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DRAMATURGIA

FEMINISTA
Fogo de Monturo & Quarança
DRAMATURGIA

FEMINISTA
Fogo de Monturo & Quarança

Luciana Lyra
Título Original
Dramaturgia feminista: Fogo de Monturo e Quarança

Copyright Luciana Lyra, 2017

Reservam-se os direitos desta edição à:


GIOSTRI EDITORA LTDA.

São Paulo - SP - República Federativa do Brasil.

Impresso no Brasil
ISBN: 978-85-516-0172-3
CDD: B-869-2

Editor Responsável Alex Giostri


Editor Assistente Fábio Costa
Capa e Diagramação André Ximene
Fotos Adriana Nogueira, José Barbosa,
Paulo Fuga e Rafael Victor
Revisão final de texto Giostri Editora Ltda.

Lyra, Luciana
Dramaturgia feminista: Fogo de Monturo e Quarança

1ª Ed. São Paulo: GIOSTRI, 2017

1 - Literatura Dramática
2 - Dramaturgia Brasileira
3 - Feminismo - Questões Sociais

1º título: Dramaturgia feminista


2º título: Fogo de Monturo e Quarança

1ª Edição
Giostri Editora LTDA. Dedico, em especial, às minhas amadas avó Hosana e mãe Mariel.
Giostri Editora giostrieditora.com.br
Rua Dona Avelina, 145 Também à minha madrinha Dirce, às minhas tias, sobrinhas,
Vila Mariana - SP /giostrieditora
afilhadas, amigas e todas as mulheres guerreiras e guerrilheiras
Tel.: (11) 2537-2764 GiostriTV que vem atravessando minha jornada. Aos meus guerreiros
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@giostrieditora Divaldo, pai, Divaldo Jr. e Leonardo, irmãos.
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Apoio cultural:
Agradeço pela afetuosa partilha criativa às atrizes, Alice Jácome,
Clareana Graebner, Leila Bezerra, Lulu Albuquerque, Maria Flor,
Marília NegraFlor e Tatiane Tenório, aos atores Paul Moraes e Aldemar
Pereira e ao diretor Robson Haderchpek do Grupo Arkhétypos de
Teatro-RN.
Às atrizes Juliana Oliveira e Paula Praia, d’A Próxima Companhia-SP,
ainda às atrizes Lívia Lisboa, Julia Pires e os coletivos de artistas que
comigo e estes atuantes construíram os espetáculos decorrentes
destas dramaturgias.
Também sou grata à Juliana Azevedo, Karla Martins, Alessandra Leão,
Vânia Medeiros, Stella Garcia, Alberto Brigadeiro, Fredyson Cunha,
Brígida de Miranda, Newton Moreno, Verônica e Lúcia Fabrini.
sumário

Por uma dramaturgia feminista..........................


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FOGO DE MONTURO...........................................................
13

QUARANÇA...........................................................................
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Álbum - fogo de monturo......................................... 139

Álbum - quarança.......................................................... 150


Introdução
Por uma dramaturgia feminista

Compreendo a criação de dramaturgias como lócus privi-


legiado de desvelamento das travessias ocultas da vida, um
caminho de ser humana. Talvez por isso tenha perseguido
processos de criação dramatúrgica que procurassem se arti-
cular aos processos de criação da cena pelxs atuantes, levan-
do-as e levando-os às margens e ao fundo delas mesmas e
deles mesmos, ajudando a trançar questionamentos acerca
de identidade, gênero, individuação, e de nossa condição de
incompletude e finitude. Talvez por isso tenha perseguido
processos de criação em dramaturgia, que funcionassem
estrategicamente como ritos de passagem, e que tomassem
o mito como suporte, na salvaguarda da narrativa mítica
enquanto espaço de reconto da gênese do que é pessoal em
trama retroalimentativa com as demandas sociais, intrinse-
camente políticas.
No encalço destes processos de construção em dramaturgia
e encenação, avancei em pesquisas acadêmicas e diferentes
experiências cênico-pedagógicas, desde 2001, em diversos
recantos do Brasil, que acabaram por fomentar a criação e
o aprofundamento de duas práticas intrinsecamente ligadas:
A Artetnografia e a Mitodologia em Arte. Fogo de Monturo e
Quarança vem justamente integrar um conjunto de traba-
lhos em dramaturgia e encenação, gerados por estas práticas
pedagógicas e que trazem também em comum o trânsito
por questões acerca da mulher, dos arquétipos femininos e
diferentes feminismos que norteiam as lutas das mulheres
em solo nacional, instaurando, para além da pedagogia de
criação, uma dramaturgia/cena em ânima. O descortinar da

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guerrilheira e da guerreira nas duas dramaturgias, tomadas
aqui como feministas, acaba por nos colocar no enfrenta-
mento contra todo o estado falocêntrico de opressão.
A fábula dramatúrgica Fogo de Monturo nasce em 2014 do
ventre de mulheres que migraram de suas terras de origem em
busca de conhecimento e que ocuparam os bancos das univer-
sidades, avançando às ruas das capitais na luta pela justiça e
pela liberdade contra os fuzis dos milicos da repressão. Fátimas,
Sufocos, Irenes, mulheres como as do vilarejo de Monturo
desabrocham entre a revolução sexual, a liberação feminina e
os ideais de esquerdas, combatendo as iniquidades e a coação
das tantas ditaduras. Selecionado como finalista do Concurso
de dramaturgia feminina 2015, no projeto LA SCRITTURA FOGO DE MONTURO
DELLA DIFFERENZA, organizado pela Compagnia Metec
Alegre, com sede em Nápole, na Itália, Fogo de Monturo eclode Escrita durante o processo de pós-doutoramento da autora
das entranhas da puta antepassada Gaba Machado, assom- no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da
bração de Monturo, acabando por celebrar a tenacidade heroica Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a
de nossas guerrilheiras nacionais. peça figurou como finalista do Concurso de Dramaturgia
Na trilha da belicosa Fogo de Monturo, a peça Quarança, de Feminina, do Projeto La Scrittura Della Diferenza, organi-
2016, tece com fios vermelhos toda uma linhagem materna zado pela Cia. Metec Alegre – Nápoles/Itália e estreou no
silenciada. Criada a partir de uma tríade de estímulos: o Teatro Hermilo Borba Filho, em Recife-PE, no ano de 2015,
mito-guia (Aracy Guimarães Rosa), os impulsos pessoais das numa parceria entre o Arkhétypos Grupo de Teatro-RN e a
atrizes-criadoras e a figura híbrida de Diadorim, de João Unaluna-Pesquisa e Criação em Arte-SP.
Guimarães Rosa, Quarança fabula sobre a jornada de Rosa
Ararim, moradora de um lugarejo conhecido como Alereda,
onde o sol é insistente e a terra esturricada está ocupada por
um exército de jagunços, liderados pelo temido Sô Déo. Em
Alereda, as mulheres são violentadas, mortas e, uma a uma,
quaradas ao sol, veladas sem lua, extintas carbonizando o
chão. Além de Rosa, sua avó Zanararim, as pranteadeiras e
redeiras são as guerreiras artífices desta peleja contra uma
sociedade marcada pelo ferrete patriarcal.
A autora

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FICHA TÉCNICA Leila Bezerra, Marília Negra Flor, Tatiane Tenório, Lulu
Albuquerque e Maria Flor

DRAMATURGIA – ENCENAÇÃO – DIREÇÃO: Luciana ATORES-CRIADORES: Aldemar Pereira e Paul Moraes


Lyra
EXECUÇÃO DE LUZ: Natalie Revorêdo e Adriel Bezerra
DIREÇÃO DE ATORES: Robson Haderchpek
EXECUÇÃO DE SOM: Adriel Bezerra e Nadja Rossana
DIREÇÃO MUSICAL: Alessandra Leão
REALIZAÇÃO: Arkhétypos Grupo de Teatro e Unaluna —
MÚSICAS: Puta Assombrada: Luciana Lyra (letra) e Pesquisa e criação em Arte
Arkhétypos Grupo de Teatro (música); Moça da capital:
Luciana Lyra (letra) e Arkhétypos Grupo de Teatro (música);
Monturo: Luciana Lyra (letra) e Arkhétypos Grupo de
Teatro (música); As fardas avançam:  Luciana Lyra (letra)
e Arkhétypos Grupo de Teatro (música); Que falta nesta
República?: Luciana Lyra (letra) e Arkhétypos Grupo de
Teatro (música); Noiva de véu: Luciana Lyra (letra e música);
Saudação: Rosa de Pedra (letra e música); Moreninha se eu
te pedisse: Domínio Público (letra e música); Coroação:
Domínio Público (letra e música); Tudo é tão lança: Maria
de Lia (poema musicado); Fogo: Alessandra Leão (Letra e
música).

TRILHA SONORA: Alessandra Leão, Rafa Barreto, Luciana


Lyra e Arkhétypos Grupo de Teatro

CENOGRAFIA E DESIGN DE LUZ: Luciana Lyra e


Arkhétypos Grupo de Teatro

INDUMENTÁRIA: Paula Vanina

ATRIZES-CRIADORAS: Alice Jácome, Clareana Graebner,

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PREFÁCIO ou toda Abya Yala — nosso continente como esse grande
corpo fêmea, colonizado, violado e devastado por homens.
Monturo é Brasil, porque os dois são quase sinônimos, ou
fogo de monturo queima, brilha e melhor, são imagens contíguas: monte de coisas asquerosas,
monturo de imoralidades, aglomeração de lixo, coisas
guia, como uma estrela insignificantes, sem qualquer tipo de utilidade. Lixo para
ser queimado, virar um brasil. Será essa a lembrança que o
A Alquimia é a Arte do Fogo, e os alquimistas, os vulto de Gaba Machado, a mulher puta assombrada insiste
artistas do fogo. É com o elemento fogo que se opera a em trazer para cena? Presença da nossa sombra ancestral,
Grande Obra da Alquimia. Associado ao chumbo, o mais pedindo justiça, pedindo depuração, transformação do
pesado dos metais, o fogo tem o dragão como sua contra- chumbo em ouro?
parte animal. Há entre o dragão e a donzela uma cumpli- O fogo é nosso mestre, seja com a chama de Héstia ou
cidade antiga. Transformar o chumbo em ouro, a matéria os raios de Iansã. O tempo da natureza é longo, seu fogo
densa, escura, em matéria reluzente. Migrar de Saturno ao é lento. O tempo da Arte é outro, é curto, condensado, é o
Sol. Das profundezas à superfície. Eis a tarefa do fogo. calor controlado pela inteligência do artista. James Hillman
Fogo-Fêmea é esse Fogo de Monturo, de Luciana Lyra. nos diz que “a arte do fogo e a chave da alquimia signi-
Barroco, iluminado por chamas, cheio de luz e sombras, como ficam aprender com o fogo como aquecer, excitar, entu-
na madrugada em que a peça principia. Um sol que virá mais siasmar, inflamar, inspirar o material à mão, que é também
a diante enquanto um vulto de mulher voluptuosa deixa um o estado de nossa natureza, de forma a ativá-lo rumo a
rastro de alfazema. Fogo do chão ao céu, canta o coro. O céu um estado diferente”. Fátima quer justiça, quer derreter o
queima, canta o coro, como queima a guerrilheira, de desejo chumbo das fardas, do escuro. Fogo-feminista e barroco,
e revolução. Hay que endurecer, pero sin perder la ternura, Fátima é revolução e desejo, revolução e liberdade, revo-
jamás! Fátima é fogo-fêmea. Platão atribuiu a cada elemento lução e justiça. E se “hoje se vai a menina em chamas” e
três qualidades; ao Fogo, a fluidez, a claridade e a mobilidade. pede rosas e leva coração, é que hay que endurecer, pero sin
Fátima quer migrar, ir-se, sair de Monturo, estudar Direito perder la ternura, jamás!
e fazer justiça. Ela é fogo-fêmea, feminista, e com ela vão A alquimia nos ensina que nós somos também o labo-
as mulheres de Monturo, pois “ela vai ser nossos olhos na ratório (labor e oração, trabalho denso e evocação sutil),
capital”: pura sororidade. Fátima é parte de Maria do Sufoco, nossos corpos são o vaso alquímico e a coisa sendo cozi-
de Irene, da Professora, e de todas as nossas guerrilheiras: nhada. Transformar o mundo e se transformar. Aquecer,
Iara, Catarina, Alceri, Ísis, Nilda, Esmeraldina, Aurora, calcinar, destilar até alcançar gotas preciosas de lucidez.
Soledad, Maria Lucia, Helenira, Maria Célia, Áurea, Dinalva, Calor celestial, que desce do sol, das estrelas e dos trovões,
Suely, Jana, Telma, Walquíria e outras tantas... mas também o calor que vem dos interiores, dos vulcões,
Monturo é vilarejo amaldiçoado por alma penada de das fontes termais. Os gritos da Anã, ser tectônico, “feto
puta gorda e velha, alma que amaldiçoa toda América,

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de puta” que pontua toda a peça, são como jatos de geysers iluminação, intangibilidade, insaciabilidade. Essa é sua
cuspindo o grito do interior da terra. E há também os dramaturgia do fogo, sempre inacabada, sempre desejosa
calores do interior do corpo, aqueles das febres, dos de queimar.
prazeres. Fátima bonita demais, cheia de estrelas, “Fátima
não tem a intenção de filho e casório. Quer o mundo”. Com Verônica Fabrini (incendiada por Fogo de Monturo de
Maria do Sufoco, a mulher é vaso alquímico. Dentro dela, no Luciana Lyra)
calor de seu útero se realiza uma grande obra. Dupla trans- Artista e Pesquisadora de Teatro Feminista
formação, pois ela também se transforma, dois novos seres Professora Efetiva da graduação em Artes Cênicas e do
Programa de Pós-graduação em Artes da Cena da Universidade
se gestam. Como dirá a professora, “Ter um filho e um amor
Estadual de Campinas (UNICAMP)
são atos audaciosos. É preciso ter muita coragem para se ter
um filho, um amor, ser poeta”. Fátima/Irene/Sufoco, vestidas
de vermelho, porque “vermelho é essa cor que somos por
dentro”, cor de fogo e brasa, de paixão e revolução.
O fogo interpenetra todas as coisas, insiste em ser visível:
faísca, brasa ou relâmpago, calor, chama ou luz. E nova-
mente Hillman “É preciso calor para dominar a resistência
inata de uma substância, um calor suave o bastante para
derreter o que é teimoso, e feroz o suficiente para impedir
o regresso ao estado original”. Amor e revolução. Sin perder
la ternura, jamás!. Talvez seja por isso que a professora
fale em ética a partir da sua poesia e essa poesia é impulso
de vida, como o fogo é impulso de vida. Poesia que inflama,
que move. É preciso mover, é preciso revolver, revolucionar.
É preciso queimar e criar o novo. Hoje, mais do que nunca. É
preciso que o couro vença a corneta, é preciso transformar os
anos de chumbo em anos de ouro. É preciso essa alquimia das
imagens para aquecer movimento e operar a Grande Obra.
O fogo é o primeiro princípio da vida. Qualquer trabalha-
dora do fogo, como Luciana Lyra, percebe suas qualidades
primárias, quer na cozinha, quer diante de uma fogueira,
ou uma vela. A direção do fogo é o alto, ele sobe. Seu calor
domina e transforma os materiais. O fogo ilumina, ele não
pode ser tocado, ele é insaciável. Ascensão, transmutação,

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FIGURAS

FÁTIMA – A guerrilheira
ESTÊVÃO – O trabalhador da terra
CAMILO – O cineasta
GABA MACHADO – A puta assombrada
O fogo é, assim, um fenômeno privilegiado capaz de explicar A ANÃ – A segregada
tudo. Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, DONA ISAURA – A sinhá
tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo. O fogo MARIA DO SUFOCO – A encarcerada
é ultravivo. O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso CLOTILDE – A tia
coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e IRENE – A modista
se oferece como um amor. MILICO – O capitão
Gaston Bachelard SOLDADO UCHÔA – O carrasco do Milico
MÃE BININHA – A rainha velha do Maracatu Fogo
Saudade dentro do peito é qual fogo de monturo. Branco de Monturo
Por fora tudo perfeito, A PROFESSORA – A poeta
Por dentro fazendo furo. CORO DE MONTURO
Patativa do Assaré CORO DE MULHERES
CORO DE ESTUDANTES

ESPAÇOS F(R)ICCIONAIS
Monturo (Terreiro-Vila-Cinema)
A Capital (Prédio Guitel-Universidade-Prisão)

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PRÓLOGO
O fogo branco

Um velho terreiro de maracatu, chão batido, saias de baiana,


palio, surrões amontoados ao fundo, também calungas e
MOVIMENTOS lanças. Na sombra, os brincadores e caboclos. Fim de brin-
cadeira, madrugada. Ouve-se um toque franzino de bombos,
caixas e sinos ao fundo. Mais adiante vê-se passar um vulto
Prólogo – O fogo branco
de mulher voluptuosa e grande, deixa rastro de perfume, uma
Movimento I – O vilarejo
alfazema. Canta o coro. Uma música de abertura da função.
Movimento II – O baile
Movimento III – A viagem
Movimento IV – A capital CORO DE MONTURO
Movimento V – O guitel
Movimento VI – A universidade De tudo que já se foi, puta é assombração mais temida
Movimento VII – O sufoco Escória fétida e descabida
Movimento VIII – A guerrilha Foi de choque sua morte, fogo apagado, o fogo da lida
Movimento IX – O curral velho De tudo que já se foi, puta é assombração mais temida
Movimento X – O Cine Monturo Fogo no sexo, fogo nos dedos dos pés, das mãos e na cabeça
Movimento XI – O aparelho Puta república, selvagem decaída
Movimento XII – A coroação De tudo que já se foi, puta é assombração mais temida
Movimento XIII – A prisão Puta democracia aguerrida
Epílogo – O fogo de monturo Volta na bruma lixo, monturo. Assombra e acende fogo do
chão ao céu
Celebra puta, o amor e a vida.
Celebra puta, o amor e a vida.
A mulher assombrada é Gaba Machado que na bruma desapa-
rece. Do outro lado, no banco da orquestra avista-se uma moça
e um rapaz. Juntos olham o céu. Um silêncio de aves de rapina.

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FÁTIMA — Percebe como o céu está branco? ESTÊVÃO — Está certa você. Sair de Monturo mesmo.
Migrar. Estudo é mais, Fátima!
ESTÊVÃO — Nuvens. Paisagens que se movem.
FÁTIMA — Direito, Estêvão! Estudar Direito. Fazer justiça.
FÁTIMA — Atrás tem azul e o vermelho intenso da tarde Coisa de sonho.
caindo.
ESTÊVÃO — Camilo vai no seu peito e pensamento,
ESTÊVÃO — Parece que o céu assim queima. Fátima. Com você, vão pai e mãe e a vila inteira para capital.

FÁTIMA — Sou esse céu. FÁTIMA — O Pai e a Mãe querem anelão no dedo, Têva.
A vila tem o maracatu, o roçado da cana, tem igreja, tem
ESTÊVÃO — Um perigo essa mulher. (Ri) fábrica nova para se ocupar... E Camilo... Camilo tem sonho
próprio. Camilo tem Filosofia. Camilo tem você, amigo
FÁTIMA — Nada, Têva! próximo. (Olha fundo o rapaz) Você ainda sente não é?
ESTÊVÃO — Um presente hoje. O céu e tu. Mas olha que ESTÊVÃO — Sinto! Minha natureza é terra, Fátima. Não
pode chover. É verão.
tem como competir com a cabeça cheia de ar de Camilo. Foi
com ele que tu descobriu amor.
FÁTIMA — Se chove não sei dizer se corro ou molho-me
inteira.
FÁTIMA — Amo você, Têva. Amo Camilo, amo o caminho.
Sou feito passarinho.
ESTÊVÃO — Molha! Te conheço! (Ri)

FÁTIMA — Vou sentir sua falta. ESTÊVÃO — Só se for pássaro de fogo, menina! Você
queima feito nuvem branca em fim de tarde, Fátima!!! (Ri)
ESTÊVÃO — Ficarei em Monturo, mas com o coração em Vai queimar a capital! Vai queimar!!! Tu queima.
você, Fátima!
Os sons dos bombos e sinos aumentam tomando o encontro.
FÁTIMA — O maracatu continua sem mim, Estêvão! Mãe Os brincadores e caboclos aparecem e dançam de bêbados.
Bininha é rainha, tem você e Anã. Música intensa retomando a melodia da abertura. Dançam
todos juntos um baque suave.
ESTÊVÃO — Daqui a pouco devia ser sua coroação.

FÁTIMA — Vou ser coroada de outro jeito, Têva! Vou ser


doutora!

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MOVIMENTO I SINHÁ ISAURA E CLOTILDE — Vai botar calça!

O vilarejo SINHÁ ISAURA — Se não vai casar, melhor mesmo ir-se


embora, esquentar outras paragens e não mais inspirar
O terreiro transforma-se na vila de Monturo. Casinhas, igreja, maus exemplos.
rodoviária e as árvores em sombras. Uma mulher, como se esti-
vesse em vertigem, dança e entoa um grito que é pregão, é canto. CLOTILDE — Deus tá provendo, Isaura. Deus tá provendo.
Ela vai ser nossos olhos da capital.
ANÃ (Grita) — Hoje se vai a menina em chamas. Leva coração.
Pede rosas e vai. Pede rosas para enfeitar seu chapéu para SINHÁ ISAURA — Olhos e pernas, Clotilde!
capital. Hoje se vai a mulher em chamas. Leva coração. Pede
rosas e vai. Pede rosas para enfeitar seu chapéu para capital. SINHÁ ISAURA E CLOTILDE — Olhos e pernas!

Avançam a tia e a sinhá. Apontam para a anã. ANÃ (Grita) — Hoje se vai a menina em chamas. Leva
coração. Pede rosas e vai. Pede rosas para enfeitar seu
CLOTILDE — Essa parece tomada de demônio, mordida chapéu para capital. Hoje se vai a mulher em chamas.
de cachorro doido essa aí. Leva coração. Pede rosas e vai. Pede rosas para enfeitar seu
chapéu para capital.
SINHÁ ISAURA — Era pra está em manicômio, mordida
de cachorro doido essa aí. Sinhá Isaura e Clotilde fazem sinal da cruz na passagem
de Anã.
CLOTILDE — Mas aqui em Monturo, gente doida vai pra
terreiro de maracatu. SINHÁ ISAURA E CLOTILDE — Melhor Fátima arribar.

SINHÁ ISAURA — Gente doida e juventude sem futuro. CLOTILDE — Monturo é vila de passado corticeiro. Monturo
é amaldiçoado por alma penada de puta gorda e velha.
CLOTILDE — A filha de comadre Bernarda vai se livrar
desse enlouquecimento de bombos e sinos de cabra e boiada. SINHÁ ISAURA — Alma que pena feito cachorro sarnento
Já que num quer casar, Fátima vai ser doutora, vai pra capital! nos quintos. Puta assombrada.

SINHÁ ISAURA — Melhor!!! Fátima já já tava se perdendo. SINHÁ ISAURA E CLOTILDE — Gaba Machado!
Acolhoada com Camilo, cabeça de ar. Acolhoada com Estêvão,
pé de barro. Quando eu botei os olhos em Fátima disse! CLOTILDE — A puta assombrada de Monturo.

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SINHÁ ISAURA — Por isso guardo minha filha. Comigo é SINHÁ ISAURA — No tempo de meu coronel e marido,
na corda nylon e no cipó de cajueiro. Num quero nela nem Monsenhor de Monturo.
rastro desse tipo de assombração. Sai de reto Gaba Machado,
puta com endereço certo há sete palmos do chão. SINHÁ ISAURA E CLOTILDE — Que Deus o tenha!

CLOTILDE — Não se preocupe, Zaura, Sufoco tá guar- SINHÁ ISAURA — Mulher era na rédea curta, como deve
dada! Preocupe não. Vai à igreja e tem fidelidade à Padre se tratar uma mulher.
Henrique. Futuro de Sufoco difere de Fátima. Sufoco borda
enxoval e sapatinho de bebê, não borda gola de caboclo, não. SINHÁ ISAURA E CLOTILDE — Rédea curta!

SINHÁ ISAURA — Minha Maria do Sufoco não vai pra ANÃ (Grita) — Hoje se vai a menina em chamas. Leva
terreiro, nem capital. Graças a Deus, tá um passo antes coração. Pede rosas e vai. Pede rosas para enfeitar seu
de Fátima. chapéu para capital. Hoje se vai a mulher em chamas.
Leva coração. Pede rosas e vai. Pede rosas para enfeitar seu
SINHÁ ISAURA E CLOTILDE — Não tem desejo. chapéu para capital.

ANÃ (Grita) — Hoje se vai a menina em chamas. Leva Sinhá Isaura e Clotilde benzem-se novamente e saem.
coração. Pede rosas e vai. Pede rosas para enfeitar seu
chapéu para capital. Hoje se vai a mulher em chamas.
Leva coração. Pede rosas e vai. Pede rosas para enfeitar seu MOVIMENTO II
chapéu para capital. O baile
As duas fazem novamente o sinal da cruz. A vilinha de Monturo vai se transformando no terreiro nova-
mente, mas lá não são vistas saias de baiana ou golas de mara-
CLOTILDE — Irene me ligou e disse que a capital está catu, nem caboclos e brincadores. É noite. Dois rapazes em cantos
fervendo. Tem farda no poder e acocho no povo. opostos se olham. Estão alinhados para dia de festa. Ao fundo
um baião é tocado. Os rapazes aproximam-se em cumprimento.
SINHÁ ISAURA — Assim tem que ser. Tu que não devia
ter deixado Irene ir-se daqui. CAMILO — Têva, parea meu!!!

CLOTILDE — Ah, minha filha! Irene é modista de mais ESTÊVÃO — Parea pra mim é tu!
alta linha, Zaura. Aqui em Monturo era enterro vivo. Aqui
ia crescer feito mato vira lata. Quero minha sobrinha árvore CAMILO — E Fátima??? Visse? Tá vindo?
frondosa feito mangueira, no brilho dos vestidos de alta classe.

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ESTÊVÃO — Pera, cabra! Fátima tá botando laço e sapato ESTÊVÃO (Olhando fundo o amigo) — Tem coisas que não
de salto pra te encontrar. dá para contar de certo, sabe!?

CAMILO — Te encontrar também, oxente! Encontrar a Nova passagem do vulto de Gaba Machado. Eles se distraem
gente! no pressentimento da mulher assombrada.
ESTÊVÃO — Acho que você não entende mesmo. Às vezes,
ESTÊVÃO — Vamo papear pra esperar a noivinha!!! tenho pensamento de te ajudar a caminhar. Caminhar
contigo. Deixar que na minha terra seja construído as
CAMILO — Noivinha? Tu é cheio de graça. Só se Fátima imagens de seu sonho.
for noivar com a faculdade e com o mundo.
CAMILO — Meu sonho?
ESTÊVÃO — Bem que tu queria noivar com ela, Camilo!
ESTÊVÃO — ... Seu cinema!
CAMILO — Ah Têva! Num sei ainda, sabe? Só quero casar
depois da construção do Cine Monturo. Tô dando por prin- O baião fica mais intenso. Entra Fátima em beleza de festa.
cipiada a grande obra!!! FÁTIMA — Hoje meu coração tá com vermelho intenso.
Vejo Monturo em festa, todos em festa.
ESTÊVÃO — Cinema é coisa de filosofia, Milo!
Todos cantam. Fátima e Camilo dançam no centro do terreiro.
CAMILO — Coisa de filosofia, Têva. Num tiro do juízo.
Mandei buscar as máquinas na capital, só falta o terreno, o CORO DE MONTURO canta
prédio... As máquinas chegam ainda neste mormaço de verão. Olha que vem a moça da capital
Vestido de renda, sentido e galão
ESTÊVÃO — Mas tu casa com a moça na volta dela, né? A sua saia é rodada e as flores do peito se espraiam no chão.

CAMILO — Tu tem paixão por Fátima, não é? Tu fica nessa Todos dançam e cantam o xote. Mais adiante vê-se passar um
delicadeza de não me dizer. vulto, mais uma vez a mulher voluptuosa e grande, que deixa
o rastro de perfume, uma alfazema. Entra a Anã retumbante
ESTÊVÃO — Meu coração é da terra, Milo! Meu coração na dança.
pensa em outras paragens, outros sentidos e sabores,
entende? ANÃ — Quando o coração queimar, maracatu inteiro
sangra. Dança! Dança! Tem mulher na peleja do cárcere
CAMILO — Não te entendo, Têva! Você já tentou me a expiar!!!
explicar, mas não entendo. Você é meio sentido, não é? Pra
dentro, cabra! Anã repete o pregão. A música fica mais densa e lenta. Entra
Maria do Sufoco, carrega uma janela inteira, de onde observa

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a festa. Ao seu lado vem Clotilde a pajear. A música continua nas pernas e nos pés, cegando-me de desejo. A herança da
em toda prosa das duas à margem da festa. casa é pesada para mulher como eu sustentar. Irene se foi
e agora Fátima.
CLOTILDE (Observando a Anã) — Espia praí!! (Ao céu)
Jesus, cirurgião de Deus, opera neste ser!!! CLOTILDE — Irene é minha sobrinha, Sufoco. Irene foi cria
minha, sem pai e mãe, só talento e dedos pras rendas e pros
SUFOCO — Dizem que Anã vê os espíritos que baixam no
bordados. E Fátima... Fátima é lobo em noite de lua feito argola
terreiro de Mãe Bininha.
no ar. Sinhá Bernarda não pode segurar Fátima, num tem jeito.
CLOTILDE — Pela hóstia consagrada. (Baixinho) Isso é Fátima não tem intenção de filho e casório. Quer mundo.
feto de puta, Sufoco! Tem Gaba no couro.
MARIA DO SUFOCO — Também quero a extensão, Tia,
SUFOCO — Oxente, tia! Isso é doença! Tenha respeito! A mas quero filhos também, dois mundos que existem. Ai,
bichinha nasceu assim. Tia, só vivo com meus olhos líquidos. Daqui, vejo sempre
bandeirolas e poesia nos passos dos que dançam. O terreiro
CLOTILDE — Comadre Isaura quer mais que Mãe Bininha ferve levantando poeira, e eu abafo o coração.
e essa corja de macumbeiro ferva as línguas no óleo do
dendê! Povo sem rumo. Agora você não, minha filha.Você CLOTILDE — Nem só de terreiro vive os entes, Sufoco!
sim é feliz, Sufoco. Você já tem destino certo, traçado na Destino de gente de terreiro é mundo. Quem fica sonhando
reta do sonho de sua mãe, de seu pai e senhor. Você sim é com festa somente, Gaba Machado assombra, visse?
boa moça.
MARIA DO SUFOCO — Oxe!!! Gaba Machado tá morta
MARIA DO SUFOCO — Vivo em dois dos mundos que e enterrada, Tia! É dos tempos avós, de início da repú-
existem, Tia! O de cá, dentro da casa, o de lá, de fora no blica. Oxe!!!
mundo. Sinhá Isaura, minha mãe e senhora, quer mais que
eu dentro fique a bordar sonhos de extensão. CLOTILDE — Apois, dizem que viram ela vagar no meio
da festa feito cão.
CLOTILDE — Assim que tem de ser, Sufoco! Tua mãe
te guarda pro bem de gerações. Monturo depende de teu As duas se benzem.
ventre, do corpo que, na intenção, já dorme dentro de tu.
Mas não se aflija mulher, deixe de tua besteira, daí da janela MARIA DO SUFOCO E CLOTILDE — Vôte!!!!
teus olhos podem caminhar.
MARIA DO SUFOCO — Desconjuro, Tia! Vixe!!! Padre
MARIA DO SUFOCO — É pouco para mim o caminho Henrique diz que alma desse jeito num existe não. Medo
dos olhos, Tia! Meu ventre queima e distribui labaredas de alma que eu tenho!!!

32 33
CLOTILDE — Imagine alma de puta gorda e velha? CAMILO — Cê que sabe, minha Flor do canavial!!! Cê que
Imagine a tentação? Gaba Machado morreu por que falou sabe!!!
demais dos desmandos do Sinhô. Boca dos infernos!!! Do
Sinhô ninguém fala, Sufoco. Olhe, reze, filha, consulte Padre Gargalham os dois e o baião esquenta, Camilo leva Fátima aos
Henrique e reze pra espantar a maldição de terreiro e dos cantos do terreiro e tem com ela uma noite de amor. Estêvão
cortiços das quengas antepassadas, de rameira de corpo observa enciumado o movimento, cospe o chão e se embriaga. Fala
livre e boca maledicente!!! à garrafa de cachaça.

Elas se benzem uma última vez. Anã grita no meio da festa. ESTÊVÃO — Desejo queima. Queima o desejo.

ANÃ — Quando o coração queimar, maracatu inteiro sangra. A noite acaba.


Dança! Dança! Tem mulher na peleja do cárcere a expiar!!!

No outro lado da festa, avançam Camilo e Fátima. Ele carrega MOVIMENTO III
uma garrafa de vinho nas mãos. Vez por outra bebe.
A viagem
CAMILO — Ai que tu tá desbancando o céu, Fátima! Bonita
demais! Cheia de estrelas! E nuvens? Nada. É dia. Avista-se todo o povo de Monturo frente à rodoviária.
FÁTIMA — Acho que há tempo que tô na intenção do céu, Sinhá Isaura e Tia Clotilde mais afastadas, observam
Milo. Querendo voar. (Sorri) críticas. Camilo e Estêvão à frente perto de Fátima, logo atrás
vê-se a Anã, ela dança. Ao longe, numa janela, vê-se Sufoco.
CAMILO — Se o céu queimasse feito fogueira, o céu era tu. Eles cantam a despedida. Há um movimento em coro para a
partida de Fátima, ela carrega uma mala e sonhos, sonhos.
FÁTIMA — Tem fogueira branca, Milo. Nuvens que são
chamas.
FÁTIMA canta
CAMILO — Num entendo. (Chegando mais perto de Monturo, me dá tua mão.
Fátima) Só entendo do queimor que pulsa por baixo. Um Tua mão pra eu segurar.
queimor que só sinto quando encosto em tu, quando danço
Tua mão sumiu, sumiu,
contigo. Chega perto! Chega!!!
Monturo, aqui do meu olhar!
Eles se abraçam no baião.
CORO DE MONTURO canta
FÁTIMA — Você tá quente, Milo! Quente! Hoje quero essa Lá vai a moça pra capital
chama dentro de mim, para me fazer lembrar daqui, da Lá vai a moça para capital
terra quando for pra capital. Adeus Monturo, segue seu rumo

34 35
Adeus Monturo, segue seu rumo FÁTIMA — Chegando na República, o bairro onde iria
As fardas avançam, cuidado moça assentar meu colchão. Além de Irene, outras moças ocupavam
As fardas avançam, cuidado moça o pequeno apartamento do prédio guitel.

Um pedaço de tempo. Fátima assenta sua mala em frente a um prédio. Está com Irene.

MOVIMENTO IV MOVIMENTO V
A capital
O guitel
Num repente, são avistados prédios e a universidade. Fátima
passeia por entre os edifícios e num impulso de dança, depõe. IRENE — É aqui! Aqui é o Guitel, república de mulheres.

FÁTIMA — Nos tempos do liceu de Monturo, o que se FÁTIMA — Estudantes.


desejava era ir à capital e estudar Direito. Esse era o meu
desejo de recém laureada no terceiro grau. Sou mulher, isso IRENE — Mulheres.
fazia diferença nos desejos. Mesmo assim, fui pra capital e
como recomendações... FÁTIMA — Vocês discutem aqui sobre poder?

CORO DE MONTURO — Levar o colchão, roupa de cama, IRENE — Somos mulheres, Fátima!
dinheiro e, claro, volte pra casa.
Silêncio entre elas. Repreensão de Fátima com um olhar.
FÁTIMA — Pedi para minha amiga Irene buscar-me na
estação rodoviária. FÁTIMA — E sua vida, Irene?

Irene integra com Fátima a dança por entre edifícios. IRENE — Minha vida é traçado! As madames sonham com
casamento. Desenho vestidos e visto-as.
FÁTIMA — Irene, minha conterrânea com talentos para o
desenho, andava a rabiscar vestidos de noiva e sonhos para FÁTIMA — Casamento é ideal, Irene! Não vivo no mundo
madames. Irene fazia-se conhecida num período difícil do ideal, mas no mundo das ideias em ação. Quando era
para todos na capital, no país. Homens de fardas no poder, pequena achava que casar era uma profissão. Depois entendi.
universidade em polvorosa e eu, ‘caloura’. Sinto que casamento não é para mim. Não da maneira como
foi instituído.
CORO DE MONTURO — Calores!!!
IRENE — E Camilo?

36 37
FÁTIMA — Camilo está em meus pensamentos de amor, Irene! a ética como campos que se integram, entende? Prezar pela
justiça é dever de todos. A função da justiça, digo, a função
IRENE — Ixi, amiga, com estes pensamentos, acho que vai saber essencial é garantir as liberdades humanitárias, políticas e
o que dizer nesta universidade! filosóficas, desempenhando papel fundamental na lida com
a Constituição Federal.
FÁTIMA — Lá é um lugar para se ocupar.
FÁTIMA — Não temos visto essa garantia ser exercida com
IRENE — Sabe que tem outra ocupação. E não é de estudantes, fardas no poder!
mas de fardas.
Murmúrio de confirmação entre os estudantes.
FÁTIMA — Disso quero saber!!!
PROFESSORA — Você é chama alta, Fátima! Aqui tem
paredes que pressionam os peitos e despencam sobre os que
MOVIMENTO VI falam.
A Universidade
FÁTIMA — Tem medo, professora?
Um coro de estudantes é avistado frente à uma lousa, entre eles está
PROFESSORA — Precaução tenho tido!!! Tenho passado
Fátima. Próximo à lousa, a professora dá uma aula de introdução
de fala livre, sabe?
à ética.
FÁTIMA — Soube que poetiza sobre o sentido de tudo que
PROFESSORA — Há duas espécies de requisitos que o indi- vem nos acontecendo aqui na capital e que sua poesia é como
víduo deve preencher para exercer a profissão de advogado: água que lava todas as partes do corpo, principalmente a
os  legais  e os  pessoais. Os requisitos legais para o exercício da cabeça. Fale sobre ética a partir de sua poesia, professora!
advocacia conferem ao profissional  capacidade técnica  e  capa-
cidade legal  para o exercício da profissão. Em linhas gerais, é Murmúrio de confirmação entre os estudantes.
preciso ter um diploma, camaradas! Quanto aos requisitos
pessoais, estes não têm previsão legal, e dizem respeito à perso- PROFESSORA — Fátima...
nalidade do advogado, aos seus atributos morais e intelectuais, é
preciso ter ética e senso político da vida, camaradas! CORO DE ESTUDANTES canta
Quando tu fala é grito, é poesia
FÁTIMA — Ser ético é ser político, professora? É impulso de vida, professora! Fala. Fala!

PROFESSORA — São instâncias complementares, Fátima! PROFESSORA — Sou como ovelha desgarrada. Esse chão
Devemos ser todos um pouco advogados, exercitando a política e que piso não tem realmente representado minha alma.

38 39
CORO DE ESTUDANTES canta MILICO (À Fátima) — O que é que tá olhando? Quero
Quando tu fala é grito, é poesia ordem aqui! Isso de poesia é coisa de comuna. Não gosto
É impulso de vida, professora! Fala. Fala! dessa literatura não.

A Professora poetiza. PROFESSORA — Poesia é coisa de progresso, não sabia?

PROFESSORA canta MILICO — Mas eu não tô dizendo mesmo? Professora,


Que falta nesta república? professora!!! Ao meu redor sou eu sempre que dou o tom,
Que mais por sua desonra? na vida particular também. Mas a senhora não está abso-
Falta mais que lhe ponha? lutamente à altura das exigências morais que a sua posição
O demo a viver se exponha exige. Tem ideias igualitárias demais. Eu não gosto desta raça
Por mais que a fama exalta de gente, sabe? Eu e uma tuia dos meus não gosta também.
Na terra onde falta A senhora me decepciona completamente. Até por que sei
Verdade, honra e vergonha... de seu passado nas bancadas e palestras, nos tambores e
trombones, Professora. Mas, apesar de tudo isso, a senhora
Repentinamente o Milico invade, com força, a sala de aula. me inspira uma simpatia, sabe? Por isso vou deixá-la um
Sons de corneta e metais outros. tempo em casa refletindo, e, por enquanto, nada de aulas.
Umas férias... Umas férias...
MILICO — Tenho um prazer imenso em visitar os senhores
no mais cedo da manhã, desmarquei até um dentista para O coro dos estudantes avança.
vir aqui. É um cuidado que eu tenho, sabe? Um mimo que
faço. Venho sempre por que, às vezes, tenho a impressão que CORO DE ESTUDANTES canta
a professora tem dificuldade para compreender as regras e Quando tu fala é grito, é poesia
se excede nos versos. Na verdade, continua se excedendo, É impulso de vida, professora! Fala. Fala!
por que já foi avisada, não?
O milico ameaça a professora com uma arma. Fátima toma
PROFESSORA — Uso da palavra por que me é direito. à frente.

MILICO — Parece que não entende de leis! É uma farsa o FÁTIMA — Isso é inconstitucional!
que ensina? Eu quero lhe ensinar um pouco de disciplina,
senhora poeta. Sabe recitar bem, não é? Então recite uma MILICO — Começando mal, moça bonita! Começando
mal um curso de Direito. É preciso conhecer a constituição,
quadrinha para eu ouvir?
moça bonita. É preciso conhecer a verdade constituída.
(Mostra a arma) Olha aqui a minha faculdade!
Silêncio da Professora. Fátima o encara.

40 41
FÁTIMA — Isso é passível de denúncia. O espaço vai se modificando e o movimento dos estudantes
vira o movimento do Coro de Monturo. Volta-se às atenções
MILICO — Mas eu num estou dizendo mesmo! para o lugarejo. O coro fala.
Denunciar??? A quem, moça bonita??? À propósito, qual a
graça e de onde vem você, atrevida como é?
MOVIMENTO VII
CORO DE ESTUDANTES E FÁTIMA — Fátima, de O Sufoco
Monturo.
CORO DE MONTURO — Psiuuu!!! Psiuuu!!! Sufoco,
MILICO — Fátima, de Monturo! Lugarejo de gente canta- sumiuuu, sumiuuu. Onde foi a moça? Onde foi? Onde foi a
deira demais, de terreiro de maracatu, não é? Tocam moça? Onde foi? Disse que a menstruação subiu na cabeça.
macumba! Macumbeiro safado, não é? Você acha isso certo? Oxe. Psiuuu!!! Psiuuu!!! Sufoco, sumiuuu, sumiuuu.

Sinhá Isaura e Clotilde entoam uma reza alta no meio da


FÁTIMA — É lá mesmo que os bombos tocam e o canto é vila. Uma reza de procissão.
solto feito gavião.
ISAURA E CLOTILDE cantam
MILICO — Pois guarde as baquetas e silencie o couro, Conservai a nossa fé
moça! Aqui na capital é tempo de corneta. Tenho um Viva em nossos corações
soldado bem bonzinho que vai ficar de olho em vocês duas. Livrai as nossas almas
De seguir falsas ilusões...
E esteja dito!!!
Num repente Dona Isaura começa a chorar avança com força
O Milico sai aos sons de corneta e metais vários. O coro de desmedida. Grita! Está em desespero!
estudantes canta a poesia da Professora.
SINHÁ ISAURA — Eu só quero saber, nessa cidade,
CORO DE ESTUDANTES canta quem soltou minha filha no mundo? Quem foi? Sufoco
está na minha rédea, comigo é rédea curta. Não tem
Que falta nesta república?
passarinho voando.
Que mais por sua desonra?
Falta mais que lhe ponha? CLOTILDE — Calma, Zaura! Não grite assim diante do
O demo a viver se exponha povo. Vamos encontrar Sufoco. Ela deve tá com Padre
Por mais que a fama exalta Henrique.
Na terra onde falta
Verdade, honra e vergonha... ANÃ — Sufoco vai casar. Sufoco não vai casar. Sufoco vai
casar. Sufoco não vai casar.

42 43
CORO DE MONTURO — Psiuuu!!! Psiuuu!!! Sufoco, SINHÁ ISAURA — Tomou ônibus na rodoviária em seguida.
sumiuuu, sumiuuu. Onde foi a moça? Onde foi? Onde foi a Disse que o Padre Henrique é comuna, tá corrido das fardas,
moça? Onde foi? Disse que a menstruação subiu na cabeça. Clotilde. Os fardas estão atrás dele aqui em Monturo.
Oxe. Psiuuu!!! Psiuuu!!! Sufoco, sumiuuu, sumiuuu.
CLOTILDE — COMUNA?
SINHÁ ISAURA — Sufoco é menina bordadeira.
CORO DE MONTURO — Psiuuuuuuuuu!!!!
CLOTILDE — Ô menina concentrada é Sufoco.
CLOTILDE — Mais ninguém diz, Zaura! Tão bem apes-
SINHÁ ISAURA — Não é de vestir calça não. soado e religioso o padre.

CLOTILDE — Ô menina concentrada é Sufoco. ANÃ — Passarinho solto é música no ar. Canta passarinho,
incendeia a floresta. Lança a chama oculta, o segredo de
SINHÁ ISAURA — Sufoco é boa moça. se devastar. Passarinho solto é música no ar. Canta passa-
rinho, incendeia a floresta. Lança a chama oculta, o segredo
CLOTILDE — Ô menina concentrada é Sufoco. de se devastar.
SINHÁ ISAURA — Sufoco foi criada na igreja.
Grita Isaura novamente.
CLOTILDE — Ô menina concentrada é Sufoco! Não quer
SINHÁ ISAURA — Eu botei o nome de Sufoco nos pés de
coisa com comunidade.
Nossa Senhora.
ANÃ — Passarinho solto é música no ar. Canta passa-
rinho, incendeia a floresta. Lança a chama oculta, o SINHÁ ISAURA E CLOTILDE — Ô meu Jesus, opera
segredo de se devastar. Passarinho solto é música no ar. Jesus!!
Canta passarinho, incendeia a floresta. Lança a chama
oculta, o segredo de se devastar. SINHÁ ISAURA — Quero saber, nessa cidade, quem soltou
minha filha no mundo? Quem foi? Sufoco está na minha
SINHÁ ISAURA — Disseram que ela saiu chorando rédea, comigo é rédea curta. Não tem passarinho voando.
de se acabar da igreja desde meio dia. E ninguém mais
viu, Clotilde! CORO DE MONTURO — Psiuuu!!! Psiuuu!!! Sufoco,
sumiuuu, sumiuuu. Onde foi a moça? Onde foi? Onde foi a
CLOTILDE — E o Padre? moça? Onde foi? Disse que a menstruação subiu na cabeça.
Oxe. Psiuuu!!! Psiuuu!!! Sufoco, sumiuuu, sumiuuu.

44 45
CLOTILDE — Tô com falta de ar. Ai, ai, ai. Tô com falta de Sons de maracatu rural intenso. O movimento do coro de
ar. Acode!!! Pela mãe do guarda. Acolhoada com um Padre
comuna. Misericórdia, onde Sufoco pode tá? Monturo leva-nos para a capital.

SINHÁ ISAURA — Hoje à noite tem baque no terreiro da


catimbozeira. Ela há de dá conta de minha Sufoco. Nem que
MOVIMENTO VIII
seja jogando aquelas pedras de magia preta e suja. A guerrilha

CLOTILDE — Por que mãe Bininha há de dá conta de Meio de tarde, Fátima avança para um ponto de encontro com
Sufoco, Zaura? a professora. Elas estão sempre em atenção ao que as circunda.

SINHÁ ISAURA — Por que Mãe Bininha é subversiva e faz PROFESSORA — Observou se foi seguida, Fátima? Este
ponto é o último que posso marcar. Pode parecer que não,
cabeça de gente fraca, arrasta para senzala, quem nasceu no
mas a rua é uma grande escuta.
berço do engenho. Macumba não é de Deus, Tide!
FÁTIMA — Nada de milicos, professora. Observei cada
ANÃ — Passarinho solto é música no ar. Canta passarinho, passo meu e me vi sempre só, seguindo um destino que
incendeia a floresta. Lança a chama oculta, o segredo de ainda não sei.
se devastar. Passarinho solto é música no ar. Canta passa-
rinho, incendeia a floresta. Lança a chama oculta, o segredo PROFESSORA — O que tanto deseja, Fátima?
de se devastar.
FÁTIMA — Precisava lhe encontrar, Professora! Aquilo que
Sinhá Isaura à Anã. aconteceu na universidade foi inconstitucional.

PROFESSORA — De que leis a verdade é constituída, não


SINHÁ ISAURA — Cala-te, pigmeu das profundas!!! Cala
é Fátima?
essa tua palavra aleijada e marginal.
FÁTIMA — Leis da liberdade de ser e estar no mundo,
CLOTILDE — Calma, Zaura. Podemos pedir ajuda a Professora!
Camilo e Estêvão. Eles entram no terreiro sem suspeita de
nós. PROFESSORA — Você se arrisca em estar aqui comigo.

SINHÁ ISAURA — Para alguma coisa serve um filósofo FÁTIMA — Estar com você é está comigo mesma,
comuna boa vida e um camponês delicado. Para alguma Professora!
coisa serve aqueles dois.
PROFESSORA — Sabe que apesar de ser jovem, entrou pra
CLOTILDE — Para alguma coisa serve! lista dos fardas ao me defender, não é?

46 47
FÁTIMA — Entrei para lista dos fardas justamente por que PROFESSORA — Como disse, estamos na lista. Mas se
sou jovem, professora. Ser jovem é ter a liberdade como quer agir mais para justificar sua prisão tenho uma missão
princípio e o mundo como o pulso da vida. que muito diz de você.

PROFESSORA — Pois bem, além de estudante de direito FÁTIMA — Claro! Como posso ajudar?
também quer ser poeta?
PROFESSORA — Existe um padre refugiado de sua terra.
FÁTIMA — Não sei se sou capaz de poetizar como você. Chama-se Henrique.
Tenho lido muitas coisas sobre isso.
FÁTIMA — Padre Henrique, sim!
PROFESSORA — E nunca tentou?

FÁTIMA — Nunca. PROFESSORA — Comuna de alta periculosidade. (Sorri)


Está escondido num aparelho aqui perto. Ele tem feito
PROFESSORA — Por sua palavra aguda, vê-se que já muitas ações contra os milicos, pregando em sua igreja
passou dos simples versinhos para o namorado. em Monturo, mas foi advertido e agora está fugido aqui
na República. Dizem que em Monturo engravidou uma
FÁTIMA — Não tenho namorado. Tenho um amor na mulher, precisamos saber quem é esta mulher, por que ela
realidade. Camilo. Ele está em Monturo. Ontem sonhei que também precisa ser protegida.
carregava um filho dele.
FÁTIMA — Uma mulher?
PROFESSORA — Ter um filho e um amor são atos auda-
ciosos. É preciso ter muita coragem para se ter um filho, um PROFESSORA — Precisa saber quem é! E precisamos
amor, ser poeta. Temos de desvendar e dar a conhecer os tirar o padre Henrique da capital hoje à noite. (Entrega um
nossos segredos mais íntimos. pequeno papel à Fátima) Aqui está sua missão! Queime
depois de ler!
FÁTIMA — Mas não sei se quero ser poeta, nem mãe...
Saem Fátima e a Professora aos sons militares. A ação se
PROFESSORA — O que veio fazer aqui então?
desloca para o Guitel. Lá está Irene e o Soldado Uchôa, que
FÁTIMA — A senhora sabe. Eu vim me juntar à senhora a interroga.
com todos os sonhos aqui comigo. Quero saber de tudo e,
especialmente, daquela história das prisões. Pessoas foram SOLDADO UCHÔA — Cadê a sua pareceira?
presas na semana passada. A senhora sabe, uns estudantes,
também uns operários, fala-se de mais gente lá do norte. IRENE — Não tenho pareceira. Sou modista e estou aqui
fazendo o trabalho pra fora.

48 49
SOLDADO UCHÔA — A tal Fátima de Monturo mora Fátima avança para a amiga no guitel.
aqui, não é?
FÁTIMA — Irene, preciso ir embora! Uma missão cantada
IRENE — Foi para a universidade. pela Professora.
SOLDADO UCHÔA — Está fora, não é? Tô sabendo! IRENE — Fátima, o soldado acabou de sair. Levou descon-
Tenho seguido a moça desobediente. Ela e a tal Professora. fiança de sua parceria com a Professora no caso de um Padre.
Mas hoje perdi o rasto das duas. A Professora tá se metendo
com aquele Padre comuna e arrastando seguidores, não é? FÁTIMA — Padre Henrique, de Monturo.
Mas, você deve saber delas.
IRENE — Padre Henrique?
IRENE — Fátima é gente decente, deve está na universida-
de, soldado! Fátima é minha irmã de terra e infância. FÁTIMA — Ele precisa sair da capital. Está conosco na luta.
SOLDADO UCHÔA — Pois devia dá conselho à sua irmã IRENE — Não estou na luta com vocês, Fátima! Não
que não se mede força com ordem superior. Ela tá de brin- concordo com o que está acontecendo, mas não estou na
cadeira! Quando eu pegar no desrespeito, levo pro Capitão luta.
Milico e o interrogatório é muito fácil de fazer. A gente pega
o animal e dá porrada até dizer. Porrada e dinheiro só não FÁTIMA — Irene, se você é capaz de tremer de indignação
convencem se for pouco. cada vez que acontece injustiça no mundo!

IRENE — Deixe Fátima em paz, soldado! Ela é de paz. CORO DE ESTUDANTES — Você está na luta!
SOLDADO UCHÔA — O negócio aqui é na nhanha, IRENE — Sonho com outros caminhos, Fátima! Sou costu-
moça!!! Não gosto de matar não! Gosto de vê gente resistin- reira e os vestidos meus confidentes. Desde menina guardo
do. (Silêncio entre os dois) Você que é de costura, sabe tecer, isso. Vestia calunga de feira. Você sabe o que é isso? Costura?
não é? Pois costure a boca de sua irmã, não alinhave não.
Costure! Pois vou no rasto atrás e esteja dito! FÁTIMA — Sei o que é costura sim. Costura é ato e sendo
ato, é princípio de transformação. Irene, tem um monte de
Sai o Soldado. Irene se agarra aos panos. Depõe. gente dizendo o que devemos fazer, cães sedentos de sangue.
Brutos que reprimem a poesia do mundo. A injustiça é
IRENE — Agulhas e linhas e bocas caladas. Isso eles que- humana, mais humana ainda é a luta contra a injustiça. Não
rem. Querem o avesso da beleza. A beleza que cultivo como podemos deixar que Padre Henrique sofra por pensar em
flores nos meus dedos e que tecem vestidos desejosos de feli- igualdade de direitos. Venha comigo! Ajude!
cidade. Não quero essa costura suja que silencia a mudança.

50 51
IRENE — Acho que a capital está aumentando minha CORO DE ESTUDANTES E IRENE
temperatura. Casar atrás
Revolução é mais.
FÁTIMA — Preciso ir. Ajude-me! Vamos!!! Fechamos o Não sou, noiva sou. Não sou
apartamento e vamos dar guarita ao Padre até o aeroporto, Anel, anel.
vamos nos disfarçar de suas irmãs mais jovens.

IRENE — Teatro isso! MOVIMENTO IX


FÁTIMA — Teatro! O curral velho

IRENE — Arrumemos o figurino então?!!! É início de noite, Estêvão e Camilo estão sozinhos no terreiro,
esperam Mãe Bininha. Camilo traz um violão em punho.
FÁTIMA — Sim!!!
CAMILO — Não sei por que me submeto aos caprichos da
Cantam ao mesmo passo que organizam o disfarce. tia de Fátima. Se ela queria saber de Sufoco, viesse ela mesma
falar com Mãe Bininha. Quando passo a vista em Tia Clotilde
CORO DE ESTUDANTES E IRENE e Sinhá Isaura posso ver nos olhos o amor frustrado.
Noiva de véu
ESTÊVÃO — Elas morrem de medo do terreiro, do mara-
A voar e eu catu, tem medo da macumbagem, dizem.
Noiva de véu
A voar sou eu CAMILO — Mulheres cheia de preconceitos e dogmas, ixi!!!
Casar atrás
Revolução é mais. ESTÊVÃO — Preconceitos são tantos, não é? De onde não
Não sou, noiva sou. Não sou sabemos, brota o medo do que é distante de nós.
Anel, anel.
Uma suspensão. Novo avanço do vulto de Gaba Machado,
FÁTIMA (Olha a veste vermelha entregue por Irene) — O que cheiro de alfazema. Atrás vem Anã levando materiais para o
você sente quando pensa no vermelho? baque noturno de Mãe Bininha.

ANÃ — Vinho vem. Vem vinho vem. Desejo. Vinho é


IRENE — Vermelho é a cor que somos por dentro.
desejo da cana. Vinho vem. Vem vinho vem. Fogo. Fogo é
desejo da terra.
Sorriem e se vestem para a missão.
Camilo e Estêvão percebem a passagem da Anã.

52 53
CAMILO — Parece que Mãe Bininha vai demorar! Esperamos? ESTÊVÃO — Seus olhos estão vermelhos feito fogo.

ESTÊVÃO — Aqui perto tem o curral velho, onde assento CAMILO — Tenho fascínio pelo fogo, acho que é a luz que
parte de minha terra. Queria há tempos te levar lá pra ver se me encanta, não é? O que tá na sombra se revela.
a terra miúda serve pra você assentar seu cinema. ESTÊVÃO — Quero trazer à luz um segredo, Milo!
CAMILO — Tá brincando, Têva? Você vai me dá sua terra? CAMILO — Não sabia que tínhamos segredo um com o outro.
ESTÊVÃO — A terra é o que tenho de mais meu. ESTÊVÃO — Quero te mostrar algo que preparo para você
há tempos. (Afasta-se)
CAMILO — O Cine será nosso então!!! Seremos sócios!!!
Vamos e lá podemos brindar com vinho nossa parceria!!! E CORO DE MONTURO canta
já voltamos no terreiro. Guardo todo fogo em mim
ESTÊVÃO — Com vinho! Brindamos com vinho!!! CAMILO — Posso ir com você? Algo sobre esta terra boa?
A Anã passa de volta. ESTÊVÃO — Algo sobre a terra, sim. Ma, espera e toca. Já
venho.
ANÃ — Vinho vem. Vem vinho vem. Desejo. Vinho é
desejo da cana. Vinho vem. Vem vinho vem. Fogo. Fogo é CORO DE MONTURO canta
desejo da terra. Para quando eu precisar.
Eles se afastam indo ao curral velho. A Anã segue os dois sem CAMILO — Quer mais vinho?
ser vista, observa-os sempre. Uma meia luz. Camilo e Estêvão
bebem. O primeiro lança-se ao violão. Canta enquanto o ESTÊVÃO — Vinho vai ser o veneno que aplicarei na veia
segundo acende uma pequena fogueira enebriado. Ao fundo de meu desejo, Camilo.
ouve-se o início do toque de Mãe Bininha.
CORO DE MONTURO canta
CAMILO canta Para quando for queimar meu dia.
La brasa ya no me quema
El fuego no me derrite ESTÊVÃO — Meu desejo se transforma como vinho.
La chispa no me hace llorar...
CORO DE MONTURO canta
CAMILO (Sorri) — Acho que tô ficando meio bêbado, La brasa ya no me quema
zumbizado até. El fuego no me derrite

54 55
La chispa no me hace llorar... CORO DE MONTURO fala e canta
Guardo todo el fuego en mi Puta velha e gorda. Puta. Puta velha e gorda. Puta! De tudo
Para cuando me haga falta que já se foi, puta é assombração mais temida. De tudo que
Para cuando empiece a arder mi dia já se foi, puta é assombração mais temida.

ANÃ — A coluna serpenteou. É Gaba!!! Quando lua Estêvão pega uma faca.
engorda, ele é lua. Eu tô vendo tudo!
ANÃ — A coluna serpenteou. É Gaba!!! Quando lua
Sente-se um cheiro de alfazema. Estêvão se banha no engorda, ele é lua. Eu tô vendo tudo!
extremo oposto e vai a Camilo vestido de mulher. A música
do terreiro aumenta. CAMILO — Estêvão! Pare com isso!

ESTÊVÃO — Yo te quiero mucho. Mucho más que trés CORO DE MONTURO fala e canta
lunas atrás. Puta velha e gorda. Puta. Puta velha e gorda. Puta! De tudo
que já se foi, puta é assombração mais temida. De tudo que
já se foi, puta é assombração mais temida.
CAMILO — Que é isso, Têva?
ESTÊVÃO — Meu corpo incendeia, Camilo!
ESTÊVÃO — Yo te quiero mucho. Mucho más que trés lunas
atrás. Camilo avança com o fogo novamente.

CAMILO — Que isso? Vamo atrás de Mãe Bininha, Sufoco CAMILO — Está me desconhecendo, cabra?...
tá na rua, Têva!
ESTÊVÃO — Acabou aqui a ave Maria. Eu sou como uma
ANÃ — A coluna serpenteou. É Gaba!!! Quando lua deusa do prazer. Comigo não tem fastio. Te conheço mais
engorda, ele é lua. Eu tô vendo tudo! agora. Se não te tenho, te sangro!

ESTÊVÃO — Sou puta e seu amor me sangra. ANÃ — Queima, queima, queima!

ANÃ — A coluna serpenteou. É Gaba!!! Quando lua Estêvão enfia a faca no peito de Camilo, que cai.
engorda, ele é lua. Eu tô vendo tudo!
ESTÊVÃO (Respira fundo, atônito) — O que fiz com as mãos
forjadas no ventre de minha mãe? Meu amor fervia por ele,
Camilo solta o violão e avança com o fogo pra cima de Estêvão.
eu me ergui e me abri para o meu amor, as minhas mãos
gotejavam de sangue. O sangue escorrendo entre os dedos
CAMILO — Você tá bêbado, Têva! Pare com isso!

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sobre as minhas mãos. (Olha o amigo morto. Chora). Aqui SUFOCO — O padre me tomou, Mãe! Suas palavras, suas
sobre a terra do teu corpo, inauguro teu cinema. ideias e sua liberdade encontraram caminho no meu ventre
e lá fez morada de semente.
ANÃ — Queimou! Queimou!
MÃE BININHA — Vi nas pedras, fia!
A luz morre.
Mãe Bininha canta e sopra nos ouvidos de Sufoco.
MOVIMENTO X
SUFOCO — Não sei se quero esse filho, não!!!
O Cine Monturo
MÃE BININHA — Esse fio vai nascer, Sufoco! Vai ser já
Total escuridão. Cenas da inauguração do Cine Monturo são já, adiantando o tempo. Não te avexe o coração que natu-
projetadas, como num sonho. O sonho de Camilo submerso reza proverá.
nas paredes de monturo. As imagens continuam sendo proje-
tadas, enquanto que a ação se desloca para Mãe Bininha no Mãe Bininha começa todo o ritual de limpeza da moça.
preparo de um ritual. Sufoco avança, corre, corre, corre! À No meio do rito, Sufoco é tomada por Gaba. Gargalhadas
frente do terreiro cai e sussurra para à Mãe. e sentido de liberdade tomam o terreiro. Enquanto Mãe
Bininha realiza o rito, começam a ser projetadas imagens
SUFOCO — Me acode, minha mãe! Me acode!!!!!! Me da prisão da Professora e do seu interrogatório pelo Milico
acode, minha mãe!!! Me acode!!!! e o soldado Uchôa. Ao fim da ação, Sufoco acalma-se e, em
contraposição, Anã chega esbaforida. Para a projeção do
Sufoco Avança. cinema.

MÃE BININHA — Estava te esperando, fia. Vi nas pedras. ANÃ — Gaba!!! Gaba!!! A coluna serpenteou. Vi tudo. A lua
engordou e ele foi lua, Mãe!
SUFOCO — Eu estava que nem represa, Mãe! Os olhos
sempre nadando n’água. Não agüentava mais o desejo de MÃE BININHA — Estêvão!!!
sair. Um fogo dentro, tomando corpo e pensamento. Sinhá
Isaura tá atrás de mim, entranhada na minha pele. Dê-me ANÃ — Gaba!!! Gaba!!! A coluna serpenteou. Vi tudo. A lua
acolhida, mãe! Aqui ela não entra. engordou e ele foi lua, Mãe!

MÃE BININHA — Calma, fia. Teu corpo é lua. Tá cres- MÃE BININHA — Traga o moço pra cá, fia! Rápido!!!
cendo. Chegue pra dentro, aqui é teu lugar.
Anã sai em disparada.

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MÃE BININHA — Vi também nas pedras que tem farda bichos corridas dos milicos. A Professora foi presa e Padre
avançando para Monturo. Vamos apressar a limpeza do Henrique levado do aeroporto para o interrogatório. Fátima
terreiro. A rainha está voltando e vai ter coroação. foi atingida. Terror na universidade, nas praças, nos clubes
que frequento, tudo pegando fogo, do fogo mais quente e
triste. Não passei na casa de minha tia. Ela tá com Sinhá
MOVIMENTO XI Isaura preparando a casa para receber os fardas.
O aparelho
MÃE BININHA — Coloio. Tudo de coloio. Menos os
Um canto, um toque. Mãe Bininha começa a limpeza. santos. Os santos têm acordo com céu, minha fia. O céu tem
o fogo branco e puro que envolve os pássaros sem derreter
MÃE BININHA Canta suas asas. Vamos nos preparar para vinda dos milicos. O
Essa casa já foi defumada, o anjo Miguel que a defumou terreiro é proteção. Vamos limpar. Fátima tem coroação. Há
Essa casa já foi defumada, o anjo Miguel que a defumou de melhorar.
E as demandas que tiver nesta casa o anjo Miguel com a
IRENE — Fátima está grávida, mãe! Me disse que tem
espada levou.
pedaço de Camilo no ventre.
E as demandas que tiver nesta casa o anjo Miguel com a
espada levou. Sufoco levanta-se ao ouvir.
Casa de Deus e de Nossa Senhora, o inimigo aqui não entra
e se entrar eu mando embora. SUFOCO — Também carrego um pássaro em minha
barriga. Pássaro de fogo.
Mãe Bininha fala enquanto limpa. Sufoco descansa.
Irene e Sufoco se olham.
MÃE BININHA — Minha casa é tudo limpo, tudo branco.
Aqui é casa de santo. Minha casa é tudo limpo, tudo branco. IRENE — Sufoco?!!! És a mãe do filho de Padre Henrique?
Aqui é casa de santo. Por isso viemos até aqui. Para te encontrar.

Irene avança e traz Fátima ferida. MÃE BININHA — Carregam filhos da liberdade.

IRENE — Mãe, acode, mãe! Elas cantam juntas enquanto cuidam de Fátima. Um rito
de cura.
A Mãe traz Fátima e Irene para dentro. Limpa as feridas da
moça. CORO DE MULHERES
Moreninha se eu te pedisse de modo que ninguém visse,
IRENE — Mãe Bininha, foi tudo como num pesadelo. de modo que ninguém visse, um beijo tu me negavas.
Viemos da capital na boleia de caminhão como dois Moreninha se eu te pedisse, de modo que ninguém visse, um

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beijo tu me negavas ou davas ou davas. Moreninha se eu E as demandas que tiver nesta casa o anjo Miguel com a
visse o mundo da janela dos teus olhos, da janela dos teus espada levou.
olhos o mundo seria um doce. Moreninha se visse o mundo E as demandas que tiver nesta casa o anjo Miguel com a
da janela dos teus olhos, o mundo seria um doce se fosse, se espada levou.
fosse. Moreninha se te encontrasse na varanda costurando, Casa de Deus e de Nossa Senhora, o inimigo aqui não entra
na varanda costurando e me recebesse sorrindo. Moreninha e se entrar eu mando embora.
se eu te encontrasse na varanda costurando e me recebesse
sorrindo, que lindo, que lindo. A música de coroação começa. Cantam Irene, Sufoco, Mãe
Bininha, Estêvão tomado por Gaba e Anã.
Avança a Anã com Estêvão agarrado à sua mão.
CORO DE MULHERES
ANÃ — Mãe, ele estava tomado por Gaba, tomado! Tirou a Então se coroou
vida de Camilo. A dama do fogo
A filha de Xangô
ESTÊVÃO (Transtornado) — O que fiz com as mãos forjadas
no ventre de minha mãe? Foi o desejo. Foi o desejo ardendo.
Levantam Fátima desacordada e a cobrem com um manto
Ardendo.
vermelho.
MÃE BININHA — Acalma fio. Aqui juntamos segregados
de Monturo, aqueles que o fogo de Gaba tocou. Não temos MOVIMENTO XIII
tempo para julgar, como os orixás não julgam. Matam e
morrem, sentem ciúmes e amam. Sentem desejo e buscam A Prisão
justiça. Vamos limpar o terreiro para coroação da resis-
tência. Fátima será coroada. Um corte, intenso barulho de metais. Avança o Milico. Todas
se retraem.
MOVIMENTO XII ANÃ — Eles estão chegando. As fardas avançam. As fardas
A Coroação avançam.

O terreiro é preparado com incensos, defumadores. MILICO — Sai da frente, tôco de amarrar jegue. Quero
entrar aí neste antro de miséria. Abra xangozeira!
CORO DE MULHERES canta
Essa casa já foi defumada, o anjo Miguel que defumou MÃE BININHA — Cuida que ela é da comunidade, minha
Essa casa já foi defumada, o anjo Miguel que defumou afilhada, senhor!

62 63
MILICO — Tô ligando não! Quero entrar aí pra levar a MULHER 3 — Yara de Fátima.
foragida para interrogatório.
MULHER 4 — Zuleika de Fátima.
MÃE BININHA — Aqui só recebo pessoas com problemas
espirituais. MULHER 5 — Fátima Aparecida.

MILICO — Problema de espírito tenho não, sou espírito bom. Aos poucos elas tiram os capuzes todas e vão repetindo os
Tenho notícias desse terreiro há tempo demais e não fiz muito nomes. Grande estrondo. Vozes de homens. Vozes de prisão.
do que deveria fazer. Agora foi longe demais, além de macum- Escuridão. Aos poucos, em cada tela do cinema é projetada
bagem, virou aparelho para acoitar subversivo. Quero Fátima, uma mulher num pau de arara. Gritos. Metais. Choques
a de Monturo. Ela está tocaiada aí, que eu sei. Aprendeu a elétricos. Silêncio. Nova escuridão.
tocaiar-se com aquela Professora. Mas a Professora está bem
agora, levamos para um passeio numa ilha, para tirar umas FÁTIMA / IRENE / SUFOCO — Eu coroada, vestida com a
férias, escrever poesias sobre tubarões talvez. (Ri) saia, acarinho e nino o meu filho no ventre. Dorme cravo meu.
Dorme. Suporto com a força de Gaba. Com sua força em mim.
MÃE BININHA — Venha outro momento quando a gente E o contato com o fogo vai alterando aos poucos os elementos.
E o contato com o fogo vai alterando aos poucos os elementos.
não tiver de obrigação, senhor!
E o contato com o fogo vai alterando aos poucos os elementos.
MILICO — Me chame de Capitão, xangozeira! Capitão! Eu
não tenho medo de credo não viu? O Padreco desse fim de
mundo foi rezar missa no céu, se quer saber. Subversivo
não aguento.

O Milico avança e entra no terreiro. Encontra todas as


mulheres encapuzadas.

MILICO — Mas é brincadeira mesmo. Palhaçada!


Esconde esconde. é? Onde está Fátima, de Monturo?
Quem aí é Fátima?

MULHER 1 — Fátima Maria.

MULHER 2 — Joana de Fátima.

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EPÍLOGO
O fogo de monturo

MÃE BININHA (Canta)


E tudo é tão lança que reabre o corte, fundo que não se vê.
Largo que num dói mais, lívido que nem fingir consegue
Isso não tem fim. Eu, trem. Eu trem. Eu trem.

MÃE BININHA (Fala) — Passam-se os anos, e o véu do


esquecimento, baixando sobre as coisas, tudo apaga, fica
o fogo por dentro, o monturo. Fogo na pátria, no terreiro,
na terra, na saudade que o coração da mãe esmaga. O que
acalenta e acalma são as filhas, os filhos, as filhas, os filhos... QUARANÇA
CORO DE MULHERES canta Escrita durante o processo de criação do espetáculo
A brasa não queima a pele homônimo, a peça foi subsidiada pela 4ª Edição do Prêmio Zé
O fogo não me derrete Renato de apoio à produção e desenvolvimento da atividade
Faísca não faz chorar teatral para a cidade de São Paulo e estreou no Espaço Cultural
Guardo todo fogo em mim d’A Próxima Companhia, numa parceria entre A Próxima
Para quando eu precisar Companhia e a Unaluna - Pesquisa e Criação em Arte.
Para quando for queimar meu dia
La brasa ya no me quema
El fuego no me derrite
La chispa no me hace llorar
Guardo todo el fuego en mi
Para cuando me haga falta
Para cuando empiece a arder Mi dia
Fogo que se espraia

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FICHA TÉCNICA ILUMINAÇÃO: Ari Nagô

DRAMATURGIA – ENCENAÇÃO — DIREÇÃO: Luciana PREPARAÇÃO CORPORAL: Gabriel Küster


Lyra
OFICINEIROS: Clarissa Neder (tecelagem), Alessandra
ASSISTENTE DE DIREÇÃO: Stella Garcia Leão (musicalidade), Antônio Júnior Siqueira (manipulação
de bonecos)
ATRIZES-CRIADORAS: Juliana Oliveira, Lívia Lisbôa
e Paula Praia COSTUREIRA: Zezé de Castro

VOZES EM OFF: Walter Breda (Sô Déo), Caio Marinho, CENOTÉCNICO: Zé Valdir Albuquerque
Gabriel  Küster, Kerson Formis,  Márcio Marconato
(Jagunçaria) FOTOS DO BLOG: Adriana Nogueira

DIREÇÃO MUSICAL: Alessandra Leão DESIGN GRÁFICO: Rafael Victor

PRODUÇÃO MUSICAL: Missionário José PRODUÇÃO: A Próxima Companhia

MÚSICAS: Canto do Quarador: Luciana Lyra (música e EQUIPE TÉCNICA DE SOM E LUZ: Caio Franzolin,
letra); A  morte chega: Alessandra Leão (música e letra); Caio Marinho e Gabriel Kuster.
Coco de Vó Zana: Luciana Lyra/Domínio público (música e
letra), Alessandra Leão (voz e programação), Missionário NÚCLEO ARTÍSTICO A PRÓXIMA COMPANHIA:
José (Sampler); Deslembrei: Luciana Lyra (música e letra) Caio Franzolin, Caio  Marinho, Gabriel Küster, Juliana
Isaar (voz) e Alessandra Leão (programação);  Redonda: Oliveira e Paula Praia.
Luciana Lyra(música e letra), Lívia Mattos (sanfona e
voz) e Alessandra Leão (programação); Alerêda de Sô Déo: ATRIZ COLABORADORA NO PROCESSO DE
Luciana Lyra (Letra e música); Calunga: Luciana Lyra CRIAÇÃO: Julia Pires
(música e letra), Juçara Marçal e Alessandra Leão (Vozes)
e Alessandra Leão (programação); Cavalgada: Missionário REALIZAÇÃO: A Próxima Companhia e Unaluna
José (programação). – Pesquisa e Criação em Arte

CENÁRIO E FIGURINOS: Marco Lima

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PREFÁCIO tomada por um deus macho. Lyra cria a figura do deus
-macho, Sô Déo, o próprio Diabo, que instaura em Alereda
Quarança Fabrica poesia mítica sobre a ordem simbólica. No patriarcado instaurado por Sô
uma sociedade matriarcal Déo, os rapazes aliciados corporificam a brutalidade dos
jagunços para transformar a cidade, que antes conhecia
as estações da chuva e da seca, do inverno e floração, do
Em 2016, Ano do Macaco de Fogo, Luciana Lyra me amor e do descanso, dos jogos de sedução entre meninas
disse que urdia um novo projeto chamado Quarança. e meninos, em um único tempo... tempo de defloração,
Enquanto Lyra me contava seu processo de escrita drama- mutilação e morte de jovens mulheres.
túrgica eu a via entre fusos e teares a fabricar poesia mítica Mas mesmo neste cenário de devastação algumas
sobre uma sociedade matriarcal na verje da extinção. mulheres, como as sementes do cerrado, resistem às mais
As linhas mestras da poeta-tecelã vinham de diferentes castigantes secas. Contra o fogo destruidor de Sô Déo e sua
novelos de histórias reais, ficcionais, f(r)iccionais. Lyra jagunçaria, donzelas, meninas e velhas tecem resistências.
criava uma peça teatral que trançava um grito-denúncia Em Quarança, assim como em suas peças anteriores Fogo
contra o feminicídio no Brasil, para contar as histórias de de Monturo e Guerreiras, Lyra coloca as mulheres como as
mulheres que lutaram contra seus algozes. protagonistas de seus próprios destinos. No teatro femi-
Quarança é invenção alegórica, neste texto não há esta- nista, as mulheres deixam de ser corpo-objeto a ser barga-
tísticas de estupro, não há citações dos terríveis casos de nhado pelos heróis e vilões, reis e príncipes, país-nação
assassinato de meninas, mulheres e travestis ocorridos no e país-invasor. A estrutura da narrativa do teatro femi-
nosso país nos últimos anos, nem é feita referência direta nista subverte a lógica patriarcal ao inscrever as persona-
às políticas que tornam o corpo feminino alvo da violência gens femininas como as únicas capazes de realizarem as
do estado. Lyra segue o caminho estabelecido por outras jornadas de resgate e libertação.
autoras contemporâneas que escreveram peças feministas em A heroína-feminista de Quarança é Rosa Ararim.
países como Inglaterra, Estados Unidos e Austrália, ao optar Criatura de Lyra, tecida de vários fios, Rosa é renda e
por uma estratégia brechtiana. A estrutura dramatúrgica de rede feita com fios de diferentes fusos... Diadorim, perso-
Quarança distancia espetactorxs ou leitorxs da identificação nagem de Grande Sertão Veredas, Sônia personagem
imediata com história e suas personagens, para conduzi-lxs a póstuma de Nelson Rodrigues, e a personalidade histórica
um espaço-tempo mítico e figuras f(r)iccionais. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa (1908-2011). Aracy,
O cenário é a paisagem árida e infértil de Alereda, uma segunda esposa de João Guimarães Rosa, foi funcio-
terra subjugada pelo masculino em sua mais violenta nária do Itamarati durante a Segunda Guerra Mundial e
forma. Esta cidade f(r)iccional testemunha o que o mitó- ficou conhecida como o “Anjo de Hamburgo” ao ajudar
logo estadunidense Joseph Campbell percebe como a dezenas de judeus a escaparem da perseguição nazista.
terceira fase do mitos de criação do mundo — quando Essa heroína da história dá o principal tom à Rosa, perso-
o feminino primordial, a deidade feminina é vencida e nagem de Lyra. Rosa Ararim é a heroína que amarra em

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nós, em rede, em renda as forças do feminino ancestral de
Alereda. São os cânticos e os rituais de libação das anciãs
Sá Nicinha, Sá Nione e Sá Niza que revelam à pequena
Rosa Ararim as histórias das meninas e mulheres mortas
pela Jagunçaria de Sô Déo. As três Pranteadeiras choram
e cuidam daquelas que já não mais vivem, velam seus
corpos com o zelo no quarador de Alereda, para que o sol
causticante purifique a alma de quem não teve tempo de
florescer. Rosa Ararim testemunha o extermínio de tudo
que é arquétipo feminino... água, floresta, pássaros, bichos,
brincadeiras, bonecas, rendas, mães, meninice, colo, leite,
meninas, afeto, memórias de uma avó...
Em 13 episódios, 13 Movimentos, acompanhamos a
jornada de Rosa Ararim da meninice acuada e violada à
tomada de decisão, do início da jornada à transformação do
ser e seu mais profundo resgate, o resgate do ser completo, Esse viver ninguém me tira.
masculino-feminino. A autolibertação de Rosa Ararim é Aracy Guimarães Rosa
também libertação dos estereótipos de gênero, do bina-
rismo normativo. A peça feminista de Lyra evoca as estra- Diadorim deixou de ser nome, virou sentimento meu.
tégias de sobrevivência quando se instaura o terror e exter- João Guimarães Rosa
mínio de populações. Mas Rosa Ararim não quer apenas
sobreviver no estado de exceção. Ela, assim como fez Joana
D’arc e Mulan, vai à guerra... e cuidado, ela aprendeu a lutar!

Maria Brígida de Miranda


Artista e Pesquisadora de Teatro Feminista
Professora Efetiva da graduação em Teatro e do Programa de
Pós-graduação em teatro da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC)

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FIGURAS MOVIMENTOS
ROSA ARARIM/JAGUNÇO ARARIM – A neta
ZANARARIM – A avó Prólogo – O Quarador
SÁ NICINHA – A pranteadeira Movimento I – A Deslembrança
SÁ NIONE – A pranteadeira Movimento II – A Menina
SÁ NIZA – A pranteadeira Movimento III – A Defloração
SÔ DÉO – O coxo Movimento IV – A Ferrete
VALDINHO – O jagunço desertor Movimento V – O Coxo
CORO DE REDEIRAS Movimento VI – O Disfarce
CORO DE JAGUNÇOS – JAGUNÇARIA TORTA Movimento VII – O Jagunço
MULHERES VIOLADAS (OFF) Movimento VIII – A Retirância
Movimento IX – Alereda de Sô Déo
Movimento X – Avó
ESPAÇOS F(R)ICCIONAIS Movimento XI – O Estio
Movimento XII – O Volteio
Alereda Movimento XIII – A Molhação
Arredores de Alereda Epílogo – Quarança

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PRÓLOGO Entra uma pranteadeira. Sá Nicinha. Ela carrega uma
rede com retalhos brancos e canta uma incelença. A
O Quarador mulher está num tempo diferente de Rosa, também em
outro espaço, o quarador, nos arredores de Alereda. Sá
Fim de noite em Alereda ocupada. Uma lua sorrindo ao Nicinha vela uma morta.
contrário, minguância inteira. Réstia de luz sobre uma
SÁ NICINHA
menina. Ela banha uma boneca dentro de uma bacia, ao seu Eh canto, eh canto, eh canto do quarador
lado um pequeno baú. A menina está num canto dos fundos Eh canto, eh canto, eh canto do quarador
de uma casa, o seu céu encoberto de arames farpados. Eh pranto sem fim do quarador
Eh pranto sem fim do quarador
ROSA — O quintal é o lugar que mais me interessa em toda Oh flor, Oh flor
essa casa. É sempre lugar onde se tem o mais íntimo, sabe? Que se vai no quarador
No quintal, eu brinco, farejo o meu rastro e nas águas da Oh flor, oh flor
memória, lavo as minhas pegadas, lavo para esquecer. Deixo Que se vai no quarador
tudo alvinho como avó ensinou. Mulher tem que estar limpa
ROSA — Canta para mim a cantiga que ninava meu sono
e botar na boca o batom, mas não é para homem não, é para cheio de olhos e inquietude. Canta aquela cantiga, não
o mundo, para correr mundo. Se encontrar homem bom, aquela que faz saudade, mas aquela de escutar o de dentro.
diz avó, aí é chão à frente e num mesmo passo, num mesmo Traz teus olhos sobre os meus, mãe! Expulsa o diabo que
pé e os olhos na mesma direção dos desejos. (Distanciada) ronda Alereda e meus pensamentos. Dá-me um beijo
A avó de Rosinha teve homem de significado que se foi cedo aqui na fronte dolorida que ela arde em febre e saudade.
com a morte. Há tempos. Ele deixou a casa e o corpo de Diz baixinho bem baixinho assim: Rosinha, não tema a
menina para cuidar, a mãe de Rosinha. (Um tempo) Minha jornada, descansa, lava-te e caminha, tua mãe não dorme,
avó sempre gostou de se enfeitar, ainda hoje viva e deslem- por que quem te guia, nem dorme, nem descansa. (Fita o
céu) Espanta este espaço que me prende, mãe. Espanta o
brada do mundo, a avó é linda de fechar comércio. Linda
infinito de estrelas que me chama.
de tudo é minha avó. Minha mãe diz que passo o batom
de um jeitinho avó, fazendo uma cova funda no vermelho Ouve-se mais forte o canto de Sá Nicinha. Ela começa um
intenso. (Mostra o batom,  numa lembrança) Minha mãe. rito sobre a morta no quarador. Avista-se ao fundo outra
(Um grito) Mãe, mãe, mãe! (Distanciada) A mãe de Rosa pranteadeira, Sá Nione. Cantam juntas.
virou semente. Mãe, tenho tanto medo da vida e da estrada
que se apresenta depois desse nascimento meu. Canta para SÁ NICINHA
mim, minha mãe! Eh canto, eh canto, eh canto do quarador
Eh canto, eh canto, eh canto do quarador
Eh pranto sem fim do quarador

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Eh pranto sem fim do quarador Rosa fala.
Oh flor, Oh flor
Que se vai no quarador ROSA — Mãe, eu te vi no sonho, atravessando o portal no
Oh flor, oh flor teu cavalo com o corpo ainda quente. Te vi leve descendo.
Que se vai no quarador E ele, o coxo, no encalço como um cão. E ela, a morte,
pescando-te com seu anzol. Você é um peixe, sabia, mãe?
Sá Nicinha avança. Se ele é teu açoite, ela, a morte, um borbulho nas águas frias.
(Distanciada) Rosa viu sua mãe em sonho. (Volta) Mãe! Te
SÁ NICINHA — Mais uma que não se demorou. Outra vi atravessando o portal e na fumaça confundi teu rosto,
mais. Aqui em Alereda, ela tem vindo sem demora sobre achei que era o meu, era? (Retira uma flor de um pequeno
a hora de muitas mulheres. Mas a morte é assim toma baú) Olha, mãezinha, guardei uma flor derradeira para
sem piedade a alma, tomou posse desta como fazem os você, um tesouro, o nosso segredo, a cicatriz. (Despetala a
homens, tomam posse. A morte é assim. A morte é irmã e flor) Bem me quer, mal me quer...
mulher. A morte é ao contrário.
Rosa sai. As pranteadeiras falam à morta.
Avança Sá Nione. Fala à morta.
SÁ NICINHA — Contigo vou morrendo também, como
SÁ NIONE — A mulher caminhou a chama dos caminhos, morri com as outras. (Suspendendo suavemente a morta)
atravessou o sol esturricado de Alereda. E foi tomada, ferida Chegue filha, dobre-se para montaria, por que tu agora
pelo malassombro, pela ronda de Alereda. A ronda macho, é pesada. A morte vai te entupir a boca, como de tantas
jagunça e torta. (À morte) Morte, amiga nossa, deixa ela outras. (Ninando a morta) A morte é mulher, mas o morrer
conosco um tantinho mais, já levaste tantas nossas. é macho, o matar.
SÁ NIONE E SÁ NICINHA — Uma extinção que vivemos. SÁ NIONE — Mulher tu sabe montar a morte? Ainda que
seja sua? Ainda que não seja seu querer?
SÁ NIONE — Tem coração que aguenta não. Mas vamos
quarar mais uma, Nicinha, que essa é a lida nossa. (Retira SÁ NICINHA — Ela sabe, Sá Nione! Ela viu as outras indo
mortalhas/mulheres e estende cada uma nos arames farpados uma a uma sob os desmandos do maldito e dos trinta que o
que encobrem o céu) Maria, Josefa, Neusa, Antônia, Diva, seguem feito cachorros sarnentos.
Fátima, Alice, Joana...
SÁ NIONE — Nós sabemos também das partidas, Sá
Rosa começa a atravessar o quintal com sua boneca e um Nicinha irmã minha. Chegue para nós, chegue, menina
pequeno baú. Continua em outros tempo e espaço. Cantam morta! (Olha a morta) Espia Nicinha, parece até sorri
as mulheres.

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agora depois de tanto sofrer. Chegue, vamos te dar o SÁ NICINHA E SÁ NIONE — O sol.
último acalanto. O colo quente que você perdeu, inalando
o gás do torto. SÁ NIZA — A morte diariamente se avizinha e entra na
nossa casa.
Elas embalam a morta em incelença.
SÁ NICINHA E SÁ NIONE — A morte.
SÁ NICINHA E SÁ NIONE
A morte chega SÁ NIZA — Mulheres escoando para terra diariamente,
e finda o dia sementeiras.
O sol se deita
Renova a vida SÁ NICINHA — Precisamos de vida. Avançar na vida, Sá
E a poça que te lava Niza, irmã minha.
Não é feita só de lágrima
E a poça que te lava SÁ NIZA E SÁ NIONE — A morte.
Não é feita só de lágrima
SÁ NICINHA — A morte diariamente se avizinha e entra
Entra Sá Niza, a mais velha das pranteadeiras. Ela varre o na nossa casa.
espaço, enquanto o sol alteia no céu. Cessa a música.
SÁ NIONE — Precisamos de vida. Avançar na vida.
SÁ NIZA — É tempo de quarança.

SÁ NICINHA E SÁ NIONE — É tempo. SÁ NICINHA E SÁ NIZA — O sol.

SÁ NIZA (Varre) — Alereda precisa de molhação mode a SÁ NIONE — Mulheres escoando para terra diariamente,
sujeira que fica esse lugar a cada morta que o sangue se esvai. sementeiras.

SÁ NICINHA E SÁ NIONE — Quantas, quantas, quantas!!! Um tempo.

SÁ NIZA — O torto e seus trinta jagunços hão de pagar por SÁ NICINHA — Viram? Viram espirrar do céu a poeira
todas que foram. vermelha? Vamos desenrolar o fio. Vai começar novamente.

PRANTEADEIRAS — O torto. O demo. Sô Déo. SÁ NIONE — Ouviram? Ouviram o pássaro negro de


agouro no bico? Vamos desenrolar o fio. Vai começar
SÁ NIZA — Sô Déo, o sol que incendeia Alereda. O matador novamente.
dos corpos d’água.

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SÁ NIZA — Sentiram? Sentiram o cheiro de carne quei- Refrão
mada ao sol? É outra que a morte veio buscar? Tem manga, no pé tem manga. Deixe cair
Madura, que alegria. Deixe cair
Ouve-se um berrante que se parece com os sinais de recolhi- Menina que nem vó Zana. Deixe cair
mento de um campo de concentração. Comia que se lambia. Deixe cair

SÁ NICINHA E SÁ NIONE — Outra. Refrão


Agora vó Zana é velha. Deixe cair
SÁ NICINHA — O sol alto demais. Deslembra de todos passos. Deixe cair
Chacoalha suas cadeiras. Deixe cair
SÁ NIONE — Secos os poços. De braços com seus retratos. Deixe cair
Refrão
PRANTEADEIRAS — Sem fim?
Avista-se uma velha com memória em franca desagregação.
Em silêncio, elas começam a retirar a morta ao amanhecer. Ela fala sozinha e de suas palavras pupulam imagens do
Um sol rasga o espaço. passado e do presente que se confundem. A velha habita a
varanda de uma casa, cultiva uma espera, abraçando um
antigo retrato e fitando o horizonte com olhos e cauda. Num
MOVIMENTO I canto estão redeiras, que fazem coro opositor à agonia saudosa
A Deslembrança da velha. Elas tecem.

Um coro de mulheres avança num canto de amanhecer, retiram ZANARARIM (Velha dança pequenino agarrada ao retrato)
as mortalhas de um varal e acomodam-nas numa bacia. Gosto de dançar até embaixo, dança é chacoalho do esque-
cimento. (Dança) Quantos anos eu tenho? Já tô perto de
REDEIRAS um centenário. Ara!! (Dança e gargalha deparando-se com o
Olha o cabo da vassoura, cai. Deixe cair retrato. pergunta às mulheres) Quem é essa aqui?
Olha o cabo da vassoura cai. Deixe cair
CORO DE REDEIRAS — É a filha, Dona Zana, sua filha!
Olha o cabo da vassoura cai
E nessa casa não se varre mais ZANARARIM — Tinha até deslembrado, pense!? Mas espia
No tempo que Zana era moça. Deixe cair o retrato. (Mostra o retrato às mulheres) É cuspida a seme-
Dançava que arritmia. Deixe cair lhança minha. Ela sou eu. Espia o nariz, a feição, o sorriso
Batia no chão de casa. Deixe cair preso, o peito insinuado de criança. É toda a minha menina,
No terreiro se ouvia. Deixe cair minha neta. Rosinha.

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CORO DE REDEIRAS — É a filha Dona Zana, sua filha! ZANARARIM — Corpo violado, morte matada, alma
descansa não.
ZANARARIM — Cadê ela? A filha? (Sempre ao horizonte)
CORO DE REDEIRAS — Tem que engolir a saliva e aceitar.
CORO DE REDEIRAS — Morreu. É sina de mulher.

ZANARARIM — Morreu? ZANARARIM — Não!!! Corpo violado, morte matada,


alma descansa não!!!
CORO DE REDEIRAS — Morreu, Dona Zana!
CORO DE REDEIRAS — Tem que engolir a saliva e aceitar.
ZANARARIM — É mentira, é mentira. (Olhando para as É sina de mulher.
mulheres) O que estão olhando? Deus meu, por que existem
tantos olhos no mundo? É mentira isso, é mentira. Não Repete o diálogo como um mantra. Pega outro retrato.
adianta, porque não acredito.
ZANARARIM — Quem é essa aqui?
PRIMEIRA REDEIRA — Foi enterrada de branco como
as outras. CORO DE REDEIRAS — É a neta, Dona Zana, sua neta!

SEGUNDA REDEIRA — Roupa alvinha, alvinha, quarada ZANARARIM — Tinha até deslembrado, pense!? Mas
ao sol. espia o retrato. (Mostra o retrato às mulheres) É toda a minha
menina, minha filha. Mãe de Rosinha.
TERCEIRA REDEIRA — As pranteadeiras quararam a
filha até acalmar o sofrimento da morte matada. CORO DE REDEIRAS — É Rosinha, Dona Zana, sua neta!

QUARTA REDEIRA — Ela foi ficando bonita, Dona Zana, ZANARARIM — Cadê ela? A neta? (Sempre ao horizonte)
parecendo noiva.
CORO DE REDEIRAS — Dizem que morreu.
CORO DE REDEIRAS — Faz tempo longo, Dona Zana.
ZANARARIM — Rosinha... (Rasto de lembrança) Quando
ZANARARIM — Isso de morte, tempo não cura não. eu lembrava das minhas pisadas e dos meus passos, eu sabia
Tamanho que for. feitiçar. Costurava uns tecidos e fazia as bonecas de todas
meninas de Alereda. Cada uma tinha sua boneca pra brincar.
CORO DE REDEIRAS — Quem morre, sossega. Tudo eu que fazia com tecido, linha e amor de tanta cor,

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que nem sei mais. Boneca é duplo de menina, é o de dentro ZANARARIM — Faça gentileza de leitura.
delas, sabia? Toda boneca é feitiçada por um tanto de velha
antes de mim. Primeira vez que Rosinha viu boneca foi num PRIMEIRA REDEIRA / ROSA — ‘Minha avó, desculpe
passeio de feira. Uma mão sua na minha, a outra no balaio pela saudade que lhe faço sentir. Também sinto tanto chega
de calunga de Sá Maria Negaflor. Um balaio de calunga é um dói. Conheci uma lagoa enorme, um mundo de água sem
mar revolto e vivo escoando nas mãos de menina. fim. Essa terra que venho atravessando tem muita água.
Pouco se parece com a secura de Alereda. Perto de muita
CORO DE REDEIRAS — Feiticeira, Dona Zana? água tudo é feliz.

ZANARARIM — Sou mais não. Hoje não quero que nasça SEGUNDA REDEIRA / ROSA — Tem essa aqui também,
mais menina aqui em Alereda. Não pode nascer. Não pode. Dona Zana. De outro tempo chegado: ‘Minha avó, a jornada
Não faço mais feitiço, nem boneca. Não pode nascer. Não se apresentou para mim pela força. Enquanto aquele coxo
pode. Sô Déo é senhô! Alereda arde em febre. Mataram, vivesse entre nós, simples tanto eu não vivia. Por isso fugi,
mataram, mataram Alice, filha de Mazé. Mataram, mataram mas não sei o quanto vou resistir na tortuosa travessia.
Joana, filha de Teresinha. Mataram, mataram... São trinta Muitas não aguentaram...
jagunço com Sô Déo. Estão violando, Rosinha!!! Sai da
rua, Rosinha!!! Se esconda no quintal!!! Rosinha!!! Chegue CORO DE REDEIRAS / ROSA — Com amor inteiro e
Rosinha, chegue pra dentro!!! Tudo está tão anuveado no saudade que não estanca, Rosinha.
que ouço. Caduquice! Caduquice, Zanararim! Caduquice!
Na minha família nunca teve caso de doidice, sempre tive ZANARARIM — Isso é tudo palavra antiga.
medo de gente doida.
CORO DE REDEIRAS — Rosinha nunca mais escreveu.
CORO DE REDEIRAS — Doida!!! Dizem que morreu.

ZANARARIM — Todo mundo é doido. As pessoas todas, ZANARARIM — Tem beijo de batom na cartinha?
por isso que carece rezar pra desendoidecer. Reza é que cura
da loucura, tenho a fé na reza, carrego no peito o escapulário CORO DE REDEIRAS — Beijo de batom.
bento pelo céu. (Mostra o escapulário) Este protegia o pescoço
da minha filha. Tenho fé que Rosinha vai voltar. Ei!!? Vocês ZANARARIM — Rosinha sempre manda beijo de batom.
estão sentindo cheiro de flor? É Rosinha que voltou? Chegou Rosinha era linda de tudo. Rosinha sou eu. Passava batom
carta de Rosa, chegou? de um jeitinho meu, fazendo uma cova funda no vermelho
intenso. (Às mulheres) Arrume para mim um batom?
CORO DE REDEIRAS — Chegou. De outro tempo Arrume!!! Um vermelho carmim feito sangue. Arrume!!!
chegado.

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Entrega a ela o batom vermelho. Chega Neusinha, chega Toinha, olha o mel da cabaça do
engenho. Tem Senhô na montaria, tem senhô?!!! Corre,
CORO DE REDEIRAS — Rosinha passava o batom de um corre, corre!!! Tio tá dando em Mãe Nazinha!!! Corre,
jeito avó, fazendo uma cova funda no vermelho intenso. corre, correeeeeeeeeeeeee. Filha corre, corre, corre!!! Sô
Déo é senhô! Alereda arde em febre. Trinta. Trinta. Trinta
ZANARARIM — Vou sair! Vou sair pela terra seca de
jagunços. Neusinha. Toinha, mataram, mataram, mataram
Alereda no rastro de minha neta.
Alice, filha de Mazé. Mataram, mataram Joana, filha de
CORO DE REDEIRAS — Olhe o fio, Dona Zana. Amarre Teresinha. Mataram, mataram... São trinta jagunço com Sô
o fio. Déo. Rosinha!!! Estão violando, sai da rua, Rosinha!!! Se
esconda no quintal!!! Rosinha!!! Chegue Rosinha, chegue
ZANARARIM — O fio! pra dentro!!!

A velha amarra um fio à casa, enquanto fala. CORO DE REDEIRAS — Olhe o fio, Dona Zana. Amarre
o fio! Volte pra casa!
ZANARARIM — Rosinha pensou em tudo antes de ir,
teceu para mim um cordão preso ao umbigo da casa para eu ZANARARIM (Distanciada) — Uma noite foi interes-
não me perder se deslembrar o caminho. sante, Dona Zana descobriu nos móveis e nas paredes da
casa um rosto, sempre o mesmo. Um rosto que não saía dali
A velha avança e cantam todas. e parecia saído de gruta escura e fedorenta. Ela avançou à
varanda e no ar flutuava o mesmo rosto, uma nuvem de
TODAS fumaça vermelha. Dona Zana gritava, mas seus gritos eram
Deslembrei sim ecos surdos na vastidão seca de Alereda. Ninguém escutava.
Deslembrei mim (Um tempo. Desce ao chão) Vamos cavar, vamos cavar? Meu
Sou água em fluxo, sou água em fluxo velha sem fim sentido é cavar, enterrar as palavras de Rosa pra o coxo não
Deslembrei sim alcançar. Dentro da terra, no miolo da terra, vê-se o hori-
Deslembrei mim zonte. O horizonte é úmido. É lá que estão todas as que se
Sou água em fluxo, sou água em fluxo velha sem fim. foram daqui pela mão do coxo.

CORO DE REDEIRAS — Olhe o fio, Dona Zana. Amarre CORO DE REDEIRAS — Horizonte.
o fio!
ZANARARIM — Ô bicho difícil é horizonte. Quanto mais
ZANARARIM (Em vertigem) — Olha o fio, vó!! Amarre o chego perto dele, ele corre de mim feito menina trelosa no
fio!!! Olha a manga no pé. Olha!!! Neusinha, olha a manga quintal. (Tempo. Rasto de lembrança) Enquanto Rosinha não
no pé!!! Tá madura, Toinha, vamo subir antes de pai voltar. voltar não quero que nasça mais menina aqui em Alereda.

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Não pode nascer. Não pode. Não faço mais feitiço, nem ZANARARIM / MÃE — Elas tomam chá com a lua,
boneca. Rosinha!!! Sai da rua, Rosinha!!! Se esconda no Rosinha! Chá para esquentar e para esquecer a chuva
quintal!!! Rosinha!!! Chegue Rosinha, chegue pra dentro!!! molhada e fria.

Um rasgo estrondoso de pássaro atravessa o ar. ROSA — Viu que aqui no bauzinho guardo mais que nossa
flor?
ZANARARIM — Rosinha???
ZANARARIM / MÃE — Segredos que guarda?

MOVIMENTO II ROSA — Segredos que aqui te desvelo. (Abre o bauzinho)


Guardo a oração das crianças, aquela de proteger.
A Menina Guardo cartõezinhos deixados por minha mãe como pistas
de seu amor.
Camada da memória de Zanararim se transfigura na Rosa Guardo retalhos de panos negros com cheiro da palha de seu
menina. Ela carrega sua boneca e um bauzinho. café.
Guardo a foto de meu primeiro beijo.
ROSA — Vó, olha só, guardei uma flor derradeira para Guardo suas cartas lúcidas, Vó... E a foto do meu pai.
você, um tesouro, o nosso segredo, a cicatriz. Vou guardar Eu não tenho o nome do meu pai. Por que, Vó?
bem aqui no bauzinho comedor dos retalhos da memória.
Silêncio.
ZANARARIM (No fluxo da memória) — Quando fitei
minha filha com olhos de sabedoria e avistei sua redondeza, ROSA — Pai! Pai! Pai!
disse: é menina! (Transfigura-se na mãe) Barriga redonda,
nariz largo, espia minha mãe: é menina! Silêncio.

ROSA — É um alívio não sentir tanta raiva. Pai! Pai! Pai!


ROSA canta
Redonda, redonda, barriga menina Silêncio.
Barriga redonda, é Rosa menina
ROSA — A infância me deve respostas.
Rosa retira uma pequena erva de seu baú, molha n’água da
bacia e salpica ao vento. Silêncio.

ROSA — Olha vó, sei fazer chover!!! Olha!! Olha!!! (Brinca ROSA — Vó!!! Vó!!! Vó!!!
um tempo) Mãe, para onde vão as estrelas quando está
chovendo? Silêncio. Música leve e redonda. A Menina volta a brincar,
boneca, baú, chuva ao vento. E avança o fluxo da memória.

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MOVIMENTO III ...
Outro dia eu apenas brincava
A Defloração ...
E vi minha Vó enlouquecer
A música se transforma em som grave tomando o espaço. ...
São chaves e ferros desconexos, vozes de ditadores vários, Quem está aí? (Pavor)
...
muda-se de súbito a temperatura e as cores do tempo.
Eu precisava de um tempo de luto. O tempo de sofrer a ida
Sombras são projetadas em meio à uma fumaça espessa e
da mãe
vermelha como fogo.
Rosa se assusta, avança em falas entrecortadas e dialoga TERCEIRA REDEIRA — Mas não. Não é permitido em
quando em vez com as redeiras. Rosa pressente seu algoz, Alereda.
anuncia-se um jogo sujo e triste.
QUARTA REDEIRA — Rosinha, é hora de limpar o quarto,
ROSA — Quem está aí? a casa. Ela está morta, minha flor!
...
PRIMEIRA REDEIRA — O corpo dela ainda está quente,
Outro dia eu apenas brincava moço!!! Sinta aqui no seu vestido.
...
ROSA — Vó, ele está aqui dentro! O rosto descobri nos
Meias curtas e a vergonha dos pés despidos móveis e nas paredes da casa um rosto, sempre o mesmo.
Um rosto que não saía dali e parecia saído de gruta escura
e fedorenta. Avancei à varanda e no ar flutuava o mesmo
Avançam em coro as redeiras.
rosto, uma nuvem de fumaça vermelha. Eu gritava, mas
meus gritos eram ecos surdos na vastidão seca de Alereda.
ROSA — Outro dia eu vi matarem uma mulher. Ninguém escutava. Um calar. Um calar. Vó, ele está aqui
dentro. (Pavor ainda maior) Vó, vó, vó!!!
PRIMEIRA REDEIRA — E outra.
SEGUNDA REDEIRA — Zanararim está quarando a filha
SEGUNDA REDEIRA — E outra. morta, minha flor!

ROSA — Sem pudor. Só para subjugar. Só para apartar a tão ROSA — Minha mãe!
diferente. Outro dia eu apenas brincava
... TERCEIRA REDEIRA — Zanararim está jogando flores
E vi minha mãe ir-se embora pelos falos dos jagunços na pedra fria da filha morta.

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ROSA — Vó, ele está aqui!!! MOVIMENTO IV
Prestes a penetrar o espaço, o coro da jagunçaria. O Ferrete

PRIMEIRO JAGUNÇO — Sua mãe foi teimosa, mas A fumaça vermelha se intensifica. Rosa está acuada em cantos.
quarou como as outras. Despetalei. Chora e fala e chora. Está em choque. Fala a todo momento
atônita. Os jagunços avançam à sua casa, ao seu corpo.
Sons mais fortes de chaves. Maior intensidade de fumaça.
ROSA — O coxo em minha casa. Sua corja de jagunços.
SEGUNDO JAGUNÇO — Tá de saia, Rosinha? Gosto
assim, de saia! Faz isso para provocar, não é? Mas é bom de JAGUNÇARIA TORTA (À Menina) — Menininha safada
saia, fica mais fácil para brincar. foi pro abate. Menininha de saia arriada e pé no chão!
Gosto!!!
ROSA — Ele subiu minha saia, Vó!
...
ROSA — Minha boneca caiu a cabeça. Ela não encaixa
Crescer é isso? Você vai dando adeus as coisas?
mais. Ela não encaixa. Ela não encaixa mais.
...
As meias, ele tirou minhas meias.
JAGUNÇARIA TORTA — Cravada a pele com ferro e
...
Minha boneca caiu a cabeça. Ela não encaixa mais. Ela não fogo como as outras. Menininha de saia arriada e pé no
encaixa. Ela não encaixa mais (Chora) chão! Gosto!!!
...
Ele me botou no colo dele. Pôs a mão aqui! ROSA — Cravada pele com ferro e fogo.
...
Ouvia os jagunços do lado de fora. Trinta eram eles. Trinta. PRIMEIRO JAGUNÇO — O império é tudo, Rosa!
Riam-se fartos Em Alereda o grande tempo recém começou. O tempo,
... macho, tempo.
Tira a mão daí, eu sou criança. Fala para ele que sou ainda
criança. Fala para ele que sou menina. Fala para ele que sou SEGUNDO JAGUNÇO — É tempo de sol. Tempo de
mulher. Alereda acordar, Rosa!
(Grito) PAIIIIIIIIIII!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ROSA — Cravada pele com ferro e fogo.
Grande estrondo. Som grave de abertura de uma porteira
pesada. Um submundo. TERCEIRO JAGUNÇO — Sô Déo conquistou poder em
Alereda. É Rei!

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QUARTO JAGUNÇO — Homem a homem conquistado. TERCEIRO JAGUNÇO — Sô Déo vem quando disser
Raça quarada, limpa. o desejo.

Rosa mostra o braço marcado com ferrete JAGUNÇARIA TORTA — LIVRE FREQUENTAÇÃO!!!
(Risos sarcásticos)
PRIMEIRO JAGUNÇO — Mulher a mulher marcada com
o fogo da posse, com o ferro da propriedade. Um tempo. A fumaça e os sons se desfazem. Rosa está só.

ROSA — Minha boneca caiu a cabeça. Ela não encaixa ROSA (Distanciada) — Depois deste dia, Rosa desejou nunca
mais. Ela não encaixa. Ela não encaixa mais. mais acordar. (Mostra o peito) O sol intenso lá fora, e o frio
aqui, aqui dentro. A jagunçaria torta me tocou da pior forma
SEGUNDO JAGUNÇO — Não adiantou resistência de sua que se pode tocar uma mulher. Eu brincava no quintal... Era
mãe, Rosa! Ela quarou e essa casa agora é nossa, carrega a menina, boneca, bauzinho, chuva salpicada ao vento. E num
marca de uma estrela. súbito, luzes giravam, a fumaça vermelha e braços e mãos e
dentes e língua a invadir minha boca e meu sexo. Tiraram
TERCEIRO JAGUNÇO — No centro da estrela o ‘M’ de minhas meias, subiram a saia e na memória as mulheres de
mulher. Alereda, e minha mãe, e minha vó ajoelhada na sua cova
rasa e fria. E outra vez, braços e mãos, pernas longas, pêlos
QUARTO JAGUNÇO — Mulher sob domínio de Sô Déo e suados, o cheiro de macho me devorando como bicho. Sô
seus trinta homens. Déo, o coxo maldito e suas trinta gargalhadas a penetrarem
a casa. (Grito) — Acudam!!!! Chamava por minha mãe, vó,
ROSA — Nas linhas da estrela uma dor aguda. mas ninguém escutava. Uma surdez, um calar. Machucavam
cada vez mais. (Grito) Socorro!!!! Meu pai também não
PRIMEIRO JAGUNÇO — O seu braço. estava lá para defender, eu não carrego o nome de meu pai.
Eu queria correr, fugir, esconder. Acordei sem alma. O bicho
JAGUNÇARIA TORTA — O esquerdo! papão cravou sua tatuagem e se foi com sua legião de demô-
nios, dando partida ao meu inferno. Meu coração foi violado,
PRIMEIRO JAGUNÇO — Cravado com ferro em fogo o meus sonhos e espírito roubados. (Distanciada) Sô Déo está
‘M’ de mulher. em toda parte, no mercado, na escola, nos vagões dos trens,
na lida do trabalho. Seu rosto em toda parte. Malassombro!
ROSA — Uma tatuagem feita por agulha ferina n’alma. Carece de ter coragem. Coragem vem de coragem!

SEGUNDO JAGUNÇO (Ao corpo de Rosa) — Aqui agora é


lugar de nossa livre frequentação, Rosinha!

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MOVIMENTO V ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Aqui mudo de feitio,
O Disfarce deixo avó e irmãs todas.

Rosa avança à varanda, estende os braços ao vento, sente a CORO DE REDEIRAS — Aqui Rosa muda de feitio, deixa
chuva leve e fria e escassa. Sente a chuva. avó e irmãs todas.

ROSA — Que bom que sei fazer chover quando desejo, ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Aqui disfarço-me de
assim lavo pedaço a pedaço de mim. Lavo para esquecer. outro, sou Jagunço Ararim, tomo a carne de meu inimigo.
(Tempo) A vida é ingrata no macio de si, traz a esperança no
meio do desespero e da desgraça. (Sentindo a chuva) Lavo CORO DE REDEIRAS — Aqui Rosa se disfarça de outro, é
pedaço a pedaço de mim. Penso que a gente precisa acordar Jagunço Ararim, toma a carne de seu inimigo.
de alguma espécie de maldição que a nós mulheres restou,
sem que saibamos nitidamente de onde tanto vem. A gente ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Posso me esconder de
precisa acordar para a herança daquele pai, a quem se deve mim?
sempre servir sem olhar nos olhos. Obedecer é mais fácil do
que entender? Faço chover. Salpico água ao vento. Não sei se CORO DE REDEIRAS — Pode?
morro agora ou fujo, que é também um tanto morrer.
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Fujo e para todas finjo
Aos poucos Rosa vai se despindo de sua saia e demais roupas que morro. Fingir é um tanto morrer.
e lançando mão de apetrechos e vestes da guerreira num
estado ritualístico de disfarce. Vai se transformando no CORO DE REDEIRAS — Fingir para salvar-se. Fugir para
Jagunço Ararim. achar-se. Ir!

ROSA — Eu sou eu mesma e divirjo de todo mundo. Eu ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Monto o cavalo! Vou
quase nada não sei, mas desconfio de muita coisa. Desconfio longe! Voo!
que aqui morri, descansei Rosa Ararim, a menina, e lanço
o olhar para horizonte, o horizonte é úmido. Desconfio CORO DE REDEIRAS — O espírito de Rosa é cavalo que
que fujo, que avanço para uma floresta e carrego Alereda escolhe estrada.
seca dentro de mim, vou molhar Alereda. Alereda é onde
o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder
do lugar. Alereda é sem lugar, é todos os nomes. (Pausa) Há
perigo em viver? E morrer? É sossego?
Vestindo-se.

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MOVIMENTO VI Rosa deita a cabeça no chão, descansa.

O Coxo ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Será a floresta o único


remanso?
Enquanto Rosa cavalga em fuga, as redeiras montam um grande
varal desconexo formando pequenos nichos que parecem veredas. Rosa continua a descansar, instaura-se um outro tempo, de
Uma nuvem vermelha de fumaça toma o espaço, ouve-se a voz de mansidão. Ouve-se pássaros, que aos poucos tornam o espaço
cheio de uma vida bem outra. Rosa simples vive.
Sô Déo, gargalhadas da jagunçaria torta, sons de chaves, ferros,
vozes várias de ditadores. ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Sabe o que o silêncio é? É
a gente mesmo, demais.
SÔ DÉO (Em discurso) — O que gosto é de desafinar a
música do mundo, instalar o estado de demônio, o holo- Longo respiro. Repentinamente, ouve-se ruídos na floresta. Rosa
causto. Não preciso existir para haver. Tomo conta de tudo. se levanta e, astuta, esconde-se. Começa a acontecer um jogo entre
Viço dentro do ser, dos crespos do ser, invisto na ruína do Rosa e um vulto de homem, que tem espírito de criança em tocaia.
ser, no seu avesso. Regulo o estado escuro das coisas, das É vulto leve. Depois de muita brincadeira. Valdinho, o homem, o
criaturas, das mulheres, dos homens e até das crianças, das jagunço, mostra-se inteiro para Rosa. Olham-se por um tempo.
plantas, das águas, da terra e do vento. Sou o redemoinho
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Quem é você? Desconfio
que faz quarar. Fugir não é vida solucionada, fugir é caos,
de seu vestir e dessa caminhada quebrando folhas.
morrer é paciência, morrer é o branco das coisas. Você
morreu Rosa, está morta em Alereda!!! Desafinei o seu VALDINHO — Quem desconfia fica por demais sabido, viu?
coração, menina, viço dentro de você. Você morreu, Rosa e
a morte é para os que morrem. ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Responda ou continuo a
estrada sem olhar para trás.
Um grande estrondo e mudança do estado das coisas.
VALDINHO — Você parece passarinho, voando assim,
MOVIMENTO VII rapaz!

O Jagunço ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Diga de sua graça cabra,


não me peite não!
Rosa está entre veredas. Um verde claro daqueles que acalmam
e curam. Rosa estanca a cavalgada, enfim descansa. VALDINHO — Tá com medo, rapaz?

ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Penso que a gente precisa ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Medo não, mas acho que
acordar de alguma espécie de maldição, que a nós mulheres depois de tanto cavalgar, perdi a vontade de ter coragem,
restou, sem que saibamos nitidamente de onde tanto vem. um cansaço da esperança, sabe? Parti em fuga de meu lugar.

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VALDINHO — Mas não se avexe, o lugar de onde se partiu VALDINHO — Sabe, rapaz, em guerra também se vê
a gente empurra para trás e de repente ele volta a rodear por borboleta.
todos os lados. A origem é quando menos se espera.
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Nunca vi jagunço avistar
ou mesmo brincar com borboleta.
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Onde estou não sei.
VALDINHO — Até em jagunço existe um de dentro, bom,
VALDINHO — Está com pássaros! (Um tempo) Está com sabe? Um de dentro. (Mudando de assunto) Pra onde é sua
fome? (Aproxima-se dela) travessia?

ROSA / JAGUÇO ARARIM — Estou armado até os dentes. ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Estou atrás de aprender
um jeito de matar um homem! Devagar para fazer sofrer.
VALDINHO — Calma! Está vindo de onde? Você sabe onde existe veneno pra matar devagarzinho.

ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Vim da guerra. VALDINHO — Veneno não é arma de macho. (Retira uma
faca reluzente) Facão, peixeira, espingarda, aí sim, entendo
VALDINHO — Também sou saído de lá. Todos saem. como tal.
Especialmente os que voam.
Eles se estranham um tempo. Valdinho entrega a faca à Rosa.
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — O que você quer?
Ninguém oferece e dá nada à toa. ROSA / JAGUNÇO ARARIM — No meu juízo só existe
arma, não tem o que é macho ou fêmea. Mas arma para
VALDINHO — Só quero alimentar pássaros. (joga alpiste ao matar. (Observa a faca) Essa aqui eu gosto, por que brilha
chão) Todos os dias venho dá comida aos tantos que vem aqui. e dá até para ver meu reflexo. A morte que eu espelho.
(fitando o céu) Olha ali, ó, um pica-pau duvidando do ar! (Tempo) Já buliu mulher? Matou?

ROSA / JAGUNÇO ARARIM (RISOS) — O que você fala VALDINHO — Não buli, mas matei um dia, por acidente!
é paisagem, parece! Alivia de dor. Eu era ainda menino, uns quinze anos, acho. Matei pra
salvar. Ela tava sendo relada por um homem. Matei ele
Atravessa outro voo leve de pássaro. também, que era o alvo primeiro.

VALDINHO — Espia outro lá. O canto tão bonito. Voa ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Covardia matar, não é?
como quem dança. De onde venho, viola-se e mata-se sem lei, nem piedade, só
para apartar a tão diferente.
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — De onde venho não tem
pássaro. Tem tempo que não escuto cantos ou cantigas. Só VALDINHO — Sei que lugar é este. Espirra fumaça vermelha,
existe fumaça que voa, só entra nos ouvidos ave de mau agouro. não é? Lá servi um tempo ao senhor, até me apartar do caos,

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seguir o canto dos pássaros, o rastro das borboletas. (Mais um VALDINHO — Amor demais que não tem peito que
voo) Olha lá!!! sustente. (Pausa) Amor de mãe.

ROSA / JAGUNÇO ARARIM (Olhando o voo da borboleta) ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Raiva de mãe, cabra? Que
— Linda! Vermelha. Cor de batom. Vermelha. Cor das rosas. fez a mulher?

VALDINHO — Você sabe que acho a rosa uma das flores VALDINHO — Entregou-me ainda com a boca no seio à
mais bonitas de se encontrar no caminho. Qual flor que gosta? jagunçaria torta.

ROSA / JAGUÇO ARARIM (Dura) — Urtiga! Que pica! ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Ixi! Coração apertou
agora. Um tanto.
VALDINHO — Ixi! Gosto não. Tenho medo de dor, sangue,
morte. Já de pássaro, dos bichos que voam só tenho inveja VALDINHO — O meu apertou um tempo. Até os quinze
daquelas boas. (Sorri) anos, que me lembre. Depois aliviou, por que descobri que
ela foi obrigada pelo coxo maldito.
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Já eu, o medo que tenho
é da mistura do mundo. Eu careço de que o bom seja bom ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Sô Déo!!!
e o ruim, ruim.
VALDINHO —‘Menino forte e macho’, dizia o diabo
VALDINHO — Mas a vida é assim mesmo, um caldeirão.
nojento, ‘tem sina de jagunço desde cedo’. Dizia ainda:
Não cultive dentro de si, a raiva, rapaz. Toma aqui, coma!
‘Esse aí não carece de mãe!’. Só mais tarde fugi daquele
Rosa recebe um prato de comida. Come com voracidade. inferno, apartei-me pras margens de Alereda e assim nunca
descobri o rosto de minha mãe, nunca toquei suas mãos
VALDINHO — A gente precisa evitar de ter raiva, sabe? Às vivas. Fui esquecendo. Finquei o pé aqui nas margens, daí
vezes disfarçar que temos, por que quando se cultiva raiva começou o que chamo de vida: passarinho no céu, borbo-
de alguém, é outro governando a ideia e o sentir da gente. leta, água sob os pés e umas velhas pranteadeiras que me
ensinaram delicadezas de ser, me ensinaram a amar.
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Quer dizer então que
nunca governaram tua ideia e teu sentir? ROSA / JAGUNÇO ARARIM — E sua mãe? Nunca
soube dela?
VALDINHO — Sou carne e osso, rapaz! Já tive raiva sim,
um tanto, um tempo. De uma mulher. VALDINHO — Quarou como as outras. As pranteadeiras
limparam seu corpo moreno com um tanto de lágrimas
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Um amor? minhas. Nada soube dela, só o rosto desfigurado pela morte

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o corpo na pedra fria. As pranteadeiras guardaram dela o VALDINHO — Tá com sede, Ararim?
suor mais vermelho e quente que já se teve nessas terras. Para
mim apenas isso sobrou, um recado bento do céu. (Mostra ROSA / JAGUNÇO ARARIM — De onde venho não tem
no peito um escapulário) Enrolava o pescoço de minha mãe. água.

Valdinho entrega a água a ele (a), que bebe vorazmente.


ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Tristeza vazante esta!
Uma estória que me parece tão íntima, também minha mãe ROSA / JAGUNÇO ARARIM — É ousadia ou posso
violaram e mataram. Você parece tão íntimo meu. (Pausa) também tomar banho?
Não vai mesmo me dizer seu nome?
VALDINHO — De ousadia ganhamos o mundo. A água é
VALDINHO (Mais leve) — Claro! Não quis te assustar com nossa, Ararim! Inteira!
estória de tristeza, só quis me aproximar primeiro, encon-
trar as conversas de nossos passos. Sou Valdinho, jagunço Valdinho prepara o banho para Rosa. Enquanto a moça se
desertor do campo de batalha, semeador de flores e encan- organiza para o banho, desvela sincera seu segredo.
tador de pássaros e borboletas.
ROSA — A partir daqui te desvelo um segredo, Valdinho!
ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Valdinho rima com Sou jagunço mulher.
passarinho. (Ri)
VALDINHO — Desconfiei que sabia desse seu segredo,
VALDINHO — O nome é o sentido da pessoa. Ararim!

Um tempo de reconhecimento. Risos.

VALDINHO — E você? Diz seu nome? ROSA — Tem problema?

ROSA / JAGUNÇO ARARIM — ... Jagunço Ararim, VALDINHO — Vi aqui nessas bandas algumas fugidas
guerreiro de exército recém fundado, vingador de causas como tu, na verdade, não vejo nenhuma questão nisso, não.
perdidas e agora aprendiz de raiva fingida. (Ri)
ROSA — Precisei sair escondida assim de Alereda. O lugar
VALDINHO — Ara... Ararim? Conheço essa graça. Tem arde em febre. Sô Déo continua extinguindo mulheres.
parentesco com Vó Zana, fazedora de boneca? Zana Ararim? Violam tantas, tantas quaradas ao sol.

ROSA / JAGUNÇO ARARIM — Parentesco distante, VALDINHO — Sei disso! (Pausa maior) Mas conte comigo
distância de mar, entende? na luta contra esses desmandos, posso te ajudar com o que

106 107
aprendi com a jagunçaria torta. É forte a estratégia de jogar cresce irremediável a lua. A violência está em seu juízo. Com
o jogo do algoz. (Grande respiro) Faço isso por você, pela o pesadelo, aos poucos amanhece.
minha mãe, pelas pranteadeiras e as mulheres quaradas de
Alereda. ROSA (Em pesadelo) — Estão violando... Estão violando...
Corre pra dentro, Rosinha... Mataram... Mataram Joana...
ROSA — Justo! Foi por elas que você foi criado. (Acorda de súbito) Não sei mais o que é dormir depois que
vi a feição da maldade em minha casa, sobre mim.
VALDINHO — Sim, fui ensinado passo por passo até
homem tornado. Valdinho se aproxima.
ROSA — Mas me diga, o que o faz acreditar que tenho eu a
VALDINHO (Fala com Rosa com delicadeza) — Psiuu,
força para derrubar o coxo maldito?
calma, Rosa! O dia já vem crescendo, foi só o sono ruim, o
VALDINHO — O seu de dentro, sabe? amanhecer é andorinha.
ROSA — Valdinho, você me ajuda como farol! ROSA (Levantando-se) — Valdinho, ensina a armar-me!
VALDINHO — Tenha em mim um amigo, Rosa! Somos
VALDINHO — Vem cá! Empunha a faca, assim!
irmãos, ambos filhos de mães violadas, quaradas ao sol.
Comigo pode conversar do igual o igual, desarmado.
Rosa e Valdinho começam um jogo quase coreográfico expe-
Um tempo. rimentando algumas armas e aprendendo a lutar. Um tempo.
ROSA — Encantador de pássaros, chamo-me na verdade ROSA — Você luta bem, sabe do riscado.
Rosa Ararim.
VALDINHO — Isso a gente aprende pra sobreviver, para
VALDINHO — Rosa! viver mesmo prefiro meus pássaros, alimentar, fazer o
alimento. Sei fazer comida de raiz, quer?
Mais um tempo. Uma suspensão!
Eles avançam em panelas e alimentam-se. Passa um tanto de
VALDINHO — Rosa... Venha agora descansar, fez-se escuro tempo.
o tempo. Amanhã podemos começar o preparo da guerreira
Rosa Ararim, o Jagunço Ara. (Pausa) Escuta o som da noite, VALDINHO — O que sabe você? Além de lutar, como agora.
tudo tem um ritmo e uma rima.
ROSA — Escrever. Tenho gosto por palavras.
Valdinho prepara um espaço para Rosa deitar. Cai uma noite
silenciosa. Rosa avança em sono de sonhos ruins, assim como VALDINHO — Disso não sei.

108 109
Ela pega um graveto e com ele traça o nome dele no chão. VALDINHO — Na beira do rio tudo pode, vai ficando tudo
úmido e aí vai ficando bom. Vamos seguindo o filete de água
ROSA — Aqui está você! sem fim, ela brota do chão.

VALDINHO — Espia como o nome alimenta a terra, vira ROSA — Está me levando para um mundo d’água sem fim,
semente. Valdinho!

Ele tenta escrever com ajuda de Rosa. VALDINHO — Onde tem água tem esperança.

VALDINHO — Qual letra é de sua maior afeição? Eles vão aos poucos entrando no quarador, onde as prantea-
deiras cantam. Valdinho indica o caminho e se afasta um pouco.
ROSA — Letra ‘A’, de Ararim, letra ‘Z’, de Zana, minha avó.
VALDINHO — Agora é com você e com as que te esperam
VALDINHO — Zana! no quarador. Não se assuste, a noite está chegando e com
ela, as senhoras da morte e da vida.
Um tempo a mais.
ROSA — As pranteadeiras! (Pensa) Aqui nos separamos?!!!
VALDINHO — Com ‘A’ se escreve também água, não é?
Também amor. (Pensativo) VALDINHO — Sim, anunciou uma partida o pássaro rasga
mortalha!
Outro tempo.
ROSA — Ouvi sem querer o som dessa despedida. Sei que
esta é minha jornada. Também cada vez mais alto escuto o
MOVIMENTO VIII grito d’alma. (Mostra o coração) Uma dor aqui!
A Retirância
VALDINHO — Avança Rosa. Te espero em alguma vereda.
(Põe um escapulário no pescoço de Rosa) Laço aqui teu
Uma cor que se abre ao vento. Fim de tarde.
pescoço, protege tua voz, o grito que já ecoa dentro.
VALDINHO — Agora precisamos ir. Quero te mostrar
um lugar que vai completar teus ensinamentos. (Fita o céu) ROSA — Te espero em alguma vereda.
Espia! Andorinha! Presságio de tempo morno e líquido.
Aprendizado d’água. Chegue, vamos! VALDINHO — Avança, Rosa!!!

Eles avançam por entre as veredas. Vai anoitecendo. Valdinho desaparece. Rosa fica sozinha no quarador. Observa
cada mortalha que está em nova configuração estendida.

110 111
Agora é lunar a cor do espaço, de uma lua cheia e intensa. Um SÁ NICINHA — Assombração também tem ouvido de
início de luminosa noite. Ela toca o escapulário no pescoço. escutar.

ROSA — Sinto aqui a minha mãe. Ela está aqui, quarada. SÁ NIONE — Escutamos que, em tempo breve, iríamos dar
(Chama) Mãe??? um colo à mulher viva.
SÁ NICINHA — Sabe que é primeira vez que mulher viva
Sá Nicinha e Sá Nione avançam à Rosa. Elas estão mais reso- entra no quarador? Aqui os corpos já chegam sem cor e o
lutas e ainda mais firmes, quase raivosas. colo é somente para acalantar a passagem.
SÁ NICINHA — Farejei que toda criatura merecia tarefa SÁ NIONE — Espia aí, Nicinha, como disse pra nós os
de viver. poços d’água: (Olhando para Rosa) uma mulher viva, se
bulindo de tanto fugir. Eita, hoje no quarador, é festa!!!
SÁ NIONE — E que a morte chega sempre. É o sentido
SÁ NICINHA E SÁ NIONE — Fujona!!! (Risos)
da vida.
ROSA — Minha avó acha que morri.
SÁ NICINHA — Mas o que nos avexa, o que nos arranha
pensamento e coração não é a morte morrida, morte de SÁ NICINHA E SÁ NIONE — Todos acham!
natureza, mas a morte matada. Nessa morte, a alma não
ROSA — Mas estou viva e aqui, bulindo de tanto fugir.
sossega não.
SÁ NICINHA E SÁ NIONE (Incisivas) — Fugir é um tanto
SÁ NIONE — Estamos quarando uma a uma, Menina! morrer.
SÁ NIONE E SÁ NICINHA — Uma extinção que vivemos. ROSA — Ninguém acha que poderia sobreviver à fuga.
Holocausto.
SÁ NIONE — Algumas outras sobreviveram, mas não
ROSA — Sei disso. Fui acompanhando o desaparecer de chegaram até aqui.
uma a uma. Amigas, irmãs e até minha mãe.
ROSA — Por que Valdinho me trouxe ao quarador?
SÁ NICINHA — Uma a uma quaramos!
SÁ NICINHA — Com Valdinho, você aprendeu a olhar e
ROSA — Achava que pranteadeiras não existiam de dançar com pássaros no céu, a juntar outra parte de você.
verdade, mas me disse Valdinho, disse minha avó, ouço-as
como quem ouve assombração. SÁ NIONE — A confiar no seu próprio tino e se fiar nas
armas de corte fundo. Aqui, aprende a esperança e a força
SÁ NIONE — Tudo que é imaginado, existe e é. de voltar.

112 113
ROSA (Resoluta) — Voltar é minha sina. Eu preciso voltar! SÁ NIONE — Recolhemos dos corpos das que morreram
Careço de matar o demo que vem cercando nossa terra. o resto de suor, a porção envenenada da cólera, da raiva
nascida da injustiça e da impunidade a que estamos todas
SÁ NIONE — É essa fúria que vai alimentar seu volteio, submetidas.
Rosa!
SÁ NIONE — Essa água pode cegar e forma o exército que
SÁ NIONE E SÁ NICINHA (Começando a mexer na água) você comandará.
— Sua fúria é a nossa!
SÁ NICINHA — As deusas são surdas ao toque de recolher,
SÁ NIONE — Uma raiva alimentada por cada semente Rosa! Por isso você está aqui!
não plantada.
SÁ NIONE E SÁ NICINHA — Pra furar a cerca.
ROSA — Minha fúria é de todas!
SÁ NIONE — Ouça o grito de cada uma delas (Aponta para
SÁ NICINHA — Você está aqui pra ver o que guardamos e uma mortalha) Diva!
queremos jorrar em Alereda.
As pranteadeiras recomeçam os ruídos furiosos d’água, que
SÁ NIONE (Mais intenso ruído de água) — Água! avançam gradualmente em ressonância com o impulso de Rosa.

Ruído cada vez mais intenso de água furiosa. ROSA (Vai resoluta até a mortalha. Conversa com a
mortalha de Diva em estado de fúria) — Diva, minha tia
SÁ NICINHA — Pra além das armas de corte, que te querida, rezei teu corpo quase morto na pedra fria, o corpo
protegem no imediato da vida, a água apaga por completo o que sempre preparou humilde o altar do pai e por ele foi
fogo destruidor de Sô Déo. sufocada diariamente. Abafada pela fumaça dos turíbulos
santos as tuas mais brilhantes opiniões.
SÁ NIONE — A faca é importante para avançar, mas o que
é definitivo é a imensidão de água. SÁ NICINHA (Aponta outra mortalha) — Neusa!
Aumenta gradativamente o ruído d’água e cessa ROSA (Mais uma vez conversa com o mesmo tanto de cólera,
repentinamente. ou maior) — Neusa, minha madrinha, a cada roda de seresta
nas esquinas de Alereda, ouço a tua voz grave e suave silen-
ROSA (Olhando os poços) — Como guardaram tanta água ciada. A voz que cantava, a garganta cortada.
aqui? Em Alereda gota a gota se esvaiu.
SÁ NIONE (Aponta outra mortalha) — Joana!
SÁ NICINHA (Apontando as mortalhas) — O que sobrou
da água delas todas, dorme conosco.

114 115
ROSA (Mais uma vez conversa, com maior cólera ainda) — SÁ NICINHA — Ainda um tanto vermelho.
Joana, minha irmã, as estradas de barro molhado de Alereda
eram poucas para a cavalgada que tinha o teu destino. Cordas SÁ NIONE — Recém vem arroxeando.
amarraram teu cavalo, cordas açoitaram tua pele até queimar.
SÁ NICINHA — Amadurecendo a vingança.
SÁ NICINHA (Aponta outra mortalha) — Alice! SÁ NIONE — Roxo é madureza do vermelho. Fúria
pensada.
ROSA (Mais uma vez conversa, com maior cólera ainda) —
Menina assim como eu. Tinha tanta água no ventre, água do Rosa, em dúvida, toca mais uma vez o escapulário no peito.
tamanho de criança. Cortaram teu seio e teu braço...
ROSA — Valdinho!!!???
SÁ NICINHA E SÁ NIONE — O esquerdo.
SÁ NIONE E SÁ NICINHA — Ele é parte mais íntima tua,
ROSA — Em meio ao canavial, Alice pariu um mundo teu contrário, o avesso, teu irmão.
d’água e secou à míngua.
ROSA (Fio quente de voz) — Valdinho!
SÁ NIONE (Aponta outra mortalha) — Maria!
Grande pausa. Um choro alegre da mulher, daqueles de risos
Cessa a fúria d’água.
e lágrimas.
ROSA (Um tanto mais suave. toca o escapulário no peito. Por
dentro, uma raiva terna) — Mãe. Você foi uma das mulheres ROSA — Como faço pra estancar este choro? Preciso seguir!
mais fortes que conheci. Guerreira e doce. Teu cheiro ainda Só ganho força para seguir.
sinto, o seu sorriso perfeito de dentes e, especialmente, suas
mãos. Elas lembram as minhas, sabe? É por isso que me sinto SÁ NICINHA — Enxugue e agarre o veneno que guardamos.
um tanto você, mão a mão, seguindo juntas. (Pausa. Olha as
mãos. Enfim, um choro) Que bom que eles não levaram as SÁ NIONE — Veneno gerado da raiva por Sô Déo.
suas mãos de mim!
SÁ NICINHA — Devolve a ele o veneno, Rosa. Isso é soro
Corte na vertigem de Rosa. de curar terra inteira.

SÁ NICINHA — De sua mãe recolhemos água de cor SÁ NIONE — Só água detém o fogo por completo.
especial.
SÁ NICINHA (ENTREGA O PEQUENO POTE COM O
SÁ NIONE — Venha, olhe! Ainda se vê a cor rubra que nos VENENO) — Aqui tem o teu exército, teu destino tu mesma
une aqui (Mostra um pequeno pote) traça, filha!

116 117
Sá Nicinha e Sá Nione começam a produzir novos ruídos com Alereda seca, Alereda seca
a água. Rosa voou
O mando mudou
SÁ NIONE — Põe a mão na água para multiplicar, Rosa! Alereda seca, Alereda seca
Ordem Sô Déo
Rosa também começa a produzir os ruídos com elas, Progresso Fel
lançando água por todo o espaço. Uma grande fúria de espe- Alereda Seca, Alereda seca
rança ao largo.
Enquanto cantam, conversam. Daquelas conversas de quem
SÁ NICINHA — Escuta, Rosa! varre.

SÁ NIONE (Fúria alegre) — Parece tiro, mas é água do PRIMEIRA REDEIRA (Satisfeita) — Tô achando esse lugar
tamanho de horizonte. cada vez mais limpo.

ROSA — Sinto-me forte pro volteio. (Fúria alegre) Viver é SEGUNDA REDEIRA — Limpo que é uma beleza.
assim, rasgar-se e remediar-se.
TERCEIRA REDEIRA — Graças a ele!
Um último estrondo d’água no quarador.
Varrem.
CORO DE REDEIRAS — Cidade linda!
MOVIMENTO IX
Alereda de Sô Déo Varrem.

Desloca-se a ação para Alereda, que amanhece solar e triste. QUARTA REDEIRA — É uma liderança real.
As redeiras avançam varrendo o chão, retirando mortalhas
e utilizando-as para cobrir móveis em todo espaço. Alereda PRIMEIRA REDEIRA — E os incomodados que se
vai adquirindo um ar cada vez mais denso e abandonado. mudem.
Há algo de fúnebre em todo ritual das mulheres. Elas cantam
como quem marcha. SEGUNDA REDEIRA — Ordem é ordem!

CORO DE REDEIRAS — Graças a ele!


CORO DE REDEIRAS
Só obedecer direitinho TERCEIRA REDEIRA — É uma purificação isso tudo.
Sô Déo é o senhorzinho

118 119
QUARTA REDEIRA — Cada um em seu lugar, seguindo CORO DE REDEIRAS — E tudo o mais!
com obediência.
Varrem.
PRIMEIRA REDEIRA — Deu toque de recolher...?
SEGUNDA REDEIRA — Três litros d’água por semana,
CORO DE REDEIRAS — Toque de recolher! E pronto! não está bom?

SEGUNDA REDEIRA — Mulher com muita liberdade não TERCEIRA REDEIRA — A gente serve, ele dá água!
dá certo.
QUARTA REDEIRA — A gente serve...
TERCEIRA REDEIRA — Vira logo libertinagem!
CORO DE REDEIRAS — Ele dá água! Pronto!
CORO DE REDEIRAS — Em boca calada, não entra
mosquito! PRIMEIRA REDEIRA — Sô Déo é o senhor, gente! Não
tem o que discutir. Ele chegou aqui, trouxe ordem, trouxe
QUARTA REDEIRA — Ensino as minhas meninas desde progresso. O que querem mais?
cedo: mulher entretém, silenciosa.
SEGUNDA REDEIRA — Pra mim, estrela cravada em
CORO DE REDEIRAS — Silenciosa!
pele de mulher é sinal de respeito. Olhe, sinceramente,
A varreção para. tirai do mundo a mulher desobediente! No meu entender,
desobediência é falta de cacete.
PRIMEIRA REDEIRA — A distância que vai da mulher
TERCEIRA REDEIRA — Frente a ele eu me calo, no
decente à vadia é bem curta, minha filha: um passo e nada
respeito mesmo, sabe?
mais! Assim eu ensino.
QUARTA REDEIRA — É difícil eu tecer opinião de alguma
SEGUNDA REDEIRA — E ensino mais, viu? Toda mulher coisa.
deve lutar pelos seus direitos.
Entra a avó.
TERCEIRA REDEIRA — Eu até respeito isso.
PRIMEIRA REDEIRA — E eu? Sou um túmulo
QUARTA REDEIRA — Mas desde que não interfira nos sacramentado!
serviços da casa...
SEGUNDA REDEIRA — Agora, quem dá opinião solta e
PRIMEIRA REDEIRA — ...nas funções de mãe, sem rumo...

120 121
CORO DE REDEIRAS — ...é a Velha Zanararim! redeiras). Eiiii???? Não estão vendo os limites ultrapassados
neste chão de terra???? Vocês são mulheres como eu, não
TERCEIRA REDEIRA — Depois que a neta morreu, ela invejam a coragem de anunciar e denunciar???
perdeu fio, perdeu a casa. Vaga feito cachorra sarnenta
nos cantos de Alereda. CORO DE REDEIRAS — Quer conselho, Dona Zana?
QUARTA REDEIRA — Quando Sô Déo botar tenência nos PRIMEIRA REDEIRA — Não é época de dar tanta opinião
ditos da Velha, vai esfumaçar a coitada.
e provocar o senhorio que nos cerca.
PRIMEIRA REDEIRA — Ele é homem bom, mulher, acre-
dita na doidice da velha. CORO DE REDEIRAS — Suas ideias parecem cansadas,
Dona Zana!
SEGUNDA REDEIRA — Não sei!!! Que eu saiba, doido no
sentido de Sô Déo tem destino certo. SEGUNDA REDEIRA — O importante é sempre o novo, o
novo é sempre o mais limpo.
TERCEIRA REDEIRA — Velho atrapalha tanto, não é?
A Velha às redeiras.
QUARTA REDEIRA — E velha?
ZANARARIM — O mais limpo é o mais justo. O mais justo!
CORO DE REDEIRAS — Ixi!!! (Vai ao espelho e coloca o batom. As redeiras comentam).

TERCEIRA REDEIRA — Velha cheira a café e um tanto


MOVIMENTO X de mofo.
Avó
QUARTA REDEIRA — Laquê!!! Velha cheira a mofo e um
tanto de laquê.
As redeiras vão terminando a varredura, e aos poucos surge
Zanararim em trapos e total desorientação. Elas observam e PRIMEIRA REDEIRA — Espia! Dona Zana está em estado
interferem quando em vez. de floresta.
ZANARARIM (Despetala uma flor) — Bem me quer, mal CORO DE REDEIRAS — Coitada!
me quer!!! Bem me quer, mal me quer!!! (Olha a vastidão
seca) Eu saí atrás de horizonte e o que vejo é Alereda seca Zanararim em vertigem.
no concreto rachado e quente. (Olhando o céu) Meus olhos
só buscam nuvens, peço aos céus a indignação de deuses e ZANARARIM — Estou com um luto de costura, sabe?
deusas. Evoco irritação de todas e todos. (Falando com as (Saudosa) A espera é um coração partido. Eu queria

122 123
Rosinha perto de mim. (Chama a neta) Desde que Rosinha
se foi, o rádio não sintoniza mais, música não há. Parei no
MOVIMENTO XI
tempo desde que Rosinha fugiu. Rosinha fugiu ou morreu? O Estio
Era Rosa que me ajudava a botar linha na agulha. Rosinha
precisou partir e isso, DEFINITIVAMENTE, não é justo! Zanararim busca suas bonecas em um balaio coberto, ao
Ara, que não enxergo a linha. encontrá-las, começa enfileirá-las corpo a corpo, deposi-
tando junto a cada uma delas, uma pedra e uma vela. Todo
SEGUNDA REDEIRA — Não existe mais linha para tecer, este movimento alcança-nos numa espécie de câmera lenta
Dona Zana! Aqui em Alereda a justiça é o que deve ser. e em profundo silêncio, somente interrompido por uma gota
d’água lenta e incessante, que dá a cadência do passo da
TERCEIRA REDEIRA — Existe o que é imposto pelo Velha. Aos poucos, outras Zanararim em coro, multiplicam
Senhor. as mesmas ações, transformando Alereda numa semiarena
de corpos, um cemitério de mulheres em holocausto. Quando
QUARTA REDEIRA — O que está dito há tempos. em vez, ouve-se entre uma gota e outra, relatos de mulheres
em situação de violência que ecoam no rádio. A cor marrom
PRIMEIRA REDEIRA — Diante disso precisamos calar. escuro e seco desvela a terra estéril. Tudo nos remete a um
Cale Dona Zana, pelo seu bem! quadro de natureza morta.

CORO DE REDEIRAS — Somos mulheres. PRIMEIRA VIOLADA (Em off) — Fui queimada com
ferro de passar roupa por me negar a ter relações sexuais
ZANARARIM — A justiça nós que tecemos. Se não é bom com meu marido. Fui à delegacia dar queixa e a delegada
perguntou se eu tinha testemunhas do fato. Ora, eu estava
para nós mulheres, não é bom para toda Alereda... Venham
ali queimada. Só me senti uma mulher livre para criar
aqui me ajudar, venham!!! (As redeiras se entreolham)
meus dois filhos depois que enfrentei meu marido com um
Venham cobrir os móveis da poeira seca que invade a boca
facão. Foi só aí que ele parou de me espancar. Após seis
de vocês, a língua e os pensamentos. Em Alereda só se vê
tentativas de separação, fui vítima de cinco balas dispa-
pó, a poeira nos olhos que cega. Venham!!! Olhem comigo
radas por meu ex-marido, e eu carrego todas essas marcas
(Olham as três para a terra) Mirem e vejam que assim e a cicatriz na alma. A minha vida, ou inferno como eu
seco do jeito que está, o que se escreve na terra não planta a chamo, começou a ficar tenebrosa quando eu resolvi
semente. O pó carrega tudo. Vejam!!! (Implora apontando arrumar um emprego. Meu marido é machista, eu não
para as bonecas) Por que não me ajudam aqui com minhas podia trabalhar. Para ele, eu deveria apenas cuidar da casa,
bonecas??? (Elas relutam, mas acabam por ajudar. Passa-se mas quando me ofereceram um emprego, eu aceitei. Ele
um tempo) Rosinha, tô costurando sua mãe para você! me trancava dentro de casa e não deixava eu sair por nada.
Ficava presa por horas.
Saem as redeiras, Zanararim fica sozinha.

124 125
SEGUNDA VIOLADA (Em off) — Fui agredida pelo meu
marido, desta vez foi fisicamente também, porque psicologi-
MOVIMENTO XII
camente e verbalmente acontece sempre. Ele me acusa de O Volteio
ter amantes (que só existem na mente dele, que é muito
ciumento) e procura me acuar de todas as formas. Desta vez Ao longe, avista-se Rosa avançando em cavalgada. Pouco a pouco, a
eu fui orientada a ir à delegacia de mulheres, eu nunca tinha moça vai diminuindo o passo sob o impacto da imagem que assombra.
ido a uma delegacia antes. Fui também ao IML porque ele
me causou lesões físicas. Não me separei por que não tenho ROSA — Todo voltar se depara com alguma porção de ausência.
como sobreviver, sempre fui pressionada a não trabalhar,
(Olha estarrecida os corpos) Ou muitas ausências. Muitas, muitas.
sofri acuação, e agora com quase 50 anos, fica complicado
(Pausa) Percorri o inverso do caminho e agora meu peito é insufi-
começar no mercado de trabalho. Também não gostaria de
ciente para o que vejo e sinto. (Rogando aos céus) Dê-me um pouco
acabar com minha família, não fui educada desta forma.
Tive meus dois filhos, depois de dez anos de casamento. mais de espaço aqui. (Mostra o peito) É aqui que recolho as marcas da
Nosso plano inicial era que fizéssemos a faculdade juntos, minha lonjura, os sinais visíveis da loucura que em Alereda se instalou
mas o convenci a voltar e resolvi esperar, já que meus filhos mais e mais, sem parada. Perdi a morada na rapidez do destino e vejo
ainda eram pequenos. Foi nesse período que tudo começou. minha morte se distribuir em cada um dos corpos que avisto, mais
Estava ficando cheia das agressões verbais na frente das corpos, mais e mais, sem parada. O que me valho é da vingança que
crianças. Na época, a menina com seis anos e o menino com me empurra avante até a arapuca preparada pro coxo maldito.
quatro. Ele dizia o tempo todo que dependia dele até para
um prato de comida. Que eu não era mulher nem para lavar Rosa espreita num canto, perto dos corpos. A luz quente se inten-
roupa, pois a máquina de lavar fazia isso. As humilhações sifica e fumaça. Sô Déo surge no espaço, o coxo ateia focos de fogo,
não paravam. numa aventura onírica de terror. Ele desconfia, ela dissimula, firma-
se o jogo lento e refinado da vingança.
TERCEIRA VIOLADA (Em off) — Eu apanhava todos os
dias. A agressão era física e psicológica. Ele me ameaçava o SÔ DÉO — Rosa, minha jovem, tenho a oportunidade de lhe dar as
tempo todo. Se eu não parasse de gritar, ele me mataria. E boas vindas. Achei que tivesse morrido, mas você é forte demais, um
ele tinha uma arma em casa. Teve m dia que ele me agarrou tanto mais que outras, não é menina? Na realidade, não compreendo
de bruços na cama, passou o braço pelo meu pescoço e se bem por que fugiu, era somente obediência que pedia, praticar a
deitou sobre mim com toda a força, fiquei sem respirar obediência. O lugarejo precisava de regras claras. Mas confesso que
e com a coluna quase fraturada. Fiquei cheia de marcas fico contente que tenha voltado, mostra sua fortaleza, gosto de uma
roxas pelo corpo inteiro. E o pior: meus filhos assistiam terra forte e corajosa. Vejo que Alereda marcha dentro de você.
tudo o que ele fazia comigo.
ROSA — Volto em arrependimento. Volto com a cabeça baixa
Gota a gota vai escasseando junto com as narrativas, esgota-se daqueles que erram.
por completo. O marrom estéril transforma-se num vermelho
intenso de morte. Velas acesas em toda margem de Alereda.

126 127
SÔ DÉO — Como posso confiar nessa verdade? SÔ DÉO — Atrevimento de bulir com o que é meu!

ROSA — Assim como estou confiando que me receba de braços ROSA — Falei pra ele que sua dança também é leve como fumaça,
abertos como sua súdita mais fiel. Voltei nessa crença, voltei para daquelas que voam, sabe? Prefiro sua dança, Sô Déo! Vamos dançar
o Senhor, não tenho para onde ir. com a fumaça, assim (Mostra) Leve! Voar.

SÔ DÉO — Lembra um tanto sua mãe, assim corajosa. Eles aumentam a intensidade da dança. Rosa encanta o coxo e com
ele sobe a temperatura do local. Mais sombra em movimento vertigi-
ROSA — Carrego uma porção dela aqui. (Mostra as mãos) noso e no ápice do movimento, mãos se estendem ao céu num pedido.

SÔ DÉO — Água!!!! Preciso de água!!!


SÔ DÉO — Braços abertos!
Rosa alcança em sua matula, o pequeno pote dado pelas prantea-
ROSA — Mãos espalmadas para uma dança! Aceita? deiras. Estrondo e total silêncio.
SÔ DÉO — Uma dança bem junto do seu cheiro, desce-me os ROSA — Minha água carrega muitos corações, Sô Déo! Minha
sentidos. água é um exército inteiro de tão forte. Ela vai saciar sua sede.

ROSA — Venha, Senhor! Rosa entrega a água para Sô Déo, que bebe vorazmente. Aos poucos,
o coxo sente o efeito do veneno, cambaleia.
Música intensa. Luz remota e sombras em movimento.
ROSA (Sarcástica) — Tá cambaleando ou dançando, Sô Déo?
SÔ DÉO — Gosto!!!
SÔ DÉO (Numa raiva entorpecida) — Veneno, mulher!!! Veneno!!!
Dançam.
ROSA — Está chovendo, as lágrimas de todas as mulheres, Sô
ROSA — Sabe, conheci outro homem em minha viagem. Déo! Todas elas! Elas estão aqui comigo, um exército inteiro
fazendo o que é o justo.
SÔ DÉO — Homem fora do cercado, só pode ser fugido.
Enquanto Sô Déo vai morrendo gradualmente, Rosa recolhe todos
ROSA — Tem parentesco com pássaro. os corpos, apaga todas as velas numa ação coreográfica.

SÔ DÉO — Pena que não cortei suas asas. ROSA (Aponta o dedo em riste para o coxo) — Aqui, o tempo
macho acabou!!! Império desabado!!!
ROSA — Um dia este homem foi seu mandado, homem de sua
jagunçaria. Mas dançou comigo como quem voa. Grande estrondo de uma porteira sendo fechada, o submundo. Sô
Déo morre. Uma suspensão, um tempo parado, nada dentro.

128 129
MOVIMENTO XIII ROSA — Sabe que a água levou o mal de Alereda, Vó!? Onde eu
andei tem muita água.
Molhação
ZANARARIM — Perto de água tudo é feliz.
A vermelhidão se dissipa, dando lugar a um amarelo de um dourado
renovado. Ouve-se o arrastar pesado e lento dos pés de Zanararim. ROSA — De onde eu vim, descobri um segredo. (Tira o escapu-
Ela pressente a presença da Rosa. Uma água mansa começa a correr lário do peito e entrega a avó)
continua e gradualmente.
ZANARARIM (Segurando o escapulário) — Bento do céu!
ZANARARIM — Foi Rosinha que voltou? Trança meu cabelo,
ROSA — Trouxe o que deixou a mãe para me proteger.
Rosinha?
ZANARARIM (Regozijo) — Bento do céu!
ROSA — Vó!!!
ROSA — Recebi de um homem. Um amor. Um irmão.
ZANARARIM (Olhando embavecida a menina) — Você cresceu,
Rosinha! Quando lembrava de você era menorzinha. ZANARARIM — Seu avesso, Rosinha! Sua parte perdida, seu
contrário, seu irmão.
ROSA — Você está suja e perdida, vozinha!!!
ROSA — Meu avesso, Vó! Minha parte perdida, meu contrário.
ZANARARIM — Não estou perdida, não. O horizonte está tão
perto que posso tocá-lo. ZANARARIM — O contrário também é bom.

ROSA — Ô, vozinha!!! Deixe-me cuidar de você! Segure (Dá a ROSA — O contrário também é bom.
mão) Minha mão agora é seu fio.
Risos e lágrimas. Rasga um tempo.
ZANARARIM — Se um fio perde o outro, o tecido se desfaz, não
é mesmo? ROSA — Me ensina a fazer boneca, vó?

Entre risos e lágrimas. ZANARARIM — Acho que já sabe de tanto disso tudo, minha
filha. Trance meu cabelo, minha flor. Venha!
ZANARARIM — Vamos molhar a terra juntas? Aguar as plantas
da varanda? Rosa acomoda a avó, de maneira que ela possa trançar seu cabelo.

Entre risos e lágrimas. ROSA — Tranço, vozinha! Tranço!

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Zanararim canta suave um canto de epifania entre avó e neta. EPÍLOGO
ROSA — Vó, obrigada por não cortar minhas asas e me deixar voar.
Por me salvar e inspirar a ser paciente e corajosa como minha mãe. quarança
ZANARARIM — Essa é sua dádiva, filha! O dourado radiante intensifica-se dando espaço a um vermelho
mercúrio de conjunção. As pranteadeiras reaparecem. Elas alcançam
ROSA — Minha dádiva maior será a justiça e a paz se espalhando
as bacias cheias d’água e lança água ao alto na sua imensidão.
por todos os cantos.

ZANARARIM — Mas, eu, você, suas irmãs e seus irmãos ainda SÁ NIONE — Quando se cansa de procurar, aprende-se a se
estamos trabalhando nisso, não é? deparar com o caminho.

ROSA — Sim, vó! Esse presente não será somente meu. SÁ NICINHA — Quando um vento opõe resistência, veleja-se
com todos os ventos.
ZANARARIM — Será de todas as mulheres esquecidas que
quiseram viver o mundo. (Pausa) Mas não é hora de lamentar por
SÁ NIZA — A resistência é o presente que a alma recebe quando
elas. É hora de agir no mundo. Alereda é o mundo.
não se conforma com o sofrimento, quando luta incansavelmente
ROSA — Nós sobrevivemos, Vó! pelo que é justo, superando as tormentas, vendo além das tempes-
tades a travessia.
ZANARARIM — Nós sobrevivemos, Rosinha! E desde hoje
nossas vozes só devem se erguer mais altas. PRANTEADEIRAS — Alma alcança tamanho do sonho! Alma
do tamanho do sonho!
ROSA — Vou correr mundo, Vó! Correr mundo contando esta
minha história, não porque ela seja única, mas principalmente Mundo de água sem fim.
porque não é. Eu não sou uma voz solitária, eu sou muitas.

ZANARARIM — Eu fico em casa, filha! Abraçada ao umbigo


da casa, sigo dançando e na tocaia das cartas lindas que vai me
mandar. Cartas tecelãs, cartas costureiras de palavras sobre tudo
que vai encontrar de lindo e doloroso do mundo, sobre as veredas
e os amores, sobre os tropeços e a luta diária, sobre o poder de
sonhar e resistir, Rosa! O poder de resistir!!!

Rosa trança o cabelo da avó suavemente. Suavemente a imagem se


dissipa na intenção de continuidade da vida. O fluxo d’água aumenta.

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FOGO
DE
MONTURO

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QUARANÇA
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