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MARIELLE FRANCO, O FEMINISMO NEGRO E SEU LEGADO

Contribuições para um Brasil feminista e antirracista

Maria Fernanda Dias Sucupira, Rayane Catem

Universidade Federal Fluminense

Resumo

Este presente artigo objetiva relacionar a vida e trajetória de uma grande mulher negra,
Marielle Franco, com as discussões feitas durante a disciplina História das Mulheres e
das Relações de Gênero ministrada pela professora Erika Arantes – UFF Campos,
somado aos estudos e perspectivas feministas das autoras estudadas trazendo sempre o
contexto de raça para nortear este trabalho.

Palavras chave: gênero; raça; feminismo; Marielle Franco

Introdução

Em um país onde o racismo se faz presente de forma estrutural, pensar na questão de


gênero dentro deste contexto nos trás ainda mais problemáticas em relação a mulher de
cor. Ser mulher em uma sociedade patriarcal é estar em desvantagem em todas as
esferas, ser mulher negra é sofrer todas essas mazelas intensificadas devido a
intolerância racial promovida pelo racismo e sexismo vivo em nossa realidade. Para
intensificar esse debate, introduzimos a figura de Marielle Franco, mulher negra,
feminista, militante LGBT e vereadora para melhor visualizar, pontuar e discutir essas
questões mencionadas anteriormente através de reflexões aos estudos de autoras negras
como Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e outras, mostrando as problemáticas em relação
ao movimento feminista, o feminismo negro, a mulher negra, a questão da
representatividade e etc, afim de contribuir com um estudo antirracista de forma que
impacte de alguma maneira nossa sociedade futuramente.
1. Em busca de um feminismo de fato emancipacionista

Não é novidade para as (os) interessadas (os) em estudos sobre gênero, que o
movimento feminista tem cor e classe em suas origens: branca e burguesa,
respectivamente. A história do movimento de libertação da mulher surgiu com bases
intencionalmente nobres, porém, excessivamente excludentes. A ideia principal de que
o sofrimento das mulheres no geral na sociedade patriarcal não podiam ser medidas,
portanto, todas sofriam igualmente, gerou um erro estratégico e ideológico que sempre
fora sinalizado pelas mulheres negras ativistas das causas das mulheres, mas
frequentemente ignorado pelas mulheres brancas.

É preciso fazer uma análise aprofundada das condições de vida materiais que
envolvem determinados grupos formados por mulheres. Essas diferentes condições
materiais são o que determinam as diferentes perspectivas de mundo que o gênero pode
carregar e determina também a ou as opressões que uma mulher ou grupo de mulheres é
ou são submetidas. Como exemplo podemos pensar em como são diferentes, as
demandas de uma mulher negra trabalhadora e uma mulher branca dona de casa. Seria
realmente impossível calcular em valores, medir o sofrimento de ambos os grupos,
porém analisando a história do movimento feminista e a atual formação social política e
econômica no contexto em que vivemos, fica nítida a dificuldade que teremos em
encontrar um “vínculo no sofrimento” entre os grupos intraclasse.

O sofrimento não é necessariamente uma experiência fixa e universal que


possa ser medida com uma régua única: está relacionado a situações,
necessidades e aspirações. Mas deve haver alguns parâmetros históricos e
políticos para o uso do termo, para que possam ser estabelecidas prioridades
políticas e se possa dar mais atenção a diferentes formas e graus de
sofrimento (Barber, 1975, p. 30. In hooks, bell. “Mulheres negras moldando a
teoria feminista, p.197).
A raça tem um impacto direto na qualidade de vida e no status social, refletindo
diferentes experiências entre as mulheres que dificilmente seriam superadas através do
discurso neutro “onde todas as mulheres sofriam igualmente”. O patriarcado atua de
forma a restringir as mulheres em todas as esferas, no entanto, a forma em que atua e as
suas consequências nos grupos dentro da classe das mulheres são extremamente
diferentes. Para que fique claro precisaremos resgatar um pouco da história, mais
precisamente o contexto em que pessoas negras eram escravizadas.
Durante cerca de três séculos no Brasil, a estrutura escravista permeou todo o
imaginário social construindo e fortalecendo as bases racistas que permanecem
enquanto alicerce até hoje. Na época, as relações entre mulheres brancas e negras eram
rigorosamente hierárquicas: mulheres brancas eram as senhoras e as mulheres negras,
servas. Apesar de ambas estarem restritas ao espaço privado e o cuidado com o
ambiente doméstico ser visto como responsabilidade das mulheres dentro dos preceitos
sexistas, “o contato pessoal entre os dois grupos era cuidadosamente construído de
forma a reforçar a diferença de status baseada na raça.” (Hooks, 2013, p.129). Em uma
sociedade culturalmente conservadora baseada na supremacia masculina e branca, os
homens com os quais as mulheres brancas se relacionavam e casavam eram
determinantes para sua posição, por isso elas precisavam reforçar esse sistema que
abusava e tentava dominar as mulheres negras. Por muitas vezes, as mulheres brancas
burguesas foram agentes que endossaram a imagem degradante das mulheres negras
tentando fazer com que os homens brancos se distanciassem emocionalmente cada vez
mais delas e, assim, era salvaguardada a vulnerável posição social da mulher branca.

Esta relação foi mantida durante o período posterior à abolição da escravidão


que não garantiu condições materiais para o povo negro no geral recuperar sua
dignidade em todas as esferas: social, política e econômica. Já que a segregação racial
permaneceu, a relação serva-senhora não pode ser rompida impedindo que uma
dinâmica mais recíproca entre esses dois grupos intraclasse fosse criada. Assim, a
relação das brancas com as mulheres negras permaneceu sendo a de concorrência,
ignorando em sua maioria as agressões e abusos sofridos pelas irmãs negras apesar de
existirem “emocionantes autobiografias que descrevem os laços de afeto entre elas e
suas empregadas negras, as brancas em geral não conseguiam reconhecer que a
intimidade e o carinho podem coexistir com a dominação.” (Hooks, 2013, p.133). A
perspectiva negativa da mulher negra com relação ao mundo da mulher branca fora
aprofundada neste período de segregação. Para que possamos entender melhor a
dinâmica atual das relações dessas mulheres de dois diferentes grupos intraclasse, é
preciso que entendamos o legado de reflexões compartilhado de geração em geração
pelas mulheres negras acerca das mulheres brancas, resultado do impacto dos encontros
entre essas mulheres. Diante do contexto de segregação racial, a perspectiva da mulher
negra foi construída a partir das situações degradantes do cotidiano. Obviamente, ao
contrário dos estereótipos racistas atribuídos as mulheres negras, elas sempre foram
dotadas de razão e, portanto, reconhecendo as explorações sofridas e as situações
humilhantes em que eram postas, só poderiam relatar suas experiências com as
mulheres brancas a partir de sentimentos como hostilidade e amargura.

Foram esses arranjos sexistas, racistas e, cabe ressaltar aqui, de resistência negra,
que atravessaram as relações cotidianas entre mulheres brancas e não brancas e as
distanciaram por muito tempo, impedindo que houvesse um diálogo entre as diferentes
demandas que perpassam a classe das mulheres e a criação de uma teoria feminista que
de fato emancipasse todas as mulheres ao invés de emancipar apenas as que tinham
acesso ao estudo e possuíam certos privilégios em detrimento a outros subgrupos da
classe das mulheres. Nesse sentido, sobre as percepções do feminismo brasileiro
segundo Lélia Gonzalez (BAIRROS, 2000):

“padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés


eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão de
raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao universalizar os
valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres,
sem as mediações que os processos de dominação, violência e exploração que
estão na base da interação entre brancos e não-brancos, constitui-se em mais
um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de
branqueamento. Por outro lado, também revela um distanciamento da
realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma história feita de
resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à
dinâmica de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o
eurocentrismo desse tipo de feminismo.”

É preciso que as mulheres brancas, que continuam dominando o discurso feminista


atual, questionem se o seu entendimento sobre a realidade da vida da mulher, é
compatível com a realidade das mulheres como um todo, é preciso que haja um
reconhecimento acerca do condicionamento negativo que recebemos através da história
e moldou nossas relações até a atualidade.

2. Mulheres negras são agentes da sua própria história

Compreendendo a condição das mulheres enquanto agentes políticos de


transformação do sistema patriarcal formando, portanto, uma classe política, é possível
identificar um processo dialético dentro desta classe partindo dos subgrupos “não
dominantes” ao introduzir suas diversas concepções políticas na teoria feminista.
Segundo Carneiro (2003), essa atuação política ao mesmo passo em que exige o
reconhecimento das desigualdades intraclasse, promove a afirmação dessas mulheres
como novos sujeitos políticos. A organização política e coletiva das mulheres negras
montada sobre a resistência ao longo da História conduziu-as na luta para inserir a
perspectiva racial no movimento feminista e a perspectiva de gênero no movimento
negro brasileiro para que ambos abrangessem as suas mais diversas pautas.

Em uma sociedade racista e sexista, a violência contra a mulher negra é gritante


em diversos âmbitos. Na questão da escolarização, as mulheres negras apresentam
menos oportunidade de inserção, principalmente dentro do ensino superior. No mercado
de trabalho, é gravíssimo o estado em que as mulheres negras estão colocadas em
relação a mulheres brancas, homens negros e brancos. Com as mesmas qualificações,
recebem salários muito menores, são as que menos ocupam espaços de liderança,
precisam de muito mais anos de estudo para disputarem um cargo e estão em maior
número em empregos de baixa qualificação. Na área da saúde, o debate do feminismo
negro também chama a atenção para as questões reprodutivas em função do histórico de
altos índices de esterilização e de violência obstetrícia. Além disso, existe uma forma de
violência muito particular às mulheres negras no quesito afetivo, “Há poucas chances
para ela numa sociedade em que a atração sexual está impregnada de modelos raciais,
sendo ela a representante da etnia mais submetida.” (CARNEIRO, 2003, p.123) A mídia
alimenta esse sistema já que reproduz e endossa fortemente os estereótipos racistas
sobre a mulher negra – quando não estão excluindo sua presença na sociedade. A autora
Sueli Carneiro ajuda a compreender o papel dos meios de comunicação na relação da
sociedade com a mulher negra:

“Se partimos do entendimento de que os meios de comunicação não apenas


repassam as representações sociais sedimentadas no imaginário social, mas
também se instituem como agentes que operam, constroem e reconstroem no
interior da sua lógica de produção os sistemas de representação, levamos em
conta que eles ocupam posição central na cristalização de imagens e sentidos
sobre a mulher negra.” (CARNEIRO, 2003, p. 125)

Presenciamos poucas mudanças no que tange a representação das mulheres negras na


mídia, mas é possível encontrar momentos em que são retratadas em outros espaços que
não o de submissão e esses momentos são cada vez mais utilizados pelo feminismo
negro como meio de empoderamento e de mobilização diante do nosso cenário atual de
plena globalização. As diferentes formas de opressão sobre a mulher negra vêm
tomando espaço nos debates feministas, como resultado de muita teoria, mas
principalmente resistência negra, pois a sociedade branca e sexista não permitiu que
suas identidades e reconhecimento social fossem afirmados de outra forma.

3. Marielle, feminismo negro e representatividade: “eu sou porque nós somos”

Marielle Francisco da Silva nasceu em 27 de julho de 1979. Era cria do Morro


da Maré, mãe, socióloga formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ) com uma bolsa integral obtida pelo Programa Universidade para
Todos (Prouni). Após se graduar em Ciências Sociais, concluiu um mestrado em
Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), defendendo sua
dissertação "UPP - A redução da favela a três letras: uma análise da política de
segurança pública do Estado do Rio de Janeiro". Cabe ressaltar aqui, a importância de
uma mulher negra analisando cientificamente a sua condição social e política e dos
moradores da favela (majoritariamente negros e pobres) diante da administração estatal
branca e masculina. Era também feminista, militante LGBT, defensora dos direitos
humanos e política brasileira filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), foi
eleita vereadora do Rio de Janeiro para a legislatura 2017-2020. Com uma campanha
sincera e motivadora, contou com muito apoio da Zona Norte e Zona Sul do Estado,
sendo a quinta parlamentar mais bem votada do Rio em 2016. Crítica da intervenção
federal no Rio de Janeiro e da Polícia Militar denunciava constantemente os abusos de
poder cometido por parte dessas autoridades contra moradores das comunidades do Rio.
Em 14 de março de 2018, foi executada a tiros junto a Anderson Pedro Mathias Gomes,
seu atual motorista, na região central do Rio de Janeiro.

Sua chamada eleitoral foi gravada no Morro da Maré, de onde veio e de onde
começou sua trajetória inspiradora e cheia de garra. No vídeo eleitoral, ela comenta que
em primeiro momento fez parte das estatísticas como mulher negra e favelada sendo
mãe adolescente, mas, que em segundo momento sai das estatísticas esperadas para o
contexto em que vivia quando passa para a PUC-RJ, ocupando aquele espaço negado
historicamente para sua condição. Aqui vemos como a educação abre os caminhos,
principalmente a aqueles que mais necessitam desse viés de empoderamento já que
muita das vezes seu acesso é mínimo devido à falta de oportunidade ou acontecimentos
infelizes já esperados para uma realidade enquanto pessoa negra numa sociedade
extremamente racista.

Antes de ser executada, Marielle participou de uma roda de conversa na Casa


das Pretas no centro do Rio de Janeiro, onde falava de sua trajetória e enaltecia
mulheres importantes como Lélia Gonzalez e Angela Davis, mulheres negras que
prepararam o terreno para que ela e outras mulheres não brancas pudessem estar em
determinados espaços onde as cadeiras são ocupadas por pessoas brancas, tais como os
espaços políticos e de produção do saber. Assim como Gonzalez e Davis, Franco
ocupava esses dois meios, o de disputa de poder no campo legislativo e também na área
acadêmica produzindo saber. Sendo mulher, negra, lésbica e favelada, podemos
considera-la uma “forasteira de dentro” (outsider within) como define Patrícia Hill
Collins, ocupando uma posição social que majoritariamente é destinada a grupos com
poder desigual (COLLINS, 1986). Na política, por exemplo, podendo decidir, opinar,
votar, criar leis que dialoguem e representem a realidade das mulheres, dos negros, dos
LGBTs e periféricos.

Como fez Marielle enquanto vereadora redigindo 16 leis em apenas um ano e


três meses de mandato na Câmara Municipal, sendo 5 delas aprovadas como a Lei das
Casas de Parto: espaços destinados para a realização dos partos normais. Lei que visa o
comprometimento e o respeito às decisões da mulher sobre o seu parto recebendo
atendimento integral com nutricionista, assistente social e enfermeiras-obstetra que a
acompanham desde o pré-natal. A Casa oferece também oficinas sobre o conhecimento
do corpo e cuidados pós-parto. Outro projeto de lei aprovado pensando na mulher-mãe
trabalhadora foi O Espaço Coruja, espaço infantil noturno no Rio acontecendo em
espaços de educação infantil adequados, sem a necessidade de criar novas. Marielle não
representava somente as mulheres negras nos espaços de poder, representava todas as
mulheres brasileiras, entendendo a diversidade das demandas intraclasse. Visava
melhorar nossas condições de vida criando leis como essas, ocupando espaços de
caráter decisivo como a Câmara, realizando sempre que podia uma melhoria para a
realidade feminina no Brasil. Assédio não é passageiro: foi uma lei aprovada que
incentivava campanhas educativas sobre assédio e violência sexual contra as mulheres
nos transportes públicos, estações e pontos de ônibus, incluindo VLT e BRT, fazendo a
divulgação de telefones de órgãos públicos responsáveis pelo acolhimento e
atendimento dessas mulheres, incentivando que denunciem, caso desejem. As empresas
que não fizerem seu papel com a formação permanente dos servidores sobre assédio e
violência sexual e que descumprirem a lei, pagam multa. A PL 555/2017 intitulada de
Dossiê Mulher Carioca, foi aprovada com objetivo de colher dados do meio da Saúde,
Direitos Humanos e Assistência Social do Município do Rio de Janeiro a fim de gerar
novas políticas públicas com base na realidade feminina vivida na cidade, como um
caso e estudo e pesquisa.

Com a PL 0103/2017 que incluía o Dia de Tereza de Benguela e o Dia da


Mulher Negra no calendário oficial carioca, mostra a importância da representatividade
de mais mulheres negras em ambientes de poder, decisivos e de disputa para que desta
forma seja feito o resgate histórico e criem-se medidas públicas que representem a
melhoria na realidade da sociedade negra. Não é novidade para aqueles que não fecham
os olhos para a realidade, mas, infelizmente em nossa sociedade colocam-se pessoas não
brancas à margem, fazendo a manutenção do racismo e decidindo o lugar onde este
grupo racial deve ou não estar. Em um contexto brasileiro, a pobreza e a violência tem
cor. Pensando mais uma vez nisso, Franco consegue aprovar a PL 515/2017, Efetivação
das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto para adolescentes infratores,
responsabilizando o Município pelas obrigações legais e na garantia de medidas
socioeducativas do sistema Judiciário sejam realmente cumpridas em meio aberto, para
que desta forma facilite posteriormente a entrada desse jovem no mercado de trabalho.

Com a necessidade de mais mulheres na política, quanto mais negras, Franco se


torna um ícone em termos de representatividade, força e luta, conquistou seu espaço em
um meio de disputa extremamente branco e racista e em pouco tempo de mandato se fez
ser ouvida, mesmo que para isso tivesse que subir o tom de voz. Sua intenção era mudar
a realidade das mulheres, dos negros e periféricos, e assim vinha sendo até esta
“forasteira de dentro” ter sua vida interrompida.

Este termo inicialmente foi criado para o meio das ciências sociais, devido à
insuficiência da mesma para explicar determinadas realidades, como por exemplo, de
mulheres negras. Logo:

O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar a


reflexão, ao invés de continuarmos na repetição e reprodução dos modelos
que nos eram oferecidos (...). Os textos só nos falavam da mulher negra numa
perspectiva socioeconômica que elucidava uma série de problemas propostos
pelas relações raciais. (Gonzales, 1983, p. 225.)
Vindo de uma realidade periférica, Franco convivia com a comunidade da Maré,
tendo contato diretamente com o que Lélia Gonzalez chama de “pretuguês” ou
“pretoguês” o português africanizado, que a sociedade branca elitista tira sarro e aponta
como errado, porém mal sabem da origem desse “r” no lugar do “l”, que está
relacionado a presença de um idioma africano que não faz o uso de “l” (GONZALEZ,
1983; 1988ª). Franco norteou sua campanha e projeto político como vereadora com o
seguinte tripé: gênero, negritude e cidade. Em seus vídeos de campanha nota-se a
vontade em resgatar a força daqueles que o sistema enfraqueceu. Bebendo de Frantz
Fanon (2008), podemos relacionar diretamente o colonialismo como motivo principal
da sensação de inferioridade do colonizado, que incute isso em seu imaginário ajudando
o colonizador na sustentação da ideia de superioridade, disseminando o racismo para
manter a ideia de intervenção por serem detentores dos valores civilizatórios, enquanto
o outro lado é rotulado como selvagem e ignorante.

Lélia Gonzalez usa muito desta ideia de Fanon para denunciar a falácia da
democracia racial vendida pelo Brasil para os países de fora, segundo ela, “um dos mais
eficazes mitos de dominação” (GONZALEZ, 1988b. p. 137). O racismo aberto e
racismo disfarçado denominado por Gonzalez (p. 72-74) era vivido frequentemente por
Marielle, tanto em sua vida pessoal quanto na profissional. Uma mulher negra e lésbica
numa Câmara Municipal cercada por homens brancos e héteros, era recorrentemente
silenciada ou obrigada a ouvir opiniões contrárias munidas de preconceito e
intolerância.

Podemos então afirmar que Franco exercia a Amefricanidade entendida por


Gongalez como uma contra proposta a hegemonia dada em nossa sociedade devido ao
modelo racista colonialista que vivemos:

Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica


cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas)
que é afrocentrada. (GONZALEZ, 1988, p; 76-77)

Marielle fez parte de uma mudança histórica e social, se colocava na disputa política e
de produção de conhecimento como protagonista, saindo das margens onde mulheres e
homens negros e indígenas são submetidos. Marielle levantava suas bandeiras e não se
deixava abater. Neste processo social de construção de identidade, Franco estava ali,
negando o embraquecimento, resistindo pra além de sua pele negra, com seu cabelo, seu
turbante e sua resistência política, resgatando a ancestralidade e afirmando a negritude.

Seu posicionamento e sua combatividade incomodavam a muitos, nem depois de


morta respeitaram sua integridade moral. Diversas calúnias e fofocas foram inventadas
com seu nome com o intuito de deslegitimar sua trajetória de luta e grandes feitos em
pouco tempo de mandato vigente. Mais uma prova de como mulheres não brancas são
ainda mais atacadas, podendo afirmar que esses rótulos negativos que rondam as
mulheres negras em nossa sociedade estão totalmente interligados com a raça e o
gênero.

4. Conclusão

Vivendo sob um sistema baseado em pilares racistas e sexistas, a sociedade


brasileira – assim como o resto do mundo -, é historicamente condicionada, em vários
graus, a limitar as ações e os direitos coletivos da classe das mulheres e das pessoas
negras. A partir da organização e reivindicações políticas, estas classes sociais forçam
seu reconhecimento enquanto sujeitos políticos.

Dentro dos movimentos sociais, o feminismo negro é essencial para inserir sua
perspectiva e suas demandas exclusivas ligadas ao seu gênero e a sua raça, demandas
que são provocadas por suas condições materiais de existência, resultado do sistema
desigual regente. A resistência do feminismo negro precisa ser aliada ao
reconhecimento dos privilégios por parte dos grupos colocados socialmente acima, mas
que ainda fazem parte das classes oprimidas para que haja de fato, no caso do
movimento das mulheres, um feminismo que emancipe todas as mulheres, independente
de suas condições sociais.

A morte de Marielle Franco foi um duro golpe na construção democrática do


país. Enquanto mulher negra, também produtora do saber científico e sujeita política
que se propõe a transformar a sociedade e emancipar as mulheres, Marielle foi e
continua sendo uma força motriz para o movimento das mulheres no Brasil, pois impôs
o reconhecimento político das violências sobre o gênero e também sobre a raça. Seu
legado ecoa sobre todos os que lutam por um Brasil menos desigual e sobre os que
tentaram abafar as vozes dos que resistem a séculos de dominação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARDOSO, Cláudia. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez.


Florianópolis: Estudos Feministas, setembro-dezembro/2014

CARNEIRO, Sueli. “Mulheres em Movimento”. In: ESTUDOS AVANÇADOS 17


(49), 2003.

GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: SILVA, L. A. et al.


Movimentos Sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje,
Brasília, ANPOCS n. 2.

hooks, bell. “Mulheres negras moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de


Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015, pp. 193-210.

HOOKS, Bell. Esinando a transgredir: a Educação como prática de liberdade.

Portal da Marielle Franco. Disponível em: https://www.mariellefranco.com.br/. Acesso


em 2 de julho de 2018.

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