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Revista Semestral da Associação dos Profissionais

Técnicos Superiores de Educação Social - 2020

praxis educare
Educação Social
e Cidadãos com
Deficiência
PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

FICHA TÉCNICA
PRAXIS EDUCARE
Número 7 - 2020

Direção
Fátima Correia
Sílvia Azevedo

Coordenação deste número


Rui Brito Fonseca

Conselho Editorial
Fátima Correia
Hugo Monteiro
Maria José Araújo
Rui Brito Fonseca
Sílvia Azevedo

Colaboram nesta edição


Cheila de Carvalho
Ernesto Candeias Martins
Filipa Coelhoso
Isabel Brito Fonseca
Joana Duarte
Rita Estrada
Sofia Oliveira de Sá Cachada

Design gráfico
Renato Soeiro

Periodicidade
Semestral

Data da publicação
Dezembro 2020

ISNN 2183-4830

Edição/Propriedade
Associação dos Profissionais Técnicos Superiores de Educação Social
www.aptses.pt geral@aptses.pt

Todos os artigos assinados são da responsabilidade dos autores.


É permitida a reprodução dos artigos publicados, desde que indicada a fonte.


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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

ÍNDICE
5 Editorial
Educação Social e Cidadãos com Deficiência
Rui Brito Fonseca

7 Inclusão Audiovisual – Sentir em Multiplataforma


Joana Duarte

16 O Desporto Adaptado em Portugal: Do Judo Adaptado ao Judo Inclusivo


Sofia Oliveira de Sá Cachada

31 A educação permanente e a aprendizagem ao longo da vida:


da lógica emancipatória à lógica da gestão de recursos humanos.
O contexto português dos adultos com deficiências e incapacidade.
Isabel Brito Fonseca

55 Cidadania e Deficiência
Desafios de uma Cidadania Plena
Cheila de Carvalho

70 Educação e (Des)Envolvimento para a Promoção Pessoal e Social da


Qualidade de Vida e Bem-estar
Filipa Coelhoso

76 Da Fantasia à Realidade na História de Vida de um Indigente com


Deficiência Mental. Estudo de caso biográfico em Castelo Branco.
Ernesto Candeias Martins

92 Da Demência à Pessoa: A Atenção que Faz Ver


Rita Estrada

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

EDITORIAL

Educação Social e Cidadãos com Deficiência

Rui Brito Fonseca

Instituto Superior de Ciências Educativas do Douro


rui.britofonseca@iscedouro.pt

Q uando me endereçaram o convite


para assumir a coordenação científica e editorial
deste número da PRAXIS EDUCARE foi com
fácil de conseguir. Contudo, a dificuldade não
me desmotiva, tendo a tarefa sido árdua e
empolgante, para além de rejuvenescedora.
muita honra e sentido de responsabilidade que Como trazer algo novo para a discussão? Que
aceitei tal empresa. pensadores e investigadores convidar? Como
No âmbito da Educação Social, o tema que me priorizar?
foi proposto apresentou-se como deveras A primeira opção que tomei foi escolher autores
desafiante. Olhar para as questões relativas aos cujo conhecimento sobre o assunto em
cidadãos com deficiência (direitos, apoios, boas discussão fosse aprofundado, mas cuja
práticas, integração laboral...) sem cair na abordagem do tema fugisse ao mais clássico e
vulgaridade e sem repetir o que se vem habitual. Assim, dos vários autores que
publicando sobre o tema, não seria um objetivo contatei, poucos foram aqueles que não

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

aceitaram de imediato o desafio. Por essa irá agitar as águas da Educação Social e da
disponibilidade e altruísmo, estou-lhes sociedade portuguesa. Aos autores deixar um
profundamente grato! abraço fraterno, por tudo aquilo que os seus
Depois, tinha como objetivo o ecletismo de artigos farão por todos nós, na senda da
abordagens, considerando que as questões mudança social.
relativas aos cidadãos com deficiência são O caminho para a leitura e para a reflexão está
tantas que me pareceu interessante uma lançado. É este o desafio!

multiplicidade de abordagens, capaz de fazer
questionar os leitores, para além do óbvio,
fazendo-os olhar para o outro lado do muro e
ver a floresta sem esquecer a árvore. Julgo que
essa invulgaridade de abordagens foi
conseguida, com todo o mérito para os autores
que trabalharam afincadamente e em
contrarrelógio, no sentido de produzir algo
inédito e com valor académico e social.
Para além de produzir conhecimento válido e
com interesse para o trabalho dos Educadores
Sociais e outros profissionais que trabalham em
áreas conexas, tive como preocupação que
este número fosse demonstrativo da
transversalidade de meios e espaços
profissionais, onde a necessidade do trabalho
dos educadores sociais é já uma realidade
premente e objetiva.
É com satisfação que vejo que esse ecletismo
de abordagens, visões múltiplas e invulgaridade
de temáticas foram conseguidos. Num só
número foi possível relacionar o tema central
com questões diversificadas como (sem
qualquer ordem de enumeração): a
acessibilidade audiovisual, o desporto
adaptado, a educação permanente e a
aprendizagem ao longo da vida, os desafios de
uma cidadania plena, a promoção pessoal e
social da qualidade de vida e bem-estar, a
indigência e a deficiência mental e, por fim, um
olhar sobre a demência.
Para finalizar, resta-me agradecer de novo à
Direção da APTSES pelo convite para
coordenar cientificamente e editorialmente este
número da PRAXIS EDUCARE, pois considero
que este número, pelas razões já apresentadas,

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Inclusão Audiovisual – Sentir em Multiplataforma

Joana Duarte

Técnica Superior do Departamento de Supervisão da


Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC)
joana.duarte@erc.pt

Resumo

A tradução audiovisual (TAV) é uma área de pesquisa que tem sido bastante explorada no meio
académico português nos últimos dez anos, contudo, é no mercado audiovisual que as grandes
conquistas são mais percetíveis. Entre os recursos que possibilitam quebrar as barreiras que tornam
as informações inacessíveis estão a legendagem (LEG), a língua gestual portuguesa (LGP) e a
audiodescrição (AUD).
A pandemia de Covid 19 veio trazer-nos da sombra a realidade ainda desconhecida por muitos e
partilhada por alguns, a necessidade de tornar os serviços audiovisuais em multiplataforma cada vez
mais acessíveis ao cidadão com deficiência auditiva e visual.
Dos objetivos de regulamentação propostos pela União Europeia, através da Diretiva AVMS, até à
regulamentação interna, o caminho a fazer pelos meios de comunicação audiovisual em estreia
colaboração com o regulador serão passíveis de promover o nivelamento dos serviços audiovisuais,
bem como entre os media tradicionais e os “novos media”.

Palavras-chave: Inclusão, Acessibilidade, Serviços Audiovisuais

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Introdução

D e acordo com Sassaki (2003), «O


paradigma da inclusão social consiste em
obter informação, se queixam de serem alvos
de discriminação numa sociedade que cada vez
tornarmos a sociedade toda um lugar viável mais propugna pela inclusão.
para a convivência entre pessoas de todos os O facto de os meios de comunicação poderem
tipos e condições na realização de seus ser vistos "como um meio (fornecimento de
direitos, necessidades e potencialidades.» informação), como mediador (processos
O presente e futuro dos meios de comunicação deliberativos, ativismo), como um ator político
social e das realidades das plataformas online (os media e os media-profissionais), como um
passam indiscutivelmente pela regulação, direito de cidadania (direitos de comunicação),
trazendo desafios e oportunidades no sentido como uma ferramenta para ou indicador de
de se manterem os princípios fundamentais da aumento da igualdade de oportunidades, mas
regulamentação dos meios de comunicação no também como um campo de batalha para o
mercado único, como a liberdade de significado" (ECREA 2007) gera muita
expressão, o acesso à informação, a discordância e sugere que o debate sobre
diversidade e proteção dos públicos, soluções de acessibilidade televisiva para os
especialmente aqueles que pela sua idade ou espectadores deficientes continuará.
por terem alguma deficiência os coloca numa No século XXI, a acessibilidade aos meios de
posição de alguma fragilidade. comunicação social suscitou cada vez mais
Entre os recursos que possibilitam quebrar as interesse e importância, à medida que a
barreiras que tornam as informações consciência da necessidade de atender os
inacessíveis estão a legendagem (LEG), a língua cidadãos com deficiência e de combater a
gestual portuguesa (LGP) e a audiodescrição discriminação cresceu.
(AUD).
Não obstante a triangulação entre os
destinatários das mensagens, pessoas com
surdez, cegueira ou baixa visão, os operadores
de comunicação social ou serviços audiovisuais
a pedido e o legislador, torna-se, não
raramente, uma disputa entre meios e
interesses que não visam prestar um serviço de
acordo com as necessidades dos públicos,
mas um cumprimento, até deficitário, de
imposições legais.
Não raramente, em ocasiões como a que
estamos a viver em 2020, por efeito do Covid
19, os telespetadores com necessidades
especiais, em razão de qualquer deficiência que
lhes impossibilita o acesso à informação da
mesma forma que os telespetadores cuja
audição e visão não são fatores impeditivos de

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

I - Tradução Audiovisual (TAV) A audiodescrição e a legendagem para cegos e


e os meios de comunicação surdos contêm estratégias específicas que
deverão correlacionar-se com o público-alvo.
social audiovisual
Para o efeito, é essencial conhecer-se este
público de forma a colocar ao dispor destes as
melhores ferramentas e técnicas de
tradaptação2 que correspondam a critérios
A contínua evolução tecnológica e a sua
tangíveis e inteligíveis.
acessibilidade lateralmente conduziram à
substituição dos padrões culturais e dos Além das ferramentas tradicionais, no mundo
hábitos de consumo, sendo possível afirmar atual, em que o acesso à informação é
que o visionamento em múltiplo ecrã, também contundente e exigente, a oferta de uma
designado por multiplataforma, acompanha o informação ao minuto impõe necessidades de
domínio dos produtos audiovisuais na transferência da informação e desenvolvimento
sociedade fragmentada, onde o conceito de de estratégias capazes de dar resposta à
cultura se massificou e estratificou. tradução dos meios e, em especial, dos
conteúdos disponibilizados em linha. A
Giles e Middleton1 (1999) asseveravam que
tradução ou interpretação simultânea são as
estamos perante uma “cultura eletrónica”, em
opções mais imediatistas embora nem sempre
que os media assumem um papel fundamental
sirvam o interesse do público com
na disseminação da língua e cultura. Neste
necessidades especiais.
contexto, torna-se fulcral salientar a importância
dos instrumentos de tradução linguística como A disponibilização dos conteúdos audiovisuais
forma a garantir-se uma correta transmissão da em linha com ferramentas capazes de dar
língua, da cultura e garantir a interculturalidade resposta às necessidades destes públicos não
dos meios. deve ser descurada, aproveitando para o efeito
as sinergias do desenvolvimento tecnológico e
A sociedade tecnológica constitui cada vez
a acessibilidade associada.
mais modelos de migração da informação, em
função das necessidades dos grupos de Ao longo dos anos, diferentes autores
receção o que incrementa a possibilidade de apresentaram modalidades divergentes de TAV,
novas formas de TAV. Segundo Chaume (2004, sendo de referir as apresentadas por Chaume
p. 31) estas podem ser entendidas como meios (2004) e Gambier (2004), que indicam dez e
técnicos que permitem a transferência doze modalidades respetivamente. Hernández
linguística, de um texto audiovisual de partida Bartolomé e Mendiluce Cabrera (2005) que
para um texto de chegada, independentemente elencam dezassete e, mais tarde, Díaz Cinta
do modo oral ou escrito da língua de partida. (2007) que reconhece onze modalidades de
TAV.
Além das múltiplas formas e motivos pelos
quais a TAV adquire preponderância no Numa leitura genérica e recorrendo àquelas que
panorama audiovisual, aponta-se ainda a melhor atendem aos públicos com deficiência
relevância dos grupos minoritários que, auditiva e visual, elencamos as seguintes:
enquanto consumidores de meios de
comunicação social audiovisual,
A legendagem para surdos – destinada a
nomeadamente aqueles que têm deficiência
pessoas com dificuldades auditivas nos
visual e auditiva, se tornam cada vez mais
diferentes graus de gravidade. Pode ser intra ou
relevantes neste contexto.
interlinguística, sendo que, na primeira o texto

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de partida oral na língua partida é traduzido caminho a seguir para atender os espectadores
para uma língua de chegada no texto escrito e, com necessidades especiais.»
na segundam texto de partida e texto de De salientar que, até ao momento, apenas o
chegada partilham a mesma língua. A principal operador de serviço público utiliza a
diferença entre a legendagem comum e a legendagem em programas em direto o que
legendagem para surdos assenta na diminuição condiciona o espetro de espetadores para
do texto de chegada uma vez que a velocidade quem a língua gestual não é compreensível.
de leitura de um surdo é inferior. Regista-se
ainda a introdução de elementos
complementares à compreensão da mensagem A interpretação em língua gestual – tendo
oral, tais como sons da natureza, música, como público-alvo os surdos ou pessoas com
onomatopeias e outros elementos relevantes. dificuldades auditivas, a inclusão do intérprete
Em Portugal. A legendagem para surdos é uma de língua gestual no ecrã gera controvérsia.
ferramenta opcional que tanto pode surgir em Para Neves (2007), «na televisão, os intérpretes
DVD como no teletexto de uma telenovela ou de linguagem gestual assumem mais um papel
telejornal. Contudo, a legendagem usada nos – o dos atores/atrizes, utilizando uma linguagem
telejornais por se tratar de um programa em que é 'modulada' para se adaptar ao meio
direto, assume características diferentes, sendo específico. Tal como no caso da fala, que é
imediatista e não garantindo o desejável rigor ‘fabricada’ para parecer natural no ecrã, a
correspondente ao texto oral. linguagem gestual é adaptada pelos
constrangimentos que o meio lhe impõe. No
Em Neves (2005, 2007) apresenta-se as caso de os intérpretes serem 'encaixotados'
características que a legendagem para surdos num canto, ficam confinados ao espaço
deverá assumir como forma a aproximar-se das fornecido e assume um formato de ecrã,
necessidades do público, garantindo a eficácia retirando a amplitude ao movimento do braço e
da comunicação. da mão e colocando todas as assinaturas a um
Contudo, para Neves (2005) parece inevitável nível torácico não natural. Esta situação é
que, ao pretender fornecer um conjunto de menos percetível quando os intérpretes são
legendas igualmente adequadas para os surdos apresentados em média ou longas tomadas,
(minoria social com uma linguagem gestual mas nesse caso é a expressão facial que pode
como primeira língua), audição difícil ser perdida. Em ambas as situações, para
(telespectadores com audição residual) e os aqueles que conhecem e utilizam linguagem
ensurdecidos (pessoas com audição residual e/ gestual, a interpretação da linguagem gestual
ou memória auditiva), nenhum destes na televisão é um género próprio, onde a
destinatários seja suscetível de ser devidamente codificação e a descodificação são moldadas
atendido. pelo meio através do qual a língua é
Salienta ainda a investigadora que «todas as transmitida.»
categorias de espetadores, ainda que seja um Além do meio que condiciona a mensagem, ao
ideal que não possa ser cumprido, e embora a tradutor são exigidas competências semânticas,
tecnologia não permita que as legendas sejam mas também linguísticas e culturais.
‘construídas’ ou ‘adaptadas’ às necessidades O confinamento do intérprete de língua gestual
individuais de cada espectador, faz sentido no contexto da pandemia foi amplamente
aceitar a discriminação positiva como um discutido, importando refletir sobre a preferência
de um intérprete em presença em detrimento

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daquele que se encontra no canto inferior do II - Papel do legislador


ecrã. e do regulador
Se Portugal tem sido reconhecido a nível
europeu, no operador de serviço público, como
o país que mais horas de programas A Diretiva (UE) 2018/1808 do Parlamento
disponibiliza com interpretação em língua Europeu e do Conselho, 14 de novembro de
gestual, ainda se verifica existir um longo 2018 (Diretiva Serviços de Comunicação Social
caminho a percorrer em matéria de espaço em Audiovisual, doravante AVMS) vem reforçar o
ecrã que deverá ser ocupado pelo intérprete em papel das acessibilidades nos conteúdos
língua gestual. audiovisuais, especialmente nos considerandos
22 e seguintes3, nomeadamente no âmbito dos
compromissos assumidos ao abrigo da
A audiodescrição – ferramenta que visa dar Convenção das Nações Unidas sobre os
resposta às necessidades dos cegos ou Direitos das Pessoas com Deficiência.
pessoas com baixa visão. Trata-se de um As políticas da União Europeia, mais de vinte
processo de narração de elementos visuais anos e três alterações após a elaboração da
com valor semiótico, expressões faciais, ações Diretiva da Televisão Sem Fronteiras (TWF), a
de personagens, guarda-roupa e até momentos Comissão da Comunidade Europeia,
de silêncio. A audiodescrição pode ser intra ou apresentou, em 2007, uma "Proposta alterada
interlinguística, sendo ambos efetuados numa de diretiva do Parlamento Europeu e da Diretiva
perspetiva descritiva. No primeiro caso a 89/522/CEE do Conselho sobre a Coordenação
narração dos elementos visuais relevantes é de certas disposições previstas na lei, no
adicionada à dobragem do texto de partida e regulamento ou na ação administrativa nos
no segundo à banda sonora original. Estados-Membros relativas à prossecução das
Verifica-se que as diferentes modalidades de atividades televisivas". Essa proposta (Bruxelas
TAV visam abranger novos públicos, 29.03.2007 COM(2007) 170 final 2005/0260
especialmente aqueles que por força das suas (COD)), viu o título alterado para "Audiovisuais
necessidades carecem de maior atenção no Media Services Without Frontiers" e integrou
que diz respeito ao acesso à informação ou alterações técnicas decorrentes da
divertimento no que se refere aos serviços de implementação da televisão digital interativa
comunicação social e audiovisuais a pedido, (iDTV) e da televisão de protocolo de internet
esbatendo as necessárias assimetrias no que (IPTV).
concerne à disponibilização dos conteúdos em Contudo, é com a atual Diretiva (UE)
linha. 2018/18084 que se reconhece liminarmente a
Requer-se para tal, uma clara perceção do importância dos serviços audiovisuais a pedido
utilizador e do seu conhecimento para melhor ir e das plataformas de partilha de vídeo nos
de encontro às suas necessidades. hábitos de consumo, mormente como objeto
de regulação.
Pela Deliberação ERC/2016/260 (OUT-TV), de
30 de novembro de 2016, o Conselho
Regulador da ERC aprovou o Plano Plurianual
ainda em vigor, cujo ciclo se completa em 31 de
dezembro de 2020.

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Compete ao legislador e ao regulador, III - Em conclusão


integrarem nas políticas internas os
mecanismos de participação dos cidadãos com
necessidades especiais, permitindo-lhe um Conhecem-se cada vez mais iniciativas
maior e melhor acesso à informação, cultura, provenientes do meio académico e tecnológico
educação e entretenimento, através de língua no sentido de oferecer ao público com
gestual portuguesa, legendagem, necessidades especiais produtos audiovisuais
audiodescrição, de menus de navegação que garantam as melhores ferramentas de TAV,
acessíveis e outras ferramentas que possam vir pelo que se torna imperativo que na
a ser desenvolvidas no âmbito da sociedade triangulação entre os operadores, regulador e
digital. público-alvo presidam os conceitos de oferta de
informação e entretenimento acessíveis e
A implementação das obrigações e orientações cidadania inclusiva.
constantes do Plano Plurianual exigem um
alinhamento do setor com um conhecimento Revela-se ainda cada vez mais pertinente,
mais densificado do público-alvo. Seria mediante o conhecimento adquirido no
relevante que na recolha de informação dos contexto da pandemia Covid 19, que o acesso
Censos 2021 constassem elementos mais à informação por parte dos telespetadores com
contextualizastes sobre as deficiências necessidades especiais acarretará alterações
registadas pelos indivíduos, assim como do estruturais no acesso à informação, tendo os
agregado familiar em que se insere. Atualmente, operadores uma responsabilidade acrescida na
o regulador obtém este conhecimento pelas disponibilização da informação, especialmente a
associações e pelas queixas provenientes da que resulta do eminente interesse público e de
comunidade, contudo representam um espetro situações de emergência.
diminuto da realidade.
 O acesso à informação e entretenimento a
todos os cidadãos em multiplaforma permitirá
uma maior plenitude dos sentidos mesmo
quando estes se encontram diminuídos por
deficiências físicas. Sentir em multiplataforma
propicia uma cultura mais inclusiva e uma
cidadania ativa de todos os telespetadores
conducentes a um maior nivelamento social,
através de serviços de comunicação social
progressivamente mais acessíveis a pessoas
com deficiência.

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Notas serviços progressivamente acessíveis a pessoas


com deficiência visual ou auditiva, os Estados-
1 «[O]ur daily lives are caught up in eletronic Membros deverão exigir que os fornecedores de
technology; whether in formo f credit card serviços de comunicação social estabelecidos no
transactions, loyalty card data, library swipw-cards or seu território lhes apresentem relatórios periódicos.
apparently simpler formo f watching TV, heating a
(23) Entre os meios que permitem garantir a
meal in a microwave or listen to a CD. (Giles &
acessibilidade dos serviços de comunicação social
Middleton, 1999:238)»
audiovisual ao abrigo da Diretiva 2010/13/UE
2 "tradaptação" in Dicionário Priberam da Língua deverão contar-se, sem que esta enumeração seja
Portuguesa, disponível em: https:// exaustiva, a linguagem gestual, legendas para
dicionario.priberam.org/ surdos e pessoas com deficiência auditiva, legendas
tradapta%C3%A7%C3%A3o  faladas e descrição áudio. Essa diretiva não
Tradução, geralmente de material audiovisual, comp- abrange, porém, características ou serviços que
lementada com identificação de quem fala e com de facultem o acesso a serviços de comunicação social
scrição de efeitos sonoros ou musicais  audiovisual, nem características de acessibilidade
(ex.: tradaptação para deficientes auditivos). dos guias eletrónicos de programas (GEP). Por
3 Considerandos da Diretiva AVMS conseguinte, essa diretiva não prejudica o direito da
União destinado a harmonizar a acessibilidade dos
«(22) Garantir a acessibilidade dos conteúdos
serviços que permitem aceder aos serviços de
audiovisuais é uma condição indispensável no
comunicação social audiovisual, como sítios web,
âmbito dos compromissos assumidos ao abrigo da
aplicações em linha e GEP, ou a prestação de
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos
informações em matéria de acessibilidade e em
das Pessoas com Deficiência. No contexto da
formatos acessíveis.
Diretiva 2010/13/UE, a expressão «pessoas com
deficiência» deverá ser interpretada à luz da natureza (24) Em alguns casos, poderá não ser possível
dos serviços abrangidos por essa diretiva, ou seja, prestar informações de emergência de forma
os serviços de comunicação social audiovisual. O acessível às pessoas com

direito das pessoas com deficiência e dos idosos a deficiência. No entanto, tais casos excecionais não
participarem e a integrarem-se na vida social e deverão impedir a divulgação pública de
cultural da União está indissociavelmente ligado à informações de emergência através dos serviços de
prestação de serviços de comunicação social comunicação social audiovisual.»
audiovisual acessíveis. Por conseguinte, os Estados- 4 Considerando a Diretiva AVMS
Membros deverão, sem atraso indevido, garantir que
«(1) A última alteração substancial da Diretiva
os fornecedores de serviços de comunicação social
89/552/CEE do Conselho, posteriormente codificada
sob a sua jurisdição envidem ativamente esforços no
pela Diretiva2010/13/UE do Parlamento Europeu e
sentido de tornarem os conteúdos acessíveis a
do Conselho (5), ocorreu em 2007 com a adoção da
pessoas com deficiência, especialmente visual ou
Diretiva 2007/65/CEdo Parlamento Europeu e do
auditiva. Os requisitos em matéria de acessibilidade
Conselho (6). Desde então, o mercado dos serviços
deverão ser satisfeitos de acordo com um processo
de comunicação social audiovisual tem evoluído de
gradual e contínuo, tendo em conta as inevitáveis
forma rápida e significativa devido à convergência
restrições de ordem prática que possam impedir
atual entre a televisão e os serviços de Internet. Os
total acessibilidade, como programas ou eventos
progressos técnicos possibilitaram novos tipos de
transmitidos em direto. A fim de avaliar os
serviços e experiências para os utilizadores. Os
progressos realizados pelos fornecedores de
hábitos de visualização, em particular das gerações
serviços de comunicação social para tornar os seus

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mais jovens, mudaram significativamente. Embora o


ecrã de televisão principal continue a ser um
dispositivo importante de partilha de experiências
audiovisuais, um grande número de telespetadores
passou a utilizar outros dispositivos, nomeadamente
portáteis para ver conteúdos audiovisuais. Os
conteúdos televisivos tradicionais representam ainda
uma parte importante do tempo médio diário de
visualização. No entanto, novos tipos de conteúdos,
como os videoclipes ou os conteúdos gerados pelos
utilizadores, adquiriram uma importância crescente,
e os novos operadores, incluindo os prestadores de
serviços de vídeo a pedido e os fornecedores de
plataformas de partilha de vídeos, estão agora
consolidados. Esta convergência de meios
pressupõe a existência de um regime jurídico
atualizado a fim de refletir a evolução do mercado e
de alcançar um equilíbrio entre o acesso aos
serviços de conteúdos em linha, a proteção dos
consumidores e a competitividade.»


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Referências bibliográficas

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O Desporto Adaptado em Portugal: Do Judo


Adaptado ao Judo Inclusivo

Sofia Oliveira de Sá Cachada


Docente de Educação Física
sofia.cachada@gmail.com

“O Desporto tem o poder de superar velhas divisões


e criar o laço de aspirações comuns.”
(Nelson Mandela)

Resumo
O desporto apresenta um contributo fundamental na formação pessoal e social dos indivíduos e
quando se fala em Desporto Adaptado essa importância é ímpar. O presente artigo centra-se na
modalidade Judo, na sua vertente adaptada e referente à realidade portuguesa. Todavia, o Judo, na
sua essência e sem adaptações, face aos seus princípios e valores, alinhados com os valores do
desporto, assume-se como uma poderosa ferramenta para a promoção de uma sociedade mais
justa, mais equitativa. É essencial que todos os indivíduos tenham oportunidades de prática de um
desporto de todos e para todos.

Palavras-chave: Desporto Adaptado, Deficiência, Inclusão, Judo, Valores

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Introdução

O desporto é, por excelência, uma


poderosa ferramenta para uma sociedade que
dinamizador da promoção de inclusão social e
paridade de tratamento e oportunidades.
busca, a cada dia, ser cada vez mais equitativa O desporto para pessoas com deficiência,
e a sua boa prática proporciona benefícios conforme referem Horta et. al. (2009), iniciou-se
inegáveis não só a nível físico, mas também com o objetivo de apoiar o processo
psíquico e social a todos aqueles que o terapêutico. Esta prática surgiu no início do
praticam, sendo “ (...) um meio poderoso de século XX, com atividades dirigidas às pessoas
moldar corpos e almas; ou seja, é agente de com deficiência auditiva, visual e motora, tendo
um criacionismo que não se atém só ao ganho uma maior expressão e notoriedade, a
corpo” (Bento, 2007, p.44). partir do final da Segunda Guerra Mundial.
Por seu turno, e de acordo com Marques Neste período, um elevado número de
(1997), o Desporto Adaptado transporta em si veteranos da guerra com diversos tipos de
um potencial de inclusão social, contrariando as deficiências adquiridas, começou a utilizar as
práticas de desvantagem, permitindo à práticas desportivas para o seu processo de
população com deficiência ultrapassar barreiras reabilitação (Gutmann,1976; Bento, 1991;
limitativas ou impeditivas da sociedade e tem Varela, 1991), assistindo-se, desde então e até
vindo a ganhar cada vez mais visibilidade e aos dias de hoje, a um crescimento do número
importância como um agente fundamental de de praticantes com deficiência, uma vez que
inclusão e socialização (Celestino & Pereira, estes referem experimentar sensações e
2015). movimentos no sentido de melhorar o seu bem-
O desporto dá, portanto, visibilidade às estar físico, social e psicológico (Horta et al.,
capacidades da pessoa humana, e não às suas 2009).
dificuldades e limitações (Carvalho, 2009) e, Atualmente, mais do que uma terapia, o
nesse sentido, a adaptação das modalidades desporto dedicado às pessoas com deficiência
aos indivíduos com deficiência é fundamental caminha para o alto rendimento, seja associado
para que de uma forma justa e com igualdade ao resultado desportivo ou ao desenvolvimento
de oportunidades, o desporto, contribua para como pessoa humana inserida numa
melhorar significativamente não só a sociedade.
funcionalidade, a autonomia e a qualidade de O Desporto Adaptado para além de
vida das pessoas deficiência, mas também a “demonstrar à própria pessoa e à sociedade
sociedade que acolhe esses indivíduos, que a deficiência não é sinónimo de
assumindo-se como um importante incapacidade” (Barros et. al., 2001, p. 241), é

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apontado por Saraiva et. al. (2013) como sendo O Desporto Adaptado
um dos fatores mais importantes ligados à e a sua história
promoção do sucesso educativo, inclusão,
desenvolvimento psicossocial, e por outro lado,
o combate ao abandono escolar e O Desporto, como hoje o conhecemos, tem a
discriminação das pessoas com deficiência. sua origem na história da atividade física e do
O Desporto Adaptado português não se movimento humano. Nos primórdios da nossa
desenvolveu ao ritmo do panorama existência, o processo de seleção natural
internacional, pelo que até meados da década baseava-se na força e na resistência física
de setenta, a participação das pessoas com necessárias às atividades básicas de
deficiência em atividades desportivas era muito sobrevivência, como a caça, a pesca, a defesa
fortuita (Carvalho, 1995). Contudo, à contra predadores e/ou território, determinando
semelhança do aparecimento do Desporto assim a lei do mais forte. Perante este cenário,
Adaptado a nível mundial, o seu início em os indivíduos com deficiência, para além de não
território lusitano também surge em contextos terem as mesmas oportunidades, eram alvo de
hospitalares. Foi a partir dos anos 50, com o práticas de exorcismo e purificação,
surgimento de médicos especializados em enfrentando um contexto ambiental hostil
medicina física e reabilitação, que se iniciou (Guttmann, 1976).
uma nova era na recuperação e treino de Os primeiros relatos na bibliografia, de acordo
incapacidades. Simultaneamente, afirmaram-se com Araújo (1997), sobre o Desporto Adaptado
profissões como a educação física, a terapia referem-se a desportos praticados por pessoas
ocupacional e a ortoprotesia (Rodrigues et al., com deficiência auditiva, bem como mencionam
2013). a introdução da modalidade de beisebol, em
Também a Guerra Colonial originou um grande 1870, nas escolas do Estado de Ohio, em
número de pessoas com deficiência, que 1885, no Estado de Illinois, também nos
ocupavam os seus tempos livres no Centro de Estados Unidos com o início da prática do
Medicina e Reabilitação de Alcoitão (Yazicioglu futebol americano. Na Alemanha, em Berlim,
et. al., 2012). Após estes momentos e até à em 1888, surgem os primeiros clubes
atualidade, o desporto nacional para pessoas destinados às pessoas com deficiência auditiva
com deficiência assume cada vez maior (IPC, 2012; Marques & Gutierrez, 2014). Diz-nos
expressão e importância, sendo o seu também Winnick (2017) que a terminar o século
desenvolvimento muito positivo com atletas de XIX, o futebol tornou-se o desporto rei em
elevado valor dentro e fora do mundo diversas escolas de surdos, assim como
desportivo. começam a aparecer os primeiros grupos de
surdos a dedicarem-se ao basquetebol. Por seu
Da grande panóplia de Desportos Adaptados, turno, Louro (2001) indica que foi em 1920 que
neste artigo, foi escolhido o Judo, não só como se iniciaram atividades como a natação e
modalidade adaptada mas sobretudo no que à atletismo a serem praticadas por deficientes
sua abordagem do ponto de vista inclusivo diz visuais.
respeito, assumindo esta como sendo uma
modalidade nobre para o trabalho não só do Ainda no que diz respeito ao desporto para
corpo mas também da mente, estruturando as deficientes auditivos, em 1924, foi criada a
condições e oportunidades para uma formação Organização Mundial de Desportos para
plena da pessoa humana e do desenvolvimento Surdos, com a realização de uma competição
da sua sociedade envolvente. internacional, em Paris, nomeada “Jogos

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Internacionais para Surdos” (Comité Paralímpico Posteriormente, do ano 1966 a 1999, os


Português, s.d.). “Jogos Internacionais para Surdos” ganham um
Porém é apenas com o decorrer das Grandes novo nome: “Jogos Mundiais para Surdos”, às
Guerras Mundiais, com o, consequente vezes referidos como os “Jogos Mundiais
regressar de soldados com severas sequelas e Silenciosos“ e, a partir de 2000, os jogos
com uma emergente necessidade de os passaram a ser conhecidos pela designação
reabilitar e reintegrar, que o Desporto Adaptado atual “Deaflympics” ou Surdolímpicos.
começa a proliferar, sendo este o momento em Nos últimos 30 anos, conforme refere Louro
que a sociedade começa também a alterar o (2001), o centro de interesse da atividade
paradigma face à deficiência (Gutmann,1976). desportiva adaptada passou da reabilitação
Após este período de elevada importância, para a competição ao mais alto nível. Para além
onde a prática desportiva começa a ser vista e disso, com o enorme sucesso nos Jogos
aceite como fundamental para a reintegração Internacionais de Mandeville, o desporto para
na sociedade, assiste-se à constituição de pessoas com deficiência deixa de estar
organizações internacionais dedicadas ao confinado apenas à sua componente médica e
fomento e à organização de competições terapêutica, expandindo-se às suas múltiplas
desportivas voltadas para pessoas com capacidades sociais dos indivíduos (Varela,
deficiência, contribuindo para o surgimento e a 1991), levando mais tarde ao aparecimento do
consolidação do conceito de Desporto conceito de “Desporto para Todos” que permitiu
Adaptado (Saraiva et. al, 2013). que os benefícios obtidos pela prática
Ludwig Guttmann, um conceituado médico desportiva se alargasse a um maior número de
neurologista, explorou o desporto, utilizando-o pessoas (Conselho da Europa, 1988).
como uma ferramenta para a reabilitação e
reeducação dos seus pacientes traumatizados, O Desporto Adaptado em Portugal
procurando ao mesmo tempo, amenizar os
problemas de ordem psicológica e de
reinserção social dos mesmos, através da Em Portugal, e apesar do ritmo de
implementação de competição, transcendendo desenvolvimento do Desporto Adaptado não ter
o entendimento sobre o desporto para as acompanhado o quadro internacional, também
populações com deficiência (Cunha, 2000; a grande alavanca desta boa prática coincide
Varela, 1991). O método implantado foi tão com o regressar dos veteranos da guerra, neste
produtivo que, pouco a pouco, foi sendo caso, da Guerra Colonial, através da ocupação
difundido e utilizado por médicos de diferentes dos tempos livres e tentativa de recuperação
partes do mundo. das mazelas adquiridas através das atividades
Fruto da globalização do desporto para desportivas (Louro, 2001).
pessoas com deficiência nada melhor do que, a A primeira participação portuguesa nos Jogos
partir dos Jogos Internacionais de Mandeville, Paralímpicos verificou-se na quarta edição dos
criados pelo bem-afamado médico em 1948 e Jogos, em 1972, em Heidelberg, na Alemanha,
expandidos a nível internacional em 1952, com a presença de uma equipa de Basquetebol
organizar uma nova e importantíssima em cadeira de rodas constituída por atletas
competição, os Jogos Paralímpicos que com lesões vertebro-medulares e amputados.
surgiram em 1960 e evoluíram até aos dias de Importa referir que à data não existia nenhuma
hoje, sendo um dos principais eventos estrutura de enquadramento orgânico do
desportivos a nível mundial (Winnick, 2017). desporto para deficientes, muito menos se

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verificava uma prática desportiva regular que 86/1976 da Constituição da República


estivesse dotada de um quadro competitivo Portuguesa, 1976).
próprio e o desporto regular jamais oferecia Em 1977, a Direção-Geral dos Desportos, atual
essa possibilidade aos atletas com deficiência. Instituto Português do Desporto e da
Apenas após o 25 de Abril de 1974, começam Juventude, criou um setor dedicado às pessoas
a aparecer os primeiros grupos associativos com deficiência, surgindo, nesse ano, o
organizados para pessoas com deficiência e Secretariado Nacional de Reabilitação. Este
começa a ser regulamentada a prática órgão governamental tinha como objetivo a
desportiva pela pessoa com deficiência, implementação de uma política nacional de
estando consagrado na Constituição da reabilitação e integração social das pessoas
República Portuguesa, desde 1976, no artigo com deficiência, em conformidade com a
79º, o direito de todo o cidadão à cultura física Constituição da República Portuguesa.
e ao desporto (Louro, 2001). Preconiza-se,
desta forma, o princípio da universalidade no Em 1979 é formada uma comissão de trabalho
acesso à prática desportiva, incumbindo-se o com vista à elaboração dos estatutos da
Estado Português “(...) em colaboração com as Federação Portuguesa de Desporto para
escolas, as associações e colectividades Pessoas com Deficiência.
desportivas, promover, estimular, orientar e Após uma interrupção de duas edições, face à
apoiar a prática e a difusão da cultura física e situação vivida durante o 25 de Abril, Portugal
do desporto (...)” (Diário da República n.º retoma a participação nos Jogos Paralímpicos
de Nova Iorque, nos Estados Unidos, seguindo-
se a participação em Seul em 1988, na Coreia
do Sul. Por sua vez, a participação portuguesa
nas provas Surdolímpicas apenas acontece
pela primeira vez em Sófia, 1993.
Com o progressivo crescimento do Desporto
Adaptado, a afirmação da participação
portuguesa em competições de elevado nível,
bem como o apoio legislativo a começar a
aparecer e com os estatutos preparados, surge
em 1988, a Federação Portuguesa de Desporto
para Deficientes, como uma Federação
Multidesportiva com o objetivo de promover e
desenvolver a prática de diversas modalidades
desportivas, ficando com a tutela da
participação portuguesa em todas as edições
dos Jogos Paralímpicos que se seguiram,
desde Barcelona 1992 até Pequim 2008.
Posteriormente, com a publicação da Lei nº 30
reforça-se a ideia de que “todos têm direito ao
desporto, enquanto elemento indispensável ao
desenvolvimento da personalidade” (Diário da
República n.º 30/2004 da Assembleia da
República, 2004), aspeto este reforçado pelo 1º

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

artigo da referida lei em que se assume o Modalidade, da Federação Portuguesa de


desporto como fator imprescindível na Desporto para Pessoas com Deficiência e
formação da pessoa e no desenvolvimento da Associações Nacionais responsáveis pelas
sociedade, não deixando a mesma de se diferentes deficiências. Localmente, a
ocupar especialmente da prática desportiva dos responsabilidade passa pelos clubes e pelas
cidadãos com deficiência, como é visível nas associações/agrupamentos de clubes e
determinações constantes nos artigos 5.º, 26.º, estruturas intermédias nos distritos e/ou
32.º, 70.º e 82.º. regiões.
Do mesmo modo, a Lei n.º 38/2004, de 18 de Tendo em conta todo o percurso e
agosto faz referência ao valor da prática enquadramento no âmbito do desporto para
desportiva para indivíduos com deficiência, pessoas com deficiência, sabe-se que a
nomeadamente no que se refere ao desporto e organização da prática desportiva se apresenta
à recreação como medidas para a habilitação e como um instrumento privilegiado de
reabilitação (artigo 25.º), bem como estabelece intervenção, com um universo desportivo
no seu 38º artigo, que “cabe ao Estado adotar subdividido nas vertentes educativa, recreativa,
medidas específicas necessárias para assegurar terapêutica e competitiva, todas elas
o acesso da pessoa com deficiência à prática promotoras de desenvolvimento pessoal e
do desporto e à fruição dos tempos integração social.
livres” (Diário da República n.º 38/2004 da
Assembleia da República, 2004), incluindo o
acesso à prática do desporto de alta Do Judo ao Judo Adaptado
competição (artigo 39.º).
No entanto, em 2008, nasce o Comité Dentro da variedade de desportos adaptados o
Paralímpico de Portugal, tutelado pelo Judo assume um especial destaque quando
International Paralympic Comitee e pelo pensamos em inclusão e num desporto que
International Committee for Sport for Deaf, possa servir todos de forma equitativa.
tendo como principal objetivo promover uma Jigoro Kano em 1882, no Japão, funda a
maior prática do desporto para as pessoas com modalidade cujo significado é “caminho suave”
deficiência, bem como fomentar a inclusão, o e “declara que os objetivos da prática do judo
crescimento e desenvolvimento das são o aperfeiçoamento físico, mental e moral,
modalidades desportivas adaptadas e melhorar usando esses pontos como chave para a
a preparação e condições de competição e alto construção de uma boa sociedade” (Kano,
rendimento, representando o Movimento 2005). Casado & Villamón (2009) reforçam que
Paralímpico Português dentro e fora do território a intenção de Jigoro Kano foi de utilizar o Judo
nacional. (Comité Paralímpico de Portugal, s.d.). como um meio educacional eminentemente
Desde os Jogos Paralímpicos de Londres 2012 global não fazendo distinções entre cada
até então a equipa portuguesa é tutelada por pessoa humana.
este comité.
Em busca de explicar o significado do conceito
Neste momento, a nível nacional, o movimento “caminho suave”, Kano (1986, pp. 16, 17)
associativo desportivo para pessoas com escreve o seguinte: “(...) vamos dizer que um
deficiência encontra-se estruturado através do individuo se encontra à minha frente, a sua
Comité Olímpico de Portugal, do Comité força é mensurada em dez unidades e a minha
Paralímpico de Portugal, da Confederação do em sete unidades. Se ele me empurrar com
Desporto de Portugal, das Federações de

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

toda a sua força, seguramente que eu me em vários clubes, partilhando incansavelmente


deslocarei para trás ou serei derrubado, mesmo todo o seu conhecimento técnico e incutindo
que eu resista com toda a minha potência, isto uma disciplina de treino regular com a
é, opondo força contra força. Mas se ao invés implementação de novas metodologias de
de me opor a ele, eu me afastar na direção do treino, homogeneizando o panorama do Judo
empurrão, desviando o meu corpo e mantendo nacional. Fica, desta maneira, a ser considerado
o equilíbrio, o meu oponente perderá o seu o “pai do Judo português”.
equilíbrio. Enfraquecido pela sua posição Colocando a lente desportiva competitiva,
instável, ele será incapaz de usar toda a sua sabemos que um combate de Judo acontece
força que estará, então, diminuída para três entre dois judocas5 que se defrontam no
unidades. Tendo mantido o equilíbrio, a minha tatami6, durante um tempo de combate que
força permaneceu como sete unidades. Nessa pode variar entre os dois e os quatro minutos
situação, estou mais forte que o meu oponente, (tempo útil) consoante a idade do praticante. A
assim poderei derrotá-lo usando somente luta pode terminar a qualquer momento caso
metade da minha força e guardando a metade um dos atletas consiga um ippon7,
disponível para outro propósito (...)”. Desta correspondendo a uma projeção perfeita, a uma
forma compreendemos, de forma mais clara, os imobilização durante 20 segundos ou uma
princípios da modalidade que assentam na técnica de submissão (luxação ao cotovelo ou
máxima eficácia do uso da mente e do corpo, estrangulamento) que force o adversário a
para o benefício e bem-estar mútuo, tendo sido desistir. Caso contrário será vencedor aquele
pensado como um desporto que pudesse ser que, no final do tempo de combate, apresentar
praticado por todos, sendo simultaneamente um wazari8. Se, nesse momento, os lutadores
desafiante para todos. Assim, e pensando que estiverem empatados, o combate continua
num treino de Judo, numa luta de Judo, o aplicando-se a partir daí a regra do “ponto de
nosso maior adversário somos nós próprios, ouro”, vencendo o primeiro judoca a pontuar no
compreendemos que o caminho do Judo e o combate. Os judocas lutam entre si, consoante
Judo Adaptado pode ser muito curto e suave. o seu género e categoria de peso e as provas
Tanto a Organização Mundial de Saúde como a podem ser individuais e/ou em equipas.
UNESCO recomendam o Judo como um dos O Desporto Adaptado apesar de englobar um
desportos mais completos, podendo ser conjunto de práticas semelhantes à do
praticado por crianças, adolescentes, adultos e desporto regular, apresenta práticas adaptadas
seniores, de ambos os sexos, e particulares que lhe são inerentes, assumindo
independentemente de terem ou não uma identidade própria que é necessário
deficiência, catalogando-o de elevado valor na reconhecer e respeitar. Quando falamos em
formação do ser humano (Batista, 2011). Judo para pessoas com deficiência, ou Judo
Em Portugal os primeiros contactos Adaptado, verificamos que, oficialmente, esta
documentados com o Judo datam da primeira modalidade está acessível a atletas com
década do séc. XX. Realizaram-se a bordo de deficiência auditiva – Judo Surdolímpico,
um navio da marinha nipónica ancorado no Tejo intelectual – Judo Adaptado e Judown e visual –
onde oficiais japoneses efectuaram uma Judo Paralímpico (Federação Portuguesa de
demonstração de Judo para os visitantes. No Desporto para Pessoas com Deficiência, s.d.).
entanto é em 1958 que Kiyoshi Kobayashi O Judo Surdolímpico participou pela primeira
chega a Portugal, revolucionando por completo vez nos Jogos Surdolímpicos em 2009 em
o panorama do Judo em Portugal, lecionando Taipé, não tendo falhado nenhuma edição

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

desde então, e o Judo português, a partir dessa apresentam uma qualidade de execução média
data, já conquistou medalhas de ouro, prata e a boa, e Divisão II, onde a qualidade de
bronze. Para serem elegíveis, os atletas devem execução por parte dos praticantes se situa
ter uma perda de, pelo menos, 55 db no seu entre média a fraca. Em ambas as vertentes, as
“melhor ouvido”, sendo que próteses auditivas, principais adaptações regulamentares do Judo
implantes e similares não podem ser utilizados são as proibições de projeções com os dois
na competição. A modalidade para a deficiência joelhos no tatami, técnicas de estrangulamento
auditiva é regulada pela International Judo e a luxação do cotovelo. Para além destas duas
Federation e não existe qualquer alteração às categorias, a Federação Portuguesa de Judo
regras e regulamentos implementados pela apresenta ainda uma terceira, onde a
referida federação que também regula o Judo competição tem um carácter puramente
enquanto modalidade desportiva sem recreativo, carecendo a luta de um elevado grau
adaptações. de adaptação.
Por seu turno, quando falamos em Judo para No que respeita ao Judo Paralímpico, esta
pessoas com deficiência intelectual estamos modalidade entrou pela primeira vez nos Jogos
perante duas vertentes: O Judo Adaptado e o Paralímpicos, em 1988, Seul, apenas como
Judown. Para o atleta ser elegível para a prática modalidade praticada por atletas masculinos e
no âmbito da deficiência intelectual, em só nos Jogos de Atenas, em 2004 foram
qualquer das suas áreas, deverá ter um incluídas provas femininas. Portugal teve a sua
quociente de inteligência igual ou inferior a 75, primeira representação na referida competição
diagnóstico em idade inferior a 18 anos bem nos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro, em
como limitações significativas nos 2016. A modalidade para a deficiência visual é
comportamentos adaptativos, expressos em regulada pela International Blind Sports
três das seguintes áreas: comunicação, Federation, tendo como principal diferença
independência e cuidados pessoais, vida relativamente ao Judo regular, o início do
doméstica, capacidades sociais, autonomia, combate (ou recomeço do combate após
segurança e saúde, escolaridade, lazer e paragem), com a pega feita9. As restantes
tempos livres, utilização dos meios comunitários regras de competição são idênticas às da
ou trabalho. (Federação Portuguesa de International Judo Federation, seguidas noutras
Desporto para Pessoas com Deficiencia, s.d.). provas de Judo destinadas a atletas sem
No Special Olympics, em português conhecido deficiência.
por Judo Adaptado, as regras são as mesmas No Judo para a deficiência visual competem
do Judo regular, embora os atletas sejam atletas com deficiência visual das classes B1
divididos por categorias de acordo com as suas (Acuidade visual é mais baixa do que LogMAR10
capacidades e performances, para que os 2.6), B2 (Acuidade visual entre LogMAR 1.5 a
combates sejam realizados entre atletas com 2.6, inclusive) e/ou campo visual restringido a
desempenhos semelhantes. um diâmetro inferior a 10 graus) e B3 (Acuidade
Relativamente ao Judo dedicado a atletas com visual entre LogMAR 1.4 a 1.0, inclusive, e/ou
Síndrome de Down, o JudoDown, são campo visual restringido a um diâmetro inferior
regulamentadas pela Sport Union for Athletes a 40 graus). Os judocas não têm de usar
with Down Syndrome e, nestas competições, tampões oculares nem viseiras, competindo
os judocas estão agrupados de acordo com o entre si sem vendas, apenas de acordo com a
nível de execução técnica, em apenas duas categoria de peso.
divisões: Divisão I, em que os atletas

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Todavia, o Judo não se encerra enquanto toda a vida. Por seu turno, Cachada (2013) diz-
modalidade para ser praticada apenas com o nos que no desporto não se ensinam apenas
objetivo da competição, seja ela ao mais alto técnicas e táticas, mas aprende-se a respeitar e
nível ou não. Mesmo não existindo competições confiar nos seus companheiros, assim como a
e regulamentos oficiais para judocas com respeitar os seus adversários.
outras deficiências que não as mencionadas O Judo tem uma identidade própria, com
anteriormente, existem estudos que valores, normas e símbolos que o distinguem
demonstram os benefícios da prática da no quadro da dinâmica cultural de outras
modalidade, revelando um desenvolvimento modalidades, sendo de facto uma atividade de
mais completo e harmonioso dos participantes elevado valor formativa. No tatami e fora dele,
em programas de Judo. na vida, os grandes vencedores são
Apesar dos estudos na área serem escassos, distinguidos pela prática dos valores
Garcia et. al. (2019) desenvolveram um estudo fundamentais do Judo que incorporam o código
com crianças e jovens com perturbações do moral desta modalidade: o respeito, a cortesia,
espectro do autismo que demonstraram ter um a honra, a sinceridade, a modéstia, o
grande interesse na modalidade e onde autocontrolo, a coragem e a amizade. A
concluíram que a prática do judo pode transmissão destes valores contribui para a
contribuir para a redução de comportamentos formação cívica dos seus praticantes, que é tão
sedentários, embora este resultado ainda importante como a preparação física e técnica,
careça de mais estudos para ser totalmente pois só com a interiorização dos mesmos, os
comprovado. Para além disso, os pais dos desportistas poderão ser bons cidadãos e,
participantes no estudo relatam uma redução consequentemente, bons atletas de
da tão característica dificuldade de competição seja ela integrada no desporto
comunicação e interação social, durante e após regular ou adaptado.
a aplicação do programa de Judo. Pensando no desenvolvimento físico e na busca
Muitos treinam para competir e, idealmente, da funcionalidade máxima do corpo humano, o
para conseguirem ser atletas olímpicos ou Judo também demonstra ser muito completo.
paralímpicos, enquanto que outros treinam para No treino de Judo, estão previstas inúmeras
se superarem não só a nível desportivo, mas solicitações motoras, potenciando a mobilidade
sobretudo a nível pessoal, na busca de se e estrutura muscular, um sistema metabólico e
tornarem pessoas humanas de excelência, neuromuscular eficiente e um sistema
sentindo-se, em simultâneo, fisicamente mais cardiorrespiratório com uma boa capacidade
funcionais. aeróbica e anaeróbica. Também é trabalhada a
força, resistência, agilidade, coordenação,
lateralidade, orientação espacial, velocidade,
flexibilidade e equilíbrio, contando com a
Judo de todos e para todos... oposição do parceiro, numa luta em constante
Muito mais do que um desporto movimento. Desta forma, e segundo Delgado
(2015), esta prática de combate é altamente
recomendada por poder ser praticada por
Deval & Sánchez (2000) referem que o desporto todos, pois quando estamos perante alguém
integra em si valores de descoberta, valores de com qualquer tipo de limitação física ou mental,
desenvolvimento pessoal e de educação social, a sua adaptação é muito fácil e apresenta
valores que devem ser mantidos ao longo de benefícios sobejamente reconhecidos. Porém,

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

não deve ficar esquecida a dimensão de e levando-os a um estado de atividade


descontração, relaxamento e união entre vigorosa”, não esquecendo que todos nós, com
equipa, que faz com que o atleta se sinta feliz e as nossas particularidades, temos sempre algo
integrado, fortalecendo as relações com os de positivo e construtivo a oferecer ao nosso
seus colegas de treino, sem qualquer oponente. A performance e realização são
preconceito e distinção. também preocupações do judoca, pois o seu
Desta forma entendo o Judo como muito mais desempenho está associado ao esforço
do que um desporto, mas sim como uma utilizado de forma inteligente para a
ferramenta essencial para uma preparação concretização dos seus objetivos, cumprindo
plena para a vida, uma vida mais justa, uma todas as regras13 para um desempenho
vida mais consciente com igualdade de meritório. Importa não esquecer que este
oportunidades para todos. desporto busca um equilíbrio entre o corpo,
mente e espírito, através do desenvolvimento
É indispensável não esquecermos que “o de competências físicas, intelectuais e éticas
desporto vive dos valores e é com eles que através de permanentes desafios que
constrói a sua história, o seu imaginário e o seu contribuem não só para uma formação digna e
legado de princípios e ideais. E pode completa, mas para um agradável sentimento
certamente ajudar a difundi-los, recreando as de satisfação pelo esforço.
forças de renovação e do triunfo do
homem” (Bento, 2004, p.80). Sendo assim, o Judo é muito mais do que
apenas um desporto, carregando em si, uma
Olhando e pensando sobre o quadro de valores responsabilidade ímpar na formação de
do desporto em geral, institucionalmente pessoas humanas independentemente de
definidos pelo International Fair-Play Commitee terem ou não uma deficiência, pois o desporto,
e pelo International Olympic Committee, na minha opinião, deve ser de todos e para
constatamos que os valores do Judo estão em todos.
plena consonância. Deste modo, observamos
que o Judo trabalha de forma consistente e
coerente os valores definidos no quadro de
valores do desporto. O respeito, por si e pelos Considerações Finais
outros, assegurando o fair-play em todos os
momentos, é a principal máxima no Judo,
estando presente desde o primeiro momento, a Na senda de Winnick (2017) sabemos que o
entrada no dojo11, marcada por um momento Desporto Adaptado é considerado como sendo
tão simples mas tão importante, a saudação um conjunto de experiências desportivas
japonesa, reforçada pelo cumprimento da regra adaptadas, concebidas para satisfazer as
de ouro do Judo, consistindo na preocupação necessidades físicas e educativas dos
que os judocas têm de ter para não causarem indivíduos com deficiência. No mesmo sentido,
lesões um ao outro. Posto isto, a igualdade de Dias (2007) refere que o Desporto Adaptado
oportunidades para todos sem exceção, com engloba todo o conjunto de experiências
ou sem deficiência, 6º Kyu ou 10º Dan12 é uma desportivas que foram modificadas ou
realidade na prática do Judo pois todos são essencialmente designadas para irem de
indispensáveis para a progressão de todos. encontro às necessidades únicas de cada
Kano (1986, p. 27) disse que “os ensinamentos indivíduo. Contudo, questiono se qualquer
do judo dão a todos o mesmo potencial para o praticante desportivo, independentemente de
sucesso, tirando-os da letargia e do desânimo, ter, ou não, uma deficiência, não promove

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

adaptações no seu material, ao seu movimento, lógica de desporto para todos, está em
ao seu treino, ao seu ritmo. Claro que sim. constante crescimento e progressão. Não
Então parece-me justo que se fale de desporto obstante, é importante que se combata o ainda
de todos e para todos. baixo envolvimento das pessoas com
Num estudo apresentado por Saraiva et. al deficiência em atividades desportivas, pelo que,
(2013) verificou-se que a prática do Desporto segundo Saraiva et. al (2013, p.633) “devem ser
Adaptado federado ainda está muito adotadas medidas de fomento e posterior
centralizado nas duas principais cidades manutenção de estilos de vida ativos, que vão
portuguesas: Lisboa e Porto, muito desde a eliminação de eventuais barreiras
provavelmente pela qualidade de vida e arquitetónicas que possam condicionar/
oportunidades que são proporcionadas aos impossibilitar a sua frequência até a formação
seus habitantes, embora haja oferta ao longo de cívica dos profissionais que nelas trabalham e
todo o território. Todavia, já foi demonstrado dos seus familiares e amigos, sensibilizando-os
que o desporto para a pessoa com deficiência para os benefícios da prática desportiva para as
pode acontecer muito para lá do que é a prática pessoas com deficiência assim como para a
federada e/ou competitiva pelo que se acredita importância do seu apoio emocional”.
que o desporto adaptado português, numa Através das oportunidades para testar limites e
potencialidades, quebrar barreiras e na busca
de uma vida mais saudável, justa e equitativa,
isto é, uma vida com mais qualidade, a prática
desportiva para pessoas com deficiência
apresenta uma extrema eficácia para este feito
(Melo & López, 2002). O Judo, pelas suas
características, pelos seus princípios e valores
praticados contribui com clareza para uma
integração da pessoa com deficiência na
sociedade, procurando-a tornar mais proficiente
a nível físico e social. Kano (2005) refere que
acredita ser possível desenvolver a paz e o
bem-estar da humanidade, através do espírito
do Judo. Desta forma, proponho que se diga
hajime14 ao desporto inclusivo e se faça um
ippon ao preconceito, proporcionando a todos
os intervenientes do desporto experiências
positivas e felizes.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Notas

5 Judoca é o praticante de Judo.

6 Tatami é o tapete de Judo onde a modalidade é


praticada.

7 Ippon significa ponto/vitória.

8 Wazari significa meio ponto.

9 No Judo regular os atletas começam ou


recomeçam o combate separados por 2 metros,
tendo que ganhar a pega para executar as técnicas.

10 LogMar - logaritmo do ângulo mínimo de


resolução.

11 Dojo – local onde se realiza o treino. A palavra


dojo deriva de um termo budista e significa “lugar
iluminado”.

12 Kyu e Dan correspondem às graduações dos


judocas que podem ir de 6º Kyu a 1º Kyu, isto é, do
cinto branco ao cinto castanho, e, posteriormente,
de 1º a 10º Dan, correspondendo ao cinto preto,
branco e vermelho e vermelho. Os judocas que têm
direito ao cinto vermelho e branco ou vermelho (com
graduação igual o superior a 6º Dan) podem, se
preferirem, utilizar o cinto preto.

13 No Judo, há um sistema de penalização das


infrações cometidas durante o combate, assinalado
por shido (castigo leve) ou por hansokomake
(castigo grave que leva à expulsão do combate e/ou
da competição). O judoca pode cometer duas
infrações leves e após essas duas faltas a próxima
transgressão, mesmo que leve, será transformado
num castigo grave.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

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30
PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

A educação permanente e a aprendizagem ao


longo da vida: da lógica emancipatória à lógica
da gestão de recursos humanos.
O contexto português dos adultos com deficiências
e incapacidade.

Isabel Brito Fonseca


Socióloga/ Mestre em Ciências da Educação – Formação de Adultos
Ministério da Educação/CQ do Agrupamento de Escolas do Cadaval/Técnica de ORVC
isabel.brito.fonseca@gmail.com

Resumo

Este artigo aborda a temática da formação de adultos de um ponto de vista humanista, holístico e
sistémico, centrando-se nas políticas públicas de educação de adultos e na sua evolução ao longo
do tempo, bem como nos conceitos de aprendizagem formal, não formal e informal, relacionando-a
com a questão relativa aos saberes e práticas associados aos adultos com deficiências e
incapacidade.
Neste sentido, foram abordadas diversas questões associadas a esta problemática, designadamente
as políticas adotadas ao nível da UNESCO, da UE e em Portugal, a perspetiva da educação
permanente e da aprendizagem ao longo da vida, recorrendo-se aos conceitos da lógica
emancipatória e da lógica da gestão de recursos humanos, articulando-se estas questões com a
área dos adultos com deficiências e incapacidade.

Palavras-chave: Formação de adultos, Formação experiencial, Educação permanente,


Aprendizagem ao longo da vida, adultos com deficiências e incapacidade.


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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

uma articulação entre esta questão e a temática


dos adultos com deficiências e incapacidade.
Na ótica de Canário (2008), a educação de
adultos surge na sequência da Revolução
Francesa e dos ideais proclamados pelo
Iluminismo, encarando-se a educação como um
processo abrangente, diversificado e que
acompanha a vida de cada pessoa, sendo,
como tal, entendida de acordo com uma
Introdução perspetiva permanente.
A educação de adultos tem por base
originariamente ações populares (política,
sindical e associativa), pelo que historicamente

O presente artigo é elaborado no âmbito


da formulação de um convite no sentido de
encontra-se relacionada com os movimentos
sociais de massas (movimento operário), bem
como com o surgimento e com a
implementação dos sistemas escolares,
participar na revista PRAXIS EDUCARE, sendo
desembocando nas modalidades de ensino de
que para tal se produz um documento alusivo à
segunda oportunidade.
reflexão sobre a temática da educação e
formação de adultos, cruzando-a com questões A educação permanente surgiu nos anos 70 do
relativas aos saberes e práticas associados aos século XX como forma de contestar e criticar o
adultos com deficiências e incapacidade. Como modelo escolar. Neste sentido, a UNESCO
tal, parte-se da elaboração de uma reflexão publicou um relatório que destaca a educação
teoricamente sustentada sobre o campo da enquanto processo de “aprender a ser” ao invés
educação de adultos, tendo por base os desta ser entendida como uma acumulação de
elementos conceptuais relativos à formação de conhecimentos.
adultos, os quais são suportados através da A educação permanente, entendida como um
consulta e análise bibliográfica. processo contínuo, cujo centro é o indivíduo e a
Neste sentido, num primeiro momento aborda- sua construção, o que denota uma perspetiva
se o conceito de formação de adultos, de holística15 do processo educativo, surge como
acordo com a perspetiva dos autores um “princípio reorganizador do processo
referenciados na bibliografia utilizada. educativo” (Canário, 2008, p. 88), assentando
Seguidamente, apresenta-se o panorama da em três pressupostos: a continuidade, a
evolução da formação de adultos a nível diversidade e a globalidade.
mundial, tendo por base as diversas A educação permanente é um movimento
conferências da UNESCO - Organização das contemporâneo, o qual tende a ir de encontro a
Nações Unidas para a Educação, Ciência e outras correntes de pensamento crítico no que
Cultura. Depois, analisa-se a formação de se refere à forma escolar, como é o caso de
adultos na União Europeia, de acordo com o Paulo Freire. Este pedagogo brasileiro critica a
Livro Branco e o Memorando sobre a “conceção bancária da educação” por oposição
Aprendizagem ao Longo da Vida. Por fim, a uma educação “libertadora” ou emancipatória,
traça-se uma perspetiva evolutiva da educação a qual pode ajudar a “viver a transformar a
de adultos no contexto português, fazendo-se vida”.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Na prática, de acordo com Canário (2008), a não é aqui entendida como um espaço de
educação permanente viu-se limitada por três liberdade para as pessoas.
efeitos perversos: A educação e a formação comportam aspetos
1. A educação permanente foi reduzida ao centrais diferentes. Em contexto educativo,
período da educação pós-escolar, sendo este cada um de nós, enquanto formador, é um
conceito utilizado muitas vezes com o mesmo agente das políticas públicas, sendo também a
sentido que “educação de adultos”; pessoa que acompanha outros em termos do
2. A educação permanente confundiu-se com a seu trajeto e das suas dificuldades. Quanto à
forma escolar, perpetuando-a; formação, estando esta centrada na pessoa,
tem muito mais em conta o percurso pessoal e
3. Os saberes adquiridos por outras formas que familiar do adulto, bem como o seu contexto
não a forma escolar – os saberes experienciais social e cultural e as suas características
adquiridos por vias não formalizadas - foram psicológicas, estando mais direcionada para
sendo desvalorizados, o que não se enquadra trabalhar com as pessoas e para o seu
no conceito da educação permanente de acompanhamento e orientação em termos de
“aprender a ser”. percurso educativo.
Estes efeitos levaram ao alargamento e à Se é verdade que todo o nosso património em
difusão da forma escolar da educação a termos de acumulado experiencial é
diversos sectores sociais. determinante para o desenvolvimento dos
processos de aprendizagem, também há que
ter em linha de conta a necessidade de
1. Formação de adultos – estarmos despertos e disponíveis para a
aquisição de novos saberes. Ou seja, num
Uma definição e uma perspetiva
mundo em constante mudança,
designadamente a nível das TIC – Tecnologias
da Informação e Comunicação -, por exemplo,
Na ótica de Josso (2005), a formação decorre
é importante pormos em prática a nossa
ao longo de toda a vida, desde que nascemos
capacidade de adaptação, gerando uma
até à morte, sendo que a educação é específica
dinâmica e um processo contínuo entre o
de determinados períodos da vida,
esquecer e o (re)aprender. É a isto que Josso
designadamente aquando da frequência do
(2005) se refere quando diz que pode ser muito
ensino escolar, de ações de formação
perigoso não saber desaprender e não saber
profissional ou de ações de formação contínua.
esquecer para voltar a aprender.
A educação é a ação de uma sociedade, tendo
“Uma aprendizagem crítica, não mimética,
em conta a forma como ela é pensada pelas
implica não só conhecer e seguir as regras
instâncias políticas e pelos governos,
heterónomas, mas também ser capaz de
dependendo assim dessas instâncias e das
quebrá-las para assim, desaprendendo, poder
suas políticas, quer sejam políticas nacionais,
voltar a aprender; pressupõe consentir e
europeias ou internacionais.
aquiescer, mas também dissentir e resistir a
Neste sentido, a educação tem como objetivo certos valores e objetivos; exige intimidade com
assegurar a continuidade da vida da sociedade, os conteúdos e as técnicas, mas também
bem como facilitar a adaptação das pessoas à distância crítica que fomente a sua
sua evolução e aos novos contextos políticos, reinvenção” (Lima, 2003, cit in Lima, 2005, p.
sociais e económicos. Como tal, a educação 52).

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

De acordo com Cavaco (2002), os adultos elemento do ecossistema…” (Lima et al., 1988,
aprendem sobretudo na medida em que cit in Cavaco, 2002, p. 19).
necessitam de solucionar situações que se lhe A educação de adultos pode, pois, ser definida
colocam no seu dia-a-dia, quer seja em como a totalidade de modalidades que
contexto familiar, profissional ou social. Essa propiciam a aquisição de saberes ao longo da
aquisição de saberes é realizada, mais ou trajetória de vida de cada indivíduo. Como tal,
menos conscientemente, ao longo do seu quer-se com isto referir a alfabetização, o
percurso de vida, fruto das suas vivências e ensino recorrente, a formação profissional, a
experiências como forma de integração nos educação extraescolar, i.e., todos os processos
diversos contextos de vida. De acordo com educativos a nível formal, informal ou não-
Gronemeyer, “a necessidade de aprender não formal.
se encontra dentro de
um código mas no A aprendizagem informal é
direito inalienável que uma modalidade educativa
cada um tem para não organizada, a qual pode
sobreviver” (Gronemeyer, ou não ser intencional.
1989, cit in Cavaco, Designa-se como educativa,
2002, p. 13). na medida em que provoca
alterações de
A história de vida de conhecimentos,
cada indivíduo é única, comportamentos e atitudes
no sentido em que não dos indivíduos.
há duas pessoas iguais,
sendo que a forma como À educação informal estão
percecionam e se associadas a aprendizagem
apropriam das e a formação experiencial.
experiências e dos Estas últimas são processos
saberes adquiridos por de aquisição de saberes e
via do seu percurso de de competências, sendo que
vida é única também. Daí estão relacionadas com a
que o processo trajetória de vida dos
formativo de cada indivíduos. Uma
indivíduo seja competência traduz-se na
indissociável da sua forma eficaz de utilizar
história de vida e se confunda com ela. A saberes, capacidades,
educação permanente – entendida enquanto informações e estratégias para solucionar
educação ao longo da vida – deve, assim, problemas concretos do dia-a-dia. A
alargar o seu âmbito de intervenção no que diz competência é passível de ser transferida e
respeito à educação de adultos a outros níveis utilizada em situações diversas daquela em que
que não apenas o formal ou escolar, focando a foi apreendida e desenvolvida.
sua atuação também a nível social, A formação experiencial integra-se no
designadamente proporcionando a movimento da educação permanente, sendo o
aprendizagem através dos papéis sociais que adulto o principal responsável pela sua
cada indivíduo desempenha, tais como formação. A formação experiencial promove o
“produtor, consumidor, progenitor, cidadão, desenvolvimento integrado do sujeito, por forma

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

a permitir a sua adaptação social e o alterações socioeconómicas decorrentes desse


consequente desenvolvimento social. No período histórico puseram a nu uma escola com
entanto, a identidade do sujeito constrói-se não diversas fragilidades e limitações, sendo
só através de uma formação racional e reflexiva, necessário dar resposta às mudanças
mas também através das emoções, dos económicas, sociais e culturais.
sentimentos e das experiências de vida. Foram estas alterações socioeconómicas que
A aprendizagem informal é uma modalidade de colocaram na linha da frente os adultos em
aquisição de saberes que existe desde o termos de intervenção educativa. A
princípio da Humanidade, na medida em que os aprendizagem através da experiência torna-se
indivíduos sempre aprenderam através da central, dado que o enfoque é colocado na
experiência, designadamente pelo processo de educação permanente, entendida enquanto
tentativa/erro. No entanto, a educação informal, aprendizagem ao longo da vida. É neste
a aprendizagem e a formação experiencial contexto que surge a importância atribuída à
apenas recentemente foram reconhecidas a aprendizagem informal e não-formal, como
nível científico. complemento à educação formal.
Foi com o advento da industrialização, A educação informal está associada às ações
sobretudo a partir do Século XIX, que se deu o que não têm objetivos declaradamente
desenvolvimento do sistema escolar como educativos, provocando, no entanto, esse tipo
forma de garantir a escolarização das crianças, de efeitos. Como tal, a educação informal, ao
outrora educadas pela família, bem como meio contrário da educação formal e não-formal, tem
de responder às necessidades de mão-de-obra uma característica de continuidade.
qualificada. Até ao final da II Guerra Mundial, a A educação comporta, assim, três níveis
instituição escolar passou a ser a forma diferentes.
privilegiada de acesso ao saber. Mas as

Quadro 1. Níveis da Educação (Canário,1999, cit in Cavaco, 2002, p. 29)

Nível Formal Nível Não-Formal Nível Informal

O protótipo é o ensino Flexibilidade de horários, Todas as situações


dispensado pela escola, com programas e locais, baseado potencialmente educativas,
base na assimetria professor- geralmente no voluntariado, em mesmo que não conscientes,
aluno, na estruturação prévia que está presente a nem intencionais, por parte
de programas e horários, na preocupação de construir dos destinatários,
existência de processos situações educativas “à medida” correspondendo a situações
avaliativos e de certificação. de contextos e públicos pouco estruturadas e
singulares. É justamente no organizadas.
campo da educação de adultos,
em regra mais ativamente
refratários a processos
escolarizados, que estas
modalidades se têm vindo a
desenvolver.

Fonte: Adaptado a partir de Aprender fora da escola. Percursos de formação experiencial (p. 29) Cavaco, Carmen (2002) Lisboa: Educa.


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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

O processo permanente que caracteriza a havendo por norma intenção de aprender por
aprendizagem informal assenta na experiência, parte do indivíduo, sendo que estas
sendo que a formação experiencial pressupõe aprendizagens se efetuam por repetição.
um papel ativo do indivíduo, bem como a sua Neste contexto, todas as pessoas são
capacidade de experimentar e refletir sobre as educadores e aprendizes, passando a
situações e acontecimentos que ocorrem no educação permanente a estar nos locais onde
seu dia-a-dia. as pessoas se movimentam. Ou seja, o meio
A abrangência da formação experiencial está (familiar, profissional, social, político e
diretamente relacionada com a diversidade de económico) onde as pessoas estão inseridas
vivências e experiências dos indivíduos nos possui um carácter formativo contínuo, sendo
seus diversos contextos, sendo que cada que as situações e acontecimentos de vida aí
percurso define e limita as aprendizagens daí desenvolvidos potenciam as aprendizagens
decorrentes. Para este processo concorre ainda mais significativas e estruturantes.
a capacidade individual de cada pessoa em Em síntese, pode dizer-se que as pessoas
termos de integração das experiências vividas, aprendem sobretudo através do tipo de
a qual depende da forma como cada um experiências de vida e da forma com as vivem,
perceciona e se apropria dessas experiências a bem como através do contacto com os que
nível intelectual, afetivo, emocional, bem como fazem parte da sua rede de relações ou de
da motivação e da consciência. outros que se cruzam com elas ao longo do seu
Mas a formação experiencial, para ser percurso de vida.
entendida enquanto efetiva aprendizagem,
implica uma compreensão do sentido das
experiências, i.e., uma reflexão e uma tomada 2. A UNESCO e a formação de
de consciência sobre as experiências de vida. adultos
A formação experiencial implica um processo
Os processos educativos assumem um papel
de transformação de saberes previamente
relevante a partir da segunda metade do século
adquiridos em novos saberes através da
XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial,
problematização e do questionamento de
através de práticas educativas direcionadas
experiências já vividas, i.e., “os conhecimentos
para adultos, afirmando-se assim o campo da
resultam da transformação da experiência
formação de adultos no qual a UNESCO
acumulada” (Cavaco, 2002, p. 35), pelo que as
desempenhou um papel decisivo.
diversas experiências de vida de uma pessoa
funcionam como um todo. Como tal, existe A definição de educação de adultos saída da
uma dinâmica entre o presente e o passado em Conferência de Nairobi, promovida pela
termos das vivências das pessoas, sendo a UNESCO em 1976, é ainda hoje uma
formação experiencial um processo permanente referência: “(…) O conjunto de processos
e contínuo. organizados de educação qualquer que seja o
conteúdo, o nível e o método, quer sejam
De acordo com Cavaco (2002), há dois tipos de
formais ou não formais, quer prolonguem ou
aprendizagem informal: as adquiridas através
substituam a educação inicial dispensada nos
das estruturas em que o indivíduo se insere
estabelecimentos escolares e universitários e
(família e grupo de pares) e as adquiridas
sob a forma de aprendizagem profissional,
através do contacto com a sociedade em geral
graças aos quais pessoas consideradas como
(produção, comunicação, distribuição), não

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

adultas pela sociedade de que fazem parte responsabilidade das pessoas, da sociedade
desenvolvem as suas aptidões, enriquecem os civil e do Estado.
seus conhecimentos, melhoram as suas Nesta Conferência e educação é vista como um
qualificações técnicas ou profissionais ou lhes direito e como um dever, responsabilizando-se
dão uma nova orientação, e fazem evoluir as o indivíduo pela procura de educação e pela
suas atitudes ou o seu comportamento na resolução dos seus problemas, sendo cada
dupla perspetiva de um desenvolvimento pessoa responsável pelo seu sucesso ou
integral do homem e de uma participação no fracasso, o que leva ao agravar das
desenvolvimento socioeconómico e cultural desigualdades sociais, designadamente no que
equilibrado e independente” (Canário, 2006, p. se refere aos adultos pouco escolarizados,
161). penalizando quem não teve acesso a uma boa
Foram cinco as conferências da UNESCO que formação de base.
influenciaram a perspetiva e o caminho da Esta Conferência destaca a importância das
educação de adultos ao longo do tempo. parcerias, bem como das capacidades e da
Neste contexto, a V Conferência da UNESCO, experiência das entidades da sociedade civil e
realizada em Hamburgo, em 1997, caracteriza- das empresas, delegando nelas competências
se por denotar uma situação de ruptura com o do Estado. A responsabilização da sociedade
cenário de continuidade vindo das quatro civil e o estabelecimento de parcerias conduz à
conferências anteriores, passando-se de uma demissão do Estado e à privatização da
perspetiva social e humanista de educação educação assente numa lógica de económica
permanente para uma orientação “económica e de mercado.
realista da produção de competências” (Carré e No que se refere à alfabetização e à educação
Caspar, 1999, cit in Cavaco, 2009, p. 93), de base de adultos, o Estado passa a
suportada pela abordagem da aprendizagem ao assegurar apenas a “(…) definição de políticas,
longo da vida. Esta perspetiva tem por base o financiamento das práticas, os referenciais de
uma visão pragmática no que se refere à competências, a acreditação das entidades
resolução de problemas relacionados formadoras, a formação de formadores e a
fundamentalmente com a competitividade disseminação de boas práticas” (Cavaco, 2009,
económica e com o desemprego. Ao contrário, p. 127).
o movimento da educação permanente
Uma outra preocupação desta Conferência
assentava numa visão humanista.
reside na qualidade e na eficácia, uma vez que
Tal ruptura é suportada pela ideia de que é estes são indicadores utilizados pela lógica de
necessário adotar-se uma educação de adultos mercado como garante da competitividade e do
mais ajustada às sociedades modernas, desenvolvimento económico.
passando a utilizar-se expressões e termos É ainda nesta Conferência que são elaboradas
como aprendizagem ao longo da vida, propostas, ainda que vagas, de metodologias
educação e formação de adultos e de reconhecimento dos adquiridos
competências. experienciais, sendo este processo no entanto
Aqui as ações de alfabetização são orientadas associado à progressão de estudos no ensino
sobretudo para o desenvolvimento de formal e ao acesso ao emprego e à formação
competências básicas direcionadas para a profissionalizante.
empregabilidade, sendo que as ações de pós- Ao longo das suas cinco conferências, na
alfabetização são simultaneamente da perspetiva de Cavaco (2009), a UNESCO vai

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

deixando de falar em analfabetos e em “estratégia global da escolarização permanente”


alfabetização, passando a referir-se a públicos (Nóvoa, 1988, cit in Cavaco, 2009, p. 116), já
desfavorecidos. Se na primeira situação as que esta estratégia é a que melhor se adequa
ações eram dirigidas para a aquisição de aos interesses das sociedades capitalistas
competências de leitura e escrita, na segunda é industrializadas e à lógica da racionalidade
dado relevo à importância do uso social dessas económica. Daí que continua a subestimar-se a
competências. capacidade que cada um tem para se auto-
A UNESCO teve o mérito de dar visibilidade educar, sendo que “alfabetizar continuou a ser
internacional ao analfabetismo enquanto ‘ensinar o mínimo aos adultos’” (Fernández,
problema social e político, ao tentar melhorar a 2006, cit in Cavaco, 2009, p. 116).
qualidade de vida das populações e o O movimento da educação permanente tem,
desenvolvimento dos países, o que possibilitou pois, como fragilidades a ausência de uma
a implementação de medidas de alfabetização, reflexão e de uma postura crítica perante o
mas ao mesmo tempo contribuiu para desenvolvimento industrial, bem como a
subordinar tais medidas à lógica da inexistência de um questionamento
racionalidade económica, instrumentalizando- relativamente ao conhecimento do processo
as. formativo.
Como tal, ao colocar a tónica no défice de
conhecimentos e competências, pôs a nu as 3. A União Europeia e a formação
suas fragilidades, originando a estigmatização
de adultos
social dos analfabetos, bem como a
desvalorização dos seus saberes e da sua A Comissão Europeia publicou o Livro Branco
cultura. “Ensinar e aprender. Para uma sociedade
Assim, se se justificava a importância das cognitiva” em 1995.
políticas de alfabetização de adultos com base Em termos políticos, a construção europeia
num discurso orientado para o défice dos destaca a educação e a formação de forma
analfabetos, ao mesmo tempo propunham-se subordinada à lógica económica, referindo que
metodologias inovadoras de intervenção a educação ao longo da vida corresponde
sustentadas nos saberes e na cultura desses essencialmente à formação profissional, sendo
mesmos analfabetos. que esta última deve ir de encontro às
As práticas de educação de adultos foram-se necessidades das empresas.
institucionalizando e subordinando Como tal, a formação de adultos surge como
gradualmente ao modelo escolar, fruto deste uma forma de “gestão social do
tipo de intervenção estar centralizado nos desemprego” (Canário, 2008, p. 90), tendo
governos e ser imposto às bases. Isto porque o como finalidade aumentar a produtividade e
analfabetismo era entendido como um criar emprego.
obstáculo ao desenvolvimento dos países.
A educação de adultos e a criação de um
Tal institucionalização tem efeitos perversos, na manancial de ofertas formativas a ela
medida em que não questiona ou critica as associadas denota uma visão da educação
instituições, utilizando as experiências não como sendo um instrumento ao serviço da
formais e as aprendizagens significativas daí economia de mercado. A esta perspetiva junta-
decorrentes e reduzindo-as a uma estrutura se uma visão técnica das práticas educativas, a
formal e institucional, justificando assim uma qual privilegia critérios usualmente relacionados

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

com as empresas, como sejam a “eficácia” e a De acordo com Cavaco (2009), no que se refere
“qualidade”. A formação é vista sob a dupla ao Memorando sobre a Aprendizagem ao
perspetiva de instrumentalidade e de eficácia. Longo da Vida, o qual foi publicado pela
Comissão Europeia em 2000, existe a
As pessoas são vistas como “consumidores” ou
pretensão de facilitar a postura em prática do
“clientes”, optando pela acumulação individual
que foi preconizado pelo Livro Branco da
de certificados e diplomas, tornando-se
Educação e Formação.
gestoras da sua formação, de acordo com o
mercado. A lógica do “aprender a ter” A aprendizagem ao longo da vida pressupõe a
sobrepõe-se, pois, à lógica do “aprender a ser”. necessidade de aprender desde o nascimento
até à morte, como garante de empregabilidade,
O Livro Branco faz referência à educação e inclusão social, competitividade e
formação ao longo da vida numa perspetiva desenvolvimento económico. A aprendizagem é
utilitária e instrumental, ao serviço da vista como um direito e um dever das pessoas,
racionalidade económica de mercado, centrando-se a responsabilidade nos indivíduos
valorizando a relação da educação com o e referindo-se a cidadania ativa como estratégia
mundo do trabalho (“ligar a escola à empresa”) de responsabilização individual por forma a não
como forma de resolução dos problemas de passarem por situações de exclusão social.
emprego e das empresas.
Quando se fala em cidadania ativa, quer-se com
Neste documento é citado por diversas vezes o isso significar a participação no mundo do
Livro Branco “Crescimento, competitividade, trabalho, destacando-se as questões
emprego” (Comissão Europeia, 1993), o qual económicas e a gestão de recursos humanos.
apresenta uma perspetiva da educação e da
formação em termos de instrumentos a utilizar O documento apela às parcerias e à
para o desenvolvimento de competências por responsabilidade dos parceiros sociais, às ONG
forma a facilitar a inserção profissional. e à sociedade civil, privilegiando o nível de
intervenção local, o que pressupõe um enfoque
O Livro Branco apresenta, pois, a educação na descentralização. Mas este documento
segundo uma lógica economicista, refere muito pouco o papel do Estado,
subordinando a educação à economia de denotando uma demissão do Estado e
mercado. salientando antes uma perspetiva de mercado
Este documento menciona o reconhecimento, relativamente à educação e formação.
validação e certificação de competências, bem
O documento faz ainda referência à totalidade
como a carteira pessoal de competências, no
da população, não identificando prioridades em
sentido de solucionar a situação dos jovens que
termos de públicos, como é o caso das
saem do sistema educativo sem certificação
pessoas desfavorecidas socialmente ou
escolar ou qualificação profissional, colocando
daquelas que menos beneficiam da formação,
o enfoque nas questões do emprego. Há, pois,
nem foca os adultos analfabetos ou pouco
uma aposta no reconhecimento e validação de
escolarizados.
adquiridos experienciais, mas apenas de acordo
com uma lógica de gestão de recursos A educação e a formação ao serviço da
humanos e de desenvolvimento económico. produtividade, da competitividade e do
Está-se perante uma lógica instrumental crescimento não são a solução para os
direcionada para a obtenção de certificações problemas sociais existentes atualmente.
escolares e/ou profissionais como forma de Apesar de ser uma vantagem competitiva
promoção da mobilidade e da empregabilidade. individual a nível da obtenção de emprego,

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

as qualificações gerais não são diretamente


proporcionais ao volume total de trabalho nem à
sua distribuição, pelo que a formação não cria
empregos. O aumento da riqueza também não
é garante da sua distribuição mais equitativa,
como aliás se tem verificado, pelo que os
problemas sociais atuais não podem ser
resolvidos de acordo com uma lógica de
competição, produção, apropriação e
acumulação individual de bens.
Em síntese, a educação de adultos encontra-se
numa encruzilhada. Se na sua origem tinha
como objetivo a mudança social, hoje “a
educação de adultos substitui o discurso
emancipatório do ‘bem comum’ e o modelo
politicamente inspirado do bem-estar coletivo
por um discurso sobre a auto-realização
individual e a racionalidade do mercado, i.e., a
competitividade. Como consequência da sua
‘evolução’ bem-sucedida, a educação de
adultos enfrenta agora uma situação paradoxal”
(Finger, 2005, pp. 27-28). Figura 1 – Percurso histórico da EFA

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

4. O contexto português e a formação passem a ser asseguradas por dois


de adultos departamentos: o Departamento do Ensino
Básico (DEB) e pelo Departamento do Ensino
Secundário (DES)” (p. 144).
De acordo com Lima (2005), em Portugal, a
educação de adultos, entre 1974 e 2004, é um Na perspetiva de Lima (2005), ultimamente a
campo marcado por políticas educativas educação de adultos está submetida às lógicas
descontínuas, havendo no entanto uma da formação profissional contínua, deslocando-
situação de continuidade ao longo do tempo. se assim da área da educação para a área da
Ou seja, “a sociedade política portuguesa, os economia e para a área da gestão dos recursos
sectores hegemónicos da sociedade de ontem humanos.
e de hoje sempre alcançaram um grande A ausência de uma política pública de
sucesso nas suas intenções (…) de impedir desenvolvimento no que se refere à educação
aquela maioria dos portugueses adultos de se de adultos caracteriza as políticas das últimas
tornarem verdadeiros cidadãos por forma a décadas, através da ausência de políticas
participarem, conscientemente e consistentes, desresponsabilizando o Estado e
informadamente, na (re)organização e na não cumprindo a Constituição da República16
(re)criação da res publica” (Melo, 2004, cit in relativamente à democratização da educação,
Lima, 2005, p. 32). designadamente no que concerne à população
A estas políticas descontínuas está ainda historicamente privada dos direitos sociais
associada a ausência de um fio condutor. Neste básicos.
sentido, de acordo com Cavaco (2009), “A A ausência de uma política global e integrada
Direcção-Geral de Educação Permanente no que diz respeito à educação de adultos –
(DGEP) foi criada em 1971 (Decreto-Lei educação básica, educação popular, educação
408/71), sob a influência das orientações da comunitária e desenvolvimento local – é uma
UNESCO e do movimento da educação constante, a qual pode ser analisada sob a
permanente, e extinta em 1977 pelo I Governo perspetiva de uma forma de controlo e de
Constitucional, sendo substituída pela Direcção- reprodução social.
Geral de Extensão Educativa (DGEE). O II Quanto ao controlo social, houve um retorno a
Governo, em 1978, recusa a ratificação do orientações escolarizantes, controladas
Decreto-Lei que extingue a Direcção-Geral de centralmente pela política e pela administração
Educação permanente. No V Governo, em da educação. O campo da educação de
1979, é extinta a Direcção-Geral de Educação adultos passou a estar formalizado de acordo
Permanente (Decreto-Lei 534/79), criando-se a com uma educação escolar de segunda
Direcção-Geral de Educação de Adultos oportunidade, i.e., o ensino recorrente.
(DGEA). O X Governo, em 1987, extingue a
Direcção-Geral de Educação de Adultos e cria a No que diz respeito à reprodução social, há
Direcção-Geral de Apoio e Extensão Educativa uma aproximação à modernização económica e
(DGAEE). O XI Governo, em 1989, ou seja, à produção de mão-de-obra qualificada
apenas dois anos após a última alteração, associadas a orientações vocacionais e de
extingue a Direcção-Geral de Apoio e Extensão produção de capital humano.
Educativa e cria a Direcção-Geral de Extensão Tal como refere Lima (2005), “As lógicas de
Educativa (DGEE). O XII Governo, em 1993, promoção de um direito humano básico, da
extingue a Direcção-Geral de Extensão solidariedade e do bem comum, da justiça
Educativa e define que as suas competências social, mais típicas da educação básica de

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

adultos e da educação para a cidadania A educação popular resiste à margem do


democrática, são confrontadas com a lógica da sistema educativo, quer seja através de projetos
empregabilidade, da competitividade e da de investigação-ação e de investigação
emulação, com as quais muito dificilmente têm participativa, quer seja através de políticas
podido conviver” (p. 34). sociais e dos programas comunitários de apoio
As políticas públicas de educação debatem-se a determinadas áreas sociais, como sejam a
atualmente com “um problema de muitas infância, a terceira idade, a formação
décadas de políticas educativas para o controlo profissional, o combate à pobreza, entre outros.
social, face a uma população adulta pouco Neste contexto, a educação de base de adultos
escolarizada, com elevadíssimas taxas de está sujeita a problemas e adversidades,
analfabetismo literal, ultrapassando os 20% em sobretudo quando pretende contribuir para uma
vários concelhos do país e, nos últimos trinta educação de base crítica, com vista à
anos, tem sido ainda a ausência de uma política democracia política e económica, à
de educação de adultos democrática, séria e transformação do poder de decisão e à
competente, tão paciente (porque sabe que a mudança social, já que a perspetiva elitista da
mudança exige tempo) quanto esperançosa, democracia e a competitividade económica, as
sistemática e consequente (porque sabe que quais influenciam a qualificação e a gestão dos
sem retaguarda educativa e sem recursos humanos, colocam um entrave aos
desenvolvimento humano não há modernização ideais e ao potencial da educação de
democrática e sustentável)” (Lima, 2005, p. 35). base de adultos, pondo em
As políticas e as práticas de desenvolvimento evidência “(…) processos de
socioeducativo, mais do que utilizar aprendizagem
instrumentos legislativos ou programas
vocacionais ou de reconversão, assentam no
facto de que o indivíduo é o ator e o sujeito da
sua própria transformação.
As lógicas de modernização económica não
valorizam as tradições e as culturas locais, a
experiência de vida dos adultos, bem como não
valorizam a educação de adultos em termos da
sua história, das suas teorias educativas e das
suas metodologias pedagógicas de educação
popular.
Nas últimas três décadas assiste-se, pois, a
uma deslocação das políticas de educação
popular para as políticas de formação e
qualificação e de gestão de recursos humanos.
As políticas públicas direcionadas para o apoio
à educação popular e ao associativismo
socioeducativo deixaram um espaço vazio, o
qual ainda hoje se encontra por preencher no
que diz respeito a políticas educativas.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

individual e aparentemente neutros e relacionado com a descontinuidade das


despolitizados como forma de ajustamento e políticas e das ações, tendo em conta as
adaptação funcional aos imperativos do fragilidades socioeducativas existentes.
capitalismo global” (Lima, 2005, p. 43). Apesar de se fazer um apelo e de se acreditar
A educação ao longo da vida é um ideal que a educação poderá ser uma forma de
educativo com mais de três décadas, mas resolução dos problemas económicos e sociais,
atualmente incide sobretudo na sua variante de tal não se tem verificado na prática. Até porque
formação e aprendizagem ao longo da vida e “(…) em termos de valorização e de prioridades
assenta no facto de que os adultos aprendem nunca se trata da educação toda e raramente
permanente e naturalmente por sua iniciativa, da educação para todos” (Lima, 2005, p. 45).
sem necessidade de recurso a políticas
O objetivo consistia na mobilização de elites e
públicas de educação de adultos.
em assegurar a formação de uma mão-de-obra
A modernização económica e a gestão de assalariada, embora de modo politicamente
recursos humanos influenciam a política controlado, e não a educação básica de todo o
educativa, sendo que esta lógica surgiu em povo. Este objetivo está relacionado com a
Portugal nos últimos anos, recorrendo a modernização económica e autoritária,
financiamentos públicos, bem como a lógicas fomentado o controlo da educação pública
de mercado, de gestão privada e da escolha enquanto forma de produção de capital
pública, não tendo em conta a maioria da humano necessário às exigências do
população adulta cultural e economicamente crescimento económico e da competitividade.
excluída do “mercado de aprendizagem”. Esta é, pois, uma forma de qualificar
A modernização do país, sobretudo a nível determinados recursos humanos relativamente
económico, e a respetiva política educativa de a determinados sectores económicos e sociais,
gestão de recursos humanos, intensificou-se a ao invés de se praticar uma educação
partir de meados dos anos oitenta como forma humanista e democrática por forma a alcançar-
de resposta aos designados desafios da se o efetivo desenvolvimento humano e social
integração europeia. de todos os cidadãos.

A emergência da modernização de carácter Na perspetiva de Lima (2005), apesar da


neoliberal e conservador ocorreu educação para a modernização ter-se revelado
simultaneamente à expansão do Estado- sem sucesso, as políticas educativas continuam
Providência em domínios sociais e educativos e, a dar destaque à “formatividade” ao invés da
no que se refere à educação de adultos, tal não educação, à responsabilidade individual ao
trouxe ganhos significativos, apesar da afetação invés da responsabilidade social e do destino
de fundos direcionados fundamentalmente para coletivo, privilegiando orientações imediatistas e
o ensino recorrente e para a formação de curto prazo.
profissional. Esta situação não permitiu a No decurso da década de noventa, o ensino
realização de uma política pública de educação recorrente e a formação profissional são as
de adultos, já que a existência de uma alternativas possíveis no que se refere ao
administração centralizada não permitiu o campo da educação de adultos, deixando de
ressurgir da lógica da educação popular e do se dar relevo a outras áreas, tais como as
associativismo. questões da alfabetização e da literacia.
De acordo com Lima (2005), um outro problema Em 1995/1996, o PS – Partido Socialista -
estrutural das políticas educativas está coloca a educação de adultos no centro do seu

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

discurso, partindo da constatação de que não implementação de um Programa para o


existia um sistema de educação de adultos. Desenvolvimento da Educação e Formação de
Como tal, retoma o tema referindo a Adultos, foi criada a ANEFA, um instituto
necessidade da existência de uma “(…) política público que se encontrava na dependência dos
de desenvolvimento, promoção da educação Ministérios da Educação e do Trabalho e da
extra-escolar, educação para o Solidariedade.
desenvolvimento, apoio ao movimento
De acordo com Cavaco (2009), “A ANEFA foi
associativo. Em suma, (…) o renascimento da
responsável pelo lançamento de um conjunto
educação de adultos” (Lima, 2005, p. 46).
de iniciativas que se reconhecem como
Em 1998, uma equipa nomeada pela Secretaria inovadoras e pertinentes, tais como: os cursos
de Estado da Educação e Inovação elaborou de Educação e Formação de Adultos (EFA),
um documento onde se propunha o com dupla certificação escolar e profissional, a
desenvolvimento de uma política pública de rede de Centros de Reconhecimento, Validação
educação de adultos em que “o Estado e Certificação de Competências, os concursos
assumiria as suas responsabilidades e definiria de boas práticas de educação e formação de
políticas, criaria um sistema nacional, financiaria adultos e as Ações S@ber +” (p. 161). “Porém,
e desenvolveria parcerias” por forma a articular estas práticas, embora baseadas em
uma “lógica de serviço público” com uma metodologias de valorização da experiência e
“lógica de programa”, tendo em conta quatro com potencialidades nas questões da
áreas, designadamente a formação de base, o emancipação, foram apropriadas, em termos
ensino recorrente, a educação e formação ao políticos, sobretudo, numa lógica de
longo da vida e a educação para a cidadania. qualificação e de gestão de recursos
Tal documento seguia as linhas orientadoras já humanos” (p. 178).
contidas no PNAEBA – Plano Nacional de Neste sentido, a ANEFA criada em 1999 e a
Alfabetização e de Educação de Base dos ANEFA proposta têm diferenças em termos
Adultos -, retomando a perspetiva da educação estruturais, de competências e de recursos. Ou
popular e de base de adultos, bem como a seja, o Governo do PS colocou o enfoque em
garantia de uma oferta pública e a criação de lógicas de modernização, de indução e de
um sistema autónomo e descentralizado qualificação de recursos humanos com vista à
composto por “unidades locais”, centros de empregabilidade e à aquisição de competências
balanço de competências e estruturas de para competir. “A indução predominou sobre a
validação de aprendizagens, existindo um intervenção, a ‘lógica de programa’ inibiu a
serviço central de credenciação e registo de ‘lógica de serviço público’, a anunciada política
entidades que intervinham na área da educação de desenvolvimento foi limitada à produção de
de adultos. Era, assim, proposta a criação da orientações estratégicas com vista à criação de
ANEFA - Agência Nacional de Educação de condições de intervenção de terceiros, tal como
Adultos. As principais competências desta a anunciada articulação entre educação e
agência seriam as seguintes: alfabetização e formação cedo veio a revelar a subordinação da
literacia básica, ensino recorrente, recuperação primeira às agendas da segunda” (Lima, 2005,
escolar, promoção educativa, técnica, científica, pp. 48-49).
cívica e artística, apoio à intervenção cívica e
A educação de adultos foi subordinada a um
animação e desenvolvimento local.
mero instrumento vocacional, sendo que a
Em 1999, após os trabalhos de um Grupo de política dominante em termos educativos foi
Missão criado para levar a cabo a influenciada por uma modernização de carácter

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

gerencial, empresarial e produtivista, pelo que, mudanças, confrontando-se com orientações e


em 2002, a ANEFA foi extinta dando lugar à modelos organizacionais diferentes.
DGFV – Direção Geral de Formação Vocacional. A educação de adultos tem seguido a lógica da
De acordo com Cavaco (2009), “A extinção da gestão de recursos humanos, centrando-se em
ANEFA e as sucessivas mudanças de questões como a competitividade e a
designação do órgão que tutela estas medidas, racionalidade económica, pelo que a educação
primeiro a Direcção-Geral de Formação apenas se adapta às lógicas e necessidades do
Vocacional e mais tarde a Agência Nacional mercado, sendo a cidadania remetida para “(…)
para a Qualificação, enquadram-se num um modelo de mercado de liberdades,
exercício de consolidação e afirmação do estritamente económicas, dos
pendor vocacionalista destas políticas (…)” consumidores” (Lima, 2005, p. 51).
(p. 187). Como tal, a educação popular enfrenta um
A partir de 2007, a atividade da ANQ – Agência dilema: ou adota a vertente vocacionalista, de
Nacional para a Qualificação - preconiza a acordo com orientações de tipo profissional e
uniformização do processo de adquiridos contínuo, tendo em conta a economia e as
experienciais, com vista ao cumprimento de empresas; ou continua o seu caminho tendo
metas quantitativas, não atendendo às por base a mudança social e a
especificidades de cada adulto. O enfoque é “conscientização”, relacionando-se com
colocado na racionalidade económica, no movimentos sociais populares e orientando-se
mercado de trabalho e na competitividade. de acordo com “os ideais de educação política
Tal como refere Lima (2005), “(…) o paradigma e de alfabetização crítica” (Lima, 2005, p. 51).
vocacional, a formação profissional e a ideologia No primeiro caso, seguirá a lógica da
das competências são apresentados como a modernização e da produtividade, da
solução para o ‘atraso’ do país. A educação de adaptação e da empregabilidade, pelo que
adultos volta a sucumbir enquanto política poderá vingar. No segundo caso, manterá a sua
educativa pública (…) A própria população origem humanista-crítica e a perspetiva
adulta perde identidade, acabando emancipatória e transformativa, podendo
conceptualmente rejuvenescida por referência defrontar-se com problemas.
ao ‘ensino recorrente’ para jovens-adultos e No que se refere a Portugal, as políticas
restringida a ‘população ativa’ para efeitos de educativas públicas adotaram uma lógica de
‘qualificação profissional’” (p. 49). gestão de recursos humanos e de
A educação popular e de base de adultos “qualificação” dos adultos em detrimento da
relaciona-se de modo privilegiado com o lógica da educação popular. No entanto, a
desenvolvimento local, com a educação primeira não se tem revelado capaz de
comunitária e com a educação cívica e para a contribuir para dar resposta aos problemas
cidadania democrática. Mas as políticas socioeducativos da maior parte dos adultos,
públicas reconhecem à educação popular o seu pelo que a resposta passaria pela promoção da
potencial educativo e formativo? segunda com vista ao desenvolvimento e
mobilização socioeducativa de forma
É de referir que, por um lado, as políticas participada e contextualizada localmente. Mas,
públicas têm adotado orientações pragmáticas para tal, seria necessária uma mudança a nível
e economicistas e, por outro lado, as político-ideológico por forma a desenvolver-se
organizações de educação popular têm sofrido uma efetiva educação democrática.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

4.1. Os adultos com deficiências Em 2006, o então Governo PS, na esteira dos
e incapacidade instrumentos normativos aprovados no plano
internacional e comunitário, pretendeu
A ordem jurídica portuguesa estabelece um implementar políticas de promoção da
conjunto de normativos em que se procura integração social das pessoas com deficiências
garantir a democratização do acesso à ou incapacidade, de que são exemplo a
educação. Com efeito, a Constituição da aprovação do I Plano de Ação para a
República Portuguesa (CRP) no art.º 73. n.º 1 e Integração das Pessoas com Deficiências ou
n.º 2, estabelece que todos têm direito à Incapacidade (PAIPDI) ou do Plano Nacional de
educação e que ao Estado deve competir a Ação para a Inclusão (PNAI).
promoção da igualdade de oportunidades. Por Neste contexto, o I Plano de Ação para a
outro lado, de modo a garantir que os Integração de Pessoas com Deficiências ou
deficientes tenham uma resposta educativa Incapacidade (PAIPDI) tinha como um dos
adequadas às suas especificidades, a CRP objetivos a qualificação, formação e emprego
dispõe no art.º 74.º n.º 2 alínea g) que na das pessoas com deficiência ou incapacidade.
realização da política de ensino incumbe ao Este plano insere-se num conjunto de políticas
Estado “Promover e apoiar o acesso dos implementadas pelo XVII Governo
cidadãos portadores de deficiência ao ensino Constitucional em que se promove a inclusão
(...)”. social das pessoas com deficiência ou
Para além de se ter consagrado na lei incapacidade (Resolução n.º 120/2006).
fundamental o direito à educação dos O conceito de inclusão está muito ligado à
deficientes, existe também um mecanismo educação, em particular ao ensino de crianças
jurídico, o Decreto. Lei n.º 34/2007, de 15 de com necessidades educativas especiais e à
Fevereiro, em que se previne e proíbe a escola, embora também se possa estender aos
discriminação, direta ou indireta, em razão da adultos. Com efeito, as situações de
deficiência, sob todas as suas formas, e se aprendizagem podem acontecer em todas as
sanciona a prática de atos que se traduzam na fases da vida, pelo que não é uma filosofia
violação de quaisquer direitos fundamentais. educativa apenas dirigidas às crianças. Esta
Ou seja, assegura-se que pelo menos no plano conceção está também expressa na Declaração
normativo as pessoas com deficiências e de Salamanca (1994) onde há diversas
incapacidade tenham os mesmos direitos que referências aos adultos, nomeadamente no
os outros cidadãos, prevendo-se ainda um ponto 5.5:
conjunto de medidas sancionatórias para as “5.5. Pessoas portadoras de deficiências
entidades que de alguma forma desrespeitem deveriam receber atenção especial quanto ao
os direitos das pessoas com deficiência. desenvolvimento e implementação de
O Estado português, ao assumir a igualdade de programas de educação de adultos e de
direitos para os deficientes, compromete-se a estudos posteriores. Pessoas portadoras de
adotar as medidas necessárias para garantir às deficiências deveriam receber prioridade de
pessoas com deficiências e incapacidade o acesso a tais programas. Cursos especiais
pleno reconhecimento e o exercício dos seus também poderiam ser desenvolvidos no sentido
direitos num quadro de igualdade de de atenderem às necessidades e condições de
oportunidades. diferentes grupos de adultos portadores de
deficiência”.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Embora a perspetiva aqui enunciada seja Todavia, o PAIPDI não se limita a referir que se
meramente educacional, ela tem em conta que aplica a pessoas com deficiências ou
aos adultos devem ser proporcionadas incapacidades, assumindo uma nova conceção
condições que lhes facilitem o acesso a de deficiência e incapacidade, baseada na
programas de educação que tenham em conta Classificação Internacional de Funcionalidade
as diversidades de cada um e que permita a Incapacidade e Saúde (CIF) que foi publicada
aprendizagem de todos. pela Organização Mundial da Saúde em 2001
O conceito de inclusão que fundamenta o (Organização Mundial da Saúde, 2003).
conjunto de medidas tomadas pelo governo em De acordo com o disposto no 1.2 da Resolução
relação aos adultos deficientes relaciona-se do Conselho de Ministros n.º120/2006, a CIF
com a ideia de que ao adulto com deficiência protagoniza um novo sistema de Classificação
deve ser proporcionado todo um conjunto de multidimensional e interativo que não classifica
condições e de apoios que combatam a a pessoa nem estabelece categorias
exclusão, promovam a integração social, bem diagnósticas, passando antes a interpretar as
como uma cidadania plena. Ou seja, falar-se em suas características, nomeadamente as
educação inclusiva é redutor, pois limita-se à estruturas e funções do corpo, incluindo as
vertente educativa, daí que se utilize o termo funções psicológicas e a interação pessoa-meio
inclusão social, referido na Resolução n.º ambiente (atividades e participação).
120/2006. Trata-se de um conceito de inclusão A definição do conceito de deficiência e
próximo do enunciado por Florian, a incapacidade adotado veio clarificar a sua
oportunidade de indivíduos com uma utilização e conduziu à sua generalização na
deficiência participarem cabalmente em todas sociedade portuguesa levando à reformulação
as atividades educativas, laborais, de consumo, de políticas sectoriais, de sistemas de
de diversão, comunitárias e domésticas que informação e estatística, de quadros
caracterizam a sociedade quotidiana (2003, legislativos, de procedimentos e de
p. 37). instrumentos de avaliação e de critérios de
elegibilidade (PAIPDI Parte I 1.3).
Há o assumir de que se deve adotar o conceito
de incapacidade enquanto termo genérico que
engloba os diferentes níveis de limitações
funcionais relacionados com a pessoa e o seu
meio ambiente em substituição do termo
«deficiência» (que apenas corresponde às
alterações ou anomalias ao nível das estruturas
e funções do corpo, incluindo as funções
mentais) e por isso mais restritivo e menos
convergente com o modelo social que
perfilhamos.
No entanto, como o termo deficiência ainda é
aquele que é mais utilizado decidiu-se manter
em simultâneo os termos incapacidade e
deficiência de forma a estabelecer uma

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

transição e indiciar um caminho para a adoção 3/2008), sendo por essa via definidos os apoios
da nova terminologia (PAIPDI Parte I 1.3). especializados a prestar na Educação Pré-
escolar e nos ensinos Básico e Secundário, dos
No que se refere à criação de condições de
sectores Público, Particular e Cooperativo,
igualdade de direitos, oportunidades e acesso
surgindo em 2009 o Sistema de Atribuição de
por parte das pessoas com deficiências ou
Produtos de Apoio – SAPA (D.L. nº 93/2009),
incapacidade às áreas da Educação e da
referente às necessidades de acesso e
Formação, é possível afirmar que as medidas
frequência por parte das pessoas com
implementadas (em especial na primeira década
deficiências e incapacidade ao Sistema
do século XXI) dão conta de uma política
Educativo, no âmbito da Educação Pré-escolar
estratégica de reconhecimento e inclusão da
e dos Ensinos Básico e Secundário (INR,
diversidade funcional. Nesse sentido, importa
2009:42-44).
realizar uma breve alusão a duas medidas
estratégicas: a Reforma do Ensino Especial e a Ainda no âmbito da Reforma do Sistema da
inclusão das deficiências ou incapacidade no Educação Especial, assistiu-se à ”reorientação
Sistema Nacional de Qualificações. das instituições de ensino especial privadas em
centros de recursos”, à criação nas Escolas de
No âmbito da Reforma do Ensino Especial, foi
Unidades de Ensino Especializado, de Ensino
possível assistir à criação e ao estabelecimento
Estruturado e Centros de Recursos TIC, à
de um conjunto de medidas que visam o
criação de Redes de Referência e ainda ao
respeito, a proteção e o reconhecimento das
alargamento do número de beneficiários
pessoas com deficiências ou incapacidade,
contemplados pelo novo regime de apoio aos
sendo por essa via reconhecidos e reafirmados
alunos com NEE de carácter permanente (INR,
os seus direitos básicos à Educação e
2009:43).
Formação, bem como a igualdade de
oportunidades nas áreas referidas. Na sequência de uma otimização e
reestruturação da Formação Profissional
Nesse sentido, estando consignado na Lei de (R.C.M. nº 173/2007), que passou a estar
Bases do Sistema Educativo (Lei nº 46/86, de duplamente inserida no sistema Educativo e no
14 de Outubro) o direito à integração de alunos mercado de trabalho, a Formação passou a
com necessidades educativas especiais (NEE) estar contemplada num “único sistema com
devido a deficiências físicas ou mentais, o Plano instrumentos e objetivos comuns”,
de Ação para a Integração das Pessoas com designadamente o Sistema Nacional de
Deficiências ou Incapacidade 2006/2009 Qualificações - SNQ (INR, 2009:45).
(resultante da R.M. nº 120/2006 e revogado
segundo a R.C.M. nº 88/2008) definiu um Valorizando a Educação e Formação e, por
conjunto de medidas aplicáveis ao sector da conseguinte, a dupla certificação, o SNQ
educação especial, das quais se destacavam a promove e potencia um carácter inclusivo no
prioridade nas matriculas, o apoio pedagógico que se refere ao direito de acesso e frequência
especializado, adequações curriculares das pessoas com deficiências e incapacidades
individuais, adequações nos processo de à qualificação, sendo um dos seus fatores
avaliação e tecnologias de apoio ao ensino ilustrativos o facto dos então Centros Novas
(INR, 2009:42-43). Oportunidades (responsáveis pela
administração da oferta formativa Processo de
Posteriormente, em 2008, assistiu-se à criação RVCC – Reconhecimento, Validação e
do Regime de Apoio aos Alunos com Certificação de Competências) serem regidos
Necessidades Educativas Especiais (D.L. nº por este sistema.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Com vista a uma constante e progressiva em processo de RVCC. Assim, os então CNO e
garantia dos direitos das pessoas com as entidades formadoras de ofertas de
deficiências e incapacidade, em particular nas educação e formação de adultos deveriam
áreas da educação, formação e emprego, integrar pessoas com deficiências ou
foram incluídos no Catálogo Nacional de incapacidade nas atividades que vinham
Qualificações (CNQ) percursos de qualificação exercendo para a demais população.
ajustados à diversidade funcional dos indivíduos O processo de RVCC e as ofertas de educação
e ainda identificadas e definidas as condições e formação de adultos sustentam-se nos
“ótimas” de acessibilidade e frequência das Referenciais de Competências-Chave em vigor,
pessoas com deficiências e incapacidade aos orientando-se, quando direcionados para
cursos e ações de formação inicial ou contínua, pessoas com deficiências ou incapacidade, por
destinados à população em geral (INR, Instrumentos de Referência de âmbito nacional
2009:45). e considerando o tipo ou natureza da
Não obstante a existência de um conjunto de deficiência ou incapacidade, validados pelo
diplomas normativos com o objetivo de organismo competente. A singularidade dos
promoção da inclusão social dos adultos públicos em presença reflete-se ainda na
deficientes, havia uma lacuna relativamente à constituição das equipas técnico-pedagógicas
possibilidade destes acederem aos processos dos CNO e das entidades formadoras de
de reconhecimento, validação e certificação de ofertas de educação e formação de adultos.
competências, pois não havia qualquer No sentido de permitir que as pessoas com
regulamentação que tivesse em conta a deficiências e incapacidades tivessem uma
especificidade deste público. resposta mais flexível e adequada às suas
Neste sentido, não deixando de dar-se circunstâncias específicas, foram criados,
seguimento ao contexto e tendência no que se desde 2007, cinco CNO Inclusivos
refere à educação de adultos em Portugal, em vocacionados para diferentes tipos de
Outubro de 2007 foi publicado o Despacho deficiência.
29176/2007, o qual define orientações relativas
à qualificação de adultos com deficiências ou
incapacidade. No quadro da promoção de
oportunidades de educação, formação e
trabalho ao longo da vida, o despacho contém
os princípios orientadores do acesso das
pessoas com deficiências ou incapacidade ao
processo de reconhecimento, validação e
certificação de competências (RVCC) adquiridas
por via formal, não formal e informal conducente
a uma habilitação escolar, bem como a outras
ofertas de educação e formação de adultos
organizadas de acordo com os Referenciais de
Competências-Chave para a Educação e
Formação de Adultos em vigor,
designadamente cursos de educação e
formação de adultos (Cursos EFA) e ações de
formação de curta duração dirigidas a adultos

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Estes CNO operacionalizaram processos de processo, não existindo assim a possibilidade


RVCC de adultos com as seguintes de flexibilizar a aplicação dos Referenciais de
características: Deficiências músculo Competências-Chave, de modo a adaptá-los,
esqueléticas (CNO do Centro de Reabilitação se necessário, a adultos com deficiências. Com
Profissional de Gaia); Paralisia cerebral (CNO da efeito, apenas em Julho de 2009 surgiu um guia
Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra); metodológico que orienta e apoia as equipas
Deficiências Sensoriais (CNO do Centro de técnico-pedagógicas na operacionalização do
Educação e Desenvolvimento António Aurélio processo de reconhecimento, validação e
da Costa Ferreira, em Lisboa); Deficiências certificação de competências de nível básico, a
Intelectuais (CNO do Agrupamento de Escolas adultos com deficiências ou incapacidades - o
Lima de Freitas – CFAE Arrábida, em Setúbal); Guia Metodológico para o Acesso das Pessoas
Deficiência Mental (CNO da Associação de com Deficiência ao Processo de
Saúde Mental do Algarve). Reconhecimento Validação e Certificação de
Os CNO Inclusivos caracterizavam-se por Competências de Nível Básico (Sousa et al,
serem espaços especializados, com recursos 2009) -, passando então a ser possível adotar
humanos e físicos adequados às exigências e estratégias de individualização e flexibilidade
necessidades das pessoas com que intervêm, nas abordagens dos processos de RVCC.
nomeadamente com equipas técnico- Como tal, o Guia identifica “os ajustamentos a
pedagógicas multidisciplinares que asseguram introduzir nas dinâmicas dos processos de
o acesso das pessoas com deficiência e RVCC de acordo com o Referencial de
incapacidades ao processo de RVCC. Competências-Chave de Educação e Formação
Dada a distribuição geográfica dos CNO de Adultos - Nível Básico (RCC-NB)”, introduz
inclusivos, a sua área de intervenção estava (exemplos de) adaptações necessárias com
limitada às zonas do Porto, Coimbra, Lisboa, base nas alterações das funções e estratégias a
Setúbal e Algarve, o que deixava de fora muitos mobilizar por forma a ultrapassar eventuais
adultos que residiam fora daquelas zonas obstáculos, sem que seja contudo
territoriais, justificando assim o facto dos CNO comprometido o grau de complexidade e
que não eram inclusivos também terem exigência da oferta formativa em causa (Sousa
assegurado o acompanhamento a adultos com et al, 2009:10).
deficiências ou incapacidades. Até à sua publicação, tanto os CNO inclusivos
Ainda foram realizadas alterações ao nível dos que nos termos do n.º 3 do Despacho n.º
instrumentos de suporte aos CNO, 29176/2007 implementaram processos de
nomeadamente do Sistema Integrado de RVCC dirigidos a pessoas com deficiência ou
Informação e Gestão da Oferta Formativa incapacidades, como os outros CNO que
(SIGO), que passou a incorporar o levantamento tiveram como utentes adultos com aquele perfil,
de oferta formativa para pessoas com tiveram que exigir a evidenciação das mesmas
deficiência e incapacidade (INR, 2009:46). competências a todos os adultos que os
frequentaram, pois não podia ser concretizada
Porém, este despacho ficou muito longe de qualquer adequação aos Referenciais de
corresponder, efetivamente, às características Competências-Chave. Por outro lado, o Guia
do público que queria abranger, uma vez que os Metodológico só se aplica ao nível básico,
elementos das equipas dos então CNO não deixando de fora os adultos que enveredam por
tinham orientações de natureza metodológica processos de RVCC NS, o que colocava aos
que os apoiassem na implementação do CNO, e continua a colocar aos CQ, problemas

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

na operacionalização, uma vez que as modelo económico produtivo, sendo a


estratégias de individualização aí previstas não economia de mercado o motor da educação e
se aplicam a este nível de ensino. Assim, seria da formação de adultos.
útil a criação de um guia metodológico que Depois, articularam-se as tendências
auxilie a operacionalização do processo de internacionais e da UE – União Europeia - com
RVCC NS. Com efeito, se não existir um apoio a evolução das medidas e políticas de
que permita identificar os ajustamentos a educação de adultos a nível do contexto
realizar, nomeadamente as eventuais alterações português. Para tal, fez-se menção aos
ao processo e aos critérios de evidência, a movimentos de educação popular, iniciados
tarefa das equipas técnico-pedagógicas está com o advento da industrialização, os quais
dificultada, podendo impedir que alguns adultos possibilitaram a tomada de consciência, a
consigam concluir este percurso formativo. reflexão e a postura crítica e promoveram a
participação social, valorizando o saber e a
experiência de vida das populações. Fez-se
Considerações finais também referência à DGEP – Direção Geral de
Educação Permanente - e ao PNAEBA
Neste documento foi realizada uma abordagem (1974-1976 e 1979), influenciados pelos ideais
em termos da evolução histórica das medidas e proclamados pela UNESCO no âmbito da
políticas da educação de adultos a nível Educação Permanente, os quais valorizavam a
nacional, europeu e internacional, cujo objetivo aprendizagem enquanto processo dinâmico e
consistiu em compreender o caminho contínuo. Destacou-se ainda o reforço do
percorrido até às atuais tendências políticas ensino recorrente como uma modalidade de
educativas da educação de adultos. ensino de segunda oportunidade dirigido a
adultos que não concluíram o percurso de
Como tal, começou por traçar-se uma
ensino formal, o que não contribui para o
perspetiva histórica a nível internacional,
desenvolvimento da educação de adultos.
mencionando-se a importância e a influência da
Abordou-se, igualmente, a influência dos
UNESCO em termos do movimento da
projetos de desenvolvimento local e a sua
educação permanente, considerando o
tentativa de (re)promover a educação popular,
indivíduo o centro do processo educativo, de
embora cingidos às políticas governamentais
acordo com uma conceção holística, humanista
vigentes, denotando uma vertente
e sistémica. Depois, fez-se uma análise das
desenvolvimentista, economicista e
Conferências realizadas no âmbito da UNESCO,
vocacionalista da educação de adultos. Focou-
articulando-se estas com a passagem do
se ainda a perspetiva da privatização e
movimento da educação permanente à
instrumentalização da educação, na medida em
perspetiva da aprendizagem ao longo da vida.
que a educação é entendida como um dever
De seguida, analisaram-se as medidas políticas dos cidadãos, direcionada sobretudo para a
da educação de adultos a nível da UE, tendo competitividade e para as necessidades do
em conta o Livro Branco “Ensinar e aprender: mercado de trabalho, passando-se a assumir
Para uma sociedade cognitiva” e o Memorando uma perspetiva de aprendizagem ao longo da
sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida, as vida no que se refere à educação de adultos. É
quais remetem para a perspetiva da colocado o enfoque na valorização das
aprendizagem ao longo da vida, associada à competências, o que leva ao crescimento da
lógica da gestão de recursos humanos e ao formação contínua, particularmente dirigida a

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

quem já detém mais qualificações. Finalmente, Notas


fez-se referência às entidades entretanto 15 Segundo Reis (1998), o termo holismo tem
criadas para regular e controlar a EFA origem no grego hólos e é referente à ideia de
(Educação e Formação de Adultos) – ANEFA, totalidade, sendo o todo mais do que a soma das
DGFV e ANQ - e aos CRVCC – Centros de partes. “A pessoa e o seu ambiente constituem uma
Reconhecimento, Validação e Certificação de unidade. Os factores físicos, mentais, espirituais,
Competências -, atuais CQ, que embora sociais e ambientais não existem separadamente,
inicialmente tentassem ir de encontro ao pois só existem enquanto componentes de uma
movimento da educação permanente, antes se totalidade” (Reis, 1998, p. 161).
integram na perspetiva da aprendizagem ao 16 A Constituição refere no seu Artigo 43.º
longo da vida, na medida em que promovem a (Liberdade de aprender e ensinar) que “É garantida a
certificação de competências e a qualificação liberdade de aprender e ensinar (…)”; no seu Artigo
académica. 73.º (Educação, cultura e ciência) que “2. O Estado
promove a democratização da educação e as
Por fim, fez-se uma breve incursão sobre o
demais condições para que a educação, realizada
percurso da educação de adultos em Portugal
através da escola e de outros meios formativos,
em termos das pessoas com deficiências ou contribua para a igualdade de oportunidades, a
incapacidade, recorrendo-se à análise da superação das desigualdades económicas, sociais e
legislação criada para tal e sua consequente culturais, o desenvolvimento da personalidade e do
postura em prática, designadamente a nível dos espírito de tolerância, de compreensão mútua, de
processos de RVCC e dos CQ, articulando-se solidariedade e de responsabilidade, para o
esta vertente com a legislação nacional progresso social e para a participação democrática
existente no que se refere à inclusão das na vida coletiva (…)”; e no seu Artigo 74.º (Ensino)
pessoas com deficiências ou incapacidade. que “1. Todos têm direito ao ensino com garantia do
direito à igualdade de oportunidades de acesso e
êxito escolar; 2. Na realização da política de ensino
incumbe ao Estado: (…) c) Garantir a educação
permanente e eliminar o analfabetismo (…)”
(Constituição da República Portuguesa,
2005, pp. 36.


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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Cidadania e Deficiência
Desafios de uma Cidadania Plena

Cheila de Carvalho
Mestre em Educação e Sociedade

Monitora de Centro de Atividades Ocupacionais em IPSS
(Amadora)
Cheilaccarvalho@outlook.pt

Resumo

O tema da deficiência não é unânime e é, ainda hoje, para muitos, um assunto pouco claro desde a
sua definição à forma como deve ser encarada, trabalhada e integrada nas políticas públicas. O tema
da deficiência aparece frequentemente associado a conceitos como inclusão, direitos e cidadania no
entanto quais os reais desafios das pessoas com deficiência enquanto cidadãos?
Com este artigo pretende-se uma reflexão sobre as questões da inclusão das pessoas com
deficiência nos diversos setores (educação, mercado de trabalho, sociedade, entre outros) e quais as
verdadeiras barreiras no exercício da sua cidadania.

Palavras-chave: deficiência, inclusão, cidadania, direitos 


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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

A deficiência

O tema da deficiência tem levado a muitos


estudos e debates pois não é um tema
A falta de uma definição clara de deficiência ou
incapacidade tem sido apresentada como um
consensual, uma vez que este conceito se impedimento para a promoção da saúde de
relaciona com diversos aspetos do ser humano. pessoas com deficiência (Nubila e Buchalla,
Se por um lado se refere às características 2008, p.325) por isso importa diferenciar estes
individuais do indivíduo e à sua condição de dois conceitos. Assim, a CIF (Classificação
vida, por outro refere-se ao desenvolvimento de Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e
interações e aos vários contextos onde se Saúde) refere que:
desenvolve (Dias, 2011, p. 14). Esta O termo deficiência corresponde a alterações
multiplicidade de condicionantes dificulta a sua apenas no nível do corpo, enquanto o termo
definição, o que leva a que Sassaki (2003, incapacidade é mais abrangente, indicando os
citado por Dias, 2011, p.14) considere que aspetos negativos da interação entre um
nunca existirá um termo correto e válido para indivíduo (com uma determinada condição de
todas as sociedades e todos os tempos. saúde) e os seus fatores contextuais (fatores
Termos como inválidos, indivíduos com ambientais ou pessoais), ou seja, algo que
capacidade reduzida, defeituosos, excecionais, envolva uma relação dinâmica. Um indivíduo
entre outros, caracterizaram durante muito pode apresentar uma deficiência (no nível do
tempo as pessoas com deficiência e apesar de corpo) e não necessariamente viver qualquer
terem caído em desuso, a forma como se há-de tipo de incapacidade. De modo oposto, uma
de referir um individuo com deficiência constitui pessoa pode viver a incapacidade sem ter
ainda hoje um desafio. nenhuma deficiência, apenas em razão de
A Convenção das Nações Unidas sobre os estigma ou preconceito (Nubila e Buchalla,
direitos das pessoas com deficiência (2008, 2008, p. 330).
citado por Dias, 2011) reconhece que a Existem quatro tipos de deficiência: visual,
deficiência “é um conceito em evolução e auditiva, motora e intelectual. Existe, por
define-a como resultante da interação entre conseguinte, indivíduos que possuem dois ou
pessoas com incapacidade e barreiras mais tipos de deficiência, em simultâneo. A
comportamentais e ambientais que impedem a estes casos damos o nome de multideficiência.
sua participação plena e ativa na sociedade e
em condições de igualdade com as outras Ao longo da História, a forma como a
pessoas” (p. 15). Olivier refere que “a deficiência sociedade encarou a deficiência foi mudando.
não tem nada a ver com o corpo, mas tudo a Para os egípcios era indicadora de benesses e
ver com a sociedade” (Olivier, 1996, citado por por isso divinizava-se (Silva, 2009, p.136). Na
Fontes, 2010, p.97) e acrescenta que “a Idade Média, tal como já acontecia com os
deficiência não é criada pela incapacidade mas romanos e com os gregos, a sociedade,
sim pela sociedade que deficientiza as pessoas dominada pela religião e pelo divino,
com incapacidades” (Olivier, 1990, citado por considerava que a deficiência decorria da
Fontes, 2010, p.97). intervenção de forças demoníacas e, nesse

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

sentido os deficientes eram associados à Médico-Pedagógico da Casa Pia mais


imagem do diabo e a atos de feitiçaria e vocacionado para estas duas realidades (Silva,
bruxaria tendo sido vítimas de perseguições, 2009, p.138).
julgamentos e execuções (Correia 1997, citado Mais tarde, numa perspetiva de integração
por Silva, 2009, p.136). Todavia, ainda durante surge o conceito de “normalização” que tinha
a época medieval, começaram a surgir algumas como objetivo, “normalizar” o indivíduo a nível
atitudes de caridade sobretudo por parte de físico, funcional e social, pressupondo a
alguns nobres e ordens religiosas, que proximidade física, a interação, a assimilação e
construíram hospícios e albergues que acolhiam a aceitação” (Silva, 2009, p.141). Por fim, após
deficientes e marginalizados, ainda que tenha muitas lutas e contestações, inicia-se a fase de
perdurado, ao longo dos tempos, uma atitude inclusão onde se compreendem as deficiências,
piedosa e a ideia de que os deficientes identificam-se as necessidades e integram-se
representavam uma ameaça para a sociedade, as crianças deficientes nas escolas,
o que se concretizou na reclusão destas reconhecendo que todos os cidadãos têm os
pessoas em condições de profunda mesmos direitos (Dias, 2011). Esta inclusão foi
degradação, abandono e miséria encarada também potenciada por Warnok que introduziu
como necessária para a segurança de todos. o conceito de necessidades educativas
especiais (NEE), um conceito inteiramente
Durante o século XIX e a primeira metade do
ligado à educação de pessoas com alguma
século XX, os deficientes foram inseridos em
incapacidade ou deficiência, e que previa que
instituições de cariz marcadamente
assistencialista, uma vez que “o clima social era Um aluno tem necessidades educativas
propício à criação de instituições cada vez especiais quando, comparativamente
maiores, construídas longe das povoações, com os alunos da sua idade, apresenta
onde as pessoas deficientes, afastadas da dificuldades significativamente maiores
família e dos vizinhos, permaneciam para aprender ou tem algum problema de
incomunicáveis e privadas de ordem física, sensorial, intelectual,
liberdade” (García, 1989, citado por Silva, emocional ou social, ou uma combinação
2009). “A preocupação com a educação surgiu destas problemáticas, a que os meios
mais tarde, pela mão de reformadores sociais, educativos geralmente existentes nas
de clérigos e de médicos, com a contribuição escolas não conseguem responder,
de associações profissionais” (Silva, 2009, p. sendo necessário recorrer a currículos
137. Surgem assim instituições para surdos, especiais ou a condições de
mais tarde para cegos e muito mais tarde para aprendizagem adaptadas (Brennan,
deficientes intelectuais (Silva, 2009, p.137). 1990, citado por Silva, 2009,p.140).
Relativamente a estes últimos, o abandono era Concluímos assim que a ignorância, o
total, os que sobreviviam eram remetidos para abandono, a superstição e o medo
orfanatos, prisões e outras instituições do condicionaram e isolaram as pessoas com
Estado (Silva, 2009, p.137). Neste âmbito, foi deficiência, ao longo da História, e retardaram o
criado em Portugal o Instituto de Surdos, seu desenvolvimento, tal como ainda hoje
Mudos e Cegos a que se seguiram outros acontece, uma vez que a deficiência foi
institutos e asilos. Após o fundamento da sucessivamente “reduzida às falhas e
Escola Nova ter contribuído para a distinção incapacidades do corpo, permanecendo
entre deficiência intelectual e doença mental, individualizada, medicalizada e
surge, em 1916, no nosso país, o Instituto despolitizada” (Fontes, 2009, p. 75).

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Inclusão Social e Cidadania económicas e ambientais, determinam as


diferenças entre cidadãos deficientes e não
Após compreendermos o conceito de deficientes“ (Dias, 2011, p.24).
deficiência e a sua evolução e as abordagens A aceitação e valorização da diversidade, a
feitas ao longo dos anos, importa esclarecer o cooperação entre diferentes e a aprendizagem
que é a inclusão social e a cidadania e como da multiplicidade são, assim, valores que
está relacionada com a deficiência. norteiam a inclusão social, entendida como
A inclusão social “está diretamente relacionada processo pelo qual a sociedade se adapta de
com a sociedade, na forma como está estru- forma a poder incluir, em todos os seus
turada, na maneira como os seus elementos se sistemas, pessoas com necessidades especiais
desenvolvem e estão inseridos” (Dias, 2011, p. e, em simultâneo, estas se prepararam para
5). Segundo Nogueira e Andrade (2007, citado assumir o seu papel na sociedade (Silva, 2009,
por Dias, 2011, p.10) “a inclusão social é, sem p. 144).
dúvida, um grande desafio da sociedade, em A sociedade e a vivência nesta é crucial para o
geral, na esperança de um novo rumo que desenvolvimento de qualquer indivíduo, mas
valorize uma sociedade mais justa e mais “para um cidadão ser capaz de viver em
solidária, que garanta os direitos de todos os sociedade é necessário que tenha desenvolvido
que dela fazem parte e onde todos possam competências de reflexão acerca da sociedade
viver e conviver independentemente das em que está inserido para conseguir intervir
características pessoais de cada um”. “O nela” (Carvalho, 2018, p.5). Por isso, Dias
indivíduo nasce e desenvolve-se tendo em (2011) propõe que se “desenvolva uma
conta as oportunidades que a sociedade lhe intervenção que harmonize a sociedade e os
oferece e é através da socialização que este se cidadãos que dela fazem parte” (p.24), “se por
constrói” (Stoezel, 1972, citado por Dias, 2011, um lado, a comunidade tem como papel
p.5). A sociedade tem um papel preponderante desenvolver medidas sociopolíticas que
na vida de todos os indivíduos, pois o permitam uma educação inclusiva e facilitem a
comportamento e atitude destes adequa-se às transição para a vida adulta, por outro lado, a
expectativas dos que o rodeiam. Isto verifica-se comunidade deve proporcionar recursos que
igualmente nos indivíduos com deficiência. suportem essa transição” (Dias, 2011, p. 23).
Saeta (1999, citado por Dias, 2011, p. 24) refere Ao longo da vida de cada indivíduo, vão
que a sociedade é “um sistema maior, que existindo vários sistemas de interação que vão
embora seja possuidor de diversidades, é ganhando e perdendo relevância consoante o
constituído por elementos que se assemelham estádio onde o indivíduo se encontre. Assim,
nas suas características, rotinas e crenças, evidenciam-se como principais sistemas de
existindo nos indivíduos que a constituem um interação com o indivíduo: “a família, a escola,
normal social”. O mesmo autor refere que os pares, a comunidade e a cultura” (Dias,
“dentro deste sistema destacam-se como foco 2011, p.6)”. A relevância destas interações
os indivíduos que fogem à normalidade social, entre o indivíduo e os vários contextos de vida
por serem diferentes e fugirem ao normal onde direta ou indiretamente participa é onde
social” (p.24). ocorre o seu desenvolvimento (Dias, 2011, p.6).
Reforça ainda que “estas expectativas Das interações sociais experienciadas pelos
encontram-se ligadas às exigências do meio, indivíduos destaca-se o papel da escola e o seu
que sendo reflexo das relações sociais, contributo importante para a aprendizagem da

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

cidadania. A centralidade da escola na vida dos frequentemente vivam na pobreza, leva a que
cidadãos fá-la ser um local privilegiado para o sejam considerados apenas como pessoas que
desenvolvimento de competências de cidadania necessitam de assistência e leva ao início
(Carvalho, 2018, p.6). “A escola é o espaço precoce de segregação” (Dias, 2011, p.29).
público por excelência para a implementação
do princípio da igualdade e para a promoção da
participação na vida pública e política dos Políticas Públicas
cidadãos” (Bettencourt, Campos e Fragateiro,
1999:24, citados por Carvalho, 2018, p.6). Nos últimos anos, temos assistido a um esforço
por parte dos vários governos na
Após a Declaração de Salamanca (Organização
implementação de ações e leis que tenham
das Nações Unidas, 1994, citado por Dias,
como tónica a diminuição da segregação das
2011, p. 22) as escolas defensoras da inclusão
pessoas com deficiência bem como a inclusão
escolar têm vindo a reafirmar-se como
destas na sociedade. Ainda assim, é importante
verdadeiras comunidades educativas inclusivas,
referir que a efetivação destas leis e o seu
capazes de acolher no seu seio crianças e
cumprimento dependem em larga escala da
jovens tradicionalmente excluídos dos sistemas
aceitação da sociedade e do conhecimento da
de ensino, visando agora, a equidade
mesma, ou seja, apesar dos esforços para
educativa. Porém, pretende-se não apenas a
tornar a deficiência uma realidade mais visível,
inclusão escolar como também a preparação
esta continua a ser encarada como uma
para a inclusão social.
realidade paralela e de quem poucos
Em concordância com Dias (2011) pode-se conhecem. De seguida analisaremos quais os
afirmar que “é às escolas, com a participação progressos em Portugal, no domínio das
dos pais e encarregados de educação, que políticas de deficiência.
cabe um papel importante na preparação dos
Segundo Silva (2009) as transformações do
alunos para a vida pós-escolar, quer a nível
pós-guerra, a Declaração dos Direitos da
pessoal, relacional ou profissional” (Dias, 2011,
Criança e dos Direitos do Homem, as
p.22). Assim, cabe às escolas desenvolver um
associações de pais criadas e a mudança de
Plano Individual de Transição preparando os
filosofia relativamente à educação especial
alunos para a inclusão social que inclua toda a
contribuíram para perspetivar a diferença com
informação do passado, presente e perspetivas
um outro “olhar” (p.137). Também “a guerra
futuras do aluno que contemplem os interesses
colonial e o regresso a Portugal de um grande
e desejos do mesmo, que promovam a sua
número de jovens com incapacidades
autonomia e que criem uma situação de
decorrentes do conflito, abriram caminho para
sucesso para o jovem e para os empregadores
um novo entendimento da deficiência” no nosso
(Dias, 2011, p.23).
país, como acrescenta Fontes (2008, citado por
A deficiência é o segundo motivo mais Fontes, 2010, p.92). Por conseguinte, o final da
apontado para a discriminação em Portugal ditadura “permitiu efetivamente a transformação
(65%) (ISCSP, 2017, p.7). Isto pode ser da deficiência numa questão política e a
justificado pela forma como a sociedade está emergência de novas vozes
estruturada, para “premiar os melhores e mais reivindicativas” (Fontes, 2010, p.92). Neste
capacitados”, como refere Dias (2011, p.27). A sentido podemos realçar o papel importante
“não-eliminação das barreiras com que os dos movimentos sociais para o avanço e
cidadãos portadores de deficiência(s) se desenvolvimento da cidadania das pessoas
confrontam, leva a que estes cidadãos com deficiência, destacando o movimento das

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

pessoas com deficiência e a Associação em que se processa o ensino-aprendizagem


Portuguesa de Deficientes, considerada a dos alunos com necessidades educativas
primeira organização, em Portugal, que abrange especiais”. O ensino especial, lecionado na
todos os tipos de incapacidade (Fontes, 2010, escola, prevê, no artigo 110 que os currículos
p.92). escolares do regime educativo comum devem
Assim, em 1976, a Constituição da República “ser adaptados ao grau e tipo de deficiência” e
Portuguesa (citada por Fontes, 2009, p.7) prevê que “os currículos alternativos substituem os
no seu artigo 71º que os cidadãos física ou currículos do regime educativo comum e
mentalmente deficientes gozem plenamente destinam-se a proporcionar a aprendizagem de
dos seus direitos e estejam sujeitos aos deveres conteúdos específicos” (Decreto-Lei 319/91, de
consignados neste documento, com ressalva 23 de Agosto). “O encaminhamento para uma
do exercício ou do cumprimento daqueles para instituição de educação especial, previsto nesta
os quais se encontrem incapacitados. A mesma lei, era o último dos recursos e só deveria ter
fonte reforça que o Estado se obriga a realizar lugar quando a escola comprovadamente não
uma política nacional de prevenção e de tivesse capacidade de resposta” (Silva, 2009, p.
tratamento, reabilitação e integração dos 142).
deficientes, a desenvolver uma pedagogia que Apesar de Portugal ter, em 1991, estabelecido
sensibilize a sociedade quanto aos deveres de normas para a educação especial, na Lei de
respeito e solidariedade para com eles e a Bases do Sistema Educativo, só em 2008,
assumir o encargo da efetiva realização dos através do Decreto-Lei no.3/2008 de 7 de
seus direitos, sem prejuízo dos direitos e Janeiro, é que surge uma lei que regulamenta a
deveres dos pais ou tutores. educação especial, os seus pressupostos e a
Em simultâneo com os acontecimentos sua aplicação. Esta lei vem, dez anos depois,
anteriormente relatos, também a integração de ser revista, e com o Decreto-Lei no 54/2018 de
Portugal na União Europeia contribuiu para 6 de Julho, passamos para uma abordagem de
realçar a importância da criação de medidas educação inclusiva. Através deste são então
para a deficiência e para as crianças com estabelecidos os princípios e as normas que
necessidades educativas especiais, tal como garantem a inclusão, enquanto processo que
acontece com a Lei de Bases do Sistema pretende responder à diversidade das
Educativo que aquando da sua criação já necessidades e potencialidades de todos e de
consagra a educação especial como uma cada um dos alunos, promovendo de igual
modalidade de educação (Silva, 2009, p.141). forma o aumento da participação nos
processos de aprendizagem e na vida da
Ainda âmbito das políticas educativas, é criado,
comunidade educativa. Este decreto-lei aplica-
em 1991, com o Decreto-Lei 319/91, de 23 de
se aos agrupamentos de escolas e a escolas
Agosto, o conceito de regime educativo
não agrupadas, escolas profissionais e a todos
especial dirigido aos alunos com necessidades
os níveis de ensino das redes privada,
educativas especiais e aplicado aos
cooperativa e solidária, excetuando o ensino
estabelecimentos públicos do ensino básico e
superior.
secundário. Esta lei veio responsabilizar a
escola pública para a educação de todos os No que concerne às políticas sociais na área da
alunos e atribuiu também orientações deficiência constatamos que estas ainda estão
educativas para os pais. Segundo o ponto 1 do ancoradas numa perspetiva baseada em
artigo 2º, deste decreto-lei, “o regime educativo necessidades e não em direitos, ou seja,
especial consiste na adaptação das condições centram-se na compensação e na prestação de

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

cuidados e menos em direitos de cidadania atividades ocupacionais; acolhimento familiar;


(Fontes, 2009; 2011, citados por Fontes, 2010, estabelecimentos residenciais (lar residencial e
p.95), o que nos remete para um regime residência autónoma) e intervenção precoce na
assistencialista. O objetivo da maioria destas infância.
políticas é compensar e cuidar daqueles que se As prestações sociais são “apoios financeiros
incapacitaram na guerra, no trabalho ou que visam compensar o acréscimo de
daqueles que nasceram com uma qualquer despesas e eventual redução de rendimentos
incapacidade. Esta lógica de compensação é, do beneficiário ou do seu agregado familiar
frequentemente, traduzida em pensões, muitas devido à situação de deficiência” (ISCSP, 2017,
delas vitalícias, e procura adaptar as pessoas p.47). No quadro a seguir, é possível ver as
com deficiência ao ambiente físico e social prestações sociais que podem ser requeridas
existente ao invés de criar um ambiente pelas pessoas com deficiência ou pelos seus
inclusivo. cuidadores/tutores. 

Fontes (2009) afirma que a característica mais
marcada das políticas de deficiência desde
1974 tem sido a ausência de uma política global
e que estas se têm centrado em aspetos
particulares da deficiência, sendo apenas
recente a inclusão de perspetivas mais
abrangentes e integradas (p.80), o que dificultou
as possibilidades de construção de uma vida
autónoma e promulgou a subsidiação da vida
destes indivíduos. O mesmo autor refere que
“a afirmação de uma abordagem baseada em
direitos tem sido escassa e a maioria da
legislação aprovada dentro deste espírito
parece destinada ao fracasso” (Fontes, 2009, p.
80). Palacios e Bariffi (2007, citado por Dias,
2011) reforçam que “é fundamental que se
focalizem as políticas sociais para a eliminação
de barreiras sociais e atitudinais, mais do que
recompensar as pessoas de forma
individual” (p.28).
Em termos de apoios sociais, a segurança
social tem ao dispor da população com
deficiência prestações e respostas sociais. As
respostas sociais são o “conjunto de medidas
de apoio social para crianças, jovens e adultos
com deficiência” (ISCSP, 2017, p.48).
De acordo com a informação disponibilizada
pela Segurança Social (2020a), as respostas
sociais para a deficiência são: centro de
atendimento, acompanhamento e reabilitação
social; serviço de apoio domiciliário; centro de

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Prestações sociais Destinatários

Cidadãos nacionais e estrangeiros, refugiados e apátridas que


Prestação Social para a
tenham uma deficiência da qual resulte um grau de
Inclusão (PSI)
incapacidade igualou superior a 60%

Bonificação do abono de Para crianças e jovens com deficiência com idade inferior a 24
família anos e crianças com idade até 10 anos

Subsídio de Educação
Estudantes com idade inferior a 24 anos
Especial

*Beneficiários do sistema previdencial abrangidos pelos


seguintes regimes: trabalhadores por conta de outrem,
Subsídio para assistência a trabalhadores independentes, seguro social voluntário;
filho com deficiência, doença *Beneficiários em situação de pré-reforma enquadrados em
crónica ou doença qualquer dos regimes anteriormente referidos; *Beneficiários a
oncológica receber pensão de invalidez relativa, pensão de velhice ou
pensão de sobrevivência que estejam a trabalhar e com registo
de remunerações na Segurança Social

*Pessoas com deficiência/incapacidade e familiares;


Balcão da Inclusão *Público em geral que procura informação sobre temáticas da
deficiência/incapacidade

Produtos de Apoio para


Pessoas com Deficiência ou Pessoas com deficiência e incapacidade
Incapacidade

Subsídio por assistência de Pessoas (crianças ou adultos) com deficiência que necessitem
3.ª pessoa de acompanhamento de uma 3.ª pessoa

*Pensionistas de invalidez, velhice e sobrevivência do regime


geral da segurança social e do regime do seguro social
voluntário;

Complemento por *Pensionistas de velhice e de sobrevivência do regime não
dependência contributivo e equiparados;
*Beneficiários da prestação social para a inclusão;
Beneficiários não pensionistas dos regimes acima referidos.

Fonte: Segurança Social, 2020b


No âmbito das políticas públicas, e no Dados do Inquérito Europeu às Condições de
seguimento de anteriores iniciativas, o Decreto- Vida e Rendimento (EU-SILC, 2014, citado por
Lei no 290/2009 criou o Programa de Emprego ISCSP, 2017, p.31) indicam que “a população
e Apoio à Qualificação das Pessoas com com deficiência, em Portugal, apresenta taxas
Deficiência e Incapacidades, em parceria com o de atividade acima da média da população com
IEFP (ISCSP, 2017, p.29) que tem como deficiência na União Europeia”. As menores
objetivo apoiar o desenvolvimento de políticas taxas de atividade são registadas nas faixas
de emprego e qualificação das pessoas com etárias dos 16 aos 24 anos e dos 55 aos 64
deficiência e incapacidade. A par desta iniciativa (ISCSP, 2017, p.31). O mesmo inquérito revela
foram também criadas medidas específicas também que as mulheres com deficiência são
designadas de medidas de reabilitação mais penalizadas face aos homens na mesma
profissional que incluem quatro eixos de apoio situação.
(ISCSP, 2017, p.30): O relatório elaborado pelo ISCSP sobre as
1. apoios à integração, manutenção e pessoas com deficiência, em Portugal, constata
reintegração no mercado de trabalho; que “a taxa de desemprego de pessoas com
2. emprego apoiado (estágios de inserção, deficiência em Portugal, em particular no caso
contratos emprego-inserção, emprego das mulheres, continua a situar-se acima da
protegido e emprego apoiado em mercado média da União Europeia e muito acima dos
aberto); valores relativos à população portuguesa sem
deficiência” (ISCSP, 2017, p.33). O mesmo
3. marca entidade empregadora inclusiva; relatório dá-nos conta de que apesar de se
4. financiamento de apoio à aquisição, verificar uma redução global do desemprego,
adaptação ou reparação de produtos de registado entre 2011 e 2016, essa melhoria não
apoio. se alargou às pessoas com deficiência, tendo
Existem também outras medidas gerais inclusive havido um agravamento (ISCSP, 2017,
direcionadas para outros públicos mas das p.35) e que este foi mais notório no caso das
quais as pessoas com deficiência podem mulheres com deficiência. A mesma fonte
beneficiar igualmente, como é o caso do acrescenta ainda que também tem aumentado
contrato-emprego e do programa de estágios o número de “pessoas desempregadas com
profissionais (ISCSP, 2017). deficiência, registadas nos centros de emprego,
com qualificações ao nível do 3º ciclo, ensino
No que concerne à integração profissional de secundário ou superior”, o que poderá ser
pessoas com deficiência, o Decreto-Lei reflexo de uma tendência global de aumento do
38/2001 de 3 de fevereiro “estabeleceu uma nível de qualificações da população e do
quota obrigatória para admissão na alargamento dos anos de escolaridade
Administração Pública” (ISCSP, 2017, p.31). No obrigatória (ISCSP, 2017, p.36).
setor privado, apesar da Lei nº 38/2004 de 18
de agosto prever a possibilidade de introdução
de quotas para a contratação de trabalhadores/
as com deficiência neste setor, estas nunca
foram alvo de regulamentação, pelo que não
existe obrigatoriedade de contratação (ISCSP,
2017, p.31).
PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Desafios à Cidadania princípios das necessidades educativas


especiais, a escola deve ajustar-se e considerar
Ao longo deste artigo vamos dando conta de todas as crianças independentemente das suas
que a inclusão social das pessoas com condições físicas, sociais, linguísticas ou outras
deficiência, em Portugal, é na maioria dos (UNESCO, 1994, p.6). Contudo, para ser
casos ainda uma miragem. As leis e as bases possível uma escola inclusiva, é necessário o
da inclusão e do respeito pelos direitos destes trabalho de uma equipa multidisciplinar por
indivíduos, estão criadas, contudo, a sua forma a potenciar diferentes olhares sobre um
efetivação tem sido demorada e ainda não mesmo assunto. A multidisciplinariedade desta
constitui uma realidade. equipa permite responder de forma mais
Fontes (2009) refere que “a vida das pessoas abrangente às necessidades dos alunos.
com deficiência continua cercada por um con- Ainda assim, importa referir que na tentativa de
junto de barreiras físicas, sociais e psicológicas implementar uma escola inclusiva podemos em
que as impedem de exercitar os seus direitos simultâneo promover a exclusão social. A
de cidadania e de aceder a uma vida autónoma existência de salas de recursos, como é o caso
como qualquer outro/a cidadão/ã” (p.83). das unidades de ensino estruturado, são
Apesar de todos os esforços feitos ao longo essenciais para os alunos NEE, especialmente
dos anos, “as mudanças reais na vida das para fazer face às especificidades de algumas
pessoas com deficiência, em Portugal, têm sido problemáticas, contudo em contexto escolar,
mínimas” (Portugal et al, 2010, citado por estas salas devem ser percecionadas como
Fontes, 2010, p.95). Assistimos não raras vezes recurso para a comunidade escolar e não como
à união e formação de organizações algo destinado apenas às unidades específicas
denunciando a exclusão e opressão de que são da deficiência evitando a fomentação de
vítimas por parte do Estado e da sociedade e práticas de exclusão. Da mesma forma, o facto
reivindicando os seus direitos de cidadania dos alunos NEE terem um apoio especializado
(Barnes, 1991, 1992; Barnes et al, 2000, dado por professores de educação especial,
citados por Fontes, 2010, p.91). A verdade é fora do contexto de turma, priva-os da
que as pessoas com deficiência tem sido alvo interação com os colegas e do desenvolvimento
de discriminação em diversos setores das suas de competências proporcionadas nesse
vidas: educação, serviços da segurança social, contexto.
mercado de trabalho, entre outros, o que levou
Neste seguimento, em 2007, vários membros
a uma redução efetiva dos seus direitos de
da União Europeia se uniram para assinarem
cidadania” (Barnes, 1991, 1992; Barnes et al,
uma estratégia e plano de ação conjuntos no
2000, citados por Fontes, 2010, p.91).
âmbito das necessidades educativas especiais:
Ainda hoje é possível observar que as pessoas Declaração de Lisboa. Neste encontro foram
com deficiência são lidas como “seres inativos, ouvidos vários atores sociais nomeadamente os
dependentes e passivos, cuja única solução jovens com necessidades educativas especiais
passa pela sua adaptação ao meio de diferentes estados membros que sobre a
“deficientizador” que as rodeia, isto é, a um educação inclusiva referiram que:
meio que não considera as suas necessidades
A educação inclusiva será melhor se as
e que desta forma cria barreiras à sua
condições forem as mais adequadas. Isto
participação na sociedade” (Fontes, 2009, p.75)
significa que devem ser disponibilizados os
De acordo com a Declaração de Salamanca, apoios necessários, recursos e professores
resolução das Nações Unidas sobre os formados. Os professores precisam de estar

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

motivados, bem informados e compreenderem Relativamente ao mercado de trabalho e


as nossas necessidades. Têm de ter boa reforçando o que já foi referido anteriormente,
formação e perguntarem-nos o que segundo dados do ISCSP (2017), o
necessitamos e estarem bem coordenados desemprego entre 2011-2016 desceu para a
entre si ao longo do ano letivo (Ministério da população em geral mas aumentou para a
Educação, 2007). população com deficiência (p.7); para estes
indivíduos o desemprego de curta duração
Os mesmos jovens referiram ainda que muitas
desceu mas aumentou o de longa duração (p.
vezes a liberdade de escolha de áreas de
7); a inserção na administração pública é de
estudo é vedada por razões de acessibilidades
2,3% do total de trabalhadores/as (p.7) contudo
a edifícios, tecnologia insuficiente e materiais
é um número muito inferior ao estipulado pelo
adaptados (equipamentos e livros) e que
sistema de quotas; e no setor privado, os
necessitam de aconselhamento, ao longo do
dados revelam que tem havido um aumento,
percurso escolar, para que possam
tanto em termos absolutos como em termos
compreender quais as suas perspetivas e
proporcionais ao número total de trabalhadores/
possibilidades de futuro face às suas
as, porém em empresas com mais de 10
necessidades individuais (Ministério da
trabalhadores/as, a população com deficiência
Educação, 2007). Estes jovens acrescentam
representa menos de 1% do total de
que continuam a sentir algum desconhecimento
trabalhadores/as (p.7 e p.37). Ainda assim,
sobre a deficiência e que sentem uma atitude
importa referir que este aumento ocorreu
negativa por parte dos professores, de alguns
através dos/as trabalhadores/as com um grau
pais e também de outros alunos (Ministério da
moderado de incapacidade (≥ 60& <80), não se
Educação, 2007).
alargando aos que possuem grau de
No setor da educação importa ainda realçar incapacidade mais elevado (≥80%) (ISCSP,
alguns dados que espelham a situação 2017, p.40).
portuguesa. Dados do relatório do ISCSP
Em 2007, Portugal ratificou a Convenção
(2017) revelam que: 99% dos/as alunos/as com
Internacional das Pessoas com Deficiência. Esta
deficiência frequentam o sistema de ensino
convenção contempla os direitos das pessoas
regular e que 86% dos quais estão integrados
com deficiência e tendo sido ratificada por
em estabelecimentos da rede pública (p.7),
Portugal obriga a que o nosso país, bem como
consequência do contributo significativo da
todos aqueles que o fizeram, tenham algumas
entrada em vigor do Decreto-Lei no3/2008; o
medidas a tomar por forma a proporcionar aos
número dos que frequentam o 3o ciclo e o
cidadãos com deficiência o pleno gozo de
ensino secundário tem vindo a aumentar (p.7)
todos os seus direitos. A estrutura e as
bem como o número de docentes de educação
expectativas da sociedade, como já referidas
especial (p.24). No caso do ensino superior,
anteriormente, estão construídas sob a base de
este relatório dá-nos conta de um aumento de
uma total dependência de terceiros, só sendo
ingressos ainda que o número se mantenha
acessível a alguns destes indivíduos alguma ou
residual (p.27). Em contrapartida, assistimos a
total autonomia nas tomadas de decisão
um corte acentuado no número de horas
(sobretudo os que têm um grau de deficiência
mensais de apoio terapêutico prestado pelos
mais leve). Ainda assim, a FENACERCI,
CRI (Centro de Recursos para a Inclusão) que
instituição que representa as cooperativas de
reduziu para metade no ano letivo 2015-2016
solidariedade social, com trabalho específico na
(ISCSP, 2017, p.7).
área da deficiência intelectual e multideficiência,

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

desenvolveu vários projetos europeus no âmbito cidadãos com deficiência, na sua maioria, está
da autorrepresentação. Estes projetos ainda longe de ser uma realidade até porque o
pretendem dar a conhecer à sociedade os acesso à informação é ainda bastante restrito.
direitos das pessoas com deficiência intelectual, Para que a informação seja acessível a todos,
dar-lhes voz e visibilidade e capacitá-los para as esta tem de estar disponível em vários formatos
suas tomadas de decisão assim como o como Braille, Língua Gestual Portuguesa e
conhecimento dos seus direitos e deveres leitura fácil (FENACERCI, 2014, p. 40).
enquanto cidadãos. No caso das eleições, por exemplo, é
necessário também que os locais de voto sejam
De acordo com FENACERCI (2014) é “muito
acessíveis a todos, que o voto seja secreto que
importante que a sociedade olhe para estas
as pessoas com deficiência se possam
pessoas como alguém que é útil e importante
candidatar, ser eleitas e que possam participar
para a sociedade” (p.36) contudo muitas destas
nas organizações, associações não-
pessoas não são visíveis porque, na maioria dos
governamentais e em partidos políticos
casos, não utilizam os espaços públicos de
(FENACERCI, 2014, p.44). A realidade é que
forma independente ou com os seus grupos de
apesar de ser um direito seu, a maioria das
amigos, e por isso a sociedade considera que
pessoas com deficiência, integradas em
“não são capazes de usar estes espaços da
instituições, ainda não pode participar na
mesma forma como todas as outras
gestão das mesmas (FENACERCI, 2014, p. 27).
pessoas” (p.37). Tomando como exemplo a
deficiência intelectual, a mesma fonte refere que Como principais barreiras à participaçaõ social
muitos dos indivíduos com esta deficiência não podemos destacar: a mobilidade (48%), o
conseguem participar ativamente na sociedade acesso ao meio edificado (36%), o acesso ao
porque esta considera que não têm nada de emprego (38%) e a serviços de transporte
importante para dizer ou acrescentar, que não (34%) (ISCSP, 2017, pp.16-17).
conseguem viver de forma independente, que Congruentemente, podemos referir também,
as trata como crianças mesmo quando já são que no que diz respeito às queixas por práticas
adultos e que continuam a olhar para estas discriminatórias contra as pessoas com
pessoas como um fardo e não como cidadãos deficiência a acessibilidade é o domínio com
capazes de construir uma sociedade melhor maior número de queixas, seguido da educação
(FENACERCI, 2007, pp.6-7). FENACERCI e da saúde (ISCSP, 2017, p.14).
(2014) acrescenta que muitas vezes a
comunicação não é fácil, contudo pode ser feita Ao nível das respostas sociais prestadas aos
de diversas formas, se tivermos atenção àquilo cidadãos com deficiência é ainda possível
que nos é dito, estas pessoas conseguem-nos constatar que as respostas sociais com maior
transmitir escolhas tão simples como: o que incidência para esta população são os centros
querem comer ou quando o querem fazer, se de atividades ocupacionais e os lares
querem estar deitadas ou sentadas, se querem residenciais. Uma análise mais profunda às
ouvir música ou não, entre outros (pp. 12-13). respostas dadas, ao nível dos estabelecimentos
residenciais, é possível conferir que em todos
Para uma efetiva participação das pessoas com os distritos, o número de vagas para as
deficiência na sociedade é necessário que esta pessoas com deficiência em lares residenciais é
se adapte a todo o tipo de realidade e muito superior ao número de vagas em
necessidade. No caso de Portugal, a residências autónomas (ISCSP, 2017, p.7) e que
participação na vida pública e política dos mesmo nos centros urbanos, as residências

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

autónomas são ainda uma resposta muito o objetivo de fazer da nossa sociedade uma
residual, mesmo sendo o mais congruente com sociedade mais inclusiva, mais justa e mais
um paradigma de direitos humanos. igual, contudo verificamos que essa realidade
Hazard, Filho e Resende (2007, citados por ainda não é transversal a todos os cidadãos.
Dias, 2011, p. 34) são da opinião que é preciso Ainda assim importa referir que todos estes
muito mais do que leis e boa vontade, são acontecimentos contribuíram para o
precisas ações que façam essas leis vingarem, desenvolvimento de respostas e prestações
sendo fundamental que o cidadão portador de sociais direcionadas para a deficiência.
deficiência seja visto como um cidadão com Não só em Portugal como um pouco por todo
vontade própria e com participação de forma o Mundo, os cidadãos com deficiência ainda
ativa na vida social e política, estes cidadãos são encarados como seres inativos,
têm de construir e lutar pela cidadania. Os dependentes e sem opinião. São vistos como
mesmos autores acrescentam que crianças mesmo quando já se encontram numa
“Os preconceitos, que ainda são fase adulta e a sua participação cívica é limitada
muitos, acerca da deficiência e a visão dado o número de barreiras que têm de
de um ser imperfeito, totalmente ultrapassar. Parece então pertinente que em vez
dependente e incapaz, tem de ser de focarmos a intervenção na compensação
desconstruída, pois um deficiente é nos foquemos em criar condições para que
uma pessoa igual a todas as outras e todos possamos participar ativamente na
ao mesmo tempo diferente, com sociedade, independentemente das limitações
características e limitações próprias que cada um tem, como tornar a informação
como todosnós temos em grau e mais acessível e diminuir as barreiras
natureza variado” (Hazard, Filho e arquitetónicas, entre outros.
Resende, 2007, citados por Dias, Ao longo deste artigo a autora, através de
2011, p. 34). outros autores, foi dando conta de que a
Por forma a desconstruir a discriminação dos sociedade ainda não aceita as pessoas com
cidadãos com deficiência, Hazard, Filho e deficiência como cidadãos iguais e, por isso,
Resende (2011, citados por Dias, p.34) muitas vezes, os esforços efetuados pelas
defendem que “são necessárias mais ações organizações, que trabalham e lutam pela sua
quer individuais, quer de grupos organizados inclusão e pelos seus direitos, não têm o
que pressionem a sociedade e impulsionem a resultado expectável, uma vez que o
mudança, essa é a essência da nova cidadania, entendimento de ambas as partes não é o
reivindicada, vivenciada, exercida e praticada mesmo. Para a maioria das pessoas que não
por pessoas e movimentos sociais em todo o contactam nem nunca contactaram com a
mundo”. deficiência pode parecer impossível que estes
indivíduos consigam ter uma vida autónoma e
dentro dos parâmetros que a sociedade dita
Considerações Finais como normais, ainda assim numa grande parte
dos casos esta “normalidade” não é possível
A partir deste artigo é possível constatar que a apenas pelo estigma e preconceito da
luta pelos cidadãos com deficiência e por uma sociedade que considera que as incapacidades
sociedade melhor é constante e ainda não tem destes indivíduos não lhes permitem viver como
fim à vista. Ao longo dos anos, foram criadas os outros. A realidade de deficiências mais
leis e medidas, declarações e convenções com profundas que impedem uma total autonomia

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

existe, mas, tal como vimos, é possível, até qualidade, que a institucionalização não é a
para estes indivíduos, algumas tomadas de resposta que se adequa a todos os casos e
decisão mesmo que extremamente simples. que a integração social de indivíduos com
Este simples gesto de satisfazer as vontades e deficiência é mais possível do que aparenta ser.
desejos das pessoas com deficiência, de as Na opinião da autora, a desmistificação pode
ouvirmos ou de tomarmos atenção aos seus ser promovida pela escola que é um meio
interesses e também às suas dificuldades já propício à aquisição de novas competências e
contribui em grande escala para uma ao saber pensar. A integração de alunos/
valorização da pessoa, que ultrapassa as suas crianças com deficiência nas mais variadas
incapacidades, e para uma sensibilização no atividades escolares, dentro e fora da escola, e
que aos direitos humanos diz respeito. o desenvolvimento de projetos que coloquem
os alunos, considerados “normais”, em
A contribuição da autora para a desmistificação situações de incapacidade/ deficiência para que
da deficiência passa por tornar estes indivíduos compreendam o lugar do outro, podem ser
e as suas dificuldades mais visíveis para que alguns dos contributos. Se as crianças são o
todos percebamos que é possível contribuirmos nosso futuro, podemos fazer com que elas nos
para uma vida mais autónoma e de maior deêm um futuro mais risonho e inclusivo. 


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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

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Educação e (des)envolvimento para a promoção


pessoal e social da qualidade de vida e bem-estar

Filipa Coelhoso
Professora Coordenadora
ISCE - Instituto Superior de Lisboa e Vale do Tejo
Filipa.coelhoso@isce.pt

Resumo

O presente artigo parte dos princípios da educação para o desenvolvimento para a reflexão sobre o
impacto do eu, do nós e dos outros no processo (socio)educativo de (des)envolvimento pessoal e
social. Aprender ao longo da vida implica reconhecermos que somos seres únicos, pela nossa
diferença, e que habitamos um mundo que é interdependente e social.
Um mundo que é de todos e onde todos devemos ser chamados a assumir a responsabilidade de o
construir como saudável, sustentável e pleno. A promoção da qualidade de vida e bem-estar exige
um olhar salutogénico de promoção de competências pessoais e sociais em prol de um bem-estar
biopsicossocial individual e coletivo. O desafio é complexo, o caminho é o da educação.

Palavras-chave: Educação, Desenvolvimento, Qualidade de Vida, Bem-Estar 


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Educação para o Desenvolvimento

E m Portugal, a 26 de novembro de 2009,


foi estabelecida pelo Despacho conjunto do
Desenvolvimento Sustentável nº 4 – Educação,
que afirma: “até 2030, garantir que todos os
Ministério dos Negócios Estrangeiros e do alunos adquiram conhecimentos e habilidades
Ministério da Educação nº 25931/2009 a necessárias para promover o desenvolvimento
Estratégia Nacional de Educação para o sustentável, inclusive, entre outros, por meio da
Desenvolvimento (ENED) – Promoção da educação para o desenvolvimento sustentável e
Cidadania Global. A ENED configura-se como estilos de vida sustentáveis, direitos humanos,
um documento orientador para a intervenção igualdade de género, promoção de uma cultura
no âmbito da Educação para o de paz e da não violência, cidadania global e
Desenvolvimento (ED) que, apesar de ser um valorização da diversidade cultural e da
conceito permanentemente inacabado, pode contribuição da cultura para o desenvolvimento
ser definido, de forma geral, como um conceito sustentável” (Diário da República, 2018, p.
que envolve uma dimensão pedagógica 3190; Moura & Barbosa, 2018).
(enquanto processo de aprendizagem), uma A educação para o desenvolvimento, através da
dimensão ética (a partir de princípios de ação ENED 2018-2022, visa a transformação social e
de solidariedade, equidade, justiça e inclusão) e do mundo a partir das suas pessoas e das suas
uma dimensão política, na medida é que é organizações sociais, educativas e políticas.
vocacionada para a transformação social Procura, a partir de processos educativos
(através da autorreflexividade crítica formais, não-formais e informais, contribuir para
permanente). Até 2016, a presente ENED cidadanias ativas através de princípios de ação
configurou-se como um documento de coerência, cooperação, corresponsabilidade,
extremamente importante uma vez que permitiu equidade, igualdade, justiça social, não
passar de uma visão de cidadania tradicional, discriminação, participação e solidariedade.
mais centrada numa dimensão local/nacional, Para este processo de educação para a
para uma visão global, na qual se reconhecem cidadania, a ENED, ao longo da sua evolução,
as responsabilidades das comunidades, das tem procurado estabelecer relações
ações locais e dos impactos globais. estratégicas de parceria ente as diversas
Posteriormente, a 5 de julho de 2018, foi organizações e os atores de ED (Diário da
aprovada pelo Conselho de Ministros a nova República, 2018).
Estratégia Nacional de Educação para o
A ED é determinante para a promoção de
Desenvolvimento 2018-2022 (ENED
cidadanias ativas e ajuda-nos a compreender
2018-2022) que se relaciona com a Resolução
uma das dimensões de desenvolvimento
“Transformar o Nosso Mundo: a Agenda 2030
humano, o posicionamento e a
para o Desenvolvimento Sustentável”, da
responsabilidade individual no seu contexto
Assembleia Geral das Nações Unidas, nos
glocal de promoção da qualidade de vida e
quais se definiram os 17 objetivos de
bem-estar pessoal e social. Mas, para tal,
Desenvolvimento Sustentável. Assim, a ENED
importa também compreender de que forma
2018-2022, retrata a meta 4.7 do Objetivo de
este processo educativo se desenvolve.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Educar é (des)envolver próprio meio envolvente, para que possa


participar e cooperar com os outros nas
“(...) somos muito mais o produto da interação diferentes dimensões das atividades humanas
com os outros do que o que queremos aceitar”, e, naturalmente, nesta permanente
afirma-nos a Professora Maria Luísa Pedroso aprendizagem, desenvolva a sua capacidade de
Lima no livro “Nós e os Outros: o poder dos autonomia e de responsabilidade pessoal e
laços sociais” (Lima, 2018, p. 9). Esta é apenas social. Desta forma, a dimensão
uma das inúmeras afirmações que convidam à pluridimensional da educação ao longo da vida
reflexão. Afinal, tal como explicitado ao longo do permite promover a consciência individual, no
livro, vivemos tempos de valorização da âmbito dos conhecimentos e aptidões, mas
individualidade e da independência e, muitas também uma consciência social através da
vezes nos esquecemos que parte do que compreensão do seu meio envolve e da sua
somos encontra-se ligado às relações sociais e capacidade de decidir e agir no mundo global e
aos grupos que estabelecemos e a que em permanente transformação (Delors et al.,
pertencemos. 1998).
Segundo a antiga diretora geral da UNESCO, É no processos educativo, desenvolvido ao
Irina Bokova, “O mundo está em mudança – a longo da vida, que o indivíduo tem consciência
educação também precisa mudar. Em todo o da sua existência e da sua circunstância, o que
planeta, as sociedades sofrem profundas leva a que, perante as inúmeras mudanças,
transformações e isso exige novas formas experiências, interesses e conhecimentos, o
educacionais que promovam as competências próprio conhecimento adquirido se vá
necessárias para sociedades e economias, transformando, de forma dinâmica, com o
agora e no futuro” (UNESCO, 2016). passar do tempo e em virtude das
Neste sentido, é primordial apostar na necessidades particulares (Eliasa, 2012).
educação para a diversidade enquanto uma Neste pressuposto, de que aprendemos ao
educação para todos que reconhece e valoriza longo das diversas fases do ciclo de vida e nos
“a diversidade do ser humano nas suas formas diferentes cenários e espaços de existência,
de fazer, sentir, ser e ser no mundo” (Mosquera, emerge a necessidade de se considerar o
2019, p. 986). Educar é (des)envolver porque alargamento do conceito de educação e
reconhece o protagonismo das pessoas no aprendizagem. Para tal, torna-se determinante
processo de transformação individual e coletivo o reconhecimento de que o contextos e tempos
ao longo do ciclo de vida. Interessante é educativos ultrapassam os contextos e tempos
perceber o caminho a percorrer relativamente a escolares (Alves, 2018), ou seja, é na
este desafio de sermos diferentes, de fazermos complementaridade e articulação entre a
parte e de fazermos a diferença. Educar exige educação formal, não-formal e informal que se
participação e corresponsabilidade. constitui o conceito de educação, valorizando o
O processo educativo concretiza-se ao longo indivíduo no âmbito dos seus domínios e
da vida e deve organizar-se em torno de quatro processos biopsicossociais.
aprendizagens fundamentais: aprender a Para melhor compreendermos o
conhecer, aprender a fazer, aprender a viver desenvolvimento biopsicossocial, releva-se a
juntos e aprender a ser. Estes pilares do teoria bioecológica de desenvolvimento humano
conhecimento permitem que cada indivíduo, ao de Bronfenbrenner que nos afirma que “o
longo da sua vida, adquira os instrumentos de desenvolvimento humano é o conjunto de
compreensão para poder agir sobre o seu processos através dos quais as particularidades

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

da pessoa e do ambiente interagem para Educar para a qualidade de vida e


produzir constância e mudança nas bem-estar pessoal e social
características da pessoa no curso da sua vida”
(Bronfenbrenner, 1989, p.191). Esta teoria “Quanto mais aprimorada a democracia, mais
posiciona os seres humanos como entidades ampla é a noção de qualidade de vida, o grau
dinâmicas que se modificam internamente e de bem-estar da sociedade e de igual acesso a
que restruturam o ambiente onde vivem, assim bens materiais e culturais” (Olga Matos, 1999,
como, reconhece que o meio ambiente exerce citada por Minayo, Hartz, & Buss, 2000, p. 8). A
influência sobre o desenvolvimento humano, no qualidade de vida encontra-se intimamente
âmbito das relações de reciprocidade relacionada com a perceção do grau de
estabelecidas a partir da interações satisfação sentido e encontrado nos domínios
bidirecionais (entre as pessoas e os seus individuais, familiares e sociais ao longo do ciclo
ambientes) bem como, de forma ampliada, às da vida. Trata-se assim de um conceito
relações e influências entre os diferentes polissémico que, por um lado, se relaciona com
ambientes, próximos e distantes os modos e estilos de vida, e por outro, tem em
(Bronfenbrenner, 1989). si a ideia de desenvolvimento sustentável e de
ecologia humana (Minayo et al., 2000).
Assim, o desenvolvimento humano ao longo da
vida resulta de um permanente e desafiante A Organização Mundial da Saúde define
processo de inter-relações sistémicas dos qualidade de vida como “a perceção do
domínios ambientas e pessoais. Ou, como nos indivíduo sobre sua posição na vida, no
aponta o modelo bioecológico de contexto da cultura e dos sistemas de valores
desenvolvimento humano, desenvolve-se em que vive e em relação aos seus objetivos,
através da sinérgica interação entre quatro expectativas, padrões e preocupações” (The
componentes: processo, pessoa, o contexto e WHOQOL Group, 1995). Neste sentido, a
o tempo (Bronfenbrenner & Morris, 1998) promoção da qualidade de vida exige a adoção
de uma perspetiva ecológica, na medida em
A educação assume, portanto, o seu contributo que se devem os conhecer os sistemas em que
a partir do ensino de conhecimentos para a as pessoas vivem, para se compreendam os
vida, mas adquire o seu significado se a níveis de influência dos mesmos na qualidade
combinarmos com a ação de aprender a ser e de vida (Freire & Ferreira, 2018).
aprender a viver juntos (Soto-Carballo,
Rodríguez, & Hernández, 2018). O desígnio As perceções da qualidade de vida de uma
educativo é extremamente complexo e exige comunidade são transmitidas a partir dos
abordagens transdisciplinares para a sua pontos de vista e representações das
concretização. A valorização das políticas condições de vida dos seus membros. O
educativas e sociais, sejam de ordem global processo de desenvolvimento positivo e
(internacional) ou local (nacional), bem como saudável é consequência da inter-relação do
das ciências da educação e das ciências individuo com os fatores biológicos,
sociais e do comportamento, é fulcral para o psicológicos, familiares, comunitários, culturais
progresso dos processos educativos e, como e ambientais, pelo que o seu reconhecimento
tal, para o desenvolvimento humano. permite delinear políticas de saúde e condições
que contribuam para a melhoria da qualidade
de vidas das pessoas (Gaspar, Pais Ribeiro,
Matos, & Leal, 2008).

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Neste sentido, através da identificação dos Conclusão


domínios influenciadores da saúde, da
qualidade de vida e do bem-estar, é possível Como se compreende através do exposto, ao
desenvolver intervenções que visem a aquisição agirmos com as pessoas, nos seus contextos e
e desenvolvimento de competências pessoais e ambientes biopsicossociais, estamos a valorizar
socioemocionais que contribuam para o potencial de desenvolvimento humano
ambientes salutogénicos. individual e coletivo. Neste sentido, promover
bem-estar e qualidade de vida é reconhecer o
A perspetiva salutogénica evidencia os fatores papel determinante e o protagonismo que cada
que contribuem ativamente para a promoção da individuo apresenta para si mesmo e os para os
saúde e, como tal, centra-se nas pessoas, nos outros.
seus contextos e nos recursos e
potencialidades existentes. Assim, o papel A aquisição de competências sociais, pessoais
preponderante dos indivíduos na gestão dos e socioemocionais, ao longo da vida, emoldura
recursos é determinada pela capacidade dos o espaço de relação pessoal e social. Estas
mesmos em compreenderem os diferentes competências tornam-se indispensáveis para
estímulos (externos ou internos), a gerirem os um pleno exercício de cidadania (Soto-Carballo,
recursos por forma a satisfazerem os seus Rodríguez, & Hernández, 2018) bem como se
próprios estímulos e, também, pela capacidade configuram como fatores protetores perante os
de utilizarem os recursos para proveito próprio diferentes eventos de vida. Dotar as pessoas de
no âmbito da resolução dos acontecimentos. competências que visem a construção contínua
Desta forma, o desenvolvimento da saúde e de do seu bem-estar é assumir uma educação
uma vida biopsicossocial positiva, implica que transformadora e emancipatória, promotora de
se executem intervenções individuais e coletivas qualidade de vida.
que visem a promoção do empowerment O caminho é o da educação, o destino é o
(psicológico e sociocultural), a responsa- empowerment e o desenvolvimento pessoal e
bilização e o poder de agir sobre os diferentes social. 

determinantes de saúde (fatores pessoais,
sociais, económicos e ambientes) que
influenciam a saúde dos indivíduos e das
comunidades (Graça, 2015).

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

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Da fantasia à realidade na história de vida


de um indigente com deficiência mental.
Estudo de caso biográfico em Castelo Branco

Ernesto Candeias Martins


Docente, Instituto Politécnico de Castelo Branco,
Presidente do CTC
ernesto@ipcb.pt

Resumo

A deficiência mental apresenta muitos indigentes que são, normalmente, catalogados de marginais e
vagabundos, tendo uma má imagem social. A partir da metodologia qualitativa, na modalidade de
história de vida – em estudo de caso o ‘João’, recorremos ao método biográfico-narrativo. Foram
objetivos: construir a história de vida do João – deficiente mental indigente; analisar como o João é
visto pela família e comunidade; compreender a relação João-família-comunidade e que apoios tem.
Utilizámos as técnicas de recolha de dados: observação participante em notas de campo e
entrevistas (semiestruturadas à família, em profundidade ao João e inquérito por entrevista a 29
pessoas da comunidade), de modo a construir a sua biografia.

Palavras-chave: deficiente mental; Indigência; História de vida; biografia narrativa; Marginalização. 


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Introdução

A inda não há muito tempo encontrávamos


em muitas povoações do país indigentes com
vezes, estes indigentes, são considerados
referências locais, pois são sujeitos conhecidos
deficiências mentais, muitos deles mendigando na comunidade e se não os conhecem pelo
e vagabundeando, que constituíam figuras menos já ouviram falar (Costa, 1995). Por isso,
típicas estigmatizadas e em situação de habituamo-nos a vê-los vagueando ou até
marginalização na comunidade local, quer pela mesmo mendigando e esquecemo-nos de
família, tutores ou instituições sociais. Pouco a pensar que vida está por detrás desses
pouco com o surgimento de novas políticas indivíduos, o que os levou para esses
sociais e assistenciais, o reconhecimento dos caminhos, que ambições tem para a sua vida e
direitos de inclusão do cidadão deficiente e que sonhos ficaram por realizar ou fantasias
novas intervenções, incluindo em manifestam. É nos âmbitos desta problemática
estabelecimentos especializados, tornaram que se insere o nosso estudo sobre a história
possível tratar estas pessoas, dar-lhes apoios e de vida (narrativa) do João (falecido há pouco
serviços adequados para terem uma vida o tempo), na cidade de Castelo Branco, tal como
mais digna possível (Fontes, 2008, 2009). muitas outras figuras típicas (‘Zé Gavetas’, ‘Tio
O interesse por esta temática já vem de longe, Guilhermino’, ‘Resinas engraxador’, ‘Zezinho
na linha de investigação de histórias de vida de das Cruzetas’, Maria Cigana, Sebastião
coletivos marginalizados ou excluídos, com a ‘Galinha’, Paulo ‘Barbado’, ‘António das
participação de alunos de mestrado de Cabras’, Francisco ‘Chavinca’, Sebastião
educação social e intervenção social escolar, ‘Galinha’, etc.) com os seus apodos e
que nos permitiram dar à luz algumas representações preencheram a vida comunitária
publicações (Martins & Jorge, 2012). Estas têm (Henriques, 1998; Martins & Jorge, 2012).
demonstrado a riqueza dessas narrações
Utilizámos a metodologia qualitativa
biográficas no contexto da Educação Especial e
(interpretativa, naturalista), na modalidade de
da História Social (Cultural), de modo a
história de vida – em estudo de caso (Léssard-
compreendermos como esses sujeitos sem voz
Hébert; Goyette & Boutin, 2008; Stake, 2007) o
(direitos) e sem vez (intervenção), muitos como
‘João’ com o método biográfico-narrativo. Não
sendo fantasmas com vida, vivem e convivem
houve necessidade de uma narratividade
com mais ou menos loucura e fantasia na sua
uniforme e integral da do sujeito em estudo, já
vida e as representações sociais que a
que de acordo com o próprio estruturámos
comunidade estabelece ou faz deles (sociologia
esse percurso de relatos em torno a
do quotidiano) (Apolline, 2011).
momentos-chave, suprimindo aspetos e
Na deficiência mental encontramos um número situando-nos em períodos ou atividades
bastante significativo de indigentes que são, específicas da sua vida. Daí que o objeto do
normalmente, catalogados de marginais, estudo foi singular, irrepetível e não
vagabundos, mendigos ou pedintes, já que têm generalizável, visto que esta metodologia
uma imagem de inativos na sociedade e que, qualitativa assenta em pressupostos
apenas deambulam pelas ruas (Fontes, 2009). ideográficos. O estudo decorreu entre finais de
Apesar desta catalogação negativa, muitas 2014 e começos de 2015, com a participação

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de alunos de mestrado, que se ampliou a Sabemos que a vida quotidiana de pessoas


outras zonas como as do Fundão e Gavião. peculiares salta à nossa vista, e essas
Neste tipo de investigação qualitativa, de impressões podem ser investigadas, já que “A
estudo de caso e método biográfico-narrativo o temporalidade do quotidiano não se reduz a
investigador recorreu à descrição fiel do sujeito, uma temporalidade cíclica, vivida
no seu contexto, observando e convivendo com exclusivamente no presente, há uma história de
ele e família, com o objetivo de obter e recolher vida (quotidiana por detrás) que não deve ser
a informação (Hurtado, 2006). Consideramos encarada como uma história
que a história de vida, na vertente biográfico- emergente” (Martins, 1997: 9) ou do terceiro
narrativa, exige recurso a outras fontes, com sector – o da marginalização.
procedimentos de recolha e análise adequados,
protocolo e cumprimento dos princípios éticos Enquadramento téorico-conceptual
(anonimato, confidencialidade, privacidade –
‘camuflagem’ de nomes e lugares). Com o Desde os princípios e conceitos pedagógicos
estudo compreendemos melhor os sujeitos com formulados por Pestalozzi e Fröebel, com
deficiência mental, em situação de indigência e influência nos pioneiros da educação e
de marginalização (Fontes, 2012), numa intervenção assistencial, médico-pedagógica,
construção social (memória coletiva) que psicológica e socioeducativa com atrasados
constitui uma herança intelectual pluridisciplinar, mentais ou indivíduos com incapacidades
uma autenticidade e uma fonte multiforme de (mentais, físico-motoras, sensoriais, psíquicas
inspiração a outros estudos. Norteámo-nos ou de aprendizagem), que interessou médicos,
pelos seguintes objetivos: construir a história de psiquiatras, higienistas, juristas e pedagogos na
vida do João – deficiente mental indigente identificação dessas formas clínicas associadas
através de relatos inclusivos na sua biografia aos transtornos que manifestavam, por
pela narratividade das informação, permitindo exemplo, figuras como: Little em Londres; Pinel
elaborar o perfil e saber como é o sujeito em e Esquirol com as doenças mentais; Ireland
estudo; analisar como o João é visto (imagem, com atrasados mentais; Kasper Hauser na
representação social) pelos membros da família análise aos atrasados profundos; E. Séguin (pai
e pela comunidade local, o que implica ser uma da Educação Especial) na renovação das
figura típica, com maneira de ser especial instituições para deficientes; critérios de
(deficiência e indigente); compreender a forma psicometria e aplicação de testes de sobre a
de relação do João com a família, comunidade inteligência nos deficientes (Binet e Simon, M.
e que apoios têm para levar uma vida digna. Cattell); os contributos aos anormais irregulares
As técnicas de recolha de dados assentaram de O. Decroly e Faria de Vasconcelos aos
em observações informais e participantes (notas anormais pedagógicos; de Aurélio da Costa
de campo) e entrevistas (semiestruturadas à Ferreira, Fernando Palyart Ferreira e V. Fontes
família, em profundidade ao sujeito em estudo e na abordagem aos anormais deficientes ou
inquérito por entrevista pessoas da ‘atrasados/retardados’, para além de um leque
comunidade), de modo a compreender o sujeito de médicos/psiquiatras portugueses no séc.
em estudo, as suas vivências, experiências, XX, que alertaram para os cuidados com estes
hábitos diários, comportamentos e relações sujeitos, através de vários modelos: médico,
com os outros e, ainda analisar como a família condutista, cognitivo, psicanalítico, humanista,
convive com esta situação e como a sociocultural e pedagógico (Martins & Jorge,
comunidade o vê. 2012).

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Já lá vai o tempo em que esses sujeitos eram psicológicas) na deteção dos atrasos mentais
designados nas categorias de idiotas, imbecis, (severo, leve e profundo) com reabilitação para
oligofrenos, atrasados ou retardados no algumas dessas anomalias (programas
desenvolvimento, subnormal, débil mental, socioeducativos). A deficiência mental constitui
loucos ou simplesmente ‘anormais mentais’ ou uma síndrome caraterístico em certas doenças,
‘patológicos’, muitos destas categorias mas não se pode dizer que a deficiência mental
mereceram assistência social e educativa seja uma doença, já que esta associa-se a
(asilos-escolas, institutos, colégios), uma vida transtornos de conduta, afetivos, comunicação
sob vigilância e tutela (serviços de proteção), ou linguagem, cognitivas, enquanto a
institucionalização em estabelecimentos deficiência mental carateriza-se por
especializados com aprendizagem de um ofício incapacidade, limitação, carência de algo que
e vida em proteção (institutos médico- afetou o seu desenvolvimento (Barnes, 2004).
pedagógicos e médico-psicológicos: Instituto Podemos depreender três caraterísticas
Aurélio da Costa Ferreira, Instituto Condessa fundamentais sobre o deficiente: o nível
Rilvas, Instituto Reeducação Mental e intelectual inferior à média em dois ou mais
Pedagógico, Instituto Adolfo Coelho da Casa desvios típicos nos testes; conduta adaptativa
Pia, Instituto Navarro de Paiva, etc.), incluindo anómala ao nível social e pessoal, não
hospitais de psiquiatria (Miguel Bombarda, Júlio permitindo autonomia, independência e
de matos) ou escolas e/ou aulas especiais. Ora responsabilidade; manifestação de sintomas
bem a deficiência mental é uma terminologia durante o desenvolvimento (até aos 18 anos).
que varou ao longo dos últimos séculos, Distingue-se, pois o atrasado mental de outros
segundo a conceção de cada autor, corrente ou transtornos provocados por circunstâncias
enfoque teórico e da época (Fontes, 2008 e traumáticas (Barnes & Mercer, 2010). Além
2009). A referência ao défice nos processos disso há, como dissemos fatores causais e a
cognitivos constitui a caraterística geral dos classificação de incurável e a manifestação dos
deficientes e daí a quantidade de definições comportamentos indevidos. Perante estes
havidas ao longo dos anos (Barnes, 2004; diferentes critérios originou-se diversos modelos
Fontes, 2012). explicativos da deficiência mental e formas de
Na verdade, o termo deficiente refere-se à intervenção para estes sujeitos (Fontes, 2012).
pessoa que se manifesta de forma diferente à Normalmente, os deficientes mentais têm
maioria, por ter alterações ou transtornos tendência à indigência, mendicidade e
mentais, incapacidades psíquicas, físico- vagabundagem. A indigência tem como causas
motoras e sensoriais, síndromes ou patologias as pessoais e as sociais ou ambas. Assim, as
mentais (Costa, 1995). Constituem um pessoais apresentam determinantes
problema e uma grande preocupação social, neurobiológicos, a propensão a psicopatologias
com repercussões na família, em aspetos associadas à ansiedade e níveis elevados de
socioeconómicos, culturais e educativos stress, principalmente em indivíduos sem redes
(inclusão), em que a OMS (2004), desde 1968 de apoio, para além de experiências
tem analisado as crianças com atrasos mentais traumáticas que viveram na infância/juventude,
e com necessidades especiais. As ciências de maus tratos, de abusos (físicos, sexuais e
ligadas à saúde, as ciências sociais e da consumo de substâncias), conflitos ou violência
educação conseguiram fazer surgir formas de na família, etc. Todos estes aspetos pessoais
intervenção precoce, com exames/diagnósticos são de risco para o estado de indigência. Nas
e prescrições (médico–psiquiátricas e causas sociais colocamos a exclusão destes

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sujeitos, devido à sua vulnerabilidade, O design e a metodologia


precariedade, discriminação e estigmatização de ação empírica
da comunidade Por outro lado está o impacto
psicológico (na comunidade), devido ao aspeto O estudo integra-se na metodologia qualitativa
(físico e mental) e social determinado pela (Hurtado, 2006), modalidade de estudo caso e
vulnerabilidade que apresentam, produzindo com método biográfico-narrativo de elaboração
consequências como: invisibilidade (a maior da história de vida do ‘João’. O paradigma
parte das pessoas não têm interesse por estas interpretativo, caraterística daquela metodologia
pessoas); propensão a apresentar sintomas ou procura a compreensão do significado dos
desenvolver doenças mentais; risco ou perigo fenómenos sociais (vertente fenomenológica) e
elevado de institucionalização (hospitais, neste caso a representação social que produz o
psiquiátrico, lares de acolhimento); propensão sujeito em estudo na comunidade local citadina
ao álcool e/ou às drogas (sem dinheiro (Hernández y Rifà, 2011). Ou seja, o indivíduo
esmolam ou roubam - delitos), desemprego e vincula-se ao ambiente que o envolve, dando
sem oportunidades em programas de ênfase à sua experiência vivida, no contexto das
integração laboral; falta de educação (formal, relações com os outros, com as coisas, os
escolarizada, educação cívica e para a saúde); sucessos e situações. O estudo de caso é um
risco de acidentes e morte prematura (falta de termo estilo ‘guarda-chuva’, composto de
proteção); etc. métodos que pretendem indagar um caso ou
situação, num período de tempo, detetando
Todo este fenómeno social da indigência exige
processos interativos que o confirmam (Stake,
apoios, serviços interdisciplinares (técnicos de
2007). A história de vida do ‘João’ reporta
várias áreas de formação), de intervenção,
relatos, narrações e itinerários pessoais,
medicação e/ou institucionalização
familiares, sociais e comunitários, enquadrados
especializada. Deve-se conhecer os processos
em esquemas de análise (categorias), numa
de inclusão destas pessoas e, para tal, é
interação com os informantes, os quais
necessários contributos para melhor análise e
rememoram acontecimentos e narrativas de
reflexão em torno das (im)possibilidades de
experiências de vida (Pujadas, 2002). O nosso
cidadania com experiências, de modo a surguir
trabalho de campo estruturou-se da seguinte
políticas sociais com intuito de promover o seu
maneira (Brandão, 2007; Gonçalves, Henriques
bem-estar. O estigma relacionado com a
& Cardoso, 2006; Perelló, 2009): período de
indigência e a deficiência mental provém do
‘negociação’, numa perspetiva ‘contratual’ com
medo do desconhecido, de um conjunto de
os informantes, concedendo informações e
crenças que originam a falta de conhecimento e
recolha de dados pela aplicação das
compreensão na situação destas pessoas,
entrevistas; fase de organização dos dados
tendo a OMS (2004) apresentado o bem-estar
(gravação áudio), codificação de temas e
pessoal como a articulação de uma estabilidade
categorização da estrutura narrativa (segmentos
e de um equilíbrio em todas as dimensões que
de texto); estabelecer categorias e modelos –
caraterizam esses indivíduos: física, psíquica e
significados da narração e conceitos na base
social.
teórico de fundamentação; as estruturas
narrativas e representações sociais. Todo o
processo indutivo de organização dos dados
(temas, categorias) permitiu identificar os
modelos de interação entre eles (análise de
conteúdo) usando a triangulação de dados.

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Tendo em conta a natureza de estudo alguns vizinhos do sujeito em estudo (Clandinin,


qualitativo (Stake, 2007) utilizámos várias 2007).
técnicas, tais como: Observação informal Lembramos que o método biográfico assenta
(contexto quotidiano e casa residência) e em elementos autobiográficos, logo poderá
participante ao sujeito e família; Observação levar a que a observação do biografado ou
documental (análise de conteúdo) às fichas objeto em estudo seja corrompida, sujeito
clínicas e outra documentação; Entrevistas também às consequências da participação do
semiestruturadas (cunhada e à irmã tutora), entrevistador junto do entrevistado, bem como,
entrevista em profundidade ao ‘João’ e à própria manipulação e tratamento dos dados,
inquérito por entrevista a N=29 informantes da por parte do entrevistador. Assim, quando
comunidade; Notas de campo. Após a numa biografia se constroem memórias e
transcrição das entrevistas, realizadas aos projetos de vida, a validade de
informantes, as mesmas foram sujeitas a uma representatividade e de credibilidade, da
análise de conteúdo procurando-se identificar mesma, é duvidosa (Martins, 1997: 12). Na
os temas ou ideias centrais de cada verdade, o método biográfico-narrativo e a
depoimento de modo particular. Esta análise de entrevista qualitativa (ato comunicativo) como
conteúdo passou por três fases que Bardin técnica estabelece (Bolivar, Domingo &
(2004) denomina de pré-análise (leitura cuidada Fernández, 2001) uma interação entre
e atenta dos conteúdos); preparação do entrevistador-entrevistado, em que o
material, fazendo a sua categorização e por fim conhecimento aflui e se constrói pelo diálogo
o tratamento, inferência e interpretação dos interativo, proveniente das experiências,
dados propriamente ditos. Este processo sentimentos, opiniões do entrevistado, no
permitiu compreender os fundamentos da tempo e espaço. A entrevista permitiu uma
informação recolhida, transformada em leitura social do sujeito em estudo, oriunda da
unidades de análise, em categorização, reconstrução do seu percurso de vida (relatos)
descrição e interpretação (Krippendorff, 1990). permitindo a análise dos processos de
Os dados recolhidos das observações e da integração cultural e dos sucessos e
análise de documentos, encontram-se diluídos acontecimentos da sua identidade (Marre,
na caraterização do sujeito. Para além da 1991; Gergen & Gergen, 2011). De facto, a
análise de conteúdo recorremos à triangulação história de vida pode ser apresentada apenas
de dados oriundos da observação participante como um relato exaustivo da narrativa do
e registos de notas de campo, para além dos sujeito biografado (Lechner, 2009). A consulta
dados do inquérito por entrevista às 29 pessoas de documentos pessoais complementa e
da comunidade local, em contexto de lugares controla a validade dos testemunhos, sendo os
frequentados pelo João (‘Maradona’), ou seja, mesmos conhecidos pela origem de
interpretámos o contexto do sujeito como ele é enviesamentos, tais como, falhas e imprecisões
visto pela comunidade onde reside. Além disso, de memória, empolamento de certas
deslocámo-nos a vários locais/instituições, com informações para salientar o papel
o objetivo de obter mais informações ou até de desempenhado pelo sujeito na ação narrada,
confirmar alguns dados, nomeadamente: substituição da realidade pelos sonhos que
Secção de psiquiatria -Hospital Distrital de foram sendo alimentados acerca dessa
Castelo Branco, com o objetivo de confirmar realidade, presença e participação do
informações acerca das deficiências do sujeito. investigador na tomada do depoimento, entre
Ao longo do estudo fomos anotando alguns outros (Schmidt, 2004). Neste sentido, histórias
dados fornecidos de forma espontânea, por de vida não têm apenas um sentido

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retrospetivo, com um começo e um fim dos Relato do ‘João’: entre a fabulação


acontecimentos, mas também um sentido do deambular da imaginação
prospetivo que permite olhar para a frente e à pura realidade
projetar os acontecimentos futuro (Gobbi,
2005). Para E. C. Martins (1997: 9), “a história Iremos transcrever o(s) relato(s) de vida do
tem lugar na vida, no quotidiano, por isso o ‘João, narrado por ele próprio (gravação áudio),
investigador tem dificuldades em localizar as tendo nós como investigadores mantido uma
fontes precisas que documentem essas atitude de imparcialidade fundamentada em
vivências sociais, educativas e culturais”. Estas pressupostos éticos, de forma a que todas as
dificuldades estão assim, relacionadas com conversas decorressem de forma aberta sem a
fontes documentais escritas, orais, audiovisuais existência de qualquer intervenção sobre o ator
e a história oral. social em causa. Eis a ‘fábula narrativa’ do ator
Não nos esqueçamos que a biografia comporta na narratividade da primeira pessoa (algumas
um tecido amplo de operacionalizações e correções linguísticas feitas por nós):
metodologias, integrada nas histórias de vida,
“Em meados da década de 40, os meus
sobre a vida de uma determinada pessoa
pais instalaram-se na nossa pacata
(Pujadas, 2002). A narração biográfica não é a
residência com o objetivo de vingar na vida.
escrita sistemática de uma vida (com a sua
O meu pai era pedreiro e a minha mãe
cronologia, fases, períodos, etc.), mas a
costureira e também uma mulher de sete
construção do percurso de vida que se
ofícios. Agora goza da sua reforma. Ela
engendra e que torna a biografia aberta,
pôs-me no mundo em 1960. Tenho 3
produzindo saídas para as vidas mais
irmãs e um irmão. Sou o mais novo, dos
aprisionadas (Hernández y Rifà, 2011), já que
cinco. Andei na escola até à 4ª classe. Tive
os relatos pela ‘voz do informante’ tem um
várias professoras, que já morreram, uma
papel fundamental no contraste dos diferentes
delas, era muito má. Naquela altura portava-
momentos e formas de dizer. Assim, as
me mal e então levava reguadas. Andava
histórias vida permite compreender os
sempre na paródia e na brincadeira, foi a
elementos gerais contidos nas entrevistas, pois
época mais feliz da minha vida. Gostava de
como refere Brandão (2007), a história de vida
ter tirado um curso de inglês ou francês,
que são entrevistas exaustivas com os atores
mas não pude porque naquela altura o meu
sociais com objetivo de obter uma narrativa dos
pai era pobre e não tinha dinheiro. E então
seus percursos de vida, permite captar outros
deixei de estudar.
elementos fundamentais da realidade social, os
quais explicam por que é que não “existe Trabalhei nas obras, mas não durou mais do
apenas reprodução e reconhecem, ao mesmo que duas semanas com o meu pai, e mais
tempo, o valor sociológico no saber de um mês com o meu tio. Diziam que eu
individual” (Brandão, 2007:10). O objetivo deste não percebia nada da arte. Aos 17 anos saí
tipo de estudo, é fundamentalmente apreender do país, corria o ano de 1977, quando fui
e compreender a vida conforme ela é relatada e jogar para o Barcelona B. Foi fantástico. Era
a forma como o próprio individuo interpreta a tudo diferente daquilo que eu conhecia. Foi
sua história. Do lado do pesquisador importa lá que conheci aquela que veio a ser a mãe
salientar o aspeto da capacidade de escuta e dos meus filhos. Sim, tenho dois, um rapaz
de reflexão. e uma rapariga, que vivem em França,
atualmente. A duração da relação com ela

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foi igual à da minha estadia no Camp Nou pequeno, e um Porsche quando estive em
em Barcelona. Três anos. Só que Barcelona.
completamente opostas, em termos de Dou-me bem como a minha mãe. É a
amor e dedicação. A estadia, ainda hoje me melhor coisa que eu tenho. Estou sempre
proporciona momentos de verdadeiro preocupado com ela. Quando passa uma
orgulho e excelentes recordações. A ambulância fico logo preocupado, porque
relação, levou-me à miséria a ao abandono ela não pára quieta. Anda sempre a passear.
dos meus filhos. Tive de pagar, naquela Há dois anos, ela ia sempre passear para
altura, mais de 1500 contos, para não ir junto da discoteca e até caiu lá. Ficou com a
preso… era muito dinheiro. Era uma multa cara toda esmurrada. Depois telefonaram-
de renda de casa, por ela ter utilizado o me e eu fui lá ter com a minha irmã, que é
apartamento, sem eu saber. Como tinha professora. Com o meu pai também me
problemas de saúde (epilepsia), tive de vir- dava bem. Ele morreu novo, tinha 61 anos,
me embora, para Portugal. E não pude foi o momento mais triste da minha vida.
trabalhar mais por causa desse problema.
Agora ando medicado. Estou a receber Os meus irmãos vejo-os poucas vezes. A
reforma por invalidez. de Lisboa só cá vem de mês a mês, os
outros dois só quando lhes apetece e a
Eu gostava de ser alguém na vida. Se eu professora tem meses que não a vejo. A
não me tivesse reformado, podia ter tirado minha irmã de Lisboa mora num bairro que
um grande curso ou tirar um curso menor mete medo que é a Cova da Moura, mas eu
ou trabalhar, mas não posso por causa da nem quero lá passar. Dos quatro irmãos,
reforma. Sealguém vem a saber que eu esta é a irmã que eu gosto mais. Mas agora
ando a trabalhar cortam-me a reforma. ela anda também chateada comigo. Porque
Porque eu gostava de seralguém, porque eu pensa que eu me porto mal.
gosto de trabalhar e gosto de ajudar as
pessoas. Gostava de ser alguma coisa na Tenho muitos amigos. Tenho grandes
vida, para passar o tempo. Às vezes amigos que andaram comigo na escola. E
aborreço-me. Gostava de aprender uma muitas amigas. Gosto de falar com eles e
arte em que não tivesse de descontar, para quando vão à vida deles, eu fico na
a segurança social. escadaria da zona dos bares. Ainda ontem
um rapaz meu amigo que é doutor, deu-me
De manhã levanto-me, vou até ao bar um euro e eu comprei um pãozinho, que
desportivo beber um café. Depois vou dar comi logo. Também digo uma coisa: tenho
uma volta, falo com os amigos e com as mais consideração por amigos do que por
amigas. Por volta do meio-dia, vou a casa certas pessoas da minha família. Porque as
dar comida à minha mãe. Há noite, janto em minhas irmãs já não me ajudam, porque se
casa, e volto a sair para me distrair um eu lhes pedir um euro, não me dão. Há
bocado indo até à zona dos bares. Mas não muita gente que também não gosta de mim.
tenho vícios. Bebo de vez em quando uma E muita gente que tem inveja de mim por eu
mini ou duas. Antes de ontem é que estar reformado”.
“mamei” dois copos de jeropiga. Ando
sempre a pé, às vezes até me perguntam Em termos reais e cruzando dados
quantos quilómetros é que eu faço. Nunca provenientes de fontes de informação pudemos
os contei. Os únicos meios de transporte construir a realidade e percurso de vida do
que tive foram, uma bicicleta, quando era João. De facto, ele nasceu em maio de 1960,

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

na cidade de Castelo Branco, tendo sido o 5º infância, pelofuncionamento intelectual abaixo


filho de um mestre de pedreiro e de uma da média e por limitações significativas em duas
costureira. Todos os irmãos são mais velhos e o ou mais áreas de comportamento adaptativo
João nasceu para preencher o vazio deixado (Fontes, 2012). O facto de a deficiência ser
pela perda de uma irmã, quando esta tinha ligeira torna o ritmo e o grau dedesenvolvimento
apenas um ano de idade. Vive com a mãe, mental dos seus indivíduos, diferente dos
viúva, na casa de sempre (nela viveram os demais, podendo também haver problemas de
avós). Segundo a irmã tutora (IT) do João, “A memória a curto prazo, de socialização e de
casa é alugada, sempre vivemos ali. A minha linguagem. As causas da deficiência podem
mãe não quer sair de lá…”. Uma casa muito advir da má nutrição, de doença, de intoxicação
antiga, em muito mau estado de conservação e produzida pelo chumbo e de cuidados médicos
sem esgoto. A habitação do João tem o reboco inadequados relativamente às áreas de saúde
a cair, alguns vidros da janela partidos e referidas. Após o diagnóstico psiquiátrico
buracos no soalho, mas o senhorio não arranja. passou a ser medicado com neurolépticos e
A mãe, engravidou aos 33 anos e para além de anticonvulsionantes e tinha consultas regulares,
ter sido uma gravidez planeada, foi assistida segundo a IT “nem sei, ele era muito
pelo médico. A gestação decorreu com acompanhado, até a bruxas a minha mãe o
normalidade e o período de gestação foi o levava…, mas andou na psiquiatria”. Algumas
normal, mas o “o parto foi prolongado e depois vezes ia penas a mãe, que expressava a sua
foi oxigénio para o cérebro” (IT) e o João nasceu opinião quanto ao desenvolvimento do filho.
com 5. 500kg, com perímetro cefálico elevado. Desde 1990 que o João não comparece no
Ora é sabido que a diminuição da oxigenação serviço de psiquiatria. O (ex)cunhado conta que
no cérebro (anoxia) ocorre na criança, devido ao “ele teve problemas de epilepsia quando era
parto prolongado, entre outras possíveis causas garoto”, mas que “ele não tem nada”, apesar da
(Costa 1995). Esta privação de oxigénio no IT referir que “ele toma uns comprimidos para
cérebro pode levar, entre outros, a distúrbios andar mais calmo…para dormir”. Em criança o
motores, a descoordenação motora leve até às João teve uma boa relação com os pais, irmãos
convulsões (Barnes, 2004). Indo de encontro ao e com todos os que o rodeavam, sendo
que a IT descreve do seu irmão, pois “…teve passivo e conciliador.
convulsões acho que até aos dois anos”, porém Com 15 anos de idade “Fez o exame da 4ª
nunca necessitou de internamentos. Teve as classe já prai aos 15 anos…” (IT), apresentando
doenças consideradas normais numa criança dificuldades de aprendizagem, que eram
(sarampo, bronquite asmática). O seu resultantes da diminuição da oxigenação no
desenvolvimento psicomotor foi normal, cérebro, na hora do parto, tendo comprometido
evidenciando na linguagem dificuldades, pois toda a vida escolar da criança (depoimentos da
troca(va) consoantes e não conjuga(va) verbos. família). O processo escolar na época era
Aos quatro anos, a mãe considerava-o uma baseado em ‘reguadas’ para quem era
criança muito agitada, falta de atenção, atrasado ou não aprendia, mas o cálculo mental
encaminhando-a para as consultas de sempre foi a sua área forte, enquanto a
psiquiatria “…depois não teve mais problemas, motricidade fina, até hoje, o ponto fraco. Como
mas era seguido na psiquiatria do hospital” (IT). todas as crianças adorava jogar à bola, jogava
Nessa altura foi-lhe diagnosticado ‘Deficiente na rua com os amigos, transportando para a
Mental Ligeiro’ e a sua ficha clínica indica muita sua realidade as vivências do único irmão
instabilidade psicomotora. Sabemos que a homem, que jogou no clube da cidade,
deficiência mental se caracteriza, desde a chegando mesmo a ser convidado para jogar

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no Sporting Clube de Portugal. O João fantasia, muito mentiroso e pouco trabalhador” (cunhada
transportando esse gosto e perícia para a sua C) e daí que a família perdesse a confiança nele.
vida, aquela que talvez gostasse de ter tido. Levado por alguns vícios como o álcool (citado
Sempre superprotegido pela mãe, quase não na ficha clínica do serviço de psiquiatria) “andou
trabalhou na vida, “…nunca fez nada, a nossa a gastar o dinheiro todo da nossa mãe” (IT),
mãe não deixou” (IT) e “Ainda andou com o “andou a roubar a mãe e acusa os
irmão nas obras, mas como a mãe o irmãos” (cunhada -C) e “andou aí com umas
superprotegia, deixou de andar…” (cunhada - fulanas… elas sentem quando ele tem
C). Aos 16 anos de idade, a mãe conseguiu que dinheiro.” (IT), “andou aí metido com uma
lhe fosse atribuída uma pensão por invalidez, senhora da vida, levava tudo pra lá…” (cunhada
baseando-se na deficiência que lhe foi -C), tudo isso gerou conflitos que não soube
diagnosticada. Subsiste e “vive da resolver, sendo um irresponsável. O João na
reforma…” (IT), juntamente com a da mãe comunidade local é “muito conhecido…muito
“…das reformas dele, da mãe e mais o que cerimonioso, atencioso” (IT) considera-se “muito
esta ainda recebe do marido” (cunhada -C). Por importante, acha ele” (cunhada -C), pois tem
vezes encontramo-lo na rua, pedindo dinheiro uma autoestima elevada “dá-se bem com toda
para um café às pessoas conhecidas, as quais a gente” (cunhada -C), mas devido às fantasias
anuem ao pedido. A família sente-se indignada que relata às pessoas é visto como “um
porque “Tem o vício de pedir dinheiro” (cunhada coitado, vítima do irmão, é o que as pessoas
-C) e “anda aí a pedir, mas ele não precisa” (IT). pensam” (IT).
Na verdade João vive na miséria com défice de Estabelecemos as seguintes 9 categorias e
necessidades básicas (comida, vestuário, respetivas subcategorias relativas aos
abrigo) e daí ser um indigente. Não tem depoimentos ou relatos do sujeito em estudo:
capacidade para gerir a situação financeira pelo
que “É o ex-cunhado, o V… que trata de tudo.
Faz compras e gere o dinheiro.” (cunhada -C), *-Categoria 1 - Família (subcategorias:
“Eu tenho um coração grande nem posso ver responsabilidade familiar no quotidiano;
estas coisas que fico logo… sei lá” (IT) mas as responsabilidade do tutor na qualidade de vida;
opiniões na família divergem, tendo em conta a mulher e filhos) procurámos saber qual o nível
opinião da cunhada (C) “ela (tutora) não se de responsabilidade da família, mas devido aos
preocupa, também está lá na…”, cuida da sua conflitos existentes não há uma relação
higiene, mas da roupa e da comida do João é o próxima. A tutora delegou as suas funções no
serviço de apoio domiciliário da Santa Casa ex-marido, é ele quem mais acompanha o
Misericórdia “o lar trata da roupa, agora até vão João. Tanto a cunhada como o João referem
lá duas vezes ao dia.” (IT) e “O almoço é do lar e que a tutora não se preocupa com ele. O sujeito
o jantar ele come as coisas que o cunhado em estudo fantasia com uma família que na
leva” (cunhada -C). O relacionamento com a realidade não tem, quando fala dos seus filhos –
família tem-se degradado uma vez é depoimentos do João: “tenho irmãos, não
“conflituoso, queima o espaço familiar” (IT), querem saber da velha...” “...sou o único filho a
evitando estar com a família “ele não quer saber tomar conta dela” “...tenho meses que não a
da família porque nós damos-lhe na vejo (tutora).” “é o meu cunhado que cá vem”,
cabeça” (cunhada C), pois o facto de ser “nada “conheci aquela que veio a ser a mãe dos meus
responsável… mentiroso compulsivo, filhos. Sim, tenho dois, um rapaz e uma
conflituoso, manipulador…” (IT), ou seja, “é rapariga, que vivem agora em França”.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

*-Categoria 2 - Saúde e condições próprios bens alimentares. Vivem numa casa


(subcategorias: infância, adolescência e adulto). alugada, com condições desumanas, mas da
O João apenas identifica a epilepsia como a qual, sobretudo a mãe não quer sair.
doença causadora da sua condição de vida. A Depoimentos do João: “tomo banho todos as
cunhada refere a epilepsia na infância e o João noites de água fria… prefiro “, mas “não sei
refere apenas na adolescência, durante a sua cozinhar”, “quem faz as compras é meu
estadia, de 3 anos, em Barcelona. Não faz parte cunhado”, pois “vivo numa casa alugada …
da sua realidade todo o acompanhamento no pago 3,50 € pela renda da casa”.
serviço de psiquiatria desde os 4 até aos 30
anos de idade, nem a sua deficiência mental. *-Categoria 5 - Literacia-Estudos
Hoje em dia, não tem qualquer (subcategorias: escolaridade; conhecimento do
acompanhamento médico, tomando apenas, mundo). O João frequentou a escola pública,
segundo o próprio e a sua tutora, medicação sem qualquer tipo de adaptações tendo em
para andar mais calmo. O João referiu os conta a sua deficiência mental que lhe foi
seguintes depoimentos: “quando era novo não diagnosticada. Concluiu apenas o 4º ano de
tive problemas”, mas “em Barcelona davam-me escolaridade, já com 15 anos, no entanto,
ataques epiléticos,” contudo “agora releva algum interesse pelo mundo que o
não…” (epilepsia), pois “tomo uns comprimidos rodeia. Depoimentos do João: “andei até à 4ª
para dormir”. classe”, mas “todos os dias leio jornais”,
contudo “a vida está mal e vai ainda estar pior”.
*-Categoria 3 - Subsistência (subcategorias:
trabalho, subsídio e mendicidade ou indigência). *-Categoria 6 - Comportamento /
Verificámos que o João não teve uma vida ativa Relacionamento (subcategorias: com a
(o lar lava-lhe a roupa, dá-lhe comida e roupa), família; com comunidade). Verificámos que a
muito por causa da superproteção da mãe. Tem pessoa mais importante na vida do João é a
a fantasia de uma carreira profissional ligada ao mãe, pois preocupa-se com ela e, segundo ele
futebol, mas que na verdade nunca aconteceu. próprio, é por ela que condiciona a sua vida. A
Vive da reforma, em conjunto com a mãe, Irmã tutora refere que na infância e
vende jornais a troca de algum dinheiro, adolescência sempre foi muito conciliador e
contudo por vezes pede dinheiro a pessoas passivo, caraterística da família, porém, devido
conhecidas. A família refere que tal não deveria aos conflitos hoje existentes, o João evita estar
acontecer, pois o João não tem necessidade de com as irmãs, por repreenderem o seu
mendigar. Depoimentos do João: “3 anos a comportamento, atitudes e modo de ser.
jogar à bola” (Equipa do Barcelona B), “ainda Quanto ao comportamento e relacionamento
trabalhei com o meu pai”, mas fui “reformado com a comunidade, todos referem que o João
há 20 anos” e “às vezes peço 1€...”. é bem aceite, pois não causa problemas, sendo
simpático e amável. A autoestima dele é bem
*-Categoria 4 - Autonomia (subcategorias: evidente ao considerar-se importante e com
Higiene/vestuário; alimentação; residência). muito valor na comunidade. Contudo, a família
Verificámos que o João e a mãe beneficiam dos considera que, devido às fábulas que conta, as
serviços de apoio social da Santa Casa da pessoas consideram-no um desafortunado.
Misericórdia, custeados pela família, no que Depoimentos do João: “a melhor coisa, dou-me
concerne à alimentação, higiene da mãe e muito bem com a minha mãe”, “tenho mais
tratamento da roupa. O João não sabe cozinhar consideração por amigos do que por certas
e nem sequer é autónomo na aquisição dos pessoas da minha família… porque as minhas

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

irmãs não me ajudam” de facto “sou amigo de numa das personagens do seu imaginário,
doutores, engenheiros”, “sou muito importante, inventa que viajou (sozinho) por lugares
tenho muito valor para toda a gente”. longínquos (nunca visitados), como França,
Itália e Norte de Espanha, em meios de
*Categoria 7 - Personalidade / Perfil transporte nunca utilizados (avião, carro de alta
(subcategorias: responsabilidade; autoestima; cilindrada). Depoimentos do João: “ando
sensibilidade). O João refere que gosta de sempre a pé”; “em Barcelona tive um
trabalhar, porém a família considera-o pouco Porsche” (fantasia); “vou de comboio, ver a
trabalhador e caraterizam-no de forma aviltante. minha família que está em Lisboa”, “desen-
Apresenta uma elevada autoestima, para uma rasco-me bem sozinho”, “Fui a Itália, agora há
pessoa na sua condição e de indigente, perante dias. Fui a um casamento, mas só tive lá de
a vida e a sociedade, mas isso é produto da manhã. Fui e vim de avião”, “Não tenho medo
sua relação com os outros. Mostra ter também de andar de avião” é que “Tenho família em
alguma sensibilidade ao referir que gosta de França, mas há muito tempo que não vou lá”.
crianças e animais. Depoimentos do João:
“gosto de trabalhar”, “sou muito popular na Com o objetivo de sabermos o conhecimento e
cidade”, “gostava de ser alguém na vida”, relacionamento das pessoas com o João
“gosto muito de crianças e de animais…, mas a fizemos entrevistas a N= 29 pessoas,
minha mãe não”. escolhidas de forma aleatória na rua e em locais
que ele frequenta a diário, numa faixa etária dos
*-Categoria 8 - Vícios, manias, 15-29 anos (2), 30-44 anos (2), 45-59 anos (11
comportamentos desviantes (subcategorias: sujeitos 38%), 60-74 anos (7 sujeitos 24%) e
alcoolismo; mendicidade; roubo). É talvez a 75-89 anos (7 sujeitos 24%), sendo 79,31% do
categoria que traduz a base dos conflitos sexo masculino. As pessoas entrevistadas da
familiares existentes, apesar do João referir comunidade 72% conhece o João, sendo que
pouco esta questão. A família é clara ao indicar 28,57% não sabem nada sobre ele, 19,05%
que essas situações de conflito fazem parte do sabem muito e 14,29% sabem algumas coisas
seu quotidiano, do álcool, da mendicidade e o dele. A maioria conhece-o pela alcunha e nome
recurso a prostitutas. Quanto a roubar (33%), pelo nome e alcunha (17%), pelo nome
aconteceu numa situação familiar específica, (14%), pelo estilo de roupa que leva (5%) e pelo
tendo sido travada a tempo pelos seus irmãos. nome e roupa.
Em noutras situações comunitárias nunca
aconteceu, nem visou outras pessoas com essa Dessa amostra, havia 15 pessoas que
intenção, mas recorre ao lixo para procurar diariamente mais lidavam com ele, que
coisas. Depoimentos do João: “às vezes bebo”, afirmaram o seguinte: ‘anda sempre de um lado
“às vezes peço dinheiro”, “ando às vezes para o outro’ e “vagueia muito” (12 registos); é
rebuscar no lixo…coisas”. “deficiente” (6 registos); é um pedinte mendigo
“pede dinheiro” (5 registos); “não faz nada” e
*-Categoria 9 - Mobilidade (subcategorias: no “simpático/sociável” (4 registos cada); “joga e
concelho; no país; mundo). Podemos afirmar gosta de futebol”, “conhece a família” e “sabe
que o João é uma pessoa ativa desloca-se onde reside” (3 registos cada um); “recorre a
sempre a pé na cidade onde vive, em trajetos prostitutas” e “não faz mal a ninguém” (2
muito repetidos e solitários. Não possui registos cada um). Os restantes itens têm
qualquer meio de transporte. Porém é nesta apenas 1 registo, por exemplo: ‘é um
categoria que mais uma vez o seu poder fabulador’, ‘recebe reforma’, ‘esquisito’, ‘não
fabulador se revela, parecendo transformar-se sabe pensar’, etc. Há, pois uma coincidência

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entre opinião da comunidade acerca do sujeito,


com a que expressa a família relativo à sua
própria realidade como sujeito deficiente.

Reflexões inconclusivas

O estudo permitiu-nos conhecer a biografia de


sujeitos indigentes com deficiência mental e a
sua relação com os outros e comunidade.
Neste sentido o propósito era promover a
inclusão e a dignificação das pessoas com
deficiência mental, como cidadão de direitos.
Pensamos que estes indivíduos, mesmo com
incapacidades e limitações, podem ser
cidadãos úteis à sociedade, se atendermos às
suas capacidades específicas pessoais de
modo a terem um bem-estar e melhor
qualidade de vida.
A interpretação das narrativas recolhidas e
demais informações, a partir das entrevistas e
observações permitiram-nos perceber que a
vida do João’ ficou condicionada desde a
infância-juventude e, por todo o seu futuro. A
patologia, deficiência mental, originada no
parto, e posterior superproteção por parte da
mãe foram os principais condicionantes que o
tornaram num adulto sem futuro profissional e
ambições realistas e fantasmagóricas.
Apercebemo-nos que o seu quotidiano está
mecanizado e rotinado a longas caminhadas,
em passo apressado, com encontros furtuitos e
vivências num mundo de fábulas, com muitas
maluqueiras, onde não há quase lugar para a
realidade. Em relação à família foi-nos possível
verificar que as suas relações com ela eram
praticamente inexistentes, resumindo-se
apenas à sua mãe que, apesar da sua longa
idade, continuava a protege-lo incansavelmente
e, ainda esporadicamente à ação do ex-
cunhado, que se disponibiliza para os ajudar. A
família não dá ao João o apoio que necessita a
todos os níveis e daí ele manter um
distanciamento afetivo com ela que, com o
passar do tempo, se vai intensificando mais.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Sabemos que à família, pilar essencial de todos recuperação destas pessoas com deficiência
os seres humanos e em especial nos mental, sendo que a saúde mental é indivisível
deficientes mentais indigentes, cabe-lhe o papel da saúde geral; cumprimento dos direitos
de tentar encontrar conforto e tranquilidade, humanos (proteção da discriminação e
ajudando-os a construir um futuro melhor e estigmatização) e direito a cuidados adequados
adequado às suas necessidades de inclusão. e a residência; apoios da comunidade (o
Quando tal não acontece, estes sujeitos vêm o internamento deve ser pensado após esgotar-
futuro mais comprometido e refugiam-se na se outras hipóteses); coordenação e integração
mendicidade, indigência e vagabundagem. A de cuidados e serviços com o apoio das
tutora nem sempre cumpre as suas obrigações famílias.
de proteção e zelo, chegando a haver pouca Em síntese deve-se educar, informando, a
comunicação. As pessoas da comunidade família para estas situações da deficiência,
aceitam e ajudam o João, sendo tolerante com apoio mais efetivo dos serviços sociais às
ele por ser ‘deficiente mental’, mas despreza-o famílias, de modo a minorar as suas
se tem comportamentos indevidos. As dificuldades (Fontes, 2008). A comunidade local
instituições sociais têm um papel importante da deve ser mais aberta e recetiva nas ajudas a
ajuda e apoio social, perante o estado de estas pessoas, valorizando os poucos
indigência do João. Através dos testemunhos contributos que podem dar e evitando que
percebemos que o sujeito de estudo sempre caiem em situações de indigência,
preferiu o ócio em detrimento de trabalho marginalização, exploração e vícios.
efetivo, acomodando-se a esta situação deste
muito jovem.
É sabido da literatura especializada que as
doenças mentais e/ou deficiência mental é uma
preocupação atual e emergente, tendo evoluído
a visão social, mas estas síndromes continuam
envolto de desconfianças e superstições,
consequências do desconhecimento que existe
destas doenças ou alterações (Assis, 2005). É
esse desconhecido que nutre situações de
afastamento, processos de construção de
medo, reproduzindo uma constante e visível
(por vezes silencioso) estigma, que atravessa
todos aquelas pessoas da comunidade que,
direta ou indiretamente, vivem esta realidade,
produzindo-se desigualdades e limitações ao
direito de uma cidadania efetiva e a um bem-
estar pessoal e social, concedidos pelos
cuidados hospitalares especializados, lares
residenciais, serviços assistenciais e sociais e
comunitários (Fontes, 2012). Todos estes
serviços e apoios devem promover (MS, 2012):
a saúde mental destes sujeitos; prestar
cuidados e facilitar a integração e a

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Da Demência à Pessoa:
A Atenção que Faz Ver

Rita Estrada
Docente, Psicóloga
Instituto Superior de Ciências Educativas do Douro
rita.estrada@iscedouro.pt

Resumo

O número de adultos com demência alarga-se progressivamente, tornando indispensável saber mais
sobre como são essas pessoas e como cuidar delas. Enriquecer a investigação e a prática relativas a
essas questões constitui o objetivo deste artigo. Partindo da experiência de terreno num lar de
terceira idade e com base no discurso de pessoas com demência, na abordagem centrada na
pessoa para adultos com demência e na teoria da autodeterminação, evidencia-se que: ter demência
não significa deixar de ser Pessoa; é pela atenção que se descobre a Pessoa; os adultos com
demência continuam a experienciar necessidades de relação, competência e autonomia.

Palavras-chave: Demência, Atenção, Pessoa, Cuidar, Autodeterminação.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

“a alma, estatisticamente, existe em todas as


coisas, mas existe mais no homem que inclina a cabeça
na direção dos pés de
outro. A alma foi inventada pela
atenção.”
Gonçalo M. Tavares

Introdução

A lgo que preocupa e até amedronta no


envelhecimento é o surgimento da demência.
estar a repetir-se sempre o mesmo à mesma
pessoa; haver dificuldade em encontrar
Em todo o mundo, cerca de 50 milhões de palavras para comunicar o que se quer; não se
pessoas têm demência, e em cada ano estima- conseguir realizar uma tarefa como, por
se que surjam mais 10 milhões (World Health exemplo, preparar uma refeição; não se
Organization [WHO], s.d.). No conjunto dos conseguir lembrar o caminho para casa; deixar
países da União Europeia, em 2018, havia de se lembrar dos nomes dos familiares;
quase 9 milhões de pessoas com demência, e perder-se a orientação temporal e espacial;
em Portugal havia cerca de 194 mil; para deixar de se conseguir realizar as tarefas
Portugal, em 2025, estima-se que haverá cerca quotidianas de higiene, alimentação, sono,
de 230 mil pessoas com demência (Alzheimer perdendo a independência (APA, 2014; WHO,
Europe, 2019). s.d.). As duas principais causas da demência
A demência, também designada por são os acidentes vasculares cerebrais e a
perturbação neurocognitiva, consiste num doença de Alzheimer.
processo neurodegenerativo, cuja característica Mas como são as pessoas com demência? E
principal é a existência de défices cognitivos, como é cuidar de pessoas com demência? As
havendo uma ou mais funções cognitivas, duas perguntas não têm nem uma única
como a atenção, memória, linguagem, funções resposta nem uma resposta fácil, tanto para a
executivas, que estão afetadas; os défices própria pessoa a quem é diagnosticada
cognitivos podem ser, ou não, acompanhados demência, como para os que estudam e
por alterações de humor e de comportamento cuidam de pessoas com demência. Enriquecer
(American Psychiatric Association [APA], 2014). a investigação e a prática relativas a essas
O grau de gravidade da demência avalia-se em questões constitui o objetivo deste artigo,
leve, quando afeta a realização das atividades partindo de uma experiência de terreno como
instrumentais da vida diária (por exemplo, lida psicóloga num lar de terceira idade. Tendo
da casa), moderada, quando afeta as atividades vivenciado o dia a dia de adultos mais velhos
básicas (por exemplo, higiene), e grave, quando institucionalizados, uma grande parte deles com
a pessoa se torna completamente dependente demência, houve a possibilidade de realizar
(APA, 2014). Consoante a gravidade, pode uma observação participante, que se
deixar de se conseguir reter nova informação; caracteriza pelo envolvimento nas diversas

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

atividades das pessoas, permitindo a entrevista clínica e em testes neuropsicológicos


observação do seu quotidiano (Kawulich, 2005). estandardizados, é imprescindível para
Além disso, realizou-se um acompanhamento identificar o tipo de perturbação neurocognitiva
de forma mais continuada a alguns dos utentes, em causa e traçar um plano de intervenção.
através de apoio psicológico individual. No entanto, como alerta o psicólogo norte-
Este artigo tem então origem em toda essa americano Richard Taylor, a quem foi
vivência no terreno, sendo o discurso dos diagnosticado doença de Alzheimer, há uma
adultos mais velhos17 um dos seus alicerces. tendência para sobrevalorizar o diagnóstico e
Serão citados fragmentos do seu discurso, que secundarizar a pessoa, sendo que a
constituem não só uma evidência das reflexões individualidade não desaparece com a
apresentadas, como também uma espécie de demência (Taylor, 2007). Fazendo referência à
flashes de como são estas pessoas. São vozes distinção do filósofo Martin Buber (1923/1970)
de utentes com perturbações neurocognitivas, entre relações “I-Thou”, caracterizadas pelo
maioritariamente vascular e de Alzheimer, de reconhecimento do outro como um igual e pelo
grau moderado a grave. Por outro lado, as respeito pelo outro, e relações “I-It”,
considerações aqui apresentadas também caracterizadas pela reificação do outro e pela
decorrem da integração dessa vivência no instrumentalização da relação, Taylor (2007, p.
terreno em perspetivas psicológicas, 149) faz o seguinte apelo: “I do know I want to
especialmente a abordagem centrada na continue to need to be recognized as a Thou, to
pessoa para adultos com demência (e.g., have my personhood recognized. / Please
Brooker (Ed.), 2019; Love & Pinkowitz, 2013) e understand, I am still here”.
a teoria da autodeterminação (“self-
Por outro lado, quando vemos os adultos mais
determination theory”, Ryan & Deci, 2000a,
velhos com demência como Pessoas também
2000b, 2000c). Começa-se por apresentar o
estaremos mais sensibilizados para sair do
processo que permite encontrar a Pessoa para
gabinete e observar o seu desempenho em
lá da demência, na perspetiva do cuidado
várias funções cognitivas no seu meio social
centrado na pessoa, e, depois, mostra-se como
natural, obtendo informação que pode
as pessoas com demência continuam a
complementar ou mesmo modificar os dados
vivenciar três necessidades psicológicas
obtidos pelos testes estandardizados (Sabat &
básicas: relação, competência e autonomia.
Cagigas, 1997). Assim, para conseguir chegar a
uma descrição mais fidedigna do adulto mais
Da Demência à Pessoa velho com demência é necessário ver esse
adulto como uma Pessoa (De Medeiros &
No lar de terceira Idade onde estive (tal como Doyle, 2013). É, ao mesmo tempo, um
sucede na maior parte dos lares, se não mesmo imperativo psicológico, para realizar uma
na sua totalidade), uma percentagem elevada avaliação neuropsicológica mais precisa e
dos adultos mais velhos apresenta algum tipo delinear uma intervenção mais útil e que faça
de perturbação neurocognitiva, de gravidade sentido ao próprio, e um imperativo ético, pois
variável. A identificação dos défices cognitivos é temos o dever de continuar a tratar estes
realizada com base numa avaliação adultos como Pessoas.
compreensiva multidisciplinar, cabendo ao Como passar do diagnóstico de demência para
psicólogo uma parte fundamental desse a descoberta da Pessoa? A resposta está
processo avaliativo. A avaliação contida na epígrafe a este artigo. É quando
neuropsicológica, realizada com base numa damos atenção à pessoa mais velha que a

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

começamos a ver como Pessoa, que A chamada abordagem centrada na pessoa


percebemos que existe ali um ser único, para adultos com demência foi inicialmente
detentor de uma história e de uma desenvolvida por Tom Kitwood no Reino Unido
individualidade próprias. Uma postura de na década de 90 do século passado (Brooker
atenção conduz a uma interação com a pessoa (Ed.), 2019). Kitwood rompeu com um modelo
com demência que permite perceber o que ela biomédico centrado na doença e defendeu um
precisa, conhecer as suas características novo paradigma, cujo lema era “the person
particulares, e resulta num cuidar respeitador e comes first” (Kitwood, 1997/2019a, p. 2).
sensível (Deutscher Ethikrat, 2013). Desde aí, a abordagem centrada na pessoa
Relativamente aos utentes do lar que observei e para adultos com demência tem sido divulgada,
acompanhei de forma mais continuada, no estudada e praticada em diferentes países18,
fundo aqueles que tiveram a minha atenção, os tendo como princípios basilares os seguintes:
seus défices, as suas perturbações um cuidado holístico que integre toda a pessoa,
neurocognitivas foram ficando para trás e a sua o respeito e a valorização, a escolha, a
Pessoa foi ganhando relevo. A sua capacidade dignidade, a autodeterminação e uma vida com
para se orientarem temporal e espacialmente significado (Kogan, Wilber, & Mosqueda, 2016).
era mínima ou ausente, a memória, a O cuidado centrado na pessoa para adultos
linguagem, as funções executivas estavam com demência atende às necessidades da
perturbadas, eu era “a senhora” ou “a menina” pessoa, convoca as suas forças e respeita os
ou até “a Ritinha”. Tiveram a minha atenção e seus valores e escolhas (Love & Pinkowitz,
isso mudou tudo. A sua história de vida, 2013). Rege-se por determinadas orientações:
sentimentos, desejos, valores, crenças foram confirmar o valor como ser humano da pessoa
revelando-se aos poucos, tanto pelas suas com demência, mostrando que vemos que está
reações a estímulos diversificados, como pela ali uma Pessoa através do respeito e interesse
interação que se estabelecia entre nós. Uma por ela própria; reconhecer a sua
utente que acompanhei, D. Fernanda, que individualidade e capacidade de agir, o que
manifestava com frequência uma grande pressupõe conhecer a sua história de vida e
agitação admite: “gritar é o meu apito… para ter identidade; ter uma atitude de empatia e
atenção”. Outra utente que acompanhei, D. validação face à sua experiência de viver com
Manuela, reconhece: “A Ritinha aos bocadinhos demência; responder às suas necessidades
vai entrando na minha mente”. psicológicas (Brooker (Ed.), 2019; Deutscher
O conceito de Pessoa advém de filósofos, Ethikrat, 2013; Downs, 2013). Para cumprir
como Buber, e da já referida distinção entre estas orientações, é necessário que a interação
relações “I-Thou” e relações “I-It”, de psicólogos com os adultos mais velhos com demência se
como Maslow e Rogers, e integra dois aspetos paute pela empatia, respeito, afabilidade e seja
essenciais e que interagem um com o outro: de genuína (Cheston, 2019; Kirtley & Williamson,
um lado, o caráter único de cada ser humano, 2016). Além disso, é necessário haver tempo e
percecionado como um ser biopsicossocial e desenvolver a nossa competência comunicativa
espiritual; de outro, o caráter relacional do ser (Downs, 2013; Kogan et al., 2016).
humano, sendo através de uma relação na qual
se reconhece o outro como um igual e como 1. Tempo
único que é possível ver a Pessoa que é esse
outro (Dewing, 2019; Kitwood, 1997/2019b; Ter tempo para o adulto mais velho com
Love & Pinkowitz, 2013). demência é essencial. Só com tempo é possível

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

dar atenção ao outro e vê-lo como Pessoa. apercebia de que estava a demorar a responder
Comentários dos utentes mostravam que se aos exercícios: “não me diga”; o mesmo apelo
apercebiam que eu tinha tempo para eles, não ouvia da D. Maria José: “estou a pensar, não
era todo o tempo, mas era tempo: “obrigada diga”.
por este bocadinho, estes bocadinhos”, remata
a D. Manuela; “já foi bom para o dia”, comenta
2. Competência Comunicativa
a D. Fernanda depois de um passeio pelo
jardim. Ao mesmo tempo, também se Relativamente à competência comunicativa,
apercebiam, que, por vezes, não tinha tempo: conceito que abrange um conjunto diversificado
estava eu com as pastas de um portátil e de subcompetências, desde as linguísticas,
projetor nos ombros (material usado nas como, por exemplo, saber o significado das
sessões de reabilitação neuropsicológica) palavras, àquelas que ultrapassam o
quando vejo a D. Maria José na sua cadeira de conhecimento linguístico, como, por exemplo, a
rodas e vou ter com ela; D. Maria José devolve: pragmática, que consiste em saber usar a
“vá à sua vida, vá ter com as suas alunas” (as linguagem em diferentes contextos, há aspetos
sessões eram designadas por alguns utentes que é necessário que os cuidadores
como aulas e os participantes das sessões desenvolvam para interagir de forma bem-
como alunos). Infelizmente, a falta de tempo é sucedida com adultos mais velhos com
comum nos lares; é uma realidade que demência.
atravessa diferentes países (e.g., Kirtley &
Um deles é treinar a atenção aos estímulos
Williamson, 2016). Os profissionais que
verbais de modo a conseguir reconhecer o
trabalham em lares referem que frequentemente
idioleto de cada utente, isto é, a maneira
só conseguem responder às necessidades
particular de cada um usar a língua. Por um
básicas dos utentes (higiene, alimentação,
lado, isso vai permitir conhecer melhor esse
medicação, cuidados médicos), ficando as
utente. Por outro lado, ao reconhecer o idioleto
necessidades emocionais e psicológicas, que
de cada um, vai ser possível reproduzi-lo, e,
requerem mais tempo, sem resposta, sendo,
dessa forma, mostrar que damos atenção
contudo, essenciais para o bem-estar das
àquele utente, aprofundar a relação, e ainda
pessoas com demência (Kirtley & Williamson,
facilitar e animar a interação. Num passeio pelo
2016).
jardim, pergunto o nome de uma planta à D.
A necessidade de tempo decorre também de Maria José, que responde: “Identifico como
uma característica do envelhecimento: a buganvília”. Além de mostrar que conhece a
diminuição da velocidade de processamento de planta, a D. Maria José, ao usar o verbo
informação (Leitão, 2016). Com o “identificar” que remete para um registo mais
envelhecimento, o tempo de reação a estímulos cuidado da língua, está também a mostrar a
aumenta e a capacidade para usar a sua escolaridade, o seu gosto por uma
informação retida na memória a curto prazo linguagem cuidada, a sua atitude concentrada e
decresce. Observei estes dois processos nas ponderada. Outro exemplo: D. Eva chama-me e
sessões de reabilitação neuropsicológica, em dá a notícia de que “ontem andei por aqui toda
que se treinavam várias funções cognitivas gaiteira”; a partir desse dia, comecei a usar o
através da realização de exercícios variados, vocábulo “gaiteira” para me referir aos seus
nas quais constatei a necessidade de tempo momentos de locomoção, conseguindo com
por parte dos utentes. Dois exemplos: D. Flor isso mostrar à utente que lhe dava atenção e
fazia sempre o seguinte apelo quando se também estabelecer relação.

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PRAXIS EDUCARE 7 - DEZEMBRO 2020

Outro aspeto diz respeito ao conhecimento do era acenando com a mão ou sorrindo,
mundo que qualquer interação convoca. Os raramente era usada a fala, porque
adultos mais velhos podem ter referências frequentemente o meu nome e quem eu era
históricas e socioculturais que se desconhecem tinha sido esquecido. Os nossos “olás” tinham
e que surgem no seu discurso, sendo uma entoação alta, eram acompanhados por
necessário alargar o conhecimento do mundo sorrisos e contacto ocular e pela minha
para as conseguir compreender e para saber aproximação às pessoas, frequentemente
responder. Da minha vivência no lar, retive acompanhada pelo toque na cabeça ou na mão
alusões ao Estado Novo, às ex-colónias, a do utente. Quando a linguagem verbal está
acontecimento marcantes, ao papel da mulher, perturbada, é ainda mais importante aprender a
a políticos, ou algo mais prosaico como a interpretar a comunicação não verbal das
nomeação de utensílios domésticos já em pessoas com demência, como também
desuso – foram assuntos sobre os quais, por encorajá-las a usar esse tipo de comunicação
vezes, precisei de pesquisar para conseguir (Sabat, 2019).
acompanhar o conteúdo da conversa dos Um quarto aspeto tem a ver com uma
utentes, uma vez que essas alusões não eram característica do processo demencial, em que
normalmente explicadas pelos próprios. Um as pessoas com demência vivenciam uma
exemplo: D. Manuela refere que “gostava realidade ou um conjunto de crenças que
daquele político mais magro, que tinha outra desafiam a realidade intersubjetiva partilhada
senhora, e que morreu…, mas não me pelas outras pessoas; os termos técnicos para
importava da senhora, era bonita”, passando designar essa realidade ou crenças diferentes
depois a fazer referências à sua vida de casada. das dos demais são: ilusões, alucinações,
Ajudou perceber que o político era Francisco Sá desorientação e confusão (Kirtley & Williamson,
Carneiro, e, como da relação de Sá Carneiro 2016). Exemplos comuns, que também
com Snu Abecassis, D. Manuela extrapolou encontrei, são: pensar que o pai/mãe ou
considerações para a sua própria relação com o marido/mulher já falecidos ainda estão vivos;
marido. querer ir para casa, julgando que ainda existe
Um terceiro aspeto está relacionado com a uma casa para onde se possa ir. Um estudo
interpretação e utilização da comunicação não realizado por Kirtley e Williamson (2016) trouxe
verbal, tendo sempre em conta que a informação importante sobre dois pontos: i) o
comunicação se realiza através da linguagem significado dessas vivências para as pessoas
verbal e também da linguagem não verbal, com demência; ii) como lhes responder de
nomeadamente através da paralinguagem, modo a assegurar o bem-estar dessas
cinésica e proxémica. A paralinguagem tem a pessoas. Relativamente ao ponto i), concluíram
ver as características da voz, tais como volume, que, quando as pessoas com demência
ritmo, dicção, entoação. A cinésica diz respeito comunicam realidades e crenças contrárias à
aos movimentos do corpo, gestos, postura, realidade comum, existe um tema catalisador
expressões faciais e movimentos dos olhos. E a por detrás disso, e é necessário que o cuidador
proxémica está relacionada com o uso do interaja com a pessoa de modo a conseguir
espaço, manifestando-se na proximidade ou identificar esse tema para depois saber como
distância que se mantém com o interlocutor, na responder. Os temas mais comuns que
orientação e no movimento do corpo no encontraram foram: utilizar a memória para dar
espaço. Uma forma comum de utentes com sentido à situação em que o próprio se
demência e em cadeira de rodas me chamarem encontra; expressar necessidades que não

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estão a ser satisfeitas, podendo ser físicas trouxesse apaziguamento e segurança. No caso
como psicológicas; responder à situação, da D. Maria José, realizou-se uma intervenção
recorrendo a estratégias de coping ou a baseada na reminiscência, sendo também
respostas criativas. Seguem exemplos reais possível ter percebido as suas necessidades de
destes três temas. D. Manuela, que tinha atenção, carinho e segurança. Já com outra
estado hospitalizada antes da entrada no lar, utente, a D. Maria do Céu, que insistia que
referia que agora estava noutro hospital em queria ir embora para casa pois os pais
convalescença – estava a usar a memória de estavam à espera dela e precisavam dela,
uma situação passada para dar sentido à respondi distraindo, propondo que fossemos
situação em que se encontrava. O Sr. António dar um passeio (sabia que gostava de passear
continuava a pensar que era cozinheiro de um no exterior).
restaurante – estava a manifestar a sua
necessidade de ser útil e estar ocupado. A D.
Maria do Céu, que tinha sessões de reabilitação Relação, Competência e Autonomia
neuropsicológicas terças e quintas, recusa o
meu convite para a levar para a sessão Relação, competência e autonomia constituem
retorquindo: “para mim não é quinta-feira, não necessidades psicológicas básicas dos seres
vou” – estava a dar uma resposta criativa para humanos, segundo a teoria da
justificar a sua recusa. No que diz respeito ao autodeterminação de Ryan e Deci (2000a,
ponto ii), sintetizaram as possíveis respostas por 2000b, 2000c). São necessidades inatas, e o
parte dos cuidadores às realidades e crenças desenvolvimento e bem-estar subjetivo dos
contrárias à realidade comum em cinco indivíduos dependem da sua satisfação.
possibilidades: dizer toda a verdade, procurar Necessidade de relação significa necessidade
um significado alternativo, distrair, acompanhar, de estabelecer laços, de sentir que se está
mentir – considerando que esta última ligado a outros, e essa ligação com os outros
possibilidade de resposta será de evitar sempre caracterizar-se por sentimentos de confiança,
que possível. Seguem-se alguns exemplos reais segurança, pertença e intimidade. A
de algumas das minhas respostas que se necessidade de competência está relacionada
enquadram em: procurar um significado com a necessidade de exploração, adaptação e
alternativo, distrair e acompanhar. Quando a D. ação eficaz sobre o ambiente físico e social, e
Maria José perguntava pelo marido já falecido ainda de obtenção de feedback positivo face ao
ou quando o Sr. António falava da sua mãe desempenho. Por fim, a necessidade de
como se ela ainda estivesse viva, tentava autonomia tem a ver com a necessidade de agir
encontrar um significado alternativo, em consonância com o self, com os valores,
procurando perceber que necessidades não princípios e aspirações pessoais, tendo
satisfeitas podiam estar ali a ser manifestadas. liberdade para agir e assumindo a
Fazia perguntas sobre o marido e mãe, tais responsabilidade dessas ações. Todos os seres
como “Como se chamava?”, “Como se humanos procuram ativamente satisfazer estas
conheceram?”; “Como foi a boda de três necessidades psicológicas básicas, porém
casamento?”, “De que comidas que a mãe fazia é imprescindível o apoio do contexto social em
é que mais gostava?”. No caso do Sr. António, que estão inseridos: não existindo suporte
o meu uso dos verbos no pretérito foi corrigido social, as necessidades não serão satisfeitas, o
pelo próprio, dizendo “faz”, e passei a que acarreta consequências negativas para o
responder de outra forma – acompanhando a desenvolvimento e bem-estar subjetivo.
sua realidade, procurando que aquela interação Estudos quantitativos mostraram que as três

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necessidades continuam a ser experienciadas demencial, que pode trazer desorientação e


por pessoas mais velhas, e o seu bem-estar confusão, ativa o sistema comportamental de
subjetivo é dependente da sua satisfação. vinculação (Cheston, 2019).
Foram encontradas correlações positivas entre Na demência, as oportunidades de satisfação
a relação, competência e autonomia e o bem- das três necessidades decrescem
estar subjetivo (e.g., Neubauer, Schilling, & consideravelmente, dada a perda de várias
Wahl, 2017; Vilar, Sousa, Firmino, & Simões, capacidades cognitivas, passando as pessoas
2016). No entanto, com pessoas mais velhas, a serem cada vez mais dependentes. Assim, a
as três necessidades não assumem a mesma possibilidade de satisfação depende em grande
proeminência, destacando-se, em primeiro parte do cuidado prestado e da cultura de
lugar, a necessidade de relação, depois de cuidado das instituições (Beck et al., 2014;
competência e, por fim, de autonomia, sendo Deutscher Ethikrat, 2013; Grabowski et al.,
esta a que menos determina o bem-estar 2014). É necessário um cuidado baseado na
subjetivo (Neubauer et al., 2017). A necessidade assunção de que o adulto mais velho com
de relação evoca o conceito de vinculação, demência continua a experienciar as três
sendo que Bowlby (1969/1982, p. 208) chama necessidades psicológicas básicas, e um
atenção para o “vital role attachment plays in cuidado em que se procure ajudar a satisfazer
the life of man from the cradle to the grave”. A essas necessidades. Por outras palavras, um
secundarização da autonomia parece explicar- cuidado centrado na pessoa.
se pela adaptação bem-sucedida dos adultos
mais velhos à efetiva perda da sua autonomia, o
que permite assim que o seu bem-estar não 1. Relação
esteja dependente da satisfação dessa
necessidade. Como psicóloga num lar com utentes com
demência, procurei responder à sua
O que acontece às três necessidades nos necessidade de relação através da relação
adultos mais velhos com demência? Da minha terapêutica, distinta da relação terapêutica que
vivência com utentes com demência, pude se estabelece com outros clientes e em outros
observar que as três necessidades continuam a contextos terapêuticos. A relação terapêutica
ser experienciadas por essas pessoas, e que o com adultos mais velhos com demência pauta-
seu bem-estar subjetivo decorre da sua se pelo suporte e calor humano (Santos & Paul,
satisfação. Esta constatação é suportada por 2006); pela validação, pela criação de um
investigação na área (Beck, Gately, Lubin, espaço de confiança e segurança, e por prestar
Moody, & Beverly, 2014; Deutscher Ethikrat, o apoio necessário e não mais do que o
2013; McCallion & Ferretti, 2017), na qual são necessário de modo ajudar as pessoas com
referidos os benefícios da satisfação daquelas demência a concretizar os seus objetivos
necessidades para o bem-estar da pessoa com (Cheston, 2019; Kitwood, 1997/2019d). Deste
demência e também para a minimização das modo vai estabelecendo-se uma “conexão
consequências da perturbação neurocognitiva profunda” (Lima, 2019, p. 292). D. Flor
na vida da pessoa. Especificamente sobre a verbaliza: “já tinha saudades suas”; D. Eva: “por
vinculação, que se inclui na necessidade de mim tinha a senhora sempre ao pé de mim”, D.
relação, Kitwood (1997/2019c) refere que se Maria José: “com a menina não me sinto
mantém nos adultos mais velhos com sozinha”, D. Manuela: “não sei como lhe
demência, podendo mesmo ser tão premente agradecer tanto carinho e amizade”.
como na infância. Aliás, o próprio estado O sentimento de muitos adultos mais velhos

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com demência é de que o afeto e a compaixão 1.1. Interação verbal


são aquilo que mais importa encontrar nas Uma forma básica de nos relacionarmos com
pessoas que interagem com eles (Kirtley & os outros é falando. Um lar de idosos acolhe
Williamson, 2016). D. Manuela, na minha várias pessoas, que estão juntas nos quartos,
presença, dirige-se a uma ajudante do lar e nas salas de refeição e de convívio, nas
comenta sobre mim: “sei que esta menina me atividades realizadas em grupo – tudo isto
aprecia, vejo isso”. Estes fragmentos ilustram poderia levar a pensar que essas pessoas
também como os adultos mais velhos com interagem umas com as outras. A realidade não
demência conseguem fazer novos amigos e é bem essa; se é verdade que alguns utentes
construir memórias a longo prazo de quem os convivem uns com os outros, ajudando esse
trata com afeto, mesmo que não se lembrem contacto a satisfazer a sua necessidade de
do nome da pessoa ou do seu papel (Sabat, relação, a maior parte das pessoas está só
2019). junto dos outros, sem com eles estabelecer
A relação que fui construindo com os utentes diálogo – isto foi o que observei e também é
não está isenta de um dilema: o dilema entre o observado por outros (e.g., Mendes, 2018). O
princípio da Beneficência e Não-maleficência vs. que fazer?
o princípio da Responsabilidade (Ordem dos Primeiro, é preciso perceber que os seres
Psicólogos Portugueses [OPP], s.d.). A relação humanos são seres semióticos, ou seja, i) têm
de suporte e de calor humano que ofereci foi capacidade para se expressarem de modo
benéfica para os utentes e recusá-la teria sido verbal e não verbal, ii) agem de modo
prejudicial, o que respeita o princípio da intencional, com base no significado das
Beneficência e Não-maleficência. No entanto, situações, e iii) procuram cooperar com os seus
estava consciente da existência de interlocutores; em segundo lugar, perceber que
consequências negativas para os utentes, o comportamento semiótico não se esvai com a
especificamente a criação de uma relação de demência (Deutscher Ethikrat, 2013; Sabat,
alguma dependência face a mim própria, e 2019). Percebendo isto, é depois necessário
também estava consciente das suas que os cuidadores interpretem o discurso dos
vulnerabilidades, respeitando, assim, o princípio adultos mais velhos com demência como
da Responsabilidade. Procurei resolver o dilema portador de significado, mesmo quando seja
tentando um equilíbrio entre oferecer calor difícil de entender; que aceitem e respeitem o
humano e promover a autonomia, e também contrato de cooperação implícito que se
fomentando a preservação e estabelecimento estabelece entre interlocutores, inclusive com o
das relações interpessoais dos utentes com os adulto com demência; por fim, que assumam
seus familiares e outros técnicos do lar. um papel de interlocutor-facilitador, ajudando
Os seres humanos constroem relações uns esses adultos a comunicarem não só connosco
com os outros através da interação verbal, das como, na medida do possível, com os seus
histórias que contam uns aos outros e também pares (Sabat, 2019; Sabat & Cagigas, 1997).
através do toque – foi também assim comigo e D. Manuela observa numa ocasião “vai ficar
com os utentes do lar que acompanhei de cansada do miolinho, de ouvir tanto”. Noutra
forma mais continuada, sempre no âmbito de ocasião, confidencia-me “só com a Ritinha é
uma relação terapêutica. que eu me alargo assim”. E noutro dia comenta
com admiração “veem-na aqui sentada, e
ganha com isto!” D. Maria José confidencia
“isto só falo consigo”. E um dia, ao despedir-me

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ao fim da tarde, quando já estava na mesa para demência revela-se numa “series of high quality
jantar, perguntou: “a menina tem jantar em interactions, taking place in a context of stability
casa?” D. Maria José tinha uma perturbação da and secure relationship” (p. 113).
fala, sendo muitas vezes difícil de entender,
contudo era alguém para quem a interação
contribuía visivelmente para diminuir o humor 1.2. Histórias
depressivo, aumentar o bem-estar, provocar O ser humano é um contador de histórias
momentos de humor e ainda melhorar a (McAdams, 1993), e contar histórias
fluência verbal. Fica aqui um fragmento de um acompanha a história da humanidade (Estrada,
diálogo entre nós: eu tinha vestido uma saia 2014). Na demência, a memória recente é muito
laranja, chamando a atenção da D. Maria José mais afetada do que as memórias semântica,
que comentou que gostava e perguntou “Onde autobiográfica e implícita (APA, 2014), o que
comprou? Foi nos saldos?”, dando origem a permite que os adultos mais velhos com
uma conversa sobre saldos; a dada altura, fui demência se lembrem de factos,
eu a fazer um elogio, observando que tinha acontecimentos e sentimentos da sua vida.
umas mãos bonitas, de pianista, a que D. Maria Além disso, “se queremos conhecer alguém,
José retorquiu rindo “toco piano e falo francês”, perguntamos-lhe qual é a sua história – a sua
e eu ri também. história verdadeira e íntima porque cada pessoa
A interação com os adultos mais velhos com é uma biografia, uma história” (Sacks, 1985, p.
demência, como com as outras pessoas, não é 142), sendo apenas desta forma que se
isenta de conflito e de sentimentos negativos. consegue passar de uma história da demência
D. Maria, vendo-me a interagir com a D. para a história da Pessoa. Para esta mesma
Manuela, chama-me e reclama “você só está constatação apontam estudos realizados com a
com aquela, ela é luxo, eu sou lixo”. Levou o terapia da reminiscência, uma terapia assente
seu tempo a desconstruir esta ideia e o na comunicação das memórias das pessoas
sentimento de insegurança subjacente. com demência, ou, mais simplesmente, nas
suas histórias: o facto de os cuidadores serem
Tentei também estabelecer diálogo entre
interlocutores diretos das memórias dos adultos
adultos com demência, assumindo o papel de
mais velhos com demência faz com que
mediadora. Dois exemplos. Coloquei a D.
comecem a ver a Pessoa para lá da demência
Manuela e a D. Maria José frente a frente nas
(Cooney et al., 2014).
suas cadeiras de rodas, eu estava no meio: D.
Manuela faz referências à sua vida passada e Pode pensar-se que as histórias têm uma
conta que fazia um tipo de queijo, começando a limitação: estão ancoradas no passado, não
explicar como se fazia, mas sem indicar o nome dando conta do momento presente, do agora
do queijo, sendo que a dada altura D. Maria (Stern, 2004). No entanto, quando se conta
José interrompe e diz “requeijão”. D. Maria do uma história, a ação de contar está ancorada
Céu, D. Flor e eu conversávamos; a dado num agora, que é cocriado por quem conta e
momento olhamos lá para fora, e D. Flor por quem ouve, sendo assim também uma
comentou que estava um dia lindo e que possibilidade de construção de relação entre os
gostaria de ir lá fora, a que D. Maria do Céu interlocutores (Estrada, 2014).
retorquiu “pode levá-la, não me importo, gosto Ouvi histórias e fragmentos de histórias sobre
dela”. casamentos, filhos, o trabalho, os pais, irmãos,
Como sublinha Kitwood (1997/2019d), o âmago sogros, acontecimentos marcantes, a escola,
do cuidado de adultos mais velhos com ou sem receitas, coisas de que se tem saudades,

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coisas de que se gostava de fazer, coisas de reconfortante, a interação torna-se mais fácil e
que se gosta. D. Manuela conta: “fui feliz no harmoniosa, permite que utentes e cuidadores
casamento à minha maneira: vivermos, termos construam uma relação interpessoal positiva e
a nossa vida; nem sei como é que vivi, digo-o mais investida a nível emocional (Mononen,
agora, sinceramente; veio a filha porque teve de 2019; Routasalo & Isola, 1996).
vir; não tive uma vida de mares e rosas”. D. O toque também é usado pelos psicólogos,
Rosa: “o meu sonho era ser independente, contribuindo para a construção da relação
depois que perdi o meu paizinho, mãezinha e terapêutica, e constituindo por si um elemento
irmã que era como uma mãe; mas depois terapêutico, fomentando o sentimento de
casei…”. D. Maria José: “estava aqui a pensar segurança a autoestima (Phelan, 2009; Zur,
com os meus botões; há uma coisa à minha 2007). Quando o contexto de trabalho do
volta que não me deixa ir em frente; a minha psicólogo é um lar, os clientes são adultos mais
mãe dizia-me: “tu tens cara de doente””. velhos com demência, e se preconiza uma
abordagem centrada na pessoa para adultos
1.3. Toque com demência, o uso do toque torna-se
particularmente importante (Kitwood,
O toque que acompanha a interação verbal faz 1997/2019d). Importante para satisfazer a
parte da comunicação entre os seres humanos, necessidade de relação dos utentes, para lhes
e tem efeitos positivos no bem-estar físico, oferecer todos os benefícios que o toque traz
relacional e psicológico tanto das crianças aos seres humanos e para alicerçar a relação
como dos adultos (Field, 2010; Jakubiak & de ajuda. Afagar a cabeça, colocar a mão no
Feeney, 2016). A nível fisiológico, diminui a ombro ou no braço, oferecer o braço para
pressão arterial e a frequência cardíaca, e a caminhar, dar a mão foram diferentes maneiras
nível bioquímico, diminui o cortisol (hormona do de toque que usei com os adultos com
stress) e aumenta a oxitocina (a chamada demência do sexo feminino (a quase totalidade
hormona do amor) (Field, 2010). Promove o dos utentes que acompanhei eram mulheres).
bem-estar relacional, porque é interpretado Frequentemente era a minha mão que era
como representando proximidade relacional, e procurada. Com os utentes do sexo masculino,
como sendo um indicador de afeto e cuidado era sobretudo colocar a mão no ombro ou no
(Suvilehto et al., 2019). Aumenta o bem-estar braço. Esta diferença de tratamento advém do
psicológico, nomeadamente o humor positivo e contexto sociocultural, especificamente dos
o bem-estar subjetivo (Suvilehto et al., 2019). tipos de toques permitidos entre sexos. Os
Quem tocamos, como, em que parte do corpo efeitos do toque notavam-se na própria relação
e quando depende largamente da relação que que se ia construindo, mais afetuosa, mais
temos com o nosso interlocutor, do contexto e próxima, mais securizante. Por outro lado, o
ainda de fatores culturais (Field, 2010; Suvilehto toque permitia minimizar os sintomas
et al., 2019). comportamentais da demência, como a
O toque também faz parte de uma relação de agitação ou a apatia. O toque tinha, ao mesmo
cuidado, nomeadamente o cuidado de adultos tempo, a capacidade de apaziguar em
mais velhos institucionalizados com ou sem momentos de agitação e de energizar em
demência, seja por parte de enfermeiros momentos de apatia.
(Routasalo & Isola, 1996), seja por parte de O toque e a comunicação não verbal podem
ajudantes de lar (Mononen, 2019). Os utentes ser as únicas formas de comunicar para
experienciam o toque como gentil e algumas pessoas com demência. Era o caso da

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D. Conceição que, devido à severidade da sua várias vezes “acerto em tudo, faço tudo bem” e
perturbação, não conseguia usar a linguagem numa sessão, perante uma imagem de uma
verbal; um dia, toca-me com a mão no braço gaivota, resolve cantar a canção “Coração de
para chamar a minha atenção, faz gestos para Lisboa”.
eu me virar de costas para ela, faço isso e a D. Ter consciência de que não se sabia responder
Conceição endireita-me a camisola que eu também provocava reações, algumas revelando
trazia vestida, voltei-me e agradeci com um estratégias de coping adaptativas, no fundo
toque no braço dela, ambas sorrimos. Foi dos competência em lidar com o ambiente social.
raros momentos de comunicação entre nós. Numa sessão de reabilitação neuropsicológica,
Em tempos de Covid-19, em que uma das em que havia um exercício de identificação de
regras é o distanciamento físico, o toque torna- objetos, D. Manuela reclama: “podia pôr em
se quase difícil, se não mesmo impossível, ou baixo o nome de cada coisa, assim eu não fazia
então é realizado com fatos e máscaras de erros”. Noutra sessão, a mesma utente, quando
proteção. É possível, contudo, encontrar é perguntado em que dia da semana e do mês
algumas formas criativas de minimizar esta nos encontrávamos, solicita: “quero pedir-lhe
situação, como, por exemplo, os utentes terem um favor, quero que me arranje um calendário”.
acesso a bonecos terapêuticos, ou usar toucas O sentido de humor também era uma forma de
de cabelo com champô que dispensam água e lidar com situações em que não se sabia a
que é necessário massajar para lavar o cabelo, resposta; à pergunta sobre o ano em que
permitindo essa massagem tocar no adulto estávamos seguida da resposta dada por mim,
mais velho sem haver contacto direto (James, D. Célia replica com uma gargalhada: “2020?
2020). Já? Nós andamos atrasados!”
Numa outra sessão de reabilitação
2. Competência neuropsicológica, num exercício de memória, o
Sr. Aníbal sugere: “vou agora eu fazer-lhe o
No lar onde estive, como em outros, os utentes exercício, para ver se sabe”. Acedi com
têm a oportunidade de realizar algumas entusiasmo a esta troca de papéis, que
atividades em grupo, sendo sobretudo aí que interpretei como uma assunção de
podem mostrar o saber fazer e obter feedback competência, no sentido de me mostrar que
positivo. No apoio psicológico individual que também era capaz de dinamizar a sessão. O
prestava a alguns, essa necessidade mesmo Sr. Aníbal num dia no corredor chama-
manifestava-se através do relato do que se fez me e comunica: “sabe menina, eu gosto de
ao longo da vida e do que ainda se sabia fazer. estar ativo, de ter a cabeça ativa, mas ouço
muito mal, preciso que fale alto”.
Nas atividades em grupo, especificamente
sessões de reabilitação neuropsicológica, a Fora do contexto das atividades, a necessidade
vontade de saber responder aos diversos de competência também se manifestava na
estímulos apresentados era manifestada por interação. Em conversa com a D. Manuela
vários utentes. Por esta razão, é tão importante sobre a sua terra e os frutos que lá havia, D.
adequar os exercícios às capacidades de cada Manuela remata com orgulho que conhece um
um, não podendo ser nem demasiado fáceis fruto que não é uma flor mas que é bonito
nem demasiado difíceis. Os utentes como uma flor: “uma coisa que não é flor e
perguntavam se estavam a “fazer bem” e também é bonita: cerejas!” Noutra altura em
gostavam de mostrar aquilo em que eram que estava a ouvir notícias sobre Isabel dos
competentes. Por exemplo, a D. Laura referia Santos e o Luandaleaks, chama-me e comenta:

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“Isabel dos Santos não é nome de celebridade”. 3. Autonomia


A mesma D. Manuela, já em tempos de
Covid-19, quando estou a explicar que não Taylor, o psicólogo norte-americano a quem foi
pode receber visitas da família, replica “percebo diagnosticado Alzheimer, faz a seguinte
coisas mais complicadas do que isso”. Em interpelação: “what about my need and desire
todos estes momentos, a minha reação era de to maintain some of my own independence and
elogio face a estes comentários feel and act like I am an almost completely
extraordinariamente competentes feitos por functioning adult?” (2007, p. 212). Um dos
uma senhora com demência grave. E com os princípios do Código deontológico (OPP, s.d.) é
seus comentários ia também conhecendo o “Respeito pela dignidade e direitos da
melhor a D. Manuela. pessoa”. Ao mesmo tempo, parece que a
satisfação da necessidade de autonomia não
Uma atividade desejada e realizada com mestria
está correlacionada com o bem-estar subjetivo,
por uma grande parte das utentes do sexo
o que se pode explicar pela adaptação bem-
feminino, com ou sem demência, era a
sucedida dos adultos mais velhos à efetiva
arrumação das suas roupas e das gavetas dos
perda da sua autonomia (Neubauer et al.,
seus armários. Desejavam que fosse algo da
2017). Com base na minha observação
sua exclusiva competência. Por vezes, era
participante, tive a oportunidade de reconhecer
necessária alguma ajuda, mas apenas a
as duas situações. Se, por um lado, a perda de
necessária.
autonomia era aceite sem conflito intra ou
A tomada de consciência de que se tinham interpessoal, por outro lado, a necessidade de
perdido competências também surgia. Foi, por autonomia também se manifestava.
exemplo, o caso da D. Maria José, que,
A necessidade de autonomia manifestava-se
passando a ter que ser alimentada dada a
com frequência na tomada de decisão sobre
gravidade da sua perturbação motora, lamenta:
aspetos do dia a dia: no dizer sim ou não a ir
“estou muito dependente, sinto vergonha”.
dar um passeio, comer o suplemento da parte
Todos estes exemplos corroboram a da manhã, beber água, pintar o cabelo, ficar na
investigação realizada nesta área sobre a cama, fazer a sesta, ficar a ver televisão.
necessidade de os adultos mais velhos terem D. Maria José, com quem costumava passear
necessidade de se afirmar no contexto em que no exterior do lar, chama-me e comunica:
vivem, mostrando competência para o entender “estou aqui a raciocinar, hoje é quarta-feira, é
e agir sobre ele, e como o seu bem-estar dia de feira, vamos lá”. Ainda que aquele dia
subjetivo depende disso (Neubauer et al., não fosse quarta, o dia de feira era de facto às
2017). quartas, a D. Maria José usa um verbo -
Por fim, importa perceber que a satisfação da “raciocinar” – que exprime intencionalidade, e
necessidade de competência de adultos mais faz um convite. Tudo isto revela de forma
velhos com demência pode acarretar riscos expressiva a sua necessidade de autonomia.
para o próprio, criando-se um conflito entre O Sr. Aníbal manifestava a sua vontade de ir
competência vs. segurança. A nível passar o fim de semana a casa, ainda que isso
internacional, recomenda-se tentar encontrar acarretasse riscos para a sua saúde: esses
um compromisso entre as duas (American Bar riscos eram conhecidos pelo próprio, família e
Association Commission on Law and Aging & instituição. Tendo consciência de tudo isto, o Sr.
American Psychological Association, 2008). Aníbal comunicava o que queria: “eu escrevo

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num papel que vou mesmo sabendo que posso Notas


morrer, digo que sou eu que quero”.
17 Os excertos do discurso dos utentes são
Manifesta-se também, e aqui com bastante
reproduzidos fielmente, sendo os nomes atribuídos
angústia e sofrimento, na vontade de sair do lar.
fictícios e, por vezes, alguma informação alterada, de
D. Maria José verbaliza: “quero que a menina
modo a salvaguardar a confidencialidade e
me tire daqui”. D. Manuela observa: “eu
anonimato.
também estou certa, Ritinha [eu tinha dito que o
filho estava certo em dizer que a mãe não podia 18 Para Portugal, ver Paquete, 2015.

estar sozinha em casa], quero ir para casa,
quero as minhas coisas”.
Facilmente se depreende que para satisfazer a
necessidade de autonomia, tal como para
satisfazer a necessidade de competência, a
segurança do próprio pode estar em risco. A
não identificação deste dilema e a eleição da
segurança sem discussão prejudicam o bem-
estar dos utentes dos lares, pois impede que a
sua necessidade de autonomia seja
minimamente satisfeita. Isso passa-se em
tempos normais. Em tempos de Covid-19, o
dilema parece também ser raramente
identificado, e a não identificação do dilema
impede que se discuta abertamente os efeitos
negativos das medidas de segurança
propostas.

Concluindo

Duas questões se colocaram neste artigo:


como são as pessoas com demência e como é
cuidar de pessoas com demência. As pessoas
com demência são Pessoas, com a sua
identidade, história, gostos, interesses. Cuida-
se de adultos com demência dando-lhes
atenção, a atenção que os faz ver como
Pessoas, e, depois, procura-se responder às
suas necessidades de relação, competência e
autonomia. É isto o cuidado centrado na
pessoa. É esse o repto de uma sociedade
inclusiva, na qual respeitar a dignidade da
pessoa, tratá-la com afeto e reconhecer as suas
necessidades psicológicas são direitos que
assistem a todos até ao fim das suas vidas
(Deutscher Ethikrat, 2013).

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Referências bibliográficas

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