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Em 31 de Maio de 2007,

no Auditório Municipal do Fórum Cultural do Seixal

Riscos e Tracejados da Delinquência Juvenil


“Respeito:
À procura de laços:
a importância do grupo de pares”

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POR UMA SOCIEDADE EMPENHADA
– A IMPORTÂNCIA DOS AFECTOS NA’DELINQUÊNCIA’ –

por Emílio-Eduardo Guerra Salgueiro1

Em meados dos anos setenta, frequentei em Londres, no Instituto de


Saúde da Criança, uma pós-graduação de um ano em pediatria do
desenvolvimento, que incluía problemas centrais de pediatria comunitária,
assim como métodos de avaliação de crianças e de jovens com problemas de
todo o tipo.
Foi a primeira vez que ouvi falar, com alguma profundidade, em maus-
tratos a crianças, em delinquência pré-juvenil e juvenil e mesmo na sua
associação frequente com dificuldades de inserção escolar. Este ‘ouvir falar’
abrangia contactos com especialistas nestas áreas, a leitura de textos
considerados essenciais e, ainda, visitas a instituições, incluindo tribunais
para jovens, e o assistir a sessões de julgamento por ‘delinquência’,
presididas por ‘juizes-de-paz’ escolhidos entre ‘homens-bons’ da região. Por
vezes, muitas vezes, maus-tratos, negligência e ‘delinquência’ e as
dificuldades na escola, surgiam associados. A sensibilidade e a experiência
destas instituições, levava à adopção de medidas judiciais sensatas, com
responsabilização dos jovens, mas com a construção simultânea de projectos
abertos para o futuro.

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Médico Pedopsiquiatra e Psicanalista.

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Regressado em meados de 1975 a Portugal, país ainda dito de ‘brandos
costumes’, foi-me negado que cá houvesse maus-tratos na infância com
algum significado, muito diferente do que se passava em Inglaterra, onde, aí
sim, o problema tinha uma extensão e uma gravidade, a que os países
mediterrânicos e católicos, centrados no culto da mãe e da Virgem Maria,
estavam, felizmente, poupados.
Igualmente, quanto à ‘delinquência’, em Inglaterra, eram focados, com
insistência, factores de ordem social e familiar na sua génese, com particular
ênfase atribuida à existência ou inexistência da figura pai na educação dos
filhos. Em Portugal, falava-se em ‘delinquência por tendência’, diminuía-se
a importância de factores sociais e culturais na sua origem e manutenção, e
dava-se pouca atenção ao papel estruturante da família e ao peso específico,
insubstituível, transformador, de um pai presente, ao contrário do que se
valorizava em Inglaterra.
O tempo, os últimos anos, acabaram por nos meter bem pelos olhos
dentro, que os ingleses andavam mais próximos da realidade do que nós, e
que tivessem começado a pensar nestas questões pelo menos quatro ou cinco
decénios antes de termos sido capazes de o fazer. Só lentamente fomos
acordando do estado de torpor e de negação da realidade, em que vivemos
durante longos anos.
Nasce-se ‘delinquente’, são uns ‘genes maléficos’ que o determinam?
Será possível encontrar algum sentido no ‘delinquir’ e entendê-lo como uma
construção subterrânea zangada, ao longo de um período de vida, até que
irrompe?
O belo filme de François Truffaut, a preto e branco, do início dos anos
sessenta, “Les quatrecents coups” – que talvez se possa traduzir por ‘pintar a
manta’ – pode ajudar-nos a entender o que é esta zanga. Conta-nos a história

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de um jovem triste, representado pelo seu actor favorito, Jean-Pierre Léaud,
em que nos é mostrado um momento do seu percurso de vida, numa família
baça, triste e cinzenta, com um pai ineficiente e resignado e uma mãe
‘coquette’, desinteressada do filho e do marido. Vemo-lo frequentando uma
escola onde nada o prende a não ser a existência de alguns amigos com
quem ‘pinta a manta, ‘ para se reanimarem; praticam pequenas
‘delinquências’ que desaguam numa intervenção da Justiça, onde o nosso
‘herói’ é condenado a um período de ‘reformatório’, ‘para se corrigir’: a vida
cinzenta que leva, a ‘depressão primordial’, que traz consigo desde a
infância, passa desapercebida ao olhar de todos. O filme termina com a fuga
do jovem do ‘reformatório’, num dia de nuvens carregadas como o seu
estado de espírito, correndo, fugindo ao longo de uma praia atlântica sem
ninguém, pela beira do mar, em busca de uma liberdade que vai sempre
escapando à sua frente. Parafraseando um jovem do filme muito
interessante, “À procura de laços” (que não é possível mostrar hoje),
também o jovem do filme do Truffaut, poderia dizer: Estou à espera de
alguma coisa mas não sei do quê.
A primeira vez que fui ver “Les quatrecents coups” com um grupo de
amigos próximos, no fim saímos do cinema em silêncio e assim nos
mantivemos durante uma boa meia hora, deambulando por ruas de Lisboa,
sem nos apetecer dizer nada, mergulhados numa espécie de estado de graça
pelo filme e de solidariedade com o herói, que só lentamente se foram
dissipando.
O filme é tido como sendo em parte autobiográfico, não só do próprio
Truffaut como também do Jean-Pierre Léaud, que teriam tido percursos na
infância e na adolescência, com pontos de contacto com o ‘herói’ do filme:
do ‘delinquir’ pode sair-se pela criatividade artística.

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Procurar entender a ‘delinquência, não pode ser considerado
equivalente a procurar desculpá-la, mas sim, a partir dos dados encontrados
na ‘narrativa’ de vida’ dessa criança ou desse jovem ou dessa família, em
todas as suas dimensões, poder construir, com conhecimento de causa, um
novo futuro, que quebre um passado tido como destino. A punição do
‘delinquir’ pode ser necessária, mas o projecto de futuro tem de ir bem mais
longe.
Nesta tentativa de entendimento, será possível olhar para a
‘delinquência’ como um processo de procura de uma reequilibração
pessoal, numa criança, num jovem ou, até, num adulto, que se foram
estruturando num registo desarmónico, transgressivo, anti-social, por
circunstâncias pessoais e familiares desfavoráveis, que, de algum modo
conduziram à sua adopção?
É a ‘delinquência’ transformável, será a ‘delinquência’ evitável?
Afinal, o que é a ‘delinquência’?

II

Delinquência, segundo o ‘Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa’


[Lisboa: Temas & Debates (2005).], significa ‘desobediência’, ‘delito’,
‘infracção’, e o verbo delinquir tem o significado de ‘praticar falta grave’
ou de ‘agir de forma criminosa ou delituosa’: as conotações são, claramente,
de uma moral social transgredida, que exige castigo. Indo aos étimos latinos,
encontramos em delinquere, ‘faltar’, ‘falhar’ e em delinquentia, ‘falta’,
‘falha’, ‘delito’, ‘pecado’, ou seja, surge uma aparente atenuação da

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condenação moral estrita existente na língua portuguesa, ou nos portugueses
como pós-romanos...
Mas, mais interessante ainda, é irmos ao significado atribuído ao étimo
linquo, de onde derivam todas as outras palavras, e o que vamos encontrar é
‘deixar’, ‘largar’ e ‘abrir mão de’: na raiz das posturas morais mais tardias,
achamos simples descritivos de acções. Mas não será a delinquência
bicéfala, isto é, não conterá, na sua estrutura, conceitos aparentemente
inversos um do outro, designativos de acções opostas: ao lado deste ‘deixar’
não haverá um ‘procurar’, ligado ao ‘largar’ não estará um ‘agarrar’, e ao
‘abrir mão de’, o seu oposto, um ‘prender’? O entendimento da expressão
‘delinquência’ não ficará, assim, mais rico: não haverá sempre um querer
‘agarrar’ aquilo a que acha que se tem direito, ‘largando’ o que causa
sofrimento?
A mão parece, assim, estar sempre implicada, tanto para agarrar como
para largar: mas, afinal, o que é que a mão ‘delinquente’ pretende agarrar?
Comecemos pelo bebé, que procura agarrar, com as mãos e com a boca,
o peito da mãe ou o biberão, depois a roca, ou os óculos do pai, ou as
canetas no bolso do avô, ou as peças do Lego, ou uma bolacha, tudo coisas
que vão adquirindo uma progressiva mais-valia. Quando as coisas correm
bem, em termos da força da ligação conseguida com a mãe e com o pai, o
bebé vai formando dentro de si um sentimento crescente da bondade de
quem o rodeia, do mundo como fascínio, da sua força como capaz de o
conduzir bem aos seus objectivos, do poder alterar as suas circunstâncias.
Descobre que as suas mãos são ‘aliados preciosos’ (Hoffer), que
servem não só para tocar, agarrar, aproximar, lamber, cheirar e conservar,
mas também para afastar, rejeitar, substituir, trincar, destruir. As mãos, a
boca, os olhos e mesmo os ouvidos, coordenam-se nesta jornada apropriativa

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construtora da ‘segurança básica’ (Erickson) do bebé. O bebé confiante ri
para os outros e espera que os outros riam para ele, entoa sons e fica
contente e sente-se confirmado se lhe respondem, por fim, aceita e devolve
objectos aparentemente inanimados, na realidade animados pelas suas
intenções.
Há aqui um ‘anel recursivo’ (Edgar Morin) entre o interesse do bebé
em agarrar os objectos e o afinco e a necessidade com que procura ‘agarrar’
as pessoas que têm valor para ele e que também lhe atribuem valor.
Manter-se-ão as pessoas previsíveis e constantes na ligação confiante
que o bebé estabeleceu com elas? Manter-se-ão interessadas nele e nas suas
necessidades? Até que ponto serão aquelas pessoas fiáveis? Não será melhor
começar a planear estratégias de auto-suficiência?
As coisas podem correr mal. Imaginemos o que sentirá um bebé
decepcionado sem remissão, imaginemos o que poderia ser o seu modo de
pensar:
‘Embora triste e zangado por ter de ser assim’, diria o bebé, se já
falasse, para os seus botões, ‘tenho todo o direito a compensar-me do que
não me dão e me faz tanta falta; se isto não mudar, vou apoderar-me, sem
hesitação, daquilo que ache que me compense alguma coisa do que fui tão
injustamente privado; e farei isto, mesmo que só seja uma pálida
substituição daquilo que perdi, aliás que, se calhar, nem nunca tive como
deve ser. Fá-lo-ei mesmo que as pessoas me reprovem e, até, me castiguem’.
Para o bebé, para a criança pequena, mais importante do que a
aprovação pelos pais, passou a ser a sua ‘sobrevivência afectiva’: processos
auto-curativos de ‘reequilibração’, como a reequilibração pela irrequietude
ou hiperactividade, mas que podem ser de reequilibração pela
‘delinquência’, foram postos em marcha (Winnicott).

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Fazer ‘justiça-por-mãos-próprias’, ou apoderar-se do que considere ser
uma indemnização justa pelo que não conseguiu obter, é o que a ‘mão
delinquente’ procura agarrar.

III

Esta é apenas uma pré-história, uma pesquisa arqueológica, um esboço


ou uma tela de fundo inicial, que nos pode ajudar a reflectir sobre o que
levar um bebé, mais tarde uma criança, depois um jovem, a achar-se no
direito de ‘atacar’ ou de se apropriar do alheio.
O conceito de alheio, de propriedade ou de pertença a um outro, só
gradualmente vai sendo formado, à medida que a criança se percebe como
um eu confrontada com outros eus, com tantos direitos e necessidades como
ela. No entanto, o sentimento de falta ou de falha ou de espoliação pode ser
anterior à formação deste conceito, aguardando a oportunidade de se
transformar em acto reparador, assim que possível.
As personagens primordiais de afecto e de atribuição consistente de
valor à criança, em princípio a sua mãe e o seu pai, não terão tido a
consistência, a permanência, a previsibilidade e a qualidade emocional de
que ela necessitava. A criança terá sentido uma falha grave no que veio dos
dois, não só no que recebeu da mãe, tradicionalmente a propiciadora
principal de afecto, mas também no que colheu do pai, referencial primário
da regra e da ‘lei’.
O impulso apropriativo ou ‘delinquente’, pode ser despertado, num
primeiro tempo, por uma guloseima deixada abandonada em cima de uma
mesa, ou por um brinquedo tentador, de pertença alheia; depois, na fase do

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Jardim-Escola, já podem surgir actividades de busca nos bolsos dos casacos
dos colegas, ou nas mochilas, procurando canetas ou borrachas fascinantes;
depois ainda, quando a criança começa a formar uma ideia do valor do
dinheiro como ‘passaporte para a felicidade’, é tentadora a apropriação das
moedas que a mãe deixou em cima da mesa da cozinha ou, com eventual
subida de patamar, através de pesquisas no porta-moedas da mãe ou no bolso
do pai. Todas estas procuras têm de comum o sentimento da criança de ter
direito a uma satisfação sem delongas dos seus desejos. A criança tornou-se
verdadeiramente uma ‘amiga do alheio’.
A persistência e o agravamento destas pesquisas, dependem muito do
que os pais forem conseguindo introduzir na relação com o filho, em termos
de uma capacidade nova para introduzirem uma consistência educativa
primária, que até aí lhes tinha escapado, e que passa muito por uma presença
empenhada: por vezes, os pais necessitam de uma ajuda exterior, para a
conseguirem ajudar o filho no adquirir uma neo-capacidade para saber
esperar pela satisfação, aceitar limites para o que pode fazer e ter esperança
no futuro. Como dizia uma rapariga do “À procura de laços”: Eles não têm
tempo para nos educar. Há dias que não consigo ver a minha mãe e, por
isso, Não há aquele diálogo.
Temos estado a falar em famílias onde existem pai e mãe, o que muitas
vezes não acontece com estas crianças que começaram a ‘delinquir’, onde se
encontram, frequentemente, pais e mães ausentes ou inconsistentes, pais
desorientados, com grande rotatividade na escolha de novos companheiros
ou companheiras. Estes mostram-se, em regra, tão inadequados como os pais
biológicos para o reforço da ‘confiança básica’ de que a criança necessitava
como de ‘pão-para-a-boca’, para que pudesse adquirir o sentimento de que
recebe o suficiente da parte dos crescidos.

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Aqui podem acrescentar-se, também, claras situações de maus-tratos,
negligências novas e, mesmo, abusos de todo o tipo: a dívida para com a
criança vai aumentando e, um dia, é natural que ela venha a querer cobrá-la.
Não podemos, também, esquecer ‘a sociedade nova’ em que vivemos
há já algumas décadas, complexa, individualista, com sobrevalorização da
importância do trabalho, do ganho e do consumo, em detrimento do estar
com os outros, sociedade desorientada em que estamos todos inseridos.
Tudo se pode complicar na adolescência, onde à impreparação com que
a criança vem, se acrescenta o novo ímpeto afirmativo da puberdade, que
começa a empurrar o jovem sem ele estar preparado para os riscos inerentes
ao uso das suas novas forças e capacidades, na sociedade que encontra à sua
volta: chegou à adolescência com alicerces e limites frágeis, que podem
ceder a abalos mesmo não muito fortes.
É aqui que o impulso reparador ‘delinquente’ pode reaparecer e
adquirir formas novas, muitas delas acabando paradoxalmente por se virar
contra o próprio adolescente.

IV

É um lugar-comum afirmar-se que a sociedade contemporânea se


transformou a um ponto que a torna quase irreconhecível aos olhos de quem
a viu há quarenta, há trinta ou mesmo só há vinte anos atrás. Mas houve,
mesmo, uma grande mudança e até a ‘delinquência’ e o seu grau de
aceitação pela sociedade se alterou, sobretudo, quanto às suas formas mais
evidentes, não tanto quanto às raízes que lhes subjazem.

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Embora possa aparentar o contrário, a sociedade actual está mais atenta
ao que se passa no seu seio e mais empenhada em encontrar soluções para as
suas crises e contradições, como o prova o interesse despertado por esta
Jornada da Casa da Praia, “Dificuldades de comportamento e
aprendizagem em meio escolar”. Observa-se na nossa sociedade uma
maior tolerância para os desvios e para as excepções, tornando-se mais
acolhedora para os que protestam ou, usando uma outra linguagem,
aceitando melhor os que necessitam procurar uma reparação pessoal ou
grupal pelas ‘soluções reequilibradoras’, incluindo a saída ‘delinquente’’. Há
excepções quanto a essa maior tolerância, como, por exemplo, para com os
maus-tratos e a negligência de crianças, como é fácil de entender, ou para
com a pedofilia e outros abusos sexuais, não esquecendo que a própria
sociedade também necessita e usa processos de ‘reequilibração interna’,
incluindo a protecção das vítimas e a punição dos abusadores.
As ‘delinquências’ podem ser classificadas em dois tipos principais: as
de apropriação e as de rejeição, que podem chegar à destruição do
rejeitado. E há as mistas, que talvez sejam a maioria, com proporções
diferentes destes dois componentes.
Vejamos alguns exemplos:
Será a toxicomania uma delinquência e, a sê-lo, será só uma
‘delinquência’ de apropriação da droga-tida-como-vital?
O toxicómano tem necessidade de se apoderar do seu tóxico, em busca
do encontro de um reequilíbrio quanto a afectos dolorosos persistentes de
raiz antiga, difíceis de aliviar de outro modo: o toxicómano não conseguiu
construir redes afectuosas estáveis, de reequilibração natural na ligação
com os outros, tendo, por isso, que recorrer ao ‘paraíso artificial’.
Secundariamente, para obter o tóxico tornado imperioso, pode ‘delinquir’ à

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antiga, roubando. Com o consumo alivia-se momentaneamente do
sofrimento, mas tende a afastar-se, cada vez mais, da construção das
ligações afectuosas reequilibradoras naturais.
A sociedade actual aceita, até certo ponto, os consumos, sobretudo se
forem de drogas leves – onde se inclui o uso e o abuso dos psicofármacos –
entende as necessidades do toxicómano e tolera que se faça a substituição do
tóxico pesado por um tóxico mais leve, como a metadona, sobretudo se com
isso se conseguir evitar a ‘delinquência’ secundária, apropriativa, do roubo
para adquirir o tóxico.
A sociedade dispensa, no entanto, o jovem toxicómano da neo-
construção das redes relacionais positivas de que ele necessitava, por intuir
que isso poderia vir a exigir muito de todos, um empenhamento pessoal,
grupal e social aumentados: a sociedade mais empenhada recearia ter que se
pôr em questão quanto à firmeza sentida e a satisfação conseguida das suas
próprias redes relacionais, das presentes, das passadas e das futuras.
A postura social mais antiga quanto à toxicomania era sobretudo
punitiva e moralizadora no mau sentido da palavra, considerando os
consumos como uma espécie de ‘doença-da-vontade’: o problema estava no
consumir, que se resolveria com o impedir, não a montante dele.
Na toxicomania, vemos, pois, que ao lado da apropriação há, também,
a rejeição de ter de continuar a suportar angústias sem alívio.
Um outro exemplo de ‘delinquência’: as agressões a professores, o
ataque ao saber e ao aprender na escola – bens vulneráveis e perecíveis, à
mão de semear – os maus-tratos aos edifícios escolares e os ‘graffiti’ nas
paredes, poderão ser consideradas, sobretudo, como ‘delinquências’ de
rejeição?

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Aparentam ser de rejeição pura e simples, contra o ensino repressivo,
ou desinteressado e sem qualidade, contra os edifícios escolares degradados,
feios e sem conforto, representando o desprezo das autoridades, e contra as
paredes da cidade sentida como não acolhedora. Há, seguramente, um
componente de rejeição, mas estas atitudes representam, sobretudo, uma
complexidade acrescida no ‘delinquir’, onde se pode ver tanto uma faceta
projectiva, como uma outra afirmativa. Por um lado, aqui os jovens
procuram resolver problemas pessoais e sociais por interposta entidade ou
por procuração, neste caso descarregando sobre a escola, sobre as paredes
da cidade ou sobre os automóveis, a revolta que trazem de casa e do bairro
onde vivem: O bairro é aquela coisa, diz um dos jovens do filme.
Encontra-se, nestas ‘descargas’ algum componente de ‘apropriação’? O
bem-estar, o alívio passageiro conseguido após estas rejeições, pela
evacuação justiceira, destruidora, do sentimento de mal-estar projectado
sobre a escola e sobre a cidade, se possa considerar como uma forma de
apropriação. Pelo menos até surgir o sentimento de culpa – Já fiz muita
porcaria e estou arrependido – ou ressurgir do sentimento antigo de ‘falha
básica’, e, aí, o acto de ‘delinquir’ tem que ser repetido.
Mas há, ainda, nestes actos uma importante faceta afirmativa, em que,
paradoxalmente, é procurada uma comunicação com quem tem o poder:
Ouçam-nos, dizem vários dos jovens do “À procura de laços”, não tenham
medo de nós, falem connosco, e outro esclarece (É preciso) ter respeito,
para seguir o caminho certo.
Curiosamente, os jovens do “À procura de laços”, afirmam que deixam
a escola muito cedo, mas acrescentam que gostam mais da escola do que das
aulas, e que a escola devia dar mais apoio; um deles diz mesmo: A cena
mais importante é a da educação, e que se Deixa a escola para ir para as

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más vidas. E fazem críticas construtivas, como quando uma rapariga diz O
facto de ser negra tinha de trabalhar o dobro, um outro avança com O
professor tem de cativar para estar dentro de uma sala de aulas, um terceiro
acrescenta Os mais problemáticos não podem estar todos juntos (numa
mesma turma) e diz, ainda, As aulas de noventa minutos, impossível estar
atento, não aguentava.
Passemos, agora, a outras formas contemporâneas de ‘delinquir’, mais
claramente contra o corpo próprio – embora já o uso de drogas pesadas e o
abuso do álcool (‘shots’) o fossem. Refiro-me aos 'piercings' ou perfurações
das mais diversas zonas do corpo, aos ‘cuttings’ ou cortes, lacerações,
golpeamentos ou escarificações na pele, habitualmente dos membros ou do
abdómen, e, ainda, às tatuagens, que podem ocupar toda a superfície
cutânea.
O aspecto agressão ao corpo-tal-como-ele-é, com ataques destrutivos
contra a pele e a implantação de hipotéticas neo-decorações, mostram uma
rejeição violenta do sentido estético dos pais, da ligação emocionada que
eles tinham com o corpo intacto do filho ou da filha: a violência principal é,
de novo, contra os pais primordiais insatisfatórios. Podemos, no entanto,
encontrar aqui uma componente apropriativa e, mesmo, afirmativa, na
questão que aqui subjaz que é o de esclarecer a quem pertence o corpo: o
corpo é meu, ó pais, ó sociedade inaceitável, entendam, de uma vez por
todas, que ele deixou de ser vosso.
Os ‘piercings’, os ‘cuttings’e as tatuagens eram, até há poucos anos
atrás, exclusivos de presidiários de longa duração ou reincidentes, que,
assim, se ‘vingavam’ no próprio corpo, do que não era fácil exprimirem de
outro maneira, contra os carcereiros que os mantinham presos, e contra a
sociedade e o seu braço judicial, que achava dever puni-los mantendo-os na

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cadeia, por ‘delinquências’ apropriativas ou destrutivas de alguma
gravidade.
Contra que ‘prisão’ se estarão a manifestar muitos destes jovens
actuais, tanto rapazes como raparigas? Terão esquecido, ou nunca terão
sabido, que os nazis, na IIª guerra mundial, tatuavam nos antebraços dos
judeus e de outros detidos em certos campos de concentração, uma série
numérica identificatória, e que só este facto, deveria, por respeito para com
esses ‘tatuados à força’, ser suficiente para não escolher esse modo de
protesto? Ou sentir-se-ão, também eles, prisioneiros de uma sociedade
concentracionária?
Que dizer, ainda, do facto de um número apreciável de jovens do sexo
masculino raparem o cabelo – o protótipo ‘segurança de discoteca’, com
super-musculação cuidadosamente trabalhada, parece constituir o modelo
identificatório – raparem o cabelo como faziam aos presidiários e aos
incorporados na tropa, para se assegurarem de que não tinham piolhos?
Rapar o cabelo e ostentar tatuagens, permite, através do assumir desses
signos emblemáticos, e de novo por interposta pessoa, viver uma neo-
identidade de perseguido, revoltado contra injustiças, mas que não deixará
que elas retornem, se necessário fazendo ‘justiça-por-mãos-próprias’: A mim
ninguém toca, ninguém abusa de mim, diz um dos jovens do filme.
Uma certa moda da prática de actividades ‘radicais’ ou ‘ordálicas’, isto
é, perigosas tanto para o próprio como para outros, roçando o risco de se sair
delas morto ou estropiado, como as corridas em carros de ‘tunning’, as
corridas em mota sem protecção corporal de qualquer tipo, o “bungee-
jumping”, as descidas em parapente ou em ‘asa-delta’, os voos em aviões
ultra-leves, as subidas em paredes-de-rocha, sem suficiente equipamento
protector, o sexo promíscuo, também sem protecção, a prostituição (Alvim),

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etc., todos estes modos de estar e de fazer, não poderão, também, ser
incluídas no ‘delinquir’?
Em todas estas formas de ‘delinquir’ – cada vez mais difíceis de
distinguir de ‘modas’ socialmente aceites – ao lado de ‘ataques’ a objectos
exteriores, a pessoas e ao corpo próprio, não se pode esquecer que acaba,
também, por haver sempre um ataque à própria vida mental do
‘atacante’. Ou directamente, por drogas lesivas ou alimentos ‘tóxicos’ –
Podes morrer, diz um dos jovens – ou, indirectamente, pelo que, de
implícito nestas actividades, há de ‘ataque’ às representações mentais onde
‘residem’ os ‘inimigos primordiais’ designados, assim como aos laços que
com eles se estabeleceram.
Estes ‘delinquires-tolerados-como-moda’ estão paredes-meias com
outros poderosos mitos sociais correntes, como o do hedonismo e o do
dinheiro como ‘chave-mestra’ para a felicidade, expressos nos sonhos do
‘Euro-milhões’ e de férias em ‘paraísos tropicais’.
Ser-se contemplado com o Euro-milhões representaria o romper das
grilhetas de toda a servidão: o escravo-oprimido tornar-se-ia patrão-opressor
e as contas ficariam ajustadas com os pais-primordiais-insatisfatórios; o
sonho do ‘paraíso tropical’, com longos areais não pisados e sem mais
presença humana, de areia branca e limpa, águas transparentes com peixes
coloridos, palmeiras com cocos prontos para serem colhidos, representa a
vontade de eliminar o lado negro da vida, as obrigações e as submissões
inevitáveis, as humilhações e as angústias, o ter que trabalhar para
sobreviver, com o recuperar fantasiado de um paraíso terrestre primordial,
antes do surgir da ambivalência intrínseca à vida, do provar do fruto da
árvore do bem e do mal.

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V

‘Drogas, sexo e rock-and-roll’: como reagimos nós, os adultos, a tudo


isto? Considerando-nos espectadores inocentes, em nada implicados, e, por
isso, com as mãos livres para condenar e reprimir? Não conseguiremos
encontrar uma parte nossa em todos estes ‘delinquires’, uma sintonia
possível com o sofrimento que os empurra? Uma certa propensão para o
‘delinquir’ não existirá em todos nós, um impulso para quebrar regras e
transgredir o social normativo? E que dizer de certas formas de
‘delinquência’, em plena ascensão e próprias dos adultos ‘sociabilizados’,
como a corrupção e actuações fraudulentas de vários tipos? Com uma nossa
resposta primordial punitiva, não estaremos a ‘fabricar’ novos
‘delinquentes’ à antiga, clivando a sociedade em duas, a dos ‘delinquentes’
irrecuperáveis e a dos outros, a dos bem-pensantes inocentes? A sociedade
empenhada, que deveria ser a de nós todos, não poderá construir respostas
sociais adequadas inclusivas, que evitem ou invertam o caminhar
‘delinquente’?
Que fazer com estes jovens?
Antes de tudo o mais, ouvi-los, por vezes sozinhos, outras vezes em
grupo, algumas vezes com os pais, a maior parte das vezes sem pais, e ouvir
não só o que de mais flagrante eles nos queiram contar, mas procurar ouvir
também a queixa oculta que está por detrás, e de que eles próprios, por
vezes, nem suspeitam a existência. Parte do entrar em contacto com o que de
humano há neles e em nós, e não permitir o deslizar fácil do outro, nosso
irmão, para o estranho, de que já nos distanciámos, para o estrangeiro,
mais distante ainda e arriscando expulsão, e, por fim, para o inimigo, a
neutralizar sem delongas ou a destruir.

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Depois, acolher dos jovens a sua parte mais sofredora, responsabilizar
a parte mais crescida.
Não deixar de conhecer a família, respeitá-la, colher uma ideia dos
seus pontos fortes e fracos, tentar a reconciliação possível com os filhos.
Por vezes, uma separação, mais ou menos longa, entre os jovens e a
família, é imperiosa. Aqui têm lugar as famílias de acolhimento e as Casas
de Acolhimento.
Por fim, co-construção com os jovens de um projecto de vida, tendo
em conta as suas capacidades e gostos, com atribuição de responsabilidade
pelas escolhas feitas e pelas tarefas empreendidas. Neste projecto está
implícito haver uma manutenção de presença e de prosseguimento de
diálogos, pelo tempo que for preciso.
Um dos jovens do filme diz A mudança está em nós. Sim, se a
sociedade entender que o nós a abrange também a ela, e que a frase do outro
jovem, Estou à espera de alguma coisa mas não sei do quê, deve ser
entendida pela sociedade empenhada como uma pergunta que lhe é dirigida
e para que tem de encontrar resposta, ajudando a transformar, a pouco e
pouco, o não sei do quê num é isto o que eu quero.

18 de Abril de 2009

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