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1. Introdução
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A epígrafe apresenta um excerto da passagem do clássico mundial da literatura infantil
em que o pequeno príncipe encontra o rei do asteroide B 325. No diálogo travado entre os
dois, o rei demonstra como o uso do poder pode ser mais estendido ou mais restrito, a de-
pender das circunstâncias. Essa flexibilidade é uma das características do semipresidencialis-
mo francês, que permite arranjos institucionais diferentes em períodos de concordância ou
de discordância entre maiorias que dão legitimidade ao presidente e à Assembleia Nacional.
Recebido em 16/2/17 2
Apenas como exemplo de críticas, ver Le Divellec (2006, p. 101-138); Bourmaud
Aprovado em 9/3/17 (2001, p. 7-17). A Constituição francesa foi alterada 24 vezes entre 1960 e 2008.
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Esquemas institucionais de governo parlamentarista são encontrados também em
países que justificam a existência de chefes de Estado por sua origem divina, como em
teocracias do Oriente Médio (DE BAECQUE, 1976, p. 11).
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Como referência clássica de estudo sobre os regimes presidencial e parlamentar, ver
Rufia (1996, p. 168-305). Para uma visão dos sistemas políticos atuais, ver Duhamel, O.
(2016, p. 230-495).
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Sartori (2005, p. 148-149) delineia cinco características do semipresidencialismo:
(i) chefe de Estado eleito pelo povo; (ii) compartilhamento de poder com um primeiro-
ministro, estabelecendo estrutura dual no Executivo; (iii) o presidente não depende do
Parlamento, mas deve canalizar sua vontade por meio do Governo; (iv) o Governo está
sujeito à confiança do Parlamento; e (v) flexibilidade de exercício do poder. Na mesma
linha, ver Duverger (1993). Elgie (1999, p. 13-14) conceitua o semipresidencialismo com
fundamento somente da existência de (i) um presidente eleito popularmente com man-
dato e (ii) um primeiro-ministro e de um gabinete responsáveis perante o Parlamento.
Relaciona então 42 países com governos desse tipo no mundo.
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Para a análise da passagem da Quarta para a Quinta República francesa, ver
Duhamel, É. (2000, p. 503-535); Chevallier et al. (2015); Pactet (1993, p. 297-342).
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A década de 50 do século XX foi importante no processo de descolonização.
Quanto à França, dos acordos de Genebra de 1954 resultou a independência do Laos,
do Camboja e do Vietnã. O Marrocos e a Tunísia tornaram-se independentes em 1956.
Disponível em: <http://www.cndp.fr/crdp-reims/cinquieme/decolonisation.htm>. Acesso
em: 14 jan. 2017.
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Rosseto (1992, p. 21) destaca que a queda do regime implantado em 1946 pode ser
explicada pelo funcionamento defeituoso das instituições, o qual levou parte da opinião
pública ao descrédito no “parlamentarismo absoluto”. Além disso, as hostilidades decor-
rentes da guerra não declarada da Argélia perturbaram fortemente as relações na socieda-
de francesa. O alto custo das operações militares e a transferência de algumas atribuições
de governo para autoridades militares foram marcantes para exacerbar a oposição entre
os que defendiam uma solução liberal e negociada e aqueles que viam um abandono ina-
ceitável à “Argélia francesa”.
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O art. 72 da Constituição francesa reconhece como coletividades locais as comunas,
os departamentos, as regiões, as coletividades com estatuto particular e as coletividades
de ultramar. O colégio eleitoral era composto de oitenta mil pessoas (FRANÇA, 1958).
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Depois da reforma constitucional de 2008, as Casas Legislativas readquiriram boa
parte do poder de definir a pauta (atual redação do art. 48 da Constituição), reduzindo-se
o papel do Governo nesse âmbito, o que, entretanto, ainda exerce forte influência na roti-
na da Assembleia (arts. 28 e 48 da Constituição francesa) (FRANÇA, 1958).
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Ordonnances são atos executivos com força legislativa, autorizados pelo Parlamento
para a execução do programa de Governo.
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A Constituição de 1958 incorporou as linhas políticas gerais defendidas por
Charles de Gaulle em discurso proferido no dia 16 de junho de 1946 em Bayeux: se-
paração de poderes; Executivo forte, eleito por colégio eleitoral e irresponsável perante
a Assembleia; Parlamento composto de duas Casas; presidente da República com atri-
buição de arbitragem e garantidor da independência nacional, cabendo-lhe nomear o
primeiro-ministro, presidir o Conselho de ministros, emitir decretos, promulgar leis e
discutir e ratificar tratados internacionais. Disponível em: <http://www.charles-de-gaulle.
org/pages/espace-pedagogique/le-point-sur/les-textes-a-connaitre/discours-de-bayeux-
16-juin-1946.php>. Acesso em: 10 jan. 2017. A importância do discurso deve-se ao mo-
mento histórico e político em que foi proferido. Tratava-se da comemoração de dois anos
da liberação da região da Normandia pelos aliados. Além disso, em junho de 1946, era
a primeira vez que de Gaulle se dirigia aos franceses após ter-se exonerado do governo
provisório em janeiro de 1946, sendo que em maio o povo havia rejeitado o primeiro
projeto constitucional.
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Arts. 12, 19 e 20 da Constituição francesa (FRANÇA, 1958).
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Duverger (1974b, p. 5-6) destaca que o presidente deixou de ser um chefe de Estado
sem prestígio nem poderes para tornar-se o chefe supremo do Governo.
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Para Rosseto (1992, p. 35), a proeminência do presidente, que era conjuntural em
1958, a partir de 1962 torna-se um princípio de funcionamento do sistema: o presidente
passa a ser o chefe real do Executivo; o Governo, nomeado por ele, perde importância:
executa o programa sob sua autoridade e pode ser exonerado por ele, independentemente
da vontade da Assembleia. O primeiro-ministro tende a agir como um homem de sua con-
fiança, um porta-voz perante o Parlamento, onde se encontra a maioria disciplinada que se
contenta em registrar a vontade presidencial e em traduzi-la sob a forma legislativa. Avril
(2008, p. 5-6) chega a afirmar que, a partir de 1962, iniciou-se outro sistema de governo.
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Para o estudo sobre mutações constitucionais na Quinta República, ver Beaud
(2001, p. 19-31). Lucena (1996) destaca a força do pragmatismo político para a fixação das
condições de funcionamento institucional em regimes semipresidenciais.
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A interpretação presidencialista da Constituição de 1958 já era possível, mas não
prevaleceu desde logo. Acabou realmente sendo confirmada pelas alterações de reforma
de 1962. Para isso, contribuíram a forte personalidade do general de Gaulle, o fato de ter
assumido pessoalmente a solução da Questão Argelina e a utilização do referendo como
ato de ligação direta do presidente com o povo (ROSSETO, 1992, p. 31-32).
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Os poderes a serem exercidos sem ratificação pelo Governo são os de nomeação e
de exoneração do primeiro-ministro (art. 8o, alínea 1), de referendo legislativo (art. 11),
de dissolução da Assembleia Nacional (art. 12), de decretação de medidas excepcionais
(art. 16), de comunicação direta com as casas legislativas (art. 18), de provocação do
Conselho Constitucional (arts. 54 e 61) e de nomeação de três membros e a escolha do
presidente do Conselho Constitucional (art. 56). Além disso, como atividades típicas de
chefe de Estado, acredita embaixadores e enviados extraordinários de outros países. As
atribuições presidenciais que exigem ratificação governamental envolvem atividades de
defesa, de negociação de tratados (art. 52), de iniciativa de revisão constitucional (art. 89),
de graça individual (art. 17), de abertura e de encerramento de sessões extraordinárias do
Congresso (art. 30), de solicitar nova deliberação sobre projeto de lei (art. 10), de promul-
gar leis (art. 10, alínea 1), de assinar ordonnances e decretos deliberados pelo Conselho de
Ministros, de nomear e exonerar ministros e outros agentes públicos (art. 8o) (FRANÇA,
1958).
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Alguns autores destacam que o Presidente seria de qualquer forma responsável po-
liticamente perante o povo. Por exemplo, ver Ardant e Mathieu (2016-2017, p. 440-441).
Não há dúvida quanto a isso. Parece, contudo, que aqui se trata de outro tipo de responsa-
bilidade. A colocação da responsabilidade presidencial perante o eleitor francês, uma vez
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Na passagem, o rei afirma: “É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar.
A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar,
farão todos revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minha ordens são
razoáveis.” O rei demonstra, pois, a sabedoria de compreender as restrições que eventuais
circunstâncias imprimem ao exercício de seu poder e ao espaço institucional que em al-
gumas situações lhe é reservado.
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A elaboração da teoria do “domínio reservado” é atribuída ao político J. Chaban-
Delmas, para definir as matérias em que o presidente de Gaulle podia tomar as decisões
por ele mesmo, sem que necessariamente o primeiro-ministro estivesse de acordo, o que
envolvia, naquela época, assuntos relativos à questão argelina, à diplomacia e à defesa.
Mesmo sendo correto afirmar que o presidente de Gaulle tenha assumido pessoalmente as
decisões nessas questões, isso não significa que, sob o aspecto normativo, a Constituição
fizesse tal previsão (LASCOMBE; TOULEMONDE, 2015, p. 295).
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Duverger (1993, p. 123) comenta que a teoria do domínio reservado não foi aco-
lhida por de Gaulle e por Georges Pompidou, pois tinha, no fundo, a intenção de limitar-
lhes o poder. Da mesma forma, no caso de coabitação, a teoria foi rejeitada por Jacques
Chirac. Chirac, que antes vivenciara a coabitação como primeiro-ministro na presidência
Mitterrand, em 1997 experimentou a coabitação no exercício da chefia de Estado. Em
discurso proferido em 14 de julho de 1997, mesmo destacando o domínio de interesse da
presidência nos temas de relações internacionais e de defesa, não descartou a importância
da cooperação governamental. Disponível em: <http://www.lemonde.fr/revision-du-bac/
annales-bac/histoire-terminale/interview-televisee-de-jacques-chirac-le-14-juillet-1997_
t-hrde102.html>. Acesso: em 15 jan. 2017.
Sobre o autor
Marcelo Leonardo Tavares é doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, RJ, Rio de Janeiro, Brasil; pós-doutorando em Direito Público na Université
Lyon III (Jean Moulin), Lyon, França; professor adjunto na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, RJ, Rio de Janeiro; Brasil; juiz federal, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
E-mail: marceloltavares@globo.com
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