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Evaristo de Moraes suomi APONTAMENTOS PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO. < enn OPERARIO APONTAMENTOS DE DIREITO OPERARIO Esta 32 edicfo foi facsimilada da 2° edigio, de 1971, feta em comemaragio to centenéro’ do hescimeinto.do aor. em eosdigao com # Editors Universidade de Sto Paulo Esta edi¢fo, no entanto, foi entiquecida com uum Postécio'e opiises erfcas a respelto. desta pioncira, editada em 1905," pela’ Imprensa Nacional, em brochure, num oifavo de’ 150. pé- as. Seu titulo, “Apontamentos de Dieito Opers- fio®, sevela, con primciro Tugat, a mouésti. do Autor, ©» em segundo higar, aun mareada posse Seu tinge on norman Juries do dito ttlar io trabalho ‘os operstos, sem quallfieagao. pro. fisional, desorganteados mirn mundo de economia compeitva e desigul. Diante desse pioneiismo em matéria de pur blicapio’ do Direto Opera, por autor renomado F por tre verptado, & que’ LTH conerataae 4 Tdsi'denovements' edit," ensejo da co. tmemoragéo de seu cinglentendro ‘A importincia deste livra é tho grande, que, ‘como nos. diz, n0 Postécio, vatisto. de. Moraes Filho, "fore do campo estritamente futidco, aro, fariscimo, € 0 ensaio sobre a histéra social brat Sileira que a cle nfo se refia”. Seu autor, Antonio Evarsto de Morees, que * vast de’ Moree, nasceu na cidade do Rio de Tanci, onde praticsmente passou toda ua existincia, Tomou parte na Aboligio e ne Repdblica, langue inteiro. no. chamado Encilhamento. Comecou 8 produit cedo, na matéria de Di reito Penal Inieresiouse por todos os acontecimentos im ortates da década final'do século, escrevendo, debarendo ¢ snailand oe. Em 1916, bacharelowse pele. Faculdade de Dirsto Teitera de Freitas de Nites articipou da campanha civilista de Rui Bar- bose oi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro Vitorosa 2 Revolugio_do_ 30, foi Consultor Jurtdico do Ministero do. Trabaho Com 0 Estado Novo, afasouse de Geta ‘Vargas, aue 0 nomeou Professor de Direito Penal ha atal Faculdade: de. Direto, da Universidade Federal doo de Ta [Nao se descurou, jamais, dos problemas ope- ricios da €pocs, dandomnos em sels Apna for as linhae mestas do ascente ‘Dire do ‘Peabaiho. EVARISTO DE MORAES APONTAMENTOS DE DIREITO OPERARIO LER 19864JUBILEU DE OURO Dados de Catalogacio na Publieagso (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moracs, Evaristo de, 1871-1939 — Mai99 “Apontamentos de direito operirio / Bvaristo de S.ed. Moraes, — 3.ed. — So Paulo : LTr, 1986, Facssim. : de 2. ed., Comemorativa do Cententrio do rnascimento do autor, acompanhada de introdusao feita por Evaristo de Morees Filho. So Paulo : Lfr, 1971. Inclui p. de rosto da ed. original : Rio de Janeiro ‘Imprensa Nacional, 1905. 1. Ditsito do trabalho 2. Dirvito do trabalho — Brasil’ I. Moraes Filho, Evaristo de, 1914 — Il. Titulo. cDU 54351 86.1725 34;354(81) Indices para catdlogo sistemitico: Direito do trabalho 34:551(81) Diteito operdrio 34:531081) Esta 5+ edicdo foi fac-similada da 2. edicio, de 1971, feita em comemoracao do Centenério do nascimento do autor, em co-edi¢io com a Editora da Universidade de Sfo Paulo. Apenas foi acrescentado 0 Posficio e opinides criticas. Assessoria Editorial Impressio HM — PRODARTE DAG (Céd. 555.5) (© Todos 05, direitos reservados Tits EDITORA LTDA. R. Apa, 165 - CEP 01201 - Fone: (011) 826-2788 - Sao Paulo - Brasil 1986 | Para ARMANDO CASIMIRO COSTA, Diretor de LTr “Legislagio do Trabalho’, que, incen- tivando o reaparecimento desta obra, manifestowse interessado em editd-la. INDICE Capitulo I Leis do Trabalho . Capitulo IT . LXXVII O Dircito Operdrio ¢ 0 Cédigo Civil ..... Capitulo I Criangas nas Fabricas ........--02++ Capitulo 1V Acidentes no Trabalho ....--..-+. ++ Capitulo V Diteito de Greve ...-.0..00eeeeee Capitulo VI ‘As Greves de Patroes © os “Trusts” . Capitulo VIE ‘Normas ou Regras do Trabalho ... Capitulo VII Sindicatos Operdrios ........2-06.++ 23 a 39 49 69 83 93 Capitulo 1X COUNEMENES 0c ns ena mue ties saeed Saeees 113 Apéndice Pareite We Geb sia dees ovens bcs 145 PORE 5 veteran coe ere eae eres 151 INTRODUGAO 1 — O significado déste livro na cultura juridica nacional. Com a fundacio do Correio da Manha, em 1901, logo representou éle uma tribuna livre para o noticiério ¢ 0 debate das reivindicagdes operdrias do inicio do século entre nés. Basta compulsar a colegio daquela época, para se verificar o interésse ¢ a acolhida que o jornal recém-fundado por Edmundo Bittencourt daya aos temas da chamada questo social, inclusive com inauguracio de uma coluna prépria a respeito do assun- to. Foi nas suas piginas, a partir de 1908, que se publi- caram 0s artigos de Evaristo de Moraes, que vicram mais tarde a se constituir nos seus Apontamentos de Direito Operdrio, editado no ano de 1905 pela Imprensa Nacio- nal. A publicagio original veio a lume, como brochura, num oitavo de 150 paginas. Como livro, sob forma mais ou menos ordenada de capitulos, procurando abranger alguns temas sistemd- ticos de Direito do Trabalho, nao ha chivida que ocupa posicao pioneira na literatura jurfdica nacional. Déle, hoje, se socorrem os historiadores sociais e também os socidlogos como fonte primaria de suas pesquisas. ‘Tra- tase, afinal de coutas, de um livro de doutrina ao mesmo tempo que de depoimento de algném que participou — ‘como ator, jornalista e advogado — das reivindicagies ¢ da organizacao das classes trabalhadoras entre nés. 1 Nio é de estranhar que Ihe tenha dado o titulo de Direito Operério, acanhado € insuficiente para a dou- trina contemporinea, mas bem representative da época ‘em que foi escrito. Constitufam os trabalhadores urba- nos, de Fabrica, a maior massa de miserdveis e de despro- tegidos pela legislacZo contra os abusos de téda ordem. © drama das criangas e das mulheres — mal alimenta- das, subnutridas, mal alojadas, com salrios abaixo, muito abaixo, da média dos que eram pagos ao traba- Thador adulto do sexo masculino — logo chamava a aten- io do jurista de boa formacio. A falta de higiene ¢ de yranca nas fabricas que surgia, as con tl ae ents de servigo, durante mais de 12 horas de trabalho fatigante, sem descanso obrigatério nem férias, com salérios de fome, tudo isso representava a sociedade industrial brasileira do coméco dos novecen- tos, como ja havia acontecido com a Europa no século XIX. O problema mais urgente e cruciante era, assim, dos operérios industriais, inclusive pelas mortes © mutilagées permanentes, pelas doencas crénicas, que Ihes causavam essas péssimas condig6es higiénicas ¢ de segu- ranga nas fabricas. Quer dizer: 0s primeiros destinatirios das normas juridicas, protetoras, pelas quais se batia Evaristo de Moraes eram exatamente os operdrios, em geral sem qualificagio profissional, desorganizados, présa facil de uma economia competitiva e sem entranhas. Como é sabido, mesmo hoje, ainda muitos sio 0s autores ¢ tra: ladistas que denominan de Dircito Operdrio — embora erroneamente, nesta altura do século — a ésse conjunto de leis tutelares ¢ organizadoras daqueles que vivern do seu trabalho, normalmente sob regime de contrato de ut trabalho. Podem ser aqui lembradas, de improviso, as obras de G. Scelle (1922), J. M. Alvarez (1933), J. Cas- torena (1942), P. Pic ¢ J. Kreher (1943) e P. Lavigne (1948) Ni teve o A. pretensdes de originalidade nem de criagio de nenhuma obracprima, Modesto como sempre, disso @le se deu conta, desde logo, nao deixando de o declarar em mais de um passo do livro: “O fim déste hosso opiisculo se reduz a vulgarizar algumas notas de Direito Operirio, quigé valorizdveis. Estes estudirihos nao visam a doutrinar, mas, tio-sdmente, a recordar upontar 0 que se tem feito em prol dos operdtios no seio de povos verdadeiramente civilizacos, Em todo caso, os pareceu ser oportuno o momento de chamar a aten- ‘go dos operirios para uns tantos problemas e reformas, que éles podem, a pouco pouco, ir propondo e resol. vendo, com ou sem intervengao dos podéres ptiblicos’ “Limitar-nos-emos as verdades comezinhas, a altura déste trabalhinho de vulgarizacio, ¢ compativeis com o insig- nificante preparo de quem 0 escreve”... “Se éstes apon- tamentos servissem, a0 menos, para despertar a atengio dos que podem, querem e mandam, dar-me-ia por muito feliz” Sentia 0 A., contudo, o atraso do meio em que escre- via, como que pressentindo, por isso mesmo, o seu papel de precursor € pioneiro, contentando-se em alertar e dar @ mensagem, a espera de dias melhores no futuro, por- que, afinal, é sempre néle que a humanidade coloca 3 scus sonhos. “Eutretanto, como no publicamos esta obrinha para que se realizem, ja e j4 as idéias nela propagadas, daremos algumas notas acérca do momen toso assunto”.” v Apesar de simplesmente reformista, possibilista, mui- tas das suas idéias nfo foram até hoje postas em pré- tica, em que pese ao seu estrénuo cuidado de manter-se realista e pragmético, alheio a qualquer forma de ideo- logia. Agora, no entanto, que j se passaram 65 anos da primeira edigio dos Apontamentos, néo vem fora de propésito reunir aqui, nesta Introducio, algumas opi- nides de mais de uma geracéo sobre a “obrinha” — as primeiras de seu conhecimento, mas a quase totalidade posterior & sua morte (junho de 1939) — que por certo muito haveriam de servir de conférto ao velho idealista de ontem, se as pudesse ler todas: Galdino Siqueira, 1922: “‘Essa alma combativa ve- mos ainda manifestada em pugnas extrajudiciais, plei- teando a causa operéria, essa causa santa, no que tem de razodvel e de justo, ¢ a impressio disso tem quem folhear 0 seu Direito Operdrio, quem compulsar as f6- thas didrias, onde 0 publicista nao regateia o seu con- curso de defensor, sempre que’o operario, 0 humilde, & tripudiado pelo forte, seja éle quem for, burgués ou autoridade atrabiliria; essa alma combativa vemos ainda exteriorizada em outras pugnas, nos embates politicos, quando seu ideal republicano democrata entra em jogo”. Alfredo Joio Louzada, 1983: “Entre éstes publicis- tas e socidlogos patricios, é de notar a ago que sempre desenvolveu 0 Dr. Evaristo de Moraes, um dos pionei- tos das questdes sociais no nosso pais ¢ entusiasta defen- sor dos interésses dos empregados. Na sua pequena mas interessante obra Direito Operdrio publicada em 1905, ésse publicista, que é um dos principais no assunto, ante- via no pais o advento de tédas as leis de trabalho que v hoje possuimos ¢ que aproveitaram muito de sua pre- ciosa colaboragio”.* ‘Waldir Niemeyer, 1986: “Ao caro Mestre Evaristo de Moraes, intrépido pioneiro da legislagio do trabalho no Brasil”... “Alguns autores brasileiros descrevem com muita precisio 0 quadro que entio se esbocava”. Em nota, referindose a ésse “ambiente inerte ¢ desleixado”, cita o autor o livro de 1905, de Evaristo de Moraes. Dario de Bittencourt, 1988: “O Sr, Evaristo de Mo- aes, em seu trabalho Apontamentos de Direito Operd- rio — quigé, cronoldgicamente, 0 primeiro livro escrito no Brasil versando a matéria, pois que foi impresso em 1905 — dedica um capitulo a “O Direito Operirio e o Gédigo Givil”, onde critica a orientagao retrégrada que presidiu 4 elaboragio do mesmo”. Fernando Callage, 1939: “Tao humano e cristo era ésse direito que, na sua grande batalha de cada dia, 0 j4 citado Evaristo de Moraes, em um dos livros publi- ‘cados em 1905, afirmava que “jd era tempo, entretanto, de se cuidar, no terreno legislativo, de se abrir caminho a alguns institutos juridicos especialmente destinados A protecao das classes trabalhadoras e 4 modificagio das suas condigées de existéncia”. Fernando Callage, 1989: “Mas se é certo que 0 movi- mento cultural em prol da legislacio social brasileira tomou um aspecto mais decisivo depois de 30, nio é menos certo que muito antes désse movimento, j4 vi- nham alguns espiritos se preocupando com a matéria, sobressaindo o Sr. Evaristo de Moraes, através dos seus ensaios sdbre legislagio € questo social. Foi precisa- mente, em 1905, que apareceram os seus A pontamentos de Direito Operdrio, em que descreve desolado 0 pano- vw rama do completo alheamento, quer por parte dos estadistas, quer por parte dos legisladores, quer ainda por parte dos nossos escritores, sObre um assunto de tanto interésse para a nacionalidade”.* Cotrim Neto, 1940: “Nao obstante, 0 movimento contrério tomava forma, e, em 1905, Evaristo de Moraes, campedo do socialismo brasileiro, escrevia seus Aponta- mentos de Direito Operdrio, a primeira ¢ talvez a mais, notdvel das contribnigées para 0 Direito do Trabalho que jé se féz em nossa terra, s6 bem mais tarde comple- tada’ pelo esforco ¢ inteligéneia sem-par de Irineu Ma- chado, Oliveira Viana e Cesarino Jinior, nos grandes centros universitérios do Rio ¢ de Sao Paulo. E nesse seu estudo Evaristo de Moraes preconizou 0 contrato coletivo de trabalho, que éle classificava de “ideal a atingir”, para substituir o contrato individual, constituindo isto o primeiro brado entre nés que se er- gueu pela instituigéo que a jurisprudéncia cautelosa do Velho Mundo jé ia consagrando”. Dorval Lacerda, 1943: “Do estudo da evolugio legis- lativa resulta uma conclusio que se nos afigura a mais importante de tédas ¢, de certo modo, assemelhavel & moral dos contos: muito se pensou e discutiu, antes de 1930, no Brasil, sObre 0 Direito do Trabalho. Tudo o que hoje ¢ realidade ja fora, guardada a relatividade ne- cessiria, pelas contingéncias do tempo, cogitado, no Par- lamento ou fora déle. O Direito em questio tinha jé naquela época seus adeptos ¢ doutrinadores, alguns in- fluidos pelos exemplos estrangeiros, outros por ques tes de ordem politica ¢ a maioria formada pelos que se impressionaram pela realidade brasileira. Bsses sto 8 precursores ¢ os seus nomes esto indelévelmente escri- Vit tos na histéria da disciplina agora wiunfante: Evaristo de Moraes, Medeiros de Albuquerque, Nicanor do Nas- cimento, Joao Pernetta, Moraes ¢ Barros, Indcio Tosta, Mauricio de Lacerda, Adolfo Bergamini ¢ Deodato Maia”. Joaquim Pimenta, 1944: “Até 1980, toda a nossa lite- ratura em assuntos trabalhistas, especialmente, na parte juridica, reduzia-se a alguns livros, entre éstes, 0 de Eva- risto de Moraes, sobre Direito Operdrio;...” Arnaldo Siissekind, 1950: “De fato, como féz totar Evaristo de Moraes em 1905, no primeiro livro especia- lizado que se editou no Brasil sobre o direito do traba- Ihador, “‘na regulamentagio do trabalho, naio hé ques- to mais intimamente ligada aos interésses vitais da cri tura humana do que a que diz respeito ao tempo ow duragio da atividade profissional’’* Brigido Tinoco, 1955: “No que tange aos mesmos (problemas trabalhistas), é justo que se louve a acio esclarecida do saudoso Evaristo de Moraes. Além do seu ardor na tribuna ¢ dos artigos na imprensa, 0 velho mestre poliu espiritos, féz calar as gargalhadas do des- denho e bruniu consciéncias com 0 seu Direito Operi- rio. Jé em 1905, data da publicagao dessa obra, dizia éle: “O trabalho noturno das criangas é praticamente em certas fabricas — como o das mulheres — cercado de todos 8 inconvenientes ¢ desmoralizagses, que tanto tém sido combatidos no estrangeiro. Ainda nenhum ministro da Indistria sentiu a necessidade de um inqueérito, que servisse para evitar abusos ¢ verdadeiros crimes, ¢ indi- case a necessidade das reformas ¢ a maneira de as executar™. vu Mozart V. Russomano, 1956: “No coméco do século, entre nés, a doutrina recomendou, vivamente, 2 adocéo do instituto (contrato coletive de trabalho), como me- dida aconselhavel em prol da harmonia coletiva. A pri- meira palavra parece haver sido pronunciada por Eva- isto de Moraes, em seu livro Apontamentos de Direito Operdrio”. ‘Arnaldo Siissekind, 1957: “A expressao Direito Ope- ritio, usada no Brasil, pela primeira vez, por Evaristo de Moraes (Apontamentos de Direito Operdrio, 1905)”. Segadas Viana, 1957: “Quinze anos depois (do de- creto do Govérno Provisério, n.° 1.318), Evaristo de Moraes, em seus Apontamentos de Direito Operdrio, clamava ainda pelo amparo as criangas nas fabricas, mas sua voz apaixonada na defesa dos fracos nao fazia eco”. Cesarino Jinior, 1968: “Era isto 0 que existia sobre legislagio social, antes da revolugio de 1980. A doutrina ainda muito escassa apresentava a obra de Evaristo de Moraes, Apontamentos de Direito Operdrio (1908)... Martins Catharino, 1968: “O Projeto de Cédigo Civil sofrera justa e severa critica de Evaristo de Moraes, Apontamentos de Direito Operdrio, 1905, pag. 23". José Albertino Rodrigues, 1968: “Tratase de obra pioneira ¢ primordial no Direito Social Brasileiro”. Albino Lima, 1968: “Evaristo de Moraes, em seu classico Apontamentos de Direito Operério, editado em 1905,...” ..""Tinha razio o professor Joaquim Pimenta quando recomendava aos seus alunos a consulta fre- gitente do mencionado livro, também louvado por nosso ‘eminente mestre Alberto Bittencourt Cotrim Neto, por- que, no limiar do nosso século, Evaristo de Moraes, que IX mais tarde desempenhou o elevado cargo de Consultor Juridico do Ministério do Trabalho, a convite de Lin- Wolfo Collor, jé se preocupava com as criangas brasilei- ras, que por motivo econémico eram compelidas a tra- balhar, ineapazes essas ainda exploradas nos locais de trabalho, por culpa de nossa legislagio trabalhista".” Amauri Mascaro Nascimento, 1968, com uma and- lise da obra do A. minuciosa ¢ profunda, notadamente sobre a questio do salario: “O livro de Evaristo de Mo- raes, Apontamentos de Direito Operdrio, editado em 1905, € sem diivida, uma contribuicio importante para © desenvolvimento do nosso Direito do Trabalho. Na ocasiao, o autor registra a existéncia de um movimento operdrio, a constituigio de agremiacées e, inclusive, a deflagracio de greves na luta pela conquista da jornada de 8 (oito) horas, Sio as seguintes as idéias e proposicées contidas na obra do eminente jurista: 1) 0 homem é livre, tem o direito de vender o seu trabalho pelo prego ¢ nas condigdes que quiser, mas na vida industrial moderna essa liberdade de trabalho s6 tem gerado a opressio ¢ a miséria, a exploracao do operariado ¢ seu rebaixamento; 2) ja & tempo de se cuidar, no terreno legislativo, de abrir caminho a alguns institutos juridi- cos, especialmente destinados 4 protecio das classes balhadoras ¢ modificagio das suas condigoes de exis- téncia; 8) 0s salarios sujeitamse 4 lei de concorréncia pelo melhor preco; 4) é necessaria a regulamentagio do prego do trabalho ou taxa do saldrio através de leis e animagao dos sindicatos profissionais que seréo chama- dos a colaborar com as autoridades; 5) ¢ indicada a inter- vencio estatal para estabelecer justas condigdes de tra- balho; 6) a taxa de salério sofrera benéfica influéncia 2 Diete Opervio x do intervencionismo oficial no sentido de impedir a diminuigéo da remuneragio por meios indiretos tais como substituigao de adultos por criangas e mulheres, trabalho noturno, prolongamento de servicos por meio de revezamentos forgados, fornecimento de géneros por abonos, ete. Essas idéias infundiram ao movimento operério alma nova, cristalizaram aspiracdes traduzidas com bastante felicidade pelo renomado autor e que ecoaram profun- damente em nosso ambiente”. Constitui éste trecho a mais completa e carinhosa homenagem, de contemporineo nosso, feita com evi- dente simpatia intelectual, as generosas doutrinas refor- mistas do A. em prol do advento do que agora tanto se est denominando de democracia social. Bastam estas opinides, na maioria, de pessoas que nao chegaram a conhecé-lo pessoalmente nem a sofrer influéncia direta do A., para que fique plenamente jus- tificada a publicagio desta 2.9 edicéo, com a qual se ini- ciam as comemoracdes do seu prdximo centendrio. A obra tornou-se rara, totalmente desaparecida das livra- rias de segunda mio, de posse inicamente de poucos especialistas, privando assim as novas geragées de rea- tar 0 contacto histérico com um documento que repre- senta, mais do que um ensaio de doutrina, 0 testemunho ¢ 0s atos de alguém que, &-época, ainda era rébula, nfo formado em Direito, mas que j& sabia bastante das coi- sas da Justica para colocé-las a favor dos trabalhadores da sua terra. Dois dos maiores propugnadores da legislagao social entre nés, quais sejam Mauricio de Lacerda ¢ Carvalho Netto, nao deixaram de prestar a merecida homenagem XI a quem 0s havia precedido no tempo, iniciando a cam- panha reformista e dela nunca se afastando. Em parecer emitido na Comissio de Legislagio Social, da Camara dos Deputados, no ano de 1921, referiase o primeiro a0 atraso brasileiro em matéria legislativa do trabalho, com estas palavras: “Basta assinalar a respeito que se em 1905 éle (assunto: duragio do trabalho) merecia de Eva- rristo de Moraes 0s conceitos que emite em seus Aponta- mentos de Direito Operdrio, tal o seu atraso, em 1920 de pouco variam no mesmo autor, senfo para pior, as impresses que the causavam os famosos decretos conhe- cidos por leis Gordo, no seu novissimo livro penal”. Eo segundo, também deputado, tratando da regula- fo do trabalho de menores, socorrese do A., em nota, nestes térmos: “Em 1905 veio estampa o trabalho de Evaristo de Moraes — Apontamentos de Direito Operé- rio —, nas oficinas da Imprensa Nacional. Li esta no capitulo terceiro — Criangas nas Fabricas — (pégs. 31 a 36) a sintese do que até entao se fizera no Brasil’ 2 — Ligeira biobibliografia — Antonio Evaristo de Moraes, que se assinaya Evaristo de Moraes ¢ assim era conhecido, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Capi- tal do Império, na Rua Larga de Sao Joaquim, mais tarde Av. Marechal Floriano, a 26 de outubro de 1871, dia de Sao Evaristo, dai o seu nome duplo. Morreu na mesma cidade, — onde praticamente passou téda a sua existéncia, nunca tendo viajado para o exterior — a 30 de junho de 1939, com 68 anos incompletos. Aprendeu a ler com a propria mae, nos Evangelhos, © que haveria de marcé-lo para o resto da vida. Mais tar- de, quando préso no regime de estado de sitio decretado xu pelo govérno Bernardes, em 1924, teré oportunidade de escrever num pequeno artigo no Correio da Manhé, sob 0 titulo Minha Mae: “Sempre que uma dor moral me punge, uma injustica me fere, uma perfidia me apu- nhala, eu penso em ti, penso nos teus ensinamentos € nos teus exemplos. Recolho-me na tua lembranga como num reduto de supremo amparo, como num asilo de paz. e mansidio. Recordo 0s teus primeiros influxos na minha alma de crianga ¢ os.tragos da tua influéncia em téda a minha vida — quando os olhos do corpo ainda te contemplavam e depois que s6 te vejo com os olhos da imaginagio. Que grande ¢ sutilissima psicéloga tu féste, ao ensinar-me a ler nos Evangelhos!”” Obteve os preparatérios de grau médio, como aluno gratuito, no externato do Golégio Sio Bento, mantido pelos frades beneditinos, de 1883 a 1886. Ali teve como colegas, entre outros que se destacaram no futuro, Al- berto Rangel, Ataliba Lara, Milciades Mario de Sé Freire, Anténio Moitinho Déria, Epaminondas de Car- valho, Mendes Tavares (que haveria de ser seu cliente), Fernando Vieira Ferreira. Nos anos de 87 a 89, vamos encontré-lo como profes- sor do préprio Colégio Sio Bento, como auxiliar de Por- tgués, Geografia ¢ Histéria. Nesta mesma época prati- cou jornalismo como repérter ¢ noticiarista de varios jor- nais, destacando-se a Gazeta Nacional, aparecido em 1887, onde teve oportunidade de entrar em contacto com Saldanha Marinho, Ubaldino do Amaral, Aristides Lo- bo, Matias de Carvalho, fazendo, contudo, de Silva Jar- dim o seu chefe politico na propaganda da Republica. Freqiientava os clubes literdrios da cidade, vindo a co- nhecer 0s figurdes da época, a0 mesmo tempo que exer- xu citava 0 que mais tarde viria le proprio @chamar de “destemperos oratérios”. Conhece Silvio Romero, Valen- tim Magalhies, vindo a obter de Carlos de Lact, monar- quista ferrenho, esta declaragio que muito Ihe haveria de valer na vida pritica para o seu sustento: “Atesto que 0 Sr. Anténio Evaristo de Moraes exibiu boas pro- vvas dos seus conhecimentos de gramdtica portuguésa em um exame para a matricula nos cursos supetiores do Império; € que, outrossim, j4 tive ocasido de apreciar quanto se aplica ao estudo do idioma nacional pela lei- tura de uns escritos do mesmo senhor, que considero no caso de reger alguma classe de portugues”. Viveu intensamente aquéle momento de mudanga social ¢ politica entre nés. ‘Toma parte na Abolicio ¢ na Republica, langa-se inteiro no Encilhamento, na- quela inflagio desenfreada, deixando-se envolver na- quele verdadeiro delirio de papelmoeda. Ganha muito dinheiro, pensa que enriqueceu, para encontrar-se logo depois como néle ingressou: sem um real. O ano de 1894 significaria para éle duas coisas impor- tantes, seu primeiro casamento ¢ a estréia no iri. £ com éste acontecimento que inicia as suas Reminiscéncias de um Rébula Criminalista (1922), servindo 0 assunto de objeto a uma das cronicas de Humberto de Campos no niimero de A Maga de 7 de julho de 1928, ao lado de magnifica caricatura sua de autoria de Andrés Gue- vara. Vem esta cronica reproduzida na 2.* série dos Per- fis daquele Académico.* Gomeca a produzir cedo, com estudos e monografias de Direito Penal desde 1894. Interessa-se por todos os acontecimentos importantes dessa década final do século, debatendo-os e os analisando em pequenos opiisculos xIV © névo século vai encontré-lo como Diretor ¢ Redator- Ghefe do Boletim Criminal Brasileiro, do qual chegou a publicar cérea de uma duizia de mimeros, nos quais discutia comentava 0s assuntos € as obras, nacionais € estrangeiras, da especialidade. Gristdo de formagio, embora agnéstico por convic- ‘cdo, desde logo sentiu a miséria do seu tempo ¢ da sua cidade. O exercicio da advocacia criminal facilmente ‘o conduziu as chagas sociais ¢ aos dramas nascidos do capi- talismo incipiente entre nés. O Cédigo Penal é uma espécie de indice geral ou agenda dos sofrimentos huma- nos, sempre muito mais freqiientado pelos menos favo- recidos da fortuna. Jé em 1890/92, seu nome aparece ‘como signatitio do Partido Operdtio, de orientagao sin- dicalista, que timidamepte se ia constituindo nos pri- meiros dias da Republica, em meio a lutas e desenten- dimentos de scus proprios fundadores, Franga e Silva, tenente Augusto Vinhais e Gustavo Lacerda. Célebre pela clogiiéncia ¢ pelo talento, logo ficou conhecido ¢ disputado no Féro, tornando-se dentro em pouco uma figura popular na sua cidade natal ¢ no pals. ‘Advogado das questdes mais momentosas da primeira década do século, fundador das primeiras associagbes de dlasse, nelas chegando a inscrever-se como membro efe- tivo, jornalista, escritor, viveu plena € resolutamente a sua época, nio Ihe sendo estranho nenhum problema social do tempo. Meteu a mo em cheio na vida, como aconselhava Goethe, Jé em 1897 fora préso por haver defendido o irmao de Nilo Pecanha, adversatio do go- vérno, Datam dai o seu conhecimento ¢ a sua grande admiracéo por ésse politico fluminense. Fandtico admi- rador de Rui Barbosa, contou-me éle que, juntamente xv com Irineu Machado, mandava buscar pela Garnier os mesmos livros que ali haviam sido encomendados pelo grande jurista baiano. Alistou-se na sua campanha civi- lista, e com o seu idolo viajou pelo interior do Brasil. Somente em 1916 deixou de ser rabula, bacharelan- do-se em Direito pela Teixeirinha, como era conhecida a Faculdade de Direito Teixeira de Freitas, de Niteréi. Foi orador da formatura de sua turma, a primeira a diplomarse naquela Escola, “nascida da feliz iniciativa de Abilio Borges, o grande semeador de idéias, 0 sem- pre risonho sonhador do viver para outrem”, nas suas préprias palavras. Por férga da lei Rivaddvia Carréa, validou o diploma com novos exames na Faculdade de Dircito da Capital Federal, em 1918. ‘Advogado nas causas mais importantes do seu tempo, bastando destacar duas delas, sempre fiel 4 campanha civilista de Rui ¢ A generosidade do seu cora‘ dor dos matadores dos estudantes na denominada “pri- mavera de sangue”, chacina ocorrida no Largo de Sio Francisco a 22 de setembro de 1909, em cujo juri ser- viram o escritor Lima Barreto e o professor Bruno Lobo, ainda muito jovem e que haveria de ser seu amigo pelo resto da vida; ¢ defensor, na “revolta da chibata”, de Joao Candido e seus companheiros, juntamente com Jerénimo de Carvalho. Nesta mesma década, de 10 a 20, vai a Sio Paulo defender o anarquista Eugénio Leuenroth, préso e maltratado pela policia por haver tomado parte no movimento grevista de 1917. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, alinha-se entre os que aqui fundaram o movimento Glarté, & ma- ira de Henri Barbusse na Franga. Mais uma vez fica com Rui, ¢ Ihe ajuda a claborar a conferéncia de margo ne XVI de 1919 no Teatro Lirico sobre a questo social. Disso deixara testermunho por escrito, em documento posterior no qual Jembra 0 nome de seus colegas de colaboracio. Vale a pena a leitura de trecho désse depoimente, inclu- sive pelo seu inegivel valor histérico: “Bem recordo do espanto manifestado pelo culto Amaro Cavalcanti, quan- do Prefeito, ao sustentar eu a legitimidade da legislacio protetora dos operdrios... E. désse espanto — por que nio dizé-lo? — nem escapava a genialidade de Rui Bar- bosa, nao obstante a conferéncia do Teatro Lfrico, a mais fraca dentre as que proferiu, durante a campanha politico-cletoral de 1919. Fenémeno estranhavel, que eu proponho ao estudo do bidgrafo definitivo do incom- paravel brasileiro: éle, que fora, num caminhar de linha teta, sem desfalecimentos, extrénuo ¢ generoso batalhador em prol da libertagéo dos escravos, nunca se preocupara, sequer de relance, com a sorte dos ope- rtios, tantas vézes sacrificados & ganancia dos patrdes e cuja liberdade econdmica exprime mera ilusio. Freqiien- temente acode-me ao espirito a lembranga da longa con- versa em que eu, o saudoso José Agostinho dos Reis € Caio Monteiro de Barros ministramos a éle os dados concretos, 0s comprovantes que deveriam. servir para feitura da conferéncia, vinte e quatro horas depois. Ble pasmava diante dos quadros, que Ihe apresentivamos, de misérias, de softimentos, vexames ¢ exploracées a que esto sujeitas algumas classes trabalhistas, parecen- do-lhe incomportivel a situagio por nés descrita. E Deus sabe quanto e quanto Ile custou, abandonando os prin cipios de seu velho Liberalismo Econémico, sugerir, de piblico, providéncias legislativas, de cunho interven- cionistal’” XVI Advogando, escrevendo em quase todos os jornais da sua cidade ¢ em algumas revistas cientificas ¢ literdrias, traduzindo, inclusive uma pega teatral de Brieux, par- ticipa de movimentos democratas, de campanhas pela infincia desvalida, de ligas anti-alcodlicas, sem esquecer a Liga Mac6nica, da qual foi membro desde a mocidade. Jé em 1905 colabora em Os Anais, de Domingos Olimpio, ao lado de José Verissimo, Silvio Romero, Coe- Iho Neto, Rocha Pombo, Gonzaga Duque, ¢ muitos ou- tros. Na década de 10, volta a editar ¢ a dirigir uma revista jutidica, Revista de Direito e Processo Penal, junramente com Gregétio Garcia Seabra Junior e Janua- rio d’Assungio Osério, Nos anos 20, inclui-se entre os colaboradores de O Mundo Literdrio, de Agripino Grieco e Théo Filho, a0 mesmo tempo que, ao lado de Alfredo Horcades, dirige e faz publicar a revista Nagao Brasileira. Ja a essa época era um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, por cuja legenda se candidatara a deputado federal na Capital da Republica, sem lograr éxito. Levantara, em pedido de habeas corpus perante © Supremo Tribunal Federal, a inconstitucionalidade da Lei n.° 2.741, de 8 de janeiro de 1913, no ano de 1918, contra a expulsio de trabalhadores estrangeiros ha muito domiciliados no Brasil, alguns com mulher filhos brasileiros. No ano seguinte, em dois acérdios, reconheceu aquela alta Gérte 0 vicio inquinado.® Regorija-se com a promulgacio da Lei n.° 3.742, de 15 de janeiro de 1919, regulando os acidentes do traba- Tho, mas logo Ihe endereca uma série de criticas, mos- trando a sua impossibilidade de real eficdcia, além de atraso em rela¢io ao tratamento que mereceu o mesmo XVIL assunto em outros paises. Em verdade, como mostra 0 ‘A. a lei fora votada as pressas na Cimara, depois de Ionga demora, pelo sobressalto do recente movimento anarquista, com ameaga de compld, ocorrido, na cidade do Rio de Janciro, em fins de 1918, O seu livro Os aci- dentes no trabalho e a sua reparacao (Rio, 1919) viré a ser abundantemente citado, como autoridade doutri- ndria, na Comissio de Legislagio Social, criada exata- mente no dia da agitacio, 18 de novembro de 1918, pelo deputado Carlos Penaficl, como argumento para a revi- sfo e reforma da lei, que vird a dar-se somente em 1934, ja no Govérno Provisério (Decreto n& 24.697, de 10 de julho), claborado por uma comissio sob a presidén- cia do A” Liberal, generoso, dadivoso, fica em 1922 1924 — como haveria de ficar em 1930 — com os que querem mudar as regras do jOgo politico neste Pais. Foi préso por mais de 40 dias, quase sendo embarcado para a Cle- velindia, depois da derrota do 5 de julho daquele pentil- timo ano. Em 1929, com a Alianga Liberal, colabora na plataforma politica do seu candidato, vendo final- mente vitorioso 0 movimento em outubro de 1930. Na tese para 0 4.° Gongresso Americano da Crianga reunido em Santiago do Chile escrevia o A.: “Mais dia, menos dia, tera, portanto, o Brasil de dar satisfacio ao seu compromisso, nao ficando aquém de outros paises, inchu- sive o Japio, que, iltimamente, refundiu a sua legisla- Gio trabalhista para se pr de acérdo com o pactuado em Versalhes ¢ confirmado em Washington”."" Popular, popularissimo na cidade que o viu nascer, a ponto de levar uma hora de uma esquina a outra, tal ‘0 mimero de pessoas que o reconheciam ¢ com as quais XIX era obrigado a trocar algumas palavras, 0 A. nao se ele- geu de ndvo em 1929, candidato a deputado mais uma ver. Notérios eram os seus atos de caridade publica, com a participacio nos érgios de direcio das entidades man- tenedoras da infincia abandonada, de mendigos ¢ dos pobres em geral. O seu Natal era dividido pela miséria que Ihe acudisse 4 porta, com distribuigio de viveres ¢ brinquedos todos os anos. Vitoriosa 2 Revolugio, aceitou 0 cargo de Gonsultor Juridico do Ministério do Trabalho, criado a 26 de novembro de 1930. Gom éle, sob a direcao de um Minis- tro jovern, inceligente e bem intencionado @ favor das reformas sociais, encontravam-se os antigos combatentes da véspera em prol do mesmo ideal: Joaquim Pimenta, Agripino Nazareth, Deodato Maia, todos com uma longa fdlha de servicos prestados ao advento de uma efetiva ¢ real legislagio do trabalho, & maneira do que jd se vinha fazendo em outros paises dos quais impor- tévamos a cultura literdria e cientifica. Entra com Lindolfo Color para o Ministério em 1930 e com éle sai em 1932. De nada adiantou 0 apélo, rece- Dido em carta, do Ministro interino, Afrinio de Melo Franco, para que continuasse no cargo, a fim de ajudé-lo a arrumar a casa nos primeiros meses. Indica para subs- tituilo 0 nome do socidlogo ¢ historiador, seu amigo Oliveira Viana, que ird permanecer no cargo até 1940. Gom 0 Estado Névo, afastouse de Getulio Vargas, que dle no se esqueceu, nomeando-o Professor de Di- reito Penal va atual Faculdade de Divito, da Univer- sidade Federal do Rio de Janeiro. Af lecionou, ja enca- necido e cercado de gléria, quase como uma figura len- daria, nos dois tiltimos anos de sua vida, 1938 ¢ 1939. == XX Foi o bélsamo e 0 refrigério para a sua existéncia de lutas e incompreensdes, pois encontrou na juventude a consagracio definitiva e desinteressada que costuma ser negada pelos mediocres € pelos frustrados de todos os tempos. Sem incluir as centenas, se nao os milhares, de arti- gos escritos diretamente para a imprensa (jornais ¢ re- Vistas), af vai a relagio de suas obras ¢ optisculos, como le proprio costumava dizer: O Jiri ¢ a Nova Escola Penal, 1894; Estudinho de Direito: o Juri, 1896; A Questia das Prostitutas, 1897; Estudos de Direito Cri- ‘minal, 1898; Contra os Artigos de Guerra, 1898; Mar- celino Bispo (Estudos de Psicologia Criminal), 1898; O Proceso Abél Parente, 1901; La Teoria Lombrosiana del Delincuente, 1902; Médicos e Curandeiros, 1902; Criancas Abandonadas ¢ Criancas Criminosas, 1902; Apontamentos de Direito Operério, 1908; O Crime das Degoladas, 1907; Enrico Ferri, 1910; A Moral dos Je- suitas, 1911; Um Caso de Homicidio por Paixto Amo- rosa, 1914; Criminalidade da Infancia ¢ da Adolescén- cia, 1916; 22 ed., 1927; Extingao do Trafico de Escravos no Brasil, 1916; A Lei do Ventre Livre, 1917; Os Aci- dentes no Trabalho ¢ a sua Reparacio, 1919; Proble- ‘mas de Direito Penal e de Psicologia Criminal, 1920; 2.4 ed, 1924; Ensaios de Patologia Social, 1921; Remi- niscéncias de wn Rébula Criminalista, 1922; Prisoes ¢ Instituigées Penitenciérias no Brasil, 1923; A Campa- nha Abolicionista, 1924; premiada pela Academia Bra- sileira de Letras; Minhas Prisdes e Outros Assuntos Contemporineos, 1927; Criminalidade Passional, 1988; Embriaguez e Alcoolismo, 1933; A Escravidao Africana no Brasil, 1933; Um frre Judicidrio: O Gaso Pontes XXI Visgueiro, 1934; Garceres ¢ Fogueiras da Inquisicao, Processos contra Anténio José, 0 Judeu, 1935; Da Mo- narquia para a Republica, 1936; O Testemunho perante a Justica Penal, 1939. 3 — Rio de Janeiro ¢ So Paulo nas duas primeiras décadas da Republica — Nascido ¢ criado na Capital Federal, onde o A. féz téda sua formagio ¢ onde exer- ceu a sua atividade profissional, como que serviu ela de palco para a sua vida, ao mesmo tempo que de campo social para as suas observagdes e experiéncias. Militando ua imprensa, na advocacia, na politica © no, movimento sindical, a sua cidade serviahe de paisagem material e de pano de fundo para o seu horizonte, des- locando-se, vez € outra, para Sdo Paulo e Minas Gerais, grandes centros industriais que emergiam. 3a, — Desenvolvimento industrial, populagio e mao. de-obra — Proclamada a Reptiblica no ano anterior, pos- sufa a Capital Federal uma populagio de cérca de 522.000 habitantes em 1890, para 65.000 de Sao Paulo. Em 1900, atingia esta witima a cifra de 240.000 numa verdadeira mutagio urbana, segundo as palavras de Moreira Pinto, que a chamava de “a cidade de italia- nos”. Segundo estimativas, por auséncia de censos dire- tos, $46 Paulo apresentava 300.000 ¢ 375.000 habitan- tes respectivamente, em 1905 e 1910. Quando do Re- censeamento levado a efeito a 20 de setembro de 1906, havia no Rio de Janciro 463.453 homens c 947.990 mu- Theres, num total de 811.443 habitantes. Segundo os dados désse Recenseamento, ocupavam- se no comércio em geral 66.062 pessoas; nos transpor- XXII tes, 14.217 € na indistria, 83.248, 0 que representava, de certa forma, uma populagio ativa bem signiticativa para ésses setores. Pela distribuigao das idades, ja des- pontava a caracterfstica que ainda hoje persiste na com- posigao da populacio brasileira, 257.334 eram menores de 15 anos, para 528.895 que se colocavam entre essa faixa etaria ¢ 70 anos."* Em 1907, concentravam-se na Capital Federal 30% das industrias nacionais, possuindo todo o Estado de Sio Paulo smente 16% do total. No primeiro ano do século, conforme inguérito realizado, apresentava a ci- dade de Sao Paulo 144 estabelecimentos importantes, com 11.590 operarios, com exclusio dos engenhos de agicar. Em 1907, dispunha a mesma metrépole de 153 estabelecimentos industriais, com 14.614 operirios. Pelo visto, era bem maior o proletariado urbano guanaba- rino, em decorréncia das prdprias fungées econémicas € politicas da cidade, como capital do pais. ‘As industrias de tecidos e de alimentagio cram as mais proeminentes, a par de um sem-numero de peque- nos estabelecimentos, oficinas, manufaturas — de cal- ‘gados, de vestuario em geral, de méveis, de tintas, de material de escritério, de tinturarias, de fundigées, ete. — instalados em galpdes, fundos de armazéns, em locais mais ou menos escondidos, longe dos olhos do piblico e da fiscalizacio, A indiistria téxtil, a mais representa- tiva, dispunha — ainda na capital paulista — de 17 esta- belecimentos, com 4.570 trabalhadores, em 1900; de 18, com 6.298 trabalhadores, em 1905 e de 24, com 13.596, em 1910.4 “Tornandose, no século XIX, © centro financeiro do Pais, escreve Pinchas Geiger, nao é de estranhar que XXIII ‘© Rio de Janeiro servisse de principal nitcleo para o inicio do processo de industrializacio do Brasil. O Rio conseguiu manter durante longo periodo do século XX a posicio de maior centro industrial, pois, sendo, entio, por larga margem, a mais populosa cidade do Brasil, representava o mercado consumidor mais interessante para as pequenas inciistrias de bens de consumo que se jam organizando”.* Dispondo de vias de comunicagio ferrovidria com as fontes produtoras de Minas Gerais ¢ Estado do Rio, era pelo seu porto que se escoavam essas riquezas, a0 mesmo tempo que por éle eram importadas as matérias-primas, combustiveis e outros produtos manufaturados, Além do porto organizado, servia ainda como atrativo para as industrias na Capital Federal a facilidade de obtengao de energia hidrelétrica. Foi exatamente na primeira década do século que se construiu 0 moderno pérto, com atérro do Saco de $0 Diogo, terminando-se as obras que vinham se arrastando desde o fim do século pasado. Coube a Lanro Miiller colocarse 4 frente desta tarefa, @e que vai desempenhar papel importante no movi- mento social carioca, procurando sempre aproximar-se dos trabalhadores, a fim de fazer-se seu intérprete e can- didato a Presidente da Republica, vindo mais tarde Rui Barbosa ¢ chamé-lo, pejorativamente, de Leninezito. ‘As grandes fabricas, naquela época, procuravam lo- calizar-se nos fundos dos vales, 4 sombra das montanhas cariocas, no que era a periferia da cidade, além de grande concentracao nos bairros da Gamboa ¢ $io Cristovao. ‘Assim que chegaram até nossos dias alguns estabele- cimentos fabris situados na Gévea, na Tijuca e nas La- ranjeiras. XXIV Dispunha o Rio de Janeiro de 20 sociedades andni- mas em 1908, para 44 em 1910 € 100 em 1912. Entre 1910 e 1912, organizaram-se 11.000 sociedades comer- ciais, sendo dissolvidas no mesmo perfodo 6.500, 0 que deixa um aumento de 4.500. No ano de 1907, com a chegada do Byron, vinha ao Brasil a primeira leva de turistas estrangeiros de visita a cidade. Como fungio comercial, por todos os fatores acima desctitos — de Capital Federal, de porto organizado, de terminal ferrovidrio, de centro financeiro, — desempe- nhava ainda o Rio de Janeiro a funcio de centro arma- zenador ¢ atacadista de géneros de primeira necessidade de consumo alimentar, tais como arroz, feijao, batata, agicar, milho, charque, farinha, manteiga, cebola, café, etc. Foi nesta mesma década, de 1900 a 1910, que se pro- cessou a mais radical modernizagio material da cidade, com a abertura da Avenida Central, inaugurada no ano da publicacio desta “obrinha” (1905), 0 alargamento das ruas, a demolicio de velhos casarées, sob a batuta de Pereira Passos. Ao mesmo tempo que Osvaldo Cruz sa- neava a cidade, inauguravam-se os primeiros bondes elé- 1 € se levantavam os grandes edificios na Avenida recémaberta. O Rio civilizavase... 3b — As condigées de trabalho ¢ de vida nas duas capitais — No inquérito de 1901, registra Bandeira Ju- nior a grande crise que acabava de se abater sobre 0 pais com a derrocada financeira de 1897 a 1900: “Com a di- minuigio geral do trabalho em tédas as fibricas, algu- ‘mas das quais funcionavam apenas dois dias por semana outras que, em numero nio pequeno, cessaram de tra- XxV balhar, muitos operdrios emigraram, poucos dos mais prudentes vio lentamente se colocando em outros esta- belecimentos de melhores condigbes”. Iniciavase 0 século com crise, em plena carestia de vida. Outro autor paulista, Rangel Pestana, informa que as maiores vitimas foram os pequenos estabeleci- mentos, improvisados na primeira década republicana. Para socorrer reorganizar os que escaparam do “tuftio devastador”, logo cuidou o govémno de baixar uma poli- tica alfandegiria protecionista em 1900." Em ambas as metrépoles persistiam os mesmos pro- tblemas de uma urbanizagio sem plano, com falta de habitagbes (desde o fim do Império jé se cuidava do pro- blema da casa popular), transportes escassos, ras sujas, estreitas ¢ sem calcamento, servigos de agua e esgotos precirios, abastecimento insuficiente. Os mais pobres, como é natural, sofriam diretamente na prépria carne ¢ sentiam de maneira sufocante t6das essas deficiéncias © nivel de vida é como 0 nivel do mar: medida que vai crescendo, comeca por afogar primeiro as camadas mais baixas, dificilmente chegando a atingir 0s que se encontram no alto da piramide. Morando em bairros anti-higiénicos, em cabegas-de- porco; aglomeradas as familias em cémodos imundos, sem ar nem luz, entregues 0s seus chefes a trabalhos esta- fantes ¢ mal remunerados, executados em locais quase sempre insalubres, escuros, mal ventilados, assim viviam os trabalhadores, Mulheres ainda que gravidas ¢ crian- gas de tenra idade cram obrigadas a mourejar nos servi- cos mais pesados ¢ penosos, durante mais de 12 horas, com salérios infimos, a fim de poderem contribuir, de 3. Dieete Operrio XXVL qualquer forma, com alguma coisa, para 0 orcamento doméstico, Assim descreve o A., em algumas passagens, as con- digdes de vida dos operérios no Rio de Janeiro em 1904/5: “Nesta cidade, sabemos existirem fibricas onde trabalham criangas de 7 ¢ 8 anos, junto a maquinas, na iminéncia aflitiva de terriveis desastres, como alguns j4 sucedidos. © trabalho noturno das criangas é praticado em certas fbricas — como 0 das mulheres — cercado de todos os inconvenientes e desmoralizagdes. Ainda ne- nhum Ministro da Industria sentiu a necessidade de um inguérito, que scrvisse para cvitar abusos ¢ verda- deiros crimes, € indicasse a necessidade das reformas ¢ a maneira de as executar. Aqui, o trabalho é exercido em condigdes primitivas. Se de algum conférto gozam operdrios de certas fibricas — é isso devido & bondosa iniciativa de alguns patrées, que, aliés, nao se empobre- ccm com a pratica da generosidade...” Em outro passo: “Ha meses, todos os jornais noti- ciaram que, em certa fabrica, uma operdria de seis anos (!) fora colhida por aparelho mecAnico, que a deformara para sempre...” E ainda: “Aqui, no Brasil, j4 expusemos 9 que pos. suimos. Quanto as garantias dadas ao trabalho das ope- rérias adultas ficam, por enquanto, 4 mercé dos bons ou maus corages dos industriais ¢ seus prepostos. £ sua gandncia ou sua generosidade que regula 0 pagamento do salario ¢ a duragao do trabalho; é sua moralidade ou sua imoralidade que decide, sobcranamente, das con- digdes em que as mulheres obreiras poderio ganhar o pao de cada dia. De vez em quando, por ocasiao de gre- ves, alguns murmnirios fazem suspeitar a existéncia de XXVII terriveis exploracdes ¢ tremendos escindalos. Depois depois, passada a agitacio, satisfeita a necessidade mo- menténea, tudo se esquece...!"" ’ Quanto & repressio as greves e as violéncias policiais, diz 0 A.: “Por ocasiio da chamada greve dos cocheiros — triste tentativa sem plano e sem chefes — tda gente imparcial se sentiu indignada diante dos processos vio- Jentos do pessoal da policia, que pds a capital da Repti- blica em estado de sitio, prendendo, ameagando, coa- gindo por tédas as formas." E ainda por mais meia pagina, segue o A. a descre- ver as violéncias praticadas, como poderd ver o leitor no mimero II, do capitulo V. Sindicatos organizados e fortes nio existiam, nem muito menos possivel partido operario, a despeito das denominagdes ou apelidos que assim thes davam: “No acreditamos que a maioria de associagdes operdrias (que ainda nem sio esbogos de sin- dicatos profissionais) possa tentar, com vantagem, a fun. dagio de cooperativas, entre nés”... “fi digno de nota o que se passa, entre nds, com o movimento operdrio: fundam-se agremiacées de classe, fazem-se greves, onga- nizam-se festividades, enfim, dé-se ao puiblico ledor dos noticidrios a perfeita ilusio da existéncia de um partido operario, com idéias assentadas, programa discutido e geralmente aceito, baseado em qualquer doutrina social- econdmica e orientado no sentido de uns tantos princt- pios. Entretanto, em ocasides aproveitaveis, como a atual, bem se vé, afora uma ou outra idéia de velho cunho liberal e republicano, apenas preocupa sériamente o nosso ardente e brioso proletariado a sempre lembrada conquista das famosas oito horas de trabalho; havendo, mesmo, quem se contente com a decretacio para uso € XXVIL g6zo exclusivamente dos operirios das oficinas publicas, para os trabalhadores assalariados pelo Govérno...""* E no se pense que o A. carregava nas tintas, muito pelo contrério, foi até comedido nas suas palavras, pres- tando muito pouco depoimento factual das condigdes trabalhistas do seu tempo, ocupandose bem mais com © tratamento doutrindrio ¢ legislativo do assunto. Em inquérito de 1901, escrevia Bandeira Junior sobre as condigées de moradia do operariado paulistano: “Nenhum conforto tem o proletério nesta opulenta € formosa Capital. Os bairros em que mais se concentram, por serem os que contém maior mimero de fabricas, sio 05 do Bris ¢ do Bom Retiro, As casas so infectas, as Tuas, na quase totalidade, nao sio calcadas, hé falta de agua para os mais necessitrios misteres, escassez de luz ¢ de esgotos, O mesmo se d4 em Agua Branca, Lapa, Ipiran- ga, Sio Caetano € outros pontos um pouco afastados”.. E pouco antes: “E, considervel o mimero de menores, a contar de 5 anos, que se ocupam em servigos fabris...” Em 1917, revelava Jorge Street, industrial paulista, que 50%, do operariado nacional era constituido de menores de 18 anos de idade. E em 1934, confessava ésse mesmo industrial, sempre tido como humano e repre- sentativo do pensamento progressista na sua classe: “Se entre nés o trabalhador nunca teve depois da primeira grande lei social da libertacio dos escravos, uma vida que se pudesse, nem de longe chamar de tragica, tal qual nos mostram os inquéritos ¢ as publicagées da Eu- ropa industrial, havia entre nés no entanto, incontesti- velmente, abusos ¢ injusticas contra criangas, mulheres ¢ mesmo operdirios homens, no que diz respeito a idade de admissio, do hordrio e do salirio principalmente. E XxXIX sabeis que falo de experiéncia prépria, porque durante mais de 85 anos dirigi fabricas com milhares de operd- ios € sei bem o que vos digo. Confesso que trabalhei com criangas de 10 ou 12 anos e talvez menos, porque nesses casos, os préprios pais enganavam. O hordrio nor- mal era de 10 horas e, quando necessério, de 11 ou 12 horas. O que vos dizer das mulheres grdvidas que traba- Ihavam até a véspera, que vos dizer? Até quase a hora de nascer 0 filho. Nao preciso explicar os exemplos, cito @stes inicamente para mostrar que o problema existia” Em livro recentissimo, de um diplomata de familia ilustre, do Embaixador Mauricio Nabuco, surpreenden- temente — por lhe desconhecer a biografia, — encontra- mos uma pagina como essa, que merece ser transcrita: “Devo também confessar que meu respeito inicial pelo Dr. Street, como éle era tratado, por ser formado em Me- dicina, comecon a declinar. Em suas visitas, creio que mensais, sua fiscalizagio, suas observacdes j4 nao me pa- reciam tio sagazes, e assim aos poncos fui perdendo fé no empreendimento. E nao vou: tentar aqui explicar essas minhas conclusdes sObre uma indiistria que se baseava em um protecionismo a oulrance. Ba isso ia-se jun- tando minha repulsa social ao que via e que, feito 0 desconto da época e do nosso clima mais ameno, vai descrito cm muita obra estrangeira, Na sua vida da Rai- nha Victéria, por exemplo, Victoria of England, Edith Sitwel, no capitulo intitulado The March Past, lembra muito do que vi no bairro do Bris, na cidade de Sio Paulo, em 1910. Diz a célebre escritora em inglés rico aqui vertido para o meu portugués pobre: “Essas infe- izes criangas (algumas com apenas cinco anos de idade), condenadas a escravatura das (mills) fabricas de fiacao XXX ¢ tecelagem... quando conseguem chegar em casa pelos seus proprios meios, com suas préprias pernas, atiram- se ao cho... € pegam no sono sem conseguir comer uma migalha sequer de alimento”. Ou entao: “E aqui depa- ramos com vultos alquebrados, arrastandose desespera- dos como animais. S40 mulheres prestes a dar a luz ¢ que durante doze ou catorze horas enfrentam os seus teares, mediante a remuneragio hordria de um penny”. Isso no difere muito do que presenciei, digo me- Ihor, daquilo de que participei, no coméco do século, na fabrica SantAnna, Eu mesmo trabalhava doze, quando nio catorze horas didrias. A princfpio custava- me ficar de pé ¢ depois no gostava mais de sentar-me. ‘A gente se acostuma a tudo. Nao se pensava ainda em semana inglésa, e, algumas vézes, trabalhava-se aos do- mingos.”"” Quanto as condig’es de trabalho no Rio de Janeiro, —e para concluir esta parte de depoimentos, mediante fontes primédrias, de contemporineos — bastam essas li- nas de tese de doutoramento, em 1907, do jovem mé- dico Raul $4 Pinto: “O operdrio, nas suas atuais condi- g@es de vida, dizemos ¢ havemos de repetir, néo morre naturalmente: ¢ assassinado aos poucos”... “Dir-se-d en- tao com acérto: a alimentagéo de um individuo deve ser diretamente proporcional ao trabalho mecanico por éle produzido, E entre nés os operdrios seguem esse conse- Tho? Nao, porque nao podem. Porque sejam minimos os seus salirios, relativamente a vida que é carissima, ales sentem-se obrigados a regular as suas despesas pela mais estrita das economias”... “E que 0s operarios te- nham, em breve, como primeiro paso para a sua tardia tegracdo social, residéncias, senfio étimas, a0 menos XXXI salubres e decentes, que os sosseguem do espantalho dos atuais corticos lébregos, onde Ihes falta o ar, a agua todos 0s prinefpios essenciais da higiene”. E para terminar, do mesmo doutorando, generoso, inclusive, pela idade: “No Brasil, pais grande em todos 0s sentidos — na extensio incalculivel do seu territério, na opuléncia esplendorosa da sua natureza, na inteli- géncia pujante dos seus filhos — parece incrivel mas verdad, os operdrios vivem na mais contristadora das misérias — famintos, rotos, desabrigados ¢ esfalfados. E nada se tem feito por éles, que — coitados! — se encon- tram agora, como sempre, nas mestnas coudigdes Iamen- tabilissimas”.*! Nao ven fora de propésito a anotagio que Georges Clemenceau langou em seu livro de viagem, a respeito das impresses que Ihe deixaram a sua visita ao Bra- sil em 1910: “Nossas (francesas) leis de protecio social para os opcrdtios na industria e na agricultura eram ine- xistentes..." Entre “outros fatos que muito 0 contrista- ram”, refere expressamente o de “ver mulheres em adiantado estado de gravidez trabalhando horas intei- ras de pé. Nao ha necessidade de ser médico, para se sentir o sofrimento dessas operdrias”. Da carestia de vida € do alto custo dos géneros de primeira necessidade, escrevia 0 padre L. A. Gaffré, que aqui veio, a convite de organizagdes catdlicas, para con- trabalangar os efeitos danosos, segundo elas, das recentes visitas de Enrico Ferri, Anatole France ¢ Georges Cle- menceau. Escreve © visitante: “Todavia, mesmo para éstes elementos de consumo da vida material, os precos correntes so infinitamente muito elevados relativamente ao ganho do operatic. O quilo de arroz custa até seis- XXXII centos réis (um franco); 0 quilo do feijao até setecentos réis. claro que esta contradigao entre o salario do tra- balho e 0 preco dos alimentos mantém um estado de miséria fisica indigno de um grande pais que tende para 0 progresso como o Brasil, e prepara, para dias que nao estio talvez muito afastados, como geralmente se acre- dita, um largo terreno para o socialismo”. Na sua contribuigio ao 4.° Congresso Americano da Grianca, ja referido, cita 0 A. estas palavras do depu- tado Metelo Jiinior, proferidas na Camara ainda em 1917: “O notavel filantropo paulista Sr. José Carlos de Macedo Soares, passeando de Sio Paulo a Santos, encon- trou, 4s 4 horas da manha, a caminho de Guarujé, na- quele terrivel frio de S40 Paulo, naquela temperatura cortante, um bando de seis a oito criancas, que nem se- quer tinham tomado café e que iam em busca da fibri- ca, tiritantes. Eram criangas de 6 a7 anos de idade”.# Para que mais, sendo repetir lugares comuns diante da mesma tristissima realidade? Vése que 0 A. nao exa- gerou, nio pintou com tintas carregadas o que era do conhecimento de todos; foi bastante parcimonioso na descricio dos fatos, ocupado como estava com a parte expositiva ¢ doutrindria do assunto. Passamos, pois, a outro assunto também tratado neste livro de Evaristo de Moraes. 3c — Movimento sindical e social — Os primeitos anos da Repiiblica foram de grande agitacio neste pais. E a explicacio é ficil. 1888 significou, por si s6, a pr- meira grande lei social entre nds, acabando com a escra- vidao ¢ instituindo o regime do trabalho livre. As con- seqiigncias que acarretou jé foram minuciosamente estu- XXXL dadas por um sem-mimero de historiadores, economistas € socidlogos. Faltowlhe uma complementacio necessi- ria, como jé a época se haviam dado conta alguns espf- ritos mais atentos, convindo destacar, entre éles, Silva Jardim, Joaquim Nabuco ¢ Rui Barbosa, Pregavam uma lei de reforma agréria, que fixasse 0 homem A terra, Ihe tornasse proprietirio, dividisse os latiftmdios, com radi- cal alteragio do sistema rural até entio vigente, a fim de que, com o névo regime, nio se desorganizasse a pro- dugio dos campos. Os fazendeiros — 0 que equivale dizer, os politicos que apoiavam o Imperador — voltaram-se contra éle, ade- rindo a Repiiblica, Por isso mesmo, coube a essa, infe- lizmente, herdar todos os problemas oriundos da Abo- ligio: campo desorganizado; quebra da producio; ausén- cia de braco livre para substituir, de repente, 0 trabalho escravo; migracio para os centros urbanos dessa mio- de-obra desempregada ¢ faminta, quando nao se deixava ficar pelos proprios campos, como fantasmas a peram- bular em t6rno das antigas fazendas. Tudo isso se trans- formou em fator sociopatico nas cidades, principalmente na Capital Federal: mendigos, vagabundos, prostitutas, desabrigados; mio-de-obra despreparada ¢ desquali cada, sem aprendizado nem formacio profissional para 05 novos trabalhos mecanicos que iam surgindo, Empre- gavam-se por qualquer salério e para todo o servico. O problema da infincia abandonada ¢ desvalida sal- tava aos olhos. Os podéres piiblicos nfo estavam prepa- rados para abrigar, alimentar e educar essas legides de crianeas — filhas de escravos, de ex-escravos, de imigran- tes, das classes pobres em geral — que se deixavam ficar pelas ruas, entregues 4 ociosidade, ao vicio, iniciando-se XXXIV cedo no crime, com varias entradas nos distritos poli- ciais e na propria Detencao. Em seu livro publicado em 1901, coloca o A. como epigrafe esta censura de Lopes Trovao, em discurso pronunciado no Senado Federal em 11 de setembro de 1896: “..Quem com olbos obser- vadores percorre a capital da Repitblica vé apczarado que € neste meio (a rua) que boa parte da nossa infan- cia vive as séltas, em liberdade condicional, ao aban- dono, imbuindo-se de todos os desrespeitos, saturando- se de todos 0s vicios, aparelhandose para todos os crimes”. Por outro lado, ainda como concausa da agitacio, jo- vem também era o préprio regime republicano, lutando por firmar-se em meio a crises de téda ordem — econé- ‘micas, financeiras, politicas, sociais. Conspirava-se contra a nova ordem: os monarquistas nutriam ainda esperan- gas de uma reviravolta. Entre 0s préprios republicanos lavrava a discordia e incompreensio, Jé a 2 de outubro de 1890, desencantava-se Silva Jardim, seu amigo e chefe politico, dizendo em carta a Rangel Pestana: “Comuni- colhe que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que éste pals atravesse 0 periodo revoluciona- tio de ditadura tirinica ¢ de anarquia. Colocado & mar- gem, sem responsabilidade oficial, diminufda a minha responsabilidade para com 0 povo, nao querendo nem concordar, nem perturbar, retiro-me’”.™ Adivinhava Silva Jardim. Téda a década que se ini- ciava iria ser cruenta, sangiiindria, agitada ¢ plena de violéncias. 1891 vai assistir a golpes € contragolpes de Estado. Nos dois anos seguintes, virio as deposigoes de governadores, protestos ¢ reformas de militares, demis- ses de professdres vitalicios em Pernambuco e no Rio XXXV de Janeiro, afastamento de ministros do Supremo Tri- bunal Militar; agitacto de rua, decretacio do estado de sitio; a expedicao Wandenkolk; a revolta da Armada ¢ a revolucio federalista. ‘Tudo isso haveria de ter reflexos no Supremo Tri- bunal Federal, recém-organizado, com as grandes inter- vengées de Rui Barbosa nos pedidos de habeas-corpus a favor de Wandenkolk e de outros punidos. Na Camara dos Deputados, Epitécio Pessoa fazia tremenda oposicio a Floriano, protestando contra o que chamava de arbi- trariedades e conclufa estar “o povo descrente, desiln- dido, ragindo temeroso contra 0 poder piiblico que 0 mata a fome ¢ a bala”. Embora nao fésse tanto assim, pois o povo, os trabalhadores, estavam com Floriano. Ao assumir a Presidéncia da Republica, dirigiase Prudente de Moraes 4 Nacio, dizendo nesse Manifesto de 15 de novembro de 1894: “‘As constantes agitages que no primeiro qiiinqiiénio, perturbaram a vida da Republica, nao causaram surprésa; eram previstas como conseqiiéncia da revolucio de 15 de novembro. Nao se tealizam revolucGes radicais, substituindo a forma de govérno de uma nagio, sem que nos primeiros tempos as novas instituigdes encontrem a resisténcia e os atri- tos, motivados pelos interésses feridos pela revolucio, que embaracam o funcionamento do névo regime. Foi © que aconteceu no Brasil... Felizmente, gragas a atitude patriética, pertinaz ¢ enérgica do Marechal Floriano Pei- xoto, secundado pela grande maioria da Nago — parece estar encerrado em nossa patria o periodo das agitacdes, dos pronunciamentos e das revoltas, que Ihe causavam danos inestimaveis, sendo muitos déles irreparaveis” XXXVI Infelizmente — isso sim — enganavae 0 autor des- tas palavras. Apesar de acabar por merecer o honroso titulo de Pacificador, como Floriano 0 merecera de Con- solidador da Repiblica, ainda vin Prudente 0 seu qua- trignio muito agitado pelas paixGes politicas, tendo, in- dlusive, de mandar fechar o Clube Militar, “convertido ltimamente em centro inconvenient de agitagto polt- tica”, na justificagio do proprio Prudente ao passar 0 govérno a Campos Sales. Sublevara-se a Escola Militar, fora assassinado Gentil de Castro ¢ dera-se, sobretudo, a chamada guerra de Canudos, que culminou no assas- sinato do seu Ministro da Guerra, Marechal Machado Bittencourt no dia § de novembro de 1897 pelo anspe- cada Marcelino Bispo. O acontecimento sensibilizou ¢ traumatizon fundamente o Pais, lancando Prudente enérgica € concisa proclamagio ao povo ¢ sendo obri- gado a decretar o estado de sitio. Mas, enquanto todos se voltavam para os personagens mais eminentes do drama, Evaristo de Moraes procurava estudar e com- preender 0 gesto homicida do anspecada, a sua psicolo- gia ¢ as causas sociais que Ihe armaram o brago. Era, de certa maneira, tio vitima das circunstancias que o cer- cavam como 0 infeliz Marechal Bittencourt. © A. viveu — € como 08 viveu! — todos ésses acon- tecimentos, € néles sempre tomou partido, ficando com a Repibblica, com Floriano; participando dos debates, escrevendo pela imprensa, publicando folhetos, mergu- Ihando até & alma nas questdes do seu tempo. Nunca foi um omisso, nem um ausente. Pois bem, voltando ao problema central desta nossa Introducio, tanto no Rio como em So Paulo, a mao- de-obra mais qualificada ou semi-qualificada, por assim XXXVIL dizer, constituiase de estrangeitos, como veremos no pardgrafo seguinte. Tudo isso refletese diretamente nas primeiras medidas legislativas da Repiblica, para acudir as necessidades mais prementes: problema da habitacio € 0 trabalho do menor. O primeiro jf vinha do Império, exatamente do ano de 1888, com a Abolicio, ficando o Imperador a bragos com a crise na cidade do Rio de Janeiro. Eis, por exemplo, éste pequeno trecho bem Significativo, do Didrio de Noticias de 17 de maio de 1888: “HabitagGes para operdios ¢ 0s novos libertos pela Lei Aurea n° 3.353 — Sem duivida que pela extingio da escravidio 0s novos libertos de perto ou de longe te- rao de afluir a Gérte € acumularse nos cortigos € esta- lagens, cujas condig6es ficaro piores do que ora sio. Assim, pois, julgamos a propésito nestes dias de festa chamar a atengio de todos s6bre uma pequena fungio que foi feita no ato de serem examinadas as plantas de uma sociedade, que tem por fim remediar a grande falta de casas apropriadas para os pobres”. _ E vem entdo a descricéo do que foi a ceriménia rea- lizada na sede da Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro, na Rua dos Invilidos, para o estudo ¢ exame dos projetos para a construgdo dessas casas para opers- rios. A Repiblica recebeu intacto, sem solugéo alguma, © problema do desemprégo e da miséria. Logo nos pri- meiros dias de 1891, a 17 de janeiro, 0 Marechal Deo- doro da Fonseca regulou o trabalho do menor, pelo de- ereto n.° 1.313, embora ineficaz” Por legislacio poste- rior, procurou a Reptiblica levar organizacio ¢ segu- xanga econdmica ao trabalho do campo e da cidade, pela lei 979, de 1903, (sindicalizacio rural, com organizacio de cooperativas de producio, consumo e crédito), 1.150, XXXVUL de 1904 (institui a caderneta agricola e confere privilé- gios para 0 pagamento de divida proveniente de salario dos trabalhadores rurais), 1.607, de 1906 (modifica a anterior) ¢ 1.687 de 1907 (regula a sindicalizacao de tédas as profissdes) ‘Com o ndvo regime, como que havia pressa na solu- io de todos os problemas herdados do Império, Com 6 fim do regime escravocrata como que o trabalho livre tomava plena consciéneia de si mesmo e para si mesmo. ‘Tédas as ideologias, utopias e anseios tomaram conta de alguns espiritos, principalmente intelectuais ¢ trabalha- dores. A inflacio e 0 encilhamento faziam e desfaziam fortunas; 0 jdgo da Bolsa embriagava a populacéo ur- bana do Rio de Janeiro, dando uma falsa sensagio de prosperidade, também manifestada no espirito de desen- yolvimento que se apossara do povo € das autoridades, © jégo financeiro ¢ o entusiasmo reinantes davam a impresséo da plenitude de um capitalismo industrial ¢ financeiro, que ainda andava distante da realidade. Mas a verdade é que, ja em 1890, fundavase um Partido Operdrio na Capital da Republica, a0 mesmo tempo que surgiam como cogumelos pequenas publicagées de téda ordem — jornais, revistas, boletins, impressos, — em geral, de vida efémera. O A. mesmo referese, em outra obra, a “redagio da boémia e efémera “Folha Popular", do qual féra redator em 18912" Daquele Partido, Iembra 0 A., inclusive, 0 éxito alcangado pela sua campanha na modificagio dos arts 205 © 206 do recém-promulgado Cédigo Penal pelo Decreto n.° 1.162, de 12 de dezembro do mesmo ano: “Motivou a modificagao uma justa campanha feita pelo ento recém-nato Partido Operario. Publicando os novos XXXIX, artigos referentes & hipétese ficilmente se verd a dife- renga ¢ a vantagem da redagio para os operirios... De maneira que, pela lei penal vigente no Brasil, 0 direito de greve est plenamente reconhecido”. E noutra pagina: “Antes (de 1896), conforme ja lem- bramos tinha havido uma pretensa coopcrativa, ligada @ um nio menos suspeito Banco Opertrio, nascido da febre bolsista de 1890 ¢ levado na torrente das quebras € dissolucdes que bem cedo liquidou tédas as fantasias daquela época. & facil imaginar a balbiirdia ¢ a confusio reinantes nessa socicdade yue surgia com a Repwtblica, depois da Aboligio. Com a entrada do névo século, os problemas continuavam insoliveis. As greves se sucediam, com as duas principais reivindicagdes da época: redugao da jor nada de trabalho ¢ aumento de saldrio, Quanto as Tei- vindicacées, jd citamos antes trecho do A. Agora, quanto as greves propriamente ditas: “A organizagao operéria, que se vai fazendo nesta cidade, trouxe, como principal conseqiiéncia, a multiplicagao das greves. Nao é ocasiao de aprofundar o assunto, indagando se ha aqui, efetiva- mente, entre as classes trabalhadoras, os meios de resis- téncia necessdrios para essas manifestagdes coletivas do direito de nio-trabathar. Verdade é que tivemos de assis- tir, nos ultimos anos, ao irrompimento de umas cinco ‘ou seis greves, quase tédas bem sucedidas”.** Havia, contudo, uma contradic¢éo interna inerente 20 prdprio regime republicano, que o impedia de dar pronta e necessdria solugao aos problemas sociais suigi- dos com a Aboligao: a sua ideologia liberal, de estrita € absoluta igualdade formal de todos perante a lei. Qualquer norma protetora se Ihe afigurava como extra- xL vagante, excrescente do direito comum, sob o sinéte de legislacio de excecao. Foi com esta diretiva ¢ coun éste argumento que Deodoro revogou os diplomas sobre ocagio de servicos, do tempo do Império (de 1830, 1837 ¢ 1879), pelo Decrcto n.° 213, de 22 de fevereiro de 1890, “por exorbitarem as suas disposigGes do direito comum”. Quando mais tarde, ainda na mesma década, negou- se 0 Vice-Presidente, no exercicio da Presidéncia, Ma- nuel Vitorino Pereira, a sancionar 0 projeto do senador Moraes ¢ Barros, que regulava a locagio agricola, com ‘os mesmos fundamentos ¢ a mesma idcologia liberal 4 outrance. Vale a pena a transcriao dessas razoes de veto, pelo que representam da mentalidade da época, de boa fé, sem duivida, mas causadora do atraso em que ficou a chamada questio social entre nés, dando livre transito para a exploracio do trabalho ¢ justificando, por si s6, téda a agitacio operdria conseqiiente: “Segundo o prin- cipio de igualdade perante a lei (art. 72, § 2.° da Cons- tituigao), a locaco de servigo agricola deve ser regu: ada pelos principios de direito comum ¢ nfo por um regime processual e penal de excegio. Nas sociedades civilizadas a atividade humana se exerce em quase tédas as suas formas sob o regime de contrato. Intervir 0 Estado na formacio dos contratos € res- tringir a liberdade dos contratantes, é ferir a liberdade ea atividade individual nas suas mais clevadas e cons- tantes manifestagdes, € limitar o livre exercicio de tédas as profissOes, garantidas em t6da a sua plenitude pelo art, 72, § 2° da Consutuicao. O papel do Estado 0s Fegimes livres é assistir como simples espectador & for- ‘magio dos contratos e s6 intervir para assegurar os efei- tos e as conseqiiéncias dos contratos livremente reali- XLI zados. Por esta forma o Estado nfo limita, no diminui, mas amplia a agio de liberdade e de atividade individual, garantindo os seus efeitos”. * i Vivia-se uma época de puro romantismo individua- lista e liberal, de completa H spette bearers ae na teoria socioldgica, levantava-se Emile Durkheim, na Franga, no ano seguinte (1897), € mais tarde Elton Mayo ¢ Robert Merton, nos Estados Unidos, sem qualquer conotagio teformista ou socializante, e sim como sim- ples hipétese de trabalho explicativa da desorganizagio do regime ou da economia liberal, nada mais. O que o A. dizia do Rio de Janeiro aplicava-se igual- mente a Sio Paulo. Ja em 1901, registra Bandeira Jinior greve em Sao Paulo, seguindo-se varias nos anos seguin- tes, Funda-se no Rio, em 1902, 0 Partido Socialista Cole- tivista, de Vicente de Sousa e Gustavo de Lacerda. O primeiro era professor do Gindsio Nacional Pedro II da Escola de Engenharia e havia fundado também o Centro das Classes Operirias, para os lados da Gavea, onde comparecia didriamente para despacho douti- nagio. Jé antes, no mesmo ano de 1902, instalase em Sao Paulo 0 Congresso do Partido Socialista Brasileiro. Finalmente, em 1906, inaugura-se 0 1.° Congresso Ope- ririo Brasileiro, no Rio, com intimeras teses ¢ a funda- fo da Confederacio Operdria Brasileira, & qual se filia- ram numerosas entidades de classe, na verdade, mais existentes na imaginacio ¢ na boa vontade dos seus orga- nimdores;do queina realidade|Os normes cram ce sais estapafirdios possiveis para essas entidades: Liga, Gen- tio, Federagio, Resisténcia, Sindicato, Unido, Sociedade, Associacio, Fraternidade, Circulo, Corporacio, Partido, chegando a existir entidades pitorescas com as denomi- 4 iteto Operécio XL nagdes de Centro Internacional dos Pintores ¢ Liga Na- cional de Empregados de Escritério... No Congresso de 1906 defrontaram-se as duas cor- rentes que vinham procurando liderar 0 movimento so- cial, a reformista ¢ a revolucionaria, esta mais de cardter anarquista, Marxista, propriamente dita, tedrica, dou- trindria, nfio havia priticamente nenhuma. Como ve- remos adiante, 0 A. colocavase na corrente moderada, reformista, de intervencao do Estado a favor do operé- contra 08 vicios ¢ 0s abusos da suposta liberdade econémica e contratual. 3d — Imigracéo ¢ trabalhadores estrangeivos. — Expulsdo de estrangeiros — Nao ¢ lugar aqui de se fazer uma longa exposicao historica dos problemas de imigra- ao e de colonizacéo entre nés, desde as primeiras ten- tativas de imigracio dirigida, a comegar pelo decreto do Principe Regente de 25 de novembro de 1808, que permitiu a concessio de terras aos estrangeiros. Com essas finalidades, introduziram-se no Brasil alemfes, suf- 608, acorianos, sendo intensificado 0 fluxo imigratério a partir de 1850, principalmente para Sio Paulo, de italianos que se fixavam mais no campo. Com a Aboli- Gio, entraram no pais 1.443.892 entre 1891/1900, supe- rior & totalidade chegada entre 1808 € 1890. Pois bem, grande era o mimero de imigrantes em ambas as metrépoles. Basta dizer que, dos 522.000 de 1890, 124.000 eram estrangeiros no Rio de Janeiro, isto & 25%. De 1887 a 1900 entraram no Kstado de Sio Paulo 909.417 imigrantes, com uma taxa de aumento da populacio de 86%. De 1901 a 1920 declina esta quota para 38.5%, com a entrada de 825.642 imigrantes. No XLUI Rio, eram, na maioria, de nacionalidade portuguésa, es- panhola, italiana; invertendo-e esta ordem em Sao Pau- lo. Sdmente a partir de 1920 é que cresceu a imigracio japonesa nese Estado. Mais particularmente ainda, de 1900 a 1907, entraram no Estado de Sao Paulo 308.809 imigrantes ¢ déle sairam 227.029, mostrando que ja havia passado 0 periodo mais forte e significativo do processo imigratério.* Em ambas as cidades, crescia a concentragio urbana estrangeira. Revela Bandeira Juinior que a percentagem de estrangeiros nas atividades fabris era da ordem de 80%; outros autores chegam a 90%. Nao ¢ de estranhar, pois, que essa’maioria urbana de trabalhadores estran- geiros, tanto no Rio quanto em Sio Paulo, trouxesse consigo a inquietacao € a politizacio dos seus paises de origem, industrialmente mais adiantados. Trabalhados por idéias, ideais e ideologias de tdda ordem, na ansia de melhores condigées de vida ou de mudanga de regime econémico-social, néles se fixavam as medidas punitivas, em geral com cardter de expulsio do territério nacional. OA. registrava o fato, aludindo as medidas de repres- sdo contra as greves, as quais nfo ficaram estranhos os trés Podéres da Repiiblica: “A reagio apareceu, afinal, por parte do Poder Executivo, representado pela poli- cia. Continuou com a intervengio do Poder Judiciario. £ bem possivel que, diante de qualquer movimento ope- rario, que venha a suceder, entre em servico 0 Poder Legislativo, com cuja contribuicéo de arrécho ja foram ameayados us operdrios... estrangeiros! Pelo Decreto n.° 1.297, de 14 de dezembro de 1904, foi prorrogado o estado de sitio no Distrito Federal ¢ Niteréi, sendo, finalmente, pelo Decreto n.9 1.641, de XLV 7 de janeiro de 1907, regulada a expulsio de estran- geiros do territério nacional. Vinha 0 Decreto assinado e referendado por Afonso Pena ¢ Tavares de Lyra. 4 — Orientagio do Autor — Em téda a sua vida defendeu Evaristo de Moraes uma espécie de social-demo- cracia, na qual se somassem as conquistas econdmicas € sociais as liberdades politicas da democracia liberal. Pela intervengio do Estado, mediante medidas legislativas, poder-se-ia alcangar uma sociedade mais solidarista, me- nos injusta e menos desigual. Nao era adepto da violén- cia nem do reciudesci Via e apontava os abusos da sociedade competitiva do seu tempo, criticava a suposta igualdade de todos perante a lei, mas apontava também a demagogia c a politica- gem como as culpadas pelo atraso e pela perda de con- quistas reais do operariado. Em suas palavras, em alguns textos significativos: “Até a presente data, bem no se conhece qualquer pro- grama de feigio possibilista, com outras exigéncias mini- mas — que, ao menos, servisse para ponto de apoio a al- gum legislador mais consciencioso adiantado, quando quisesse, porventura, prestar atengio aos arduos proble- ‘mas sociais-econémicos. O que entre nés mais se aproveita €o que se poderia chamar a liturgia do socialismo; tudo se limita a exterioridades brilhantes e a declamagdes en- tusidsticas, na sua maior parte sinceras — mas baldas de significagao pritica. De quando em ver, por ocasiao das greves, sempre se faz, de momento € com carater provi- s6rio, algum trabalho aproveitavel, conquistando-se para operarios de certas especialidades umas tantas vantagens profissionais, E é sé. wiv da chamada luce de classes. XLV Ja era tempo, entretanto, de se cuidar, no terreno legislative, em abrir caminho a alguns institutos juri- dicos, especialmente destinados a protecio das classes trabalhadoras € 4 modificacio das suas condi¢des de exis- téncia. Dada a “felicidade social” de que nos podemos orgulhar, confrontando nossa situagio com a de paises em que a luta das racas é muito mais violenta ¢ pronun- ciada; aproveitadas as condigées admiraveis do nosso clima; tomada em consideragio a relativa harmonizagio dos nossos capitalistas com os produtores — ninguém dird striamente que, no Brasil, a legislagao operdria, dentro de certos limites, ofereca maiores dificuldades do que ofereceu na Franca, na Alemanha, na Itélia, na Ingla- terra e nos Estados Unidos. Incontestivelmente, no que dizia respeito a velhas relagées da vida social, a resistén- cia deveria ter sido, naqueles paises, muito mais tenaz e persistente do que poder ser aqui, onde nem existem partidos organizados, onde os mais radicados interésses cedem a presses minimas ¢ a entusiasmos de ocasiio”. Era com éste estado de espfrito e com esta boa von- tade que o A. pregava e propunha as solugdes para a chamada questo social, com apelos a ambas as classes, com argumentos racionais e légicos, acudindo-lhes com medidas praticas e factiveis. Logos e pragma, por assim dizer. Depois de elogiar os movimentos sindicais na In- glaterra, na Austrilia e nos Estados Unidos, pelo que obtiveram de conquista econémica e social dentro do regime, conclui: “Na Franga, até a presente data, parece que nio se tem colhido frutos to brilhantes, contri- buindo para isso o intrometimento do socialismo revo- luciondrio e da politicagem, que avassalam 0 movimento operario naquele pais"

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