ZERO HORA ◆ PORTO ALEGRE, SÁBADO, 1º/05/2004 Segundo Caderno 3
O chamamé entra pela fronteira
MAURO VIEIRA/ZH
Califórnia proíbe, mas o ritmo argentino já está integrado ao repertório regional
FOTOS ANDERSON PETROCELLI, DIVULGAÇÃO/ZH MAURO MACIEL ◆ Correspondente/Uruguaiana
Corre solto pelo Rio Grande
do Sul um ritmo musical contra- bandeado da Argentina. O prin- cipal gênero de música folclórica do nordeste argentino, o chama- mé, avança sobre o Estado, for- mando uma legião de apreciado- res e enriquecendo o repertório das canções regionais. No Estado, antes de conquistar os gaúchos, o ritmo argentino en- frentou seu primeiro obstáculo na fronteira. A maior resistência à en- Britto Velho usou destroços em seu trabalho trada do chamamé na música re- gional ocorreu na Califórnia da Canção Nativa, em Uruguaiana. O O museu como inspiração festival jamais permitiu que ritmos Os artistas Britto Velho e Regina Ohlweiler estrangeiros concorressem ao tro- abrem no Museu Júlio de Castilhos (Rua Du- féu Calhandra de Ouro. Embora, a que de Caxias, 1.205, centro de Porto Alegre) vizinha cidade de Paso de los Li- uma mostra conjunta, parte do Projeto Releitu- bres seja considerada um dos ber- ras, em que artistas convidados realizam obras ços do chamamé, o ritmo é consi- baseadas em itens do acervo do Júlio de Casti- derado estrangeiro e não acultura- lhos. Britto Velho apresenta um totem feito com do pelos organizadores do festival. base em destroços de lanchões afundados na Para o presidente da Califórnia Revolução Farroupilha. Já Regina usa cartas de da Canção, Lourival Gonçalves, Simón Ocampo: o trabalho artesanal do único fabricante de acordeão de botão da Argentina Júlio de Castilhos para sua mulher como inspi- canções vencedoras de Calhandras ração para um painel de acrílico sobre tela. A como Veterano e Florêncio Guerra mostra fica de hoje até os primeiros dias de e Seu Cavalo não participariam do festival se hoje fossem inscritas co- O chamamé Uma identificação que agosto no Museu, com entrada franca. O Mu- seu Júlio de Castilhos fica aberto de terças a mo chamamés. O que é: sextas das 10h às 19h. E das 14h às 18h nos sá- Hoje, a produção de chamamés só perde para as milongas. Origi- ■ O ritmo folclórico argentino originou- se na província de Corrientes. A vem desde a infância bados e domingos. Informações pelo telefone (51) 3221-3959. nário da província de Corrientes, o palavra chamamé não é nem guarani O compositor Luiz Carlos Borges, 51 anos, conta chamamé se expande também pelo e nem espanhola. Por isso, não há que sua identificação com o chamamé começou na Mato Grosso do Sul e São Paulo. O intérprete e compositor Pirisca uma tradução para chamamé. Para os infância, no interior de Santo Ângelo e São Luiz Gon- zaga, e foi estimulada por seu pai, que apreciava ouvir O nativismo no litoral argentinos, chamamé significa Grecco, vencedor da Califórnia em “senhora ama-me”. No Brasil, a música folclórica argentina pelo rádio. Aos seis anos, A praia do Cassino realiza, desde ontem, o Festi- 2002, considera o ritmo como o rei palavra tem o significado de “chama- Borges decidiu que ia ser acordeonista e começou a val Bicuíra da Canção Nativa, no Camping Muni- dos bailes gaúchos. me para bailar” ou “aprochegar-se de freqüentar uma escola de música. cipal, junto ao Rodeio Internacional do Cassino. – Apesar da Califórnia ter proi- mim”. – Nunca esqueci aquele som ouvido no rádio. Segundo o produtor do evento, Joaquim Soares, a bido, o chamamé entrou de contra- Aquilo entrou na minha cabeça e qualquer som que intenção é atrair o público ao balneário na baixa bando. Hoje, não há festa em que Quais os maiores não fosse da costa do Rio Uruguai ou caipira eu estra- temporada e, também, valorizar a música nativista. ele não esteja presente – garante. chamameceros argentinos: nhava – comenta. Uma lona de 2 mil metros quadrados e capacida- ■ Os quatro principais chamameceros Na vida de Borges, o chamamé foi motivo para de para 7 mil pessoas foi montada para os espetá- O chamamé está cada argentinos foram Ernesto Montiel, de duas fugas. Aos 14 anos, pela primeira vez, cruzou o culos. O show mais esperado é o de Mano Lima, Paso de los Libres, Antônio Tarragó Rio Uruguai sozinho para assistir a um festival de que encerra o festival amanhã, às 23h. Também to- vez mais abrasileirado chamamé em Santo Tomé, na fronteira com São Bor- cam os grupos Jeito de Galpão e Tchê Barbarida- Roos, Tránsito Cocomarola e No Estado, o chamamé não en- Paquito Aranda. Eles produziram ja. Dois anos depois, também como “fugitivo”, foi ao de. Os ingressos custam R$ 2 para o rodeio e R$ 5 contra um ritmo equivalente. O alguns dos chamamés mais festival de San Inácio, na Argentina, onde um amigo para o festival, com direito a assistir aos shows e presidente do Instituto Gaúcho de conhecidas no Brasil, como Maria Vá, o apresentou para o acordeonista Ernesto Montiel, um participar do baile. Os interessados em acampar no Tradição e Folclore (IGTF), com- Mercedita e Kilômetro 11. No Estado, dos mitos sagrados do chamamé argentino. O encon- local terão que pagar mais R$ 6 por barraca. positor Luiz Carlos Borges que o o principal chamamecero é Luiz Carlos tro marcaria para sempre sua vida artística: chamamé permite a improvisação. Borges, que venceu a 21ª Califórnia da – Naquela época, eu sabia tocar uns 400 chamamés O filme proibido de Glauber – Arrisco dizer que o chamamé se- Canção Nativa com o chamamé e lembro que toquei um para o Montiel. Ao final da rá o jazz do novo milênio. Florêncio Guerra e seu Cavalo. execução, ele disse: “Este brasileiro está autorizado a Proibido de ser exibido no Brasil há 25 anos, o Na Argentina, o chamamé é can- tocar chamamé”. curta-metragem Di Cavalcanti Di Glauber, de tado e tocado, acompanhado pelos Glauber Rocha, que mostra o velório e o enterro do sapucays, que, em guarani, signifi- ca “grito da alma”. Entre os ritmos Onde nasce pintor Di Cavalcanti, morto em 1976, está sendo exibido na internet, no site www.dicavalcantidi- folclóricos argentinos, como zam- o chamamé glauber.us, desde domingo. Não é a primeira vez bas, chacareras e milongas, o cha- que o filme vai ao ar na rede. Agora, um sobrinho mamé é o único a permitir a emis- Em Paso de los Libres, na fronteira de Glauber, João Rocha, é o responsável pelo ma- são de sapucays e também o único com Uruguaiana. a casa do artesão e terial, recuperado digitalmente nos EUA, numa es- a utilizar acordeão de botão. acordeonista Simón Ocampo já abri- tratégia para driblar a justiça brasileira. O poeta Colmar Duarte, um dos gou o nascimento de 3 mil acordeões – É uma forma de desfazer essa injustiça, pois o criadores da Califórnia, propõe um de botão. Aos 71 anos, Ocampo é o filme é exibido livremente no mundo inteiro, me- debate para saber se o ritmo está único fabricante de acordeão de bo- nos no Brasil – explica Rocha. aculturado ou não no Estado. Bor- tão em toda a Argentina. Ocampo uti- ges contesta Duarte: liza madeira chilena, com 30 anos de CORREÇÃO – O chamamé está cada vez envelhecimento, para produzir seus A Kaiser é um dos patrocinadores do festival mais abrasileirado. Ele está tão instrumentos. Cada um deles é fabri- Dread Locks Atlântida, que ocorre hoje em Flo- aculturado que não tem mais o cado artesanalmente e pode custar R$ rianópolis, Santa Catarina. Na página 5 do Se- que ser mexido. Para mim, o cha- 9 mil. O artesão orgulha-se de ter si- gundo Caderno da última quinta-feira, dia 29 de mamé não precisa de autorização. do o afinador dos instrumentos de abril, o nome da empresa foi omitido da lista de Ele já está autorizado há muito Ernesto Montiel, o principal acordeo- patrocinadores. tempo. nista argentino. A estátua de Ernesto Montiel em Paso de los Libres