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i. Posigdo sobre 0 Acordo Ortografico (Departamento de Linguistica da Faculdade de Letras de Lisboa) A uniformizactio da ortografia, no interior de uma comunidade transnacional que utiliza a mesma lingua, apresenta indubitaveis vantagens para a consolidacio de politicas comuns nas reas culturais, econémicas ¢ tecnoldgicas. Nesta perspectiva, ¢ legitimo defender a existéncia de um acordo ortografico entre os paises de expressio portuguesa e so, por isso, justificadas as intengdes das Comissées nacionais que se reunfram no Rio de Janeiro no passado més de Maio. O resultado final do trabalho produzido por elas ultrapassa, no entanto, 0 Ambito de um acordo de unificagdo, propondo de facto uma reforma ortografica. Ora, quer os objectives quer os métodos devem ser diferentes em um ¢ em outro caso. Um acordo ortografico deve ter por base o confronto das diferentes ortografias existentes (no caso, as ortografias portuguesa e brasileira) e a escolha negociada da solucio a adoptar para cada caso de divergéncia que se verificar. Em um trabalho deste tipo, s&o critétios de decisio a viabilidade pratica da execucdo das solugdes possfveis, bem como a procura de um equilibrio, na distri- buicao pelas grafias existentes, das modificagées a efectuar. A leitura do texto das Bases mostra claramente que este tipo de preocupagées niio foi tido em conta pelos negociadores portugucses, sendo claro que as modificagées introduzidas afectam desigualmente as actuais grafias portuguesa ¢ brasileira. Uma reforma ortogréfica, por outro lado, é um trabalho de natureza diferente do atr4s exposto, pois obedece a princfpios de sistematizacéo baseados numa anélise rigorosa e que exige a contri- buic&o de especialistas das varias dreas dos estudos linguisticos, 134 2. 1. POSIGAO SOBRE © ACORDO ORTOGRAFICO Ao ultrapassar os limites de um acordo ortografico, o texto das Bases torna-se inaceitavel nos pontos em que propée alteragdes no justificadas pela necessidade de unificagéo — como nos casos, adiante analisados, da supressaio de alguns acentos gréficos ¢ da supressio do hifen nos compostos. Deve também chamar-se a atengdo para o facto de as resolugées tomadas niio se apoiarem numa discusstio prévia, publica e alargada sobre a natureza e objectivos de um documento deste tipo, que permitisse 0 esclarecimento dos falantes leigos em matéria linguistica. Lamenta-se, por outro lado, que as solugdes técnicas no tenham sido discutidas com outros especialistas portugueses, nado tendo a Comissio da Academia portuguesa auscultado a opinido de institui- g6es como a Associag’o Portuguesa de Escritores, a Associagdo de Professores de Portugués ou a Associagdo Portuguesa de Lingufstica, nem promovido o debate sobre a questao no interior dos Departa- mentos e Centros de Linguistica das varias Universidades. Em consequéncia do processo adoptado, ¢ dbvio que 0 texto das Bases tenta englobar de um modo cumulativo e nao integrado critérios de natureza diferente que, uma vez postos em confronto, sio portadores de incoeréncias e geradores de contradigées, nao constituindo, por isso, base rigorosa justificativa para as alteracées adoptadas, ao mesmo tempo que introduz incorrecgdes de cardcter técnico e cientifico. Quanto as incoeréncias e contradigées, argumenta-se no texto com a «forca da etimologia» para a manutengao do A inicial e para a forma de representacao das vogais atonas, argumento que é esque- cido quando se elimina 0 ¢ ¢ 0 p igualmente etimolégicos (Bases vi e vit). Para estes, prevalece 0 facto de serem «mudos ou proferidos nas pronuncias cultas da lingua». No entanto, o A, grafema nunca articulado em portugués, mantido pela «forga da etimologian, & suprimido quando essa grafia esté inteiramente «consagrada pelo uso» (ex.: eva). Mas um outro critério foi ainda utilizado ao suprimir «o h inicial que passa a interior por via de composig&o», critério de generalizacao que ultrapassa a etimologia, a prontincia ¢ 0 uso. Finalmente, existe o problema criado pela utilizagao do critério de «facultatividade»: «em casos de ambiguidade textual que possa ser desfeita pela acentuacio grafica, fica facultativo 0 uso do acento para dirimi-la» (Base x1v). Como consequéncia deste critério, & previsivel que surjam divergéncias ortogréficas dentro da mesma variante da lingua no mesmo pats, dependentes de juizos aleatérios. 135 A DEMANDA DA ORTOGRAFIA PORTUGUESA ‘As incorrecgées de cardcter cientifico e técnico situam-se a varios niveis. Deixando de lado a questo de saber por que se manteve neste texto uma terminologia imprecisa e desactualizada, herdada das anteriores versdes, a primeira observacio a fazer prende-se com o problema da relag&o entre o oral € 0 escrito: o texto das Bases subsume um ponto de vista sobre a questo que ndo é inteiramente correcto, Se, na lingua materna, é indubitdvel que a oralidade precede a escrita no que diz respeito ao proceso de aquisigio de elementos lexicais «comuns», ndo pode, no entanto, ser desprezado © papel da escrita como «via de aquisigio» de elementos de voca- bulérios especializados, nem o papel que a leitura desempenha em comunidades maioritariamente alfabetizadas, onde é um meio pri- vilegiado na educa¢do dos seus membros e no acesso a informacio. Nao & de esquecer que, nos paises afticanos que adoptaram o portugués como lingua oficial, reconhecendo-lhe um estatuto privi- legiado no ensino e também nos meios de comunicagéo, a oralidade na maioria dos casos simultanea da escrita, mesmo para os elementos lexicais fundamentais. suporte material da escrita é constituido por sequéncias de grafemas relacionadas com a estrutura fonoldgica ¢ definidas pelo sistema ortogréfico em vigor em cada época. Portanto, neste contexto, no pode ser ignorado ou menosprezado o efeito de retorno do escrito sobre o oral, nomeadamente em relacdo a Areas vocabulares espe- cializadas a que o falante acede predominantemente através da escrita. Na aprendizagem do portugués como lingua estrangeira, a pre- cedéncia da oralidade sobre a escrita ndo deve ser tomada como um facto estabelecido: em relagao a este aspecto, hé que ter em conta factores de ordem pedagégico-diddctica, material, a formag&o dos professores, etc., que condicionam o modo como uma lingua estran- geira se apresenta a individuos em situag&o de aprendizagem. Além disso, para um falante do portugués como Iingua estran- geira, é previsivel que o mimero de palavras conhecidas a partir da escrita seja significativamente elevado nos casos em qué tenha, por razdes profissionais ou outras, de utilizar frequentemente aquela Iingua como forma de obter informagao. Daqui se infere que todas as alteragées introduzidas num dado sistema grafico — mesmo sendo este um sistema auténomo e con- vencional de representagdo dos sons ~ devem ser equacionadas também em fungio da referida relagio entre o oral € o escrito. 136 2. i, POSIGAO SOBRE 0 ACORDO ORTOGRAFICO F inaceitével que ajustes ou reformas ortogréficas potenciem mudan- as linguisticas em sentidos previstveis ou imprevisiveis. ‘Assim, com a supressio do hifen, cuja inclusio nestas Bases, ao que se sabe, n&o estava sequer prevista, multiplicam-se as sequén- cias graficas que conduzem a uma previsivel alterago da estrutura sildbica e da estrutura interna da palavra (exs.: subibliotecdria, bemaven- turanga, etc.), criam-se encontros de vogais no interior de uma palavra (exs.: semiinconsciente, contraalmirante, etc.) € permitem-se longas se- quéncias de letras de dificil leitura ¢ esteticamente desagradaveis (exs.: espiritossantense, afrolusobrasileiro, conavegador, etc.). No que diz respeito aos acentos grdficos, em que as grafias divergentes se limitavam a utilizaco no Brasil do trema e do acento agudo em palavras como lingitista ¢ idéia e a0 uso de acento circunflexo nas palavras esdrixulas em que ¢ € 0 ténicos sdo seguidos de silaba iniciada por consoante nasal (exs.: sémico/sémico, fendmeno|fendmexo), a Comiss&o ultrapassou de novo o objectivo da unificagéo, abolindo o acento em formas em que nao havia qualquer divergéncia nas grafias portuguesa ¢ brasileira, Esta medida originaré um acréscimo signifi- cativo de homégrafos, com custos no processo de leitura ¢ no proces- samento automdatico de texto, ¢ acelerard a tendéncia para a paro- xitonia em palavras que os falantes conhecem fundamentalmente através da escrita (termos técnicos, vocabularios especializados, etc.). Estranha-se que, sendo este um acordo de unificagéio ortogréfica entre paises da Africa, da América e da Europa que usam o portugués, nao tenham sido previstas regras de adaptac&o para a ortografia de palavras provenientes de linguas africanas que j4 se tenham integrado ou venham a integrar-se no portugués. Estranha-se ainda que, por omissio, o Acordo n&o aponte regras para a grafia unificada de empréstimas de Iinguas estrangeiras. Estes so alguns dos aspectos que merecem a nossa critica e que, pela sua gravidade e extensio, nos levam a considerar que este acordo de unificagao deverd ser renegociado. 28 de Junho de 1986 Subseritores do documento: Maria Raquel Delgado Martins, Maria Elisabete Almeida Mar- ques Ranchhod, Maria Ana Ramos, Palmira Marrafa, Maria Helena 137 A DEMANDA DA ORTOGRAFIA PORTUGUESA MiraSMateus, Ernesto d’Andrade Pardal, André Eliscu, José Manuel Feio, Maria Anténia Mota, Alina Villalva, Ana Maria Martins, Dulce Fanha, Inés Silva Duarte, Gabriela Matos, José Victor Adragio, Maria Manuela Ambar, Jo’o Andrade Peres, Isabel Hub Faria, Patricia Villaverde Faledo, Valentina Garcia Ferreira. 138 Comentario do Acordo Ortografico de 1986 e subsidios para a com- preensao da Questao que se Ihe seguiu 22222 Volume organizado por Ivo Castro, Inés Duarte e Isabel Leiria, publicado por Edicées Joao Sa da Costa Lisboa 1987 BRB

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