percepção
que, no final do século XVIII, olhava o futuro a partir do presente, vemos agora elevar-se o
tema do contraste entre o passado e o presente, quando lemos que “(...) muito hei dito em
geral (...) sobre o estado comparativo do que fomos e do que somos. A distância e o
contraste são tão conhecidos a todo o livre entendimento, que essa distância me poupa o eu
comparar miudamente os fatos de nossa história antiga e moderna para aparecer ainda mais
52
claro o paralelo de nossa miséria atual e da nossa passada grandeza”. A decadência
advinha do esgotamento dos recursos do reino, do desvio de todas as atenções da coroa para
o Brasil, e, sobretudo da humilhante ausência do Rei, que “não forma tenção de tornar a
Portugal e o abandona depois de restaurado. Assim não conta de aí tornar, faz como o que
largam umas casas e delas levam para a nova habitação para onde se mudam, quanto podem
levar e julgam que lhes pode servir de proveito. Sim Portugal, depois de tantos serviços,
está abandonado, reduzido ao estado de colônia e com um governo que pode fazer todo o
mal e nenhum bem”. 53
52 Memória II, pp. 90-92, publicada originalmente em O Português, vol. VI, n. 36, abril, 1817.
53 Idem, p. 117
33
A permanente cobiça da Espanha sobre o território Português só tem tido
impedimento na própria fragilidade política daquele país devido à natureza tirânica e brutal
de seu governo, incapaz de lidar com suas próprias questões internas. Agora entretanto, o
interesse da fusão pode ser beneficiado pelas próprias conveniências do equilíbrio europeu
e do legitimismo que tende a proteger as pretensões bourbônicas, pois « Portugal, senhor, é
uma pequena parte da Espanha, ou grande península talhada por a natureza (e ainda mais
por as conveniências da atual política européia) para fazer um só todo, unido por um só
governo. (...) »
De todos os modos, o retorno do Rei se impunha, superando os maus conselheiros
que o faziam acreditar que o único modo de recuperar Portugal seria fazer-se poderoso e
temido na América, ou teria que forçosamente escolher entre Portugal e o Brasil. Ora, se
esse poder fosse obtido através de invasões injustas aos domínios espanhóis, Portugal
ficaria exposto a represália e retaliações, na Europa. Para fortalecer-se em Portugal e no
Brasil, a única solução era “uma livre Constituição que os cimente e una estreitamente.
Depois dessa lei fundamental virá a liberdade de consciência e da imprensa, a segurança
real e pessoal, e a responsabilidade pública que darão aos dois países a estabilidade dos
orbes celestes »54
Sem o retorno do rei, as próprias nações poderosas que ditavam as regras da política
européia, tomariam a iniciativa de separar Portugal do Brasil, já que o desenho dos
territórios europeus se refazia de acordo com os seus interesses. Argumentava ele, com as
maquinações da Santa Aliança: “(...) pergunte-se a Gênova, Veneza, Parma Placência,
Guastalla, Noruega, Saxõnia, Polônia, Bélgica, Luca, Ragusa, etc. Etc. E logo milhões de
vozes me responderão : Olhai o que eles nos fizeram e vereis o que eles farão a Portugal se
nisso lhes for proveito. Não se pense agora que é de pouco proveito à política atual da
Europa o separar Portugal da obediência do Brasil. Pelo contrário é esse um ponto que eu
não duvido esteja ao presente em consideração do Areópago que formam as grandes
nações. Todas elas vêem claro que o Brasil, sendo bem governado e chegando ao estado de
grandeza que lhe cabe, pode vir dar leis à Europa, mormente tendo sempre um pé em
Portugal que lhe sirva de escala de comércio, telégrafo de luzes e de indústria. Que não tem
já feito na Europa sem aí ter um só ancoradouro a nascente República dos EUA, pobre
34
território que mal se pode comparar ao do Brasil ? (...) às grandes nações nenhuma conta
fará tirar Portugal ao Brasil para o dar a Espanha, porém faz-lhe boa conta o separá-lo de
Espanha e do Brasil. A Casa de Áustria tem tantos arquiduques !... Tem-se por vezes falado
tanto em dar um reino ao arquiduque Carlos !... »55. E demonstrava, citando um dos mais
finos analistas da política européia: « Portugal é de todo estranho à política geral do
Continente, que esse era já seu estado habitual quando o príncipe aí vivia e por isso, mais
fora do círculo e ordem geral estará agora que o rei mora noutro hemisfério. Em verdade,
mal podemos nós falar de um país como Portugal que não tem ainda um estado de assento,
pois não é ele destinado a ficar, como agora o está sendo, província dum reino americano.
Tal estado é contrário à natureza das coisas e à ordem geral da Europa que mal consente o
ser uma de suas partes colônia do Novo Mundo e o estar a Europa dependente do Brasil
para respostas em negócios europeus. »56
Desfazer essa que parecia uma insuportável anomalia iria exigir muitas outras
travessias – a do rei que retornava, a dos deputados das províncias do Reino do Brasil que
se dirigiam as Cortes e que depois voltavam, exercitando percepções, desenvolvendo novas
práticas, demandando outras margens.
56 M. de Pradt, L’Europe après le congrès d’Aix la Chapelle, faisant suite ao Congrès de Vienne Paris 1819, F. Béchet
aîné, in 8o de XXVIII. Apud, Memória III, citada acima, p. 131.
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vinda da corte, os homens que buscaram realizá-la tiveram que adequar seus planos a uma
situação inteiramente nova, que se desdobra entre 1808 e 1815, onde o conjunto dos
domínios americanos, que em 1797 era designado com “o genérico nome de Brasil”,
ganham uma dimensão de continuidade territorial, concretizada na constituição de um outro
Reino, o do Brasil que, embora Unido a Portugal e Algarves, definia-se com uma
imponderável virtualidade conflitiva, urgindo por soluções que iriam romper os limites do
projeto ilustrado.
No lugar de dois pólos administrativos, a formação de um centro único, desafio
complexo que teria que lidar penosamente com poderosas pulsões centrífugas no plano das
províncias e negociar permanentemente com uma ordem privada impregnada pela
escravidão que, vitaminado pela reiteração do tráfico até 1850, entretecia-se com a
construção do Estado nacional. De dentro também passava a emanar também um
imaginário territorial que priorizava um “sistema de fronteiras” distinto daquele que
orientara a estratégia da ilustração: na fronteira que ganhava crescente visibilidade, a região
platina, os estancieiros sulistas e suas forças milicianas sustentariam, ao longo do século, o
conflito endêmico na fronteira viva, por onde transitavam homens em armas, gado e
escravos. Na “fronteira invisível”, o vasto arco de interesses articulado em torno da
manutenção do tráfico africano consolidava-se como e da reinvenção da escravidão no
interior da construção do estado nacional brasileiro. Apoiado de dentro, o projeto teria a seu
favor uma conjuntura internacional que beneficiava o princípio dinástico e em que até certo
ponto, a necessidade de se contrapor a hegemonia britânica colocava as potências
européias no refluxo conservador, dispostas a aceitar contemporizações tanto nas
veleidades de expansionismo territorial quanto na questão do tráfico, em nome do princípio
dinástico.
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