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richard miskolci larissa pelucio (orgs.) Pa erCee ee ae e Croce) Repensando 0 sexo € 0 género! Judith Jack Halberstam Hé duas ou wrés coisas que cu sei mesmo; e uma é que preferiria ir nua a usar 0 casaco que o mundo criou para mim. (Dorothy Allison) Esta reflexao surgiu de um livro que acabo de terminar para a Duke versity Press, intivuladoThe Queer Art of Failure. Neste livro, abor- desde os desenhos animados para criangas até a performance e a arte er de vanguarda para pensar sobre formas de ser ¢ conhecer fora dos delos convencionais de sucesso. Minha reflexao segue a forca do que 0 de “negatividade queer” por meio de obras de arte preocupadas deixar de ser, desfazer-se, esterilidade ¢ futilidade, muito do que ¢ 0 como o desfazer de si em obras literdrias e o espaco presente do ‘0 vazio em trabalhos visuais. O fracasso passa diretamente pelo territério da estranheza [queer- que, para alguns tedricos queer como Leo Bersani, Lee Edelman, ther Love, (a primeira) Judith Butler, (a tiltima) Lauren Berlant, sig- ica uma recusa da coeréncia da identidade, da completude do desejo, clareza do discurso ou da sedugio do reconhecimento. Para outros, 10 Rod Ferguson, José Murioz ¢ Lisa Duggan, a negatividade tem a com uma forma de critica que emerge dentro da Teoria Queer como lugio de Richard Miskolei, 126 Discursos fora da ordem uma forma de antiutopismo. Mas muito deste trabalho emerge de uma teoria original de “Pensando sobre sexo’, criado 25 anos atrds por Gayle Rubin (1992). O ensaio de Rubin iluminou 08 sistemas ideoldgicos nor- te-americanos que associavam sexo ao contdgio, ao caos € A corrup¢a0 e originou, no século XX, numerosos panicos sexuais. Como ela tinha feito em outro ensaio marcante, “A troca de mulheres” (1975), Rubin uniu doses saudaveis de teorizacao pragmatica a flashes de brilhantes, e muitas vezes contraintuitivos, insights sobre as esperangas e os medos, as ansiedades e as excitagdes que se ligam ao sexo na teoria € na pratica. Enquanto “A troca de mulheres” interrogava com sensibilidade como te- dricos como Freud ¢ Lévi-Strauss teorizaram sobre a institucionalizacao das hierarquias de género sem as criticar, “Pensando sobre sexo” indaga- va sobre porque uma vertente moralista do feminismo tinha se tornado 0 espaco privilegiado para teorias sobre a conduta sexual. Petcebendo que o essencialismo e a negatividade sexuais eram comuns aos projetos politicos de esquerda ou de direita, ela concluia epigramaticamente: “Se o sexo ¢ levado tao a sério, entao a perseguicdo sexual nao tem sido leva- da suficientemente a sério” (Rubin, 1992: 35). Obviamente, a perseguicao sexual tem sido um tema importante: nos estudos queer e uma rationale forte para todo seu empreendimen- to intelectual, mas enquanto o ensaio de Rubin nos demanda atengdo para a maneira como as minorias sexuais podem ser reprimidas e mar- ginalizadas, cle também lembra-nos, em seu cuidadoso delineamento do contetido das hierarquias sexuais, que a opressio sexual nfo se refere apenas & aplicagao de medidas legais por heterossexuais contra os ho- mossexuais. De alguma forma, deveriamos, 25 anos apds a publicacao do ensaio de Rubin, ser capazes de abandonar certas narrativas heroicas sobre sexo e dissidentes sexuais que alocam homossexuais como sendo sempre, e em toda parte, progressistas, oprimidos ¢ enfrentando 0 po- der, De fato, o modelo de “chegar ao poder’, um modelo que Foucault chamou de “discurso de réplica”, ainda prové, em muitas instancias, 0 enquadramento dominante para pensar sobre sexo. Muitos ensaios nos estudos queer (alguns dos quais eu escrevi!) terminam imaginando e descrevendo as novas formas sociais que, supostamente, emergem das Richard Miskole’ e Larisa Pelicio (orgs) 127 orgias gays masculinas, das fugas do cruising ou do erotismo do género- queer, do sadismo sodomita ou do prazer queer de uma forma ou ou- tra. Mas talvez seja sempre melhor trabalhar em direcao ao protesto ao invés do confronto, no sentido de que o vinculo é sempre, para citar Foucault, “para o beneficio do falante”, jé que tais narrativas, Foucault sugete, sdo aquelas que contamos a nds mesmos para manter uma “hipo- tese repressiva” que aloca 0 queer corajoso como 0 lutador heroico pela liberdade em um mundo de puritanos. Dentro dessa mesma narrativa, gays e lésbicas sao marcados como resistentes & norma, sempre parte de um movimento social ou um grupo protopolitico ¢ sempre, de alguma forma, em conflito com a respeitabilidade, a decénciae a domesticidade. Esta nartativa, como Michel Foucault afirma firmemente em Historia da sexalidade (volume 1), é sedutora, comovente, convincente.., ¢ al- tamente errénea. Enquanto ela é muito para o “beneficio de quem fala’, como Foucault coloca descaradamente, contar este tipo de historia so- bre a marcante emergéncia das minorias sexuais da tirania dos regimes tepressivos é também outra narrativa autocongratuladora, agradavel, do humanismo liberal que celebra o homo-heroismo ¢ ignora as frequente- mente conectadas agendas do Estado e dos homossexuais burgueses, das familias e casais homossexuais, dos homossexuais decentes ¢ cristios, das hierarquias raciais e dos homossexuais brancos, Como Rubin afirmou sucintamente: “o sexo sempre é politico” Isto ¢ indiscutivel; e, como obras de Leo Bersani, Lee Edelman, Heather Love ¢ outros tém sugerido, nao hd garantia de que forma o politico Fomard quando se trata de sexo, A obra de Rubin nos pede para “pensar sobre sexo” em cada contexto, e Foucault nos incita a examinar nossos tnvestimentos nestas narrativas de liberdade sexual ¢ rebelido. Enquan- +o Foucault substicui a narrativa romantica da resisténcia gay/lésbica pelo conceito de “discurso de réplica’, Leo Bersani (1965), por sua vez, 2ponta a favor de uma vertente anticomunitarista de pratica queer que renta a tendéncia dos lacos homoeréticos entre homens de formar uma rede de apoio ao patriarcado por meio da superacao dos lagos ho- Mossociais com nao-relacionalidade, solidao ¢ masoquismo. Em outras alavras, enquanto o homem gay pode ser um apoio a0 Estado patriarcal 128 Diseursos fora da ordem engajado no negécio dos lagos masculinos e na formagao de comunida- de gay, ele pode se tornar uma ameaga para 0 status quo politico quando recusa a domina¢ao masculina, rejeita a relagao mesma e opta por “um desaparecimento nio-suicida do sujeito” E este tipo de subjetividade gay masculina que Bersani traga por meio da obra de Genet, Proust ¢ outros, ¢ que ele apresenta como 0 significado da homossexualidade: homosse- xualidade, diz Bersani, via Genet, “€ parente da traigao” (Bersani, 1965: 153).Ainda que eu aqui nao explore a leitura de Bersani de Genet, € su- ficiente dizer que a negatividade queer para homens gays brancos ¢ uma. forma muito clara ¢ specifica de negatividade e ela depende fortemente de uma nogio de “deixar de ser” que também conota o abandono de cer- tos mitos falicos de fortitude ¢ por af vai. Realmente, o autoestilhacar-se que ocupa o centro da nogao de Bersani do desconstruir-se da mascu- linidade indica um desejo de ser penetrado ¢ de modelar uma masculi- nidade que nao é consistente com uma hombridade heterossexual, mas que nao é redutivel ao ser “desmasculinizado” ou transformado em uma “mulher”. O que a negatividade queer parece quando ela néo envolve apenas uma mudanga dbvia do poder falico? Construindo aqui partir do trabalho de feministas como Saidiya Hartman e Saba Mahmood, ¢ localizando uma feminilidade queer que recusa resistencia e recria o significado do politico no proceso, quero oferecer, na tradicao de Bersani narrada e estendida por Heather Loveem seu livro Feeling Backward (2009), uma teoria queer do masoquismo e do afeto negativo que revela nos fracassos, construidos em torno de um su- jeito anti-heroico, desintegrado, e no proceso, realoca 0 projeto de pen- sar sobre 0 sexo € o género. Também quero apresentar uma genealogia de um feminismo antisocial ou anti-humanista, ou ainda contraintuitivo, 0 qual surge do queer, do pés-colonial e dos feminismos negros, ¢ que pen- sa nos termos da negagao do sujeito ao invés de em sua formacao. Nes- ta genealogia queer feminista, que poderia se estender das reflexdes de Gayatri Spivak (1988) sobre 0 suicidio feminino em “Pode o subalterno falar?” as noges de Saidiya Hartman (1997) de “atos cotidianos” “ima- ginativos” [fanciful] e “excessivos” em Scenes of Subjection, dos fantasmas de Toni Morrison as anti-herofanas de Jamaica Kincaid (1997), ¢ passa Richard Miskolei ¢ Larissa Pehicio (orgs) 129 pelos territérios do siléncio, da obstinacio, autoabnegacio e sacrificio, nao encontramos nenhum sujeito feminista, mas apenas sujeitos que nao podem falar, que recusam falat. Sujeitos que desfazem, que recusam ser Coerentes. Sujeitos que recusam “ser” onde ser jd foi definido nos termos de um sujeito liberal autoativado, que conhece a si mesmo. Em um dos meus textos feministas prediletos de todos os tempos, o drama épico animado A fuga das galinhas, a ave politicamente ativa ¢ explicitamente feminista, Ginger, se opde em sua lata para inspirar as ga- finhas a se sublevarem por outros dois “sujeitos feministas”, Um éa cinica Bunty, uma lutadora de nariz duro que rejeita sonhos utdpicos 4 mio, masa outra ¢ Babs, dublada por Jane Horrocks, que algumas vezes di voz a.uma ingenuidade feminina ¢, em outros momentos, aponta o obsurdo do terrreno politico como ele tem sido delineado pela ativista Ginger. Ginger diz, por exemplo, “ou morreremos como galinha frica ou mor- Teremos tentando”, Babs pergunta ingenuamente: “Estas sio as unicas opgées?”. Como Babs, quero recusar as opcdes oferecidas — a liberdade nos termos liberais ou a morte- e pensar sobre um arquivo sombrio de resistencia, um que nao fala na linguagem da aco e do momento, mas, 20 contrario, se articula nos termos da evasio, recusa, passividade, do dei- xar de ser, desfazer-se, Esta é uma forma de feminismo queer preocupa- do com a negatividade ¢ a negacdo. Como Roderick Ferguson (2004) coloca em um capitulo sobre “As negacées do feminismo negro lésbico” Aberrations in Black: “a negagio nao apenas aponta as condicées de loragao. Ela denota as circunscincias para a critica assim como as al- rnativas” Ferguson, a partir de Hortense Spillers, esta tentando circuns- eracéo na mesma logica dos regimes normativos contra as quais elas se tam. Uma luta diferente, de tipo anarguista, Tequer uma nova gramé- possivelmente uma nova voz, potencialmente, a voz Passiva. A percepgio de Babs de que deve haver mais formas de pensar so- a. aco politica ou a niio-agio do que fazer ou morrer encontra con- ‘acao tedrica completa na obra de tedricas como Saidiya Hartman. pesquisas de Hartman, em Scenes of Subjection, sobre as contradigées emancipacao para os esctavos recém-libertos propdem nao apenas 130 Discursos fora da ordem que “liberdade”, como definida pelo Estado racial branco, permeie no- vas formas de aprisionamento, mas também que a as proprias definigdes de liberdade e humanidade dentro das quais os abolicionistas operavam. limitavam severamente a habilidade dos ex-escravos pensarem transfor- macoes sociais em termos fora da estrutura do terror racial. Hartman nota: “a longa e intima ligacao entre liberdade ¢ aprisionamento tornou impossivel imaginar a liberdade independente da restricao ou a persona- lidade e a autonomia separada da santidade da proptiedade ¢ das nogées proprietarias de si mesmo” (Hartman, 1997: 115). Dessa forma, ondea liberdade foi oferecida nos termos de propriedade, localizada e produti- va, 0 ex-esctavo devia escolher entre “mover-se em torno” ou mudar-se para experienciar o significado da liberdade. Hartman escreve: “Como uma pratica, mover-se acumulava nada e nao causava nenhuma mudan- ga do poder, mas incansavelmente levava ao irrealizavel ~ ser livre — por cludir temporariamente os constrangimentos da ordem”. Ela continua: “como entrar sem ser notado, era mais simbolicamente fragrante do que transformador materialmente” (Idem: 128). Nao hé comparagdes sim- ples a serem feitas entre os ex-escravos e as minorias sexuais, mas quero unir as revelag6es surdas de Hartman sobre a continuidade da escravidio por outros meios as formulagées de Leo Bersani, Lynda Hart e Heather Love de histérias e subjetividades queer que sao melhor descriras em ter- mos do masoquismo, da dor e do fracasso do que do dominio, do prazer e da liberacio heroica. Como 0 modelo de Hartman de,uma liberdade que se imagina nos temos de uma ordem social ainda nao alcancada, as- sim os mapas do desejo que rendem o sujeito incoerente, desorganizado e passivo provém uma linha de fuga melhor do que aquelas que levam inexoravelmente ao sucesso, a0 reconhecimento e a aquisi¢ao. Uns poucos exemplos da literatura podem revelar os pontos po- liticos em um projeto como este que soa como se nao tivesse nenhuma aplicacio material. Os textos que considero brevemente aqui propdem uma forma radical de passividade masoquista que oferece uma critica, nao apenas da légica organizadora da agéncia e da subjetividade clas mesmas, mas que também surgem de certos sistemas construidos em torno de uma dialética entre colonizador ¢ colonizado, mestre ¢ escravo. Richard Miskolci e Lavissa Pelucio (orgs.) 131 Por exemplo, na obra de Jamaica Kincaid (1997), o sujeito colonizado Tecusa seu papel como colonizado ao recusar ser o quer que seja. Em Autobiography of My Mother, a protagonista se retira de uma ordem co- lonial que a compreende como filha, esposa € mie recusando ser qual- quer destas identidades e até recusando também a categoria mulher. A Personagem nem mesmo conta sua histéria de tornar-se tampouco a his- toria de sua mie e, apropriando-se da nio-historia de sua mae como sua (Autobiography of My Mother) ela sugere que a mente colonizada passa de geracao para geracio e deve-se resistir a cla por meio de um certo modo de evasio. Outro exemplo de romance em que a protagonista mulher literal- mente se desfaz & A professora de piano, da ganhadora do Prémio Nobel Elfride Jelinek (1988). Aqui a recusa de ser é vivida no outro fim da escala do poder: Erika Kohut, a Petsonagem principal, é uma mulher eustriaca solteira na faixa dos 30 que vive com sua mae na Viena do Pés- Segunda Guerra Mundial ¢ dé licées de piano em seu tempo livre, en- quanto colide com sua mic em uma certa fantasia sobre a mtisica, a Aus- tra, a alta cultura e sobre a superioridade cultural. Enquanto a historia segue, Erika vagarosamente recua da cumplicidade com uma mitologia estruir tudo que ¢ austriaco dentro de si mesma. Ela se envolve com um vem, um de seus estudantes, e pede que ele abuse dela sexualmente ea altrate, a destrua, a faca passat fome ca negligencie. Ela quer ser des- ida e quer destruir seus proptios estudantes neste processo. Enquanto nartadora do romance de Jamaica Kincaid retiraa si mesmo ea sua mae sa estéril que sé terminard com suas mortes, O romance termina com Fotagonista primeiro ferindo um jovem estudante e, depois, cortando propria carne, nao exatamente para se matar, mas para continuar a 1a parte de si que permanece austriaca, complacente, fascista e con- ista. Aqui, a passividade de Erika é uma forma de recusar ser um al para uma vertente persistente do nacionalismo fascista, seu maso- 10 ou autoviolacio indica seu desejo de matar dentro dela mesma 15 Discursos forada ordem as versdes do fascismo que estao dentro de seu ser — por meio do gosto, por meio das respostas emocionais, por meio do amor ao pais, o amor 2 musica, por meio do amor a sua mae. Quero concluir com trés pequenos éakes em algumas cenas de corte, de excesso masoquista, feminilidade queer e passividade radical. Cada uma combina raga a género, feminilidade a masoquismo ¢ sexua- lidade com uma contranarrativa do ser como precariedade, ¢ cada uma. representa a feminilidade queer como perigo: em uma, a feminilidade € uma forma de sacrificio; na outra, a feminilidade queer requer 0 desapa- recimento do corpo e, no exemplo final, a feminilidade queer desmonta a beira do colapso. Todos os trés conectam estranheza [queerness] ¢ fe- minilidade a formas de negatividade que ofetecem, ambas, critica social e recusa das convengées da critica social no mesmo gesto. 1) Peca corte: Uma parte consideravel da arte performatica ~ fe- minista ou nao — da cena experimental dos anos 1960 ¢ 1970 do século passado explorara o solo fértil do colapso masoquista.A pega perfor- mética de Faith Wilding, airing, revrata a narrativa viva de mulheres como desejos nao-realizados, como antecipagao sem fim e como vidas em suspenso. Chris Burden permitiu-se ser fotografado em sua pega de performance Shoot, de 1971. Em 1974, em “Rhythm 0°, Marina Abra- moviez convidou seu publico a usar e abusar dela com 72 objetos que ela deixou na mesa. Alguns objetos podiam dar prazer, alguns infligir dor, as armas inclufam uma pistola ¢ uma tinica bala. Abramovicz, tinha isto adizer depois da performance: © que aprendi da experiéncia foi que... se vocé deixa a decisio para 0 publico, vocé pode ser morta... Senti-me realmente violada: eles cortaram minhas roupas, enfiaram espinhos de rosa em minha barriga, uma pessoa apontou a arma na minha cabeca e outra a tirou de suas maos. Criei uma acmosfera agressiva. Em 1965, no Carnegie Hall, em Nova York, quase dez anos an- tes, Yoko Ono sentou em um palco, completamente vestida, ¢ deu ao publico um par de tesouras. A performance de nove minutos de Yoko Richard Miskoli e Larissa Pelicio (orgs) 133 Ono intitulada “Pega corte” envolve a artista sentada no palco enquan- to membros da audiéncia vém € cortam pedacos de sua roupa. O ato de cortar aqui ¢ assignado ao puiblico ao invés de & artista e 0 corpo da artista se torna o quadro enquanto o gesto autoral ¢ disperso nos gestos sddicos, sem nome, que desnudam Ono e a deixam aberta ¢ desprote- gida em relacdo ao toque do Outro. O publico ¢ misto, mas enquanto a performance acontece mais e mais homens sobem ao palco e eles se tornam mais e mais agressivos no ato de cortar sua roupa até que ela é deixada, seminua, as maos sobre seu peito, sua suposta castragdo, des- conforto emocional, vulnerabilidade ¢ passividade completamente 4 mostra. Como podemos pensar sobre feminilidade ¢ feminismo aqui no contexto do masoquismo, apresentacao racializada, visualizacdéo como espectador e temporalidade? Enquanto, obviamente, esta performance nao sugere imediatamen- te um ato “feminista’, quero pensar sobre feminismo aqui em termos de um comentario em andamento sobre o fragmentario, a submissao e 9 sacrificio. Esta performance que se desmonta nos Pressiona a indagar sobre o tipo de sujeito que ¢ desfeito em nove minutos porum publico? E talato, ¢ tal modelo de si, feminista? Podemos pensar sobre esta recusa de si mesma como um ato antiliberal, uma afirmacao revolucionaria de oposigdo pura que conta com o gesto liberal de desafio, mas que acessa outro léxico do poder e fala outra lingua de recusa? 2) Espelhos sombrios: Quero associat a performance de Ono com um uso explicitamente queer da colagem, da arte do corte, dentro da qual a tensao entre a energia de rebelido da variacao de género ea revolra silenciosa da feminilidade queer vém a tona. Uma artista queer contem- pordnea de Los Angeles, Monica Majoli, escolhe o tema da escuridio em sua obra, Majoli realmente usa um espelho escuro para estes rascunhos € pinturas e tira fotos de suas ex-amantes assim como elas aparecem no espelho escuro ¢ depois pinta a partir das imagens do espelho. Impos- sivelmente escuros, impenetrdveis, melancélicos ¢ polidos com perda, estes retratos desafiam a defini¢io de espelho, retrato ¢ mesmo de amor. Uma imagem de espelho, claro, é, antes de mais nada, um autorretrato © assim, as imagens devem ser lidas tanto como uma representacio da 134 Discursos fora da ordem propria artista e descrigéesde casos amorosos apés seu fim. Na maioria dos retratos, Majoli cria um paralelo entre um rascunho ou pintura de uma figura com uma versio abstrata chamando a atengo para as trevas de todas as oposigées em um espaco especular escurecido — enquanto uma pintura convencional pode depender de alguma forma de relagao entre a figura e o real, nestes retratos, 0 fundo preenche a figura com intensidade emocional, literalmente com escuridao, ¢ nos demanda que olhemos fortemente na interioridade ela mesma. As yersOes abstratas nao sao mais dificeis ou faceis de ler ou olhar do que as figuras que nos lembram que as figuras também sao abstracdes e que o formato de uma cabeca ou o delineamento de um seio nada garantem em termos de pre- senca humana ou conexio ou intimidade. Os retratos s4o dolorosamen- te intimos ¢, a0 mesmo tempo, recusam intimidade. Todas as tentativas de olhar mais de perto, de criar tragos, de entender a trajetéria de uma linha terminam na mesma escuridao fervente, um negro que nao ¢ plano porque ele ¢ uma superficie especular ¢ um espelho que nao é profundo porque ele suga a luz da imagem. Os retratos feitos depois que 0 caso amoroso terminou ¢ represen- tam o que compreendemos como fracasso: o fracasso do amor em durar, amortalidade da conexao, a natureza flutuante do desejo. Obviamente, o desejo esta presente em cada gesto da pintura e ainda o desejo aqui, como o espelho escuro, devora ao invés de gerar, oblitera mais do que ilumina. As pinturas de Majoli sio tecnicamente muito dificeis, mas, emocional- mente também trabalhadas — os desafios técnicos, nomeadamente como esculpir uma figura por meio da escuridao, como desenhar no escuro, re- fletem assuntos emocionais ¢ afetivos —, denotam como narrar a relagio que termina, como encarar o fim do desejo, como olhar pata os fracassos de alguém, sua mortalidade ¢ limitagées. Majoli segura um espelho es- curo para quem vé e insiste que ela olhe dentro do vazio. Ouvindo de volta uma historia de representagdes da homossexualidade como perda ¢ morte de Proust a Radcliffe Hall, as pinturas de Majoli conversam com a tradicao de imaginar iniciada por Brassia ¢ estendida por Arbus. 3) Wobbling: Em uma peca contemporanea de performance que comega onde estas artistas saem, uma peca de performance de 55 minu- Richard Miskolet e Larisa Plécio (orgs) 135 tos intitulada American the Beautifiul, Nao Bustamente combina perfor- mance avant-garde com 0 burlesco, o ato circense e foge a farsas de artis- ta. A performance solo casa banalidade, os rigores do adorno feminino com alta tensdo ea trémula e cambaleante subida do corpo constrangido em uma escada. Combina a disciplina da performance fisica com 0 espe- taculo de incerteza corporal. O publico ri desconfortavelmente durante a performance, assistindo enquanto Bustamente prende seu corpo nu com fita colante transparente e, desajeitadamente, se aplica maquiagem uma peruca loira desarrumada. Musica sentimental toca docemente ao fando e conflita barulhentamente com a performance dura de femini- Tidade que Bustamente encena, Em sua peruca loira e maquiagem, com sua pele apertada, ela mostraas demandas de beleza feminina racializada. Para confirmar o perigo de tal beleza ela se inclina ¢ rebola precariamen- fe enquanto usa sapatos de salto alto para subir em uma pequena escada. Finalmente, Bustamente sobe uma escada muito maior carregando um fogo de artificio e ameacando cair a qualquer momento de seu degrau. Em uma entrevista com José Mufioz, Bustamente se refere 4 qua- de improvisada de sua obra e clara ¢ brilhantemente associa-se a tese que nao ha tal coisa, a improvisagio, em performance e a ideia de que ‘=spaco fresco” sempre existe, Algo do balango entre improviso ensaiado ¢ imprevisivel do “espaco fresco”: marca 0 trabalho de Bustamente como @ recusa rigorosa da mestria. Mufioz nomeia positivamente isto na en- sta como “amadorismo” ¢, em particular, em relacao & performance na ada em America The Beautifivl, ¢ Bustamente concorda mas elabora: trabalho que faco é sobre nao conhecer o equipamento ¢ nao conhe- aquele particular balango e, entio, encontré-lo enquanto vou” Como diz, cada noite a escada é posicionada de forma um pouco diferente chao, ou é uma escada diferente, o cambaleio ocorre diferentemente, um espectro diferente ¢ o corpo dela deve responder no local e no ento da performance ds novas configuracoes do espaco ¢ da incerteza. Enquanto, obviamente, as performances de Bustamente e Ono no imediatamente atos ¢ imagens “feministas’, clas permitem-nos sobre o feminismo na forma como eu abordavaa estranheza [que- | antes, nomeadamente em termos de um comentario Presente so- 136 Discursos fora dz ordem bre o fragmentario, a submissao e o sacrificio. Podemos pensar sobre esta recusa de si como um ato antiliberal, uma declaragao anarquista de opo- sicdo pura que conta nao com o gesto liberal de desafio, mas que acessa outro Léxico de poder e fala outra lingua de recusa? A performance de Ono, racialmente marcada como era em 1965 por seu status como uma: mulher asidtica dentro da imaginagao imperial, pergunta, em termos que Hartman poderia reconhecer, se a liberdade pode ser imaginada se- parada dos termos em que ela é oferecida. Se a liberdade, como Hartman: mostra, foi oferecida ao escravo como uma espécie de contrato com o capital, entao mover-se, ser sem descansar, recusar adquirir propriedade ou riqueza, flerta com formas de liberdade que so inimaginaveis para aqueles que oferecem liberdade como a liberdade de se tornar domi- nador. Aqui Ono para, espera pacientemente e passivamente, € recusa. resistir nos temos oferecidos pela estructura que a interpela. Ser cortada, desnuda, violada publicamente é uma forma particular de performan- ce resistente ¢, nela, Ono habita uma forma de des-agir, deixar de set, nao se tornar. © estado inanimado de Ono, pontuado apenas por um involuntario recuo dentro do evento, como os cortes masoquista em 4 professora de piano ¢ as recusas do amor em Autobiografia de minha mae, oferecem gestos masoquistas silenciosos que nos convidam a des-pensar © sexo como aquela narrativa atraente de conexio e liberagao e pensar o sexo de novo como 0 local do fracasso e da conduta do deixar de ser. Referéncias bibliogrdficas BERSANI, Leo. Marcel Proust: the fictions of life and of art. New York: Oxford University Press, 1965. FERGUSON, Roderick. Abervations in Black.Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 2004. HARTMAN, Saidiya.Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self making in Nineteenth Century America. New York: Oxford Univ. Press, 1997. JELINEK, Elfriede. The Piano Teacher. 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Feito no Brasil, mas inserido nas CoTUts of =ISpun 0) r= Hume ns eMac oelnl tg NU any = ec Wee COUT MTe rl e]e TOM tcxel (cose repensar conceitos e temas expandindo as analises disponiveis sobre género, sexualidade, raga, nagao e outros marcadores sociais das diferengas por meio de apostas interseccionais. Os estudos aqui reunidos buscam Frcleroynts CU Seo) a\e fel COLUMN Oly o-oo dele MCON Cl poraneas de ser socialmente marcado como mulher, estrangeiro, ho- mossexual ou mesmo estranho/anormal, ressaltando como elas se inserem em processos mais amplos que criam os ndo-marcados, aqueles e aquelas que se beneficiam do privilégio de serem pressupostos como normais.

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