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‘A fita branca’ de Michael Haneke ou como não se politizar o trágico

Márcio Seligmann-Silva

Filmes – e narrativas de um modo geral – baseados em rememoração são mais


marcados do que outros modos narrativos por uma dupla temporalidade. O eu-
narrador, normalmente um personagem da história, apresenta a narrativa do seu ponto
de vista.

Filmes – e narrativas de um modo geral – baseados em rememoração são mais


marcados do que outros modos narrativos por uma dupla temporalidade. O eu-
narrador, normalmente um personagem da história, apresenta a narrativa do seu ponto
de vista. É frequente também que nos identifiquemos com este narrador e nos 1
coloquemos no seu lugar. Essa é a força ou o “truque” da narrativa em flash back.
Normalmente, sem nos darmos conta disto, compartilhamos dos pontos de vista do
narrador. A fita branca, de Michael Haneke, não foge a este padrão. O narrador é um
antigo professor da escola de uma pequena cidade alemã. A história que ele conta
acontece nos anos que antecedem a primeira guerra mundial.

Esse filme é fascinante. Ele tem um belo preto e branco, ideal para a encenação do
passado, e quase que emblemático nesse filme, que procura justamente retratar os
tons negros e cinzas de um pequeno vilarejo alemão. O tempo do filme é raro – por
sua lentidão bem elaborada – e os longos silêncios são uma exceção elogiável na
nossa paisagem cinematográfica estridente. A direção é impecável, a construção dos
personagens é quase perfeita e não causa espanto que este filme tenha recebido a
palma de ouro em Cannes. Ele trata de uma história bem “germânica” e bem européia.
A narração inicial, na voz do professor, já idoso, informa que ele quer narrar aqueles
acontecimentos porque eles explicariam o que aconteceu depois na Alemanha. A
alusão ao nazismo é evidente. Isto provoca até hoje muito interesse e mobiliza nossos
ódios e compaixões. Um filme que se propõe a retratar o “ovo da serpente” e faz isto

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com uma produção impecável só pode agradar, sobretudo a um público mais exigente
e de certo modo politicamente engajado.

Aproximemo-nos mais do que se passa no filme. Ele é uma sucessão de acidentes e


de rompantes de violência. O pastor da cidade é logo revelado como um déspota que
espanca seus filhos, o médico tem relações incestuosas com a filha, uma relação
sadomasoquista com uma parteira, sua vizinha, talvez tenha se livrado da esposa
(para ficar com esta parteira) e provocado acidentalmente o retardamento mental de
Kali, o filho da parteira, que na verdade, sugere-se, era dele também. Esta figura
terrível do médico nos faz lembrar, hoje, que a classe dos médicos foi a que
proporcionalmente mais tinha membros no partido nazista. O filme mostra esta aliança
perversa entre curar, cuidar, controlar e matar. O médico, que tem nossa “vida nua”
em suas mãos, controla-a para o bem e para o mal.

Já a figura do pai campesino (representando essa classe social) também é violenta


com um de seus filhos e acaba se suicidando, diante da impossibilidade de se revoltar
contra sua situação humilhante, derivada de sua posição de servo do barão. Seu filho,
que tenta se revoltar, consegue apenas destruir alguns repolhos da propriedade do 2
barão, em uma cena muito bem montada que interrompe a festa do final das colheitas.

As crianças do filme são apresentadas como manifestações nuas do mal que elas
recebem dos pais. Os acidentes e incidentes que acontecem na cidade, tendemos a
atribuí-los a essas crianças. Um deles é mostrado, quando uma criança rouba a flauta
da outra e atira o colega em um lago, quase matando-o afogado. Esta violência
gratuita é uma constante em Haneke. Lembremos do seu O Vídeo de Benny (1992),
que conta a história de um adolescente que – movido por uma curiosidade infantil –
mata o amigo e o coloca no freezer. Também em Violência gratuita (nas suas duas
versões de 1997 e 2007) vemos esta violência emanar de dois jovens de um modo
bestial e injustificado. A fita branca tem por subtítulo "Eine deutsche
Kindergeschichte", ou seja, "uma história infantil alemã". Esta ênfase na infância tem a
ver com o projeto não só de apresentar a “violência infantil”, mas também de mostrar a
infância do nazismo. Mistura-se aqui filogênese e ontogênese (mas, parece-me, sem o
mesmo cuidado de Freud, que também cruzava estes registros). O diretor aborda o
universo da "maldade", que normalmente acompanha as histórias infantis, para

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projetá-lo (ou simplesmente lê-lo) no interior da família/aldeia. Não podemos nos
esquecer que aquele é o momento de nascimento da psicanálise e da "descoberta" da
sexualidade/maldade infantil.

O barão acaba sendo pouco iluminado neste filme, sobretudo levando-se em conta
seu papel central nesta pequena comunidade. Apesar de autoritário com a esposa,
está longe de ser o déspota que as demais figuras paternas do filme encarnam.
Diferentemente dos demais homens poderosos do filme, o barão escuta a esposa e
esta "ousa" contar-lhe sobre seu outro relacionamento. Ele vai acompanhar o enterro
do camponês que se suicida. Ele é "liberal". Já as mulheres são apagadas, submissas
e objetificadas. A baronesa tenta se libertar deste papel justamente porque tem um
marido conversável. A idéia é, evidentemente, retratar os papéis sexuais da época. A
sexualidade reprimida – como em Martin, filho adolescente do pastor, que é amarrado
para dormir, para não “cair em tentação” – brota de modo violento. Freud justamente
destacara em que medida sexo e morte andam de mãos dadas.

A exceção é o nosso professor narrador. Ele é apresentado como uma figura aparte
daquele universo de brutalidade. Localizando-se entre as classes sociais e entre os 3
grupos etários, apesar de servir de ponte entre o grupo de crianças (que são seus
alunos) e os seus pais – as autoridades do vilarejo – ele é alguém que sabe conversar
de modo ponderado e respeita os outros. Em uma ocasião, ele obedece e evita
avançar sexualmente sobre sua namorada que diz não querer aquilo naquele
momento. Ele é decente e “civilizado”. É esta figura quase pura do narrador que me
incomodou no filme. Porque é com ele que tendemos a nos identificar. O mal que
domina aquele povo, alegoria dos alemães, acaba, graças a este narrador, sendo uma
caricatura. O nazismo é novamente patologizado e colocado em uma redoma. A
própria idéia de querer explicar o nazismo por meio desse retrato das perversões que
ocorrem em um vilarejo – perversões, de resto, bem frequentes em qualquer lugar
naquela e em outras épocas – é um projeto que merece reflexão. Haneke fica a meio
caminho. Acredito que seu filme poderia explorar muito bem esse universo da maldade
sem precisar tacha-la como origem do nazismo. Como ele o fizera no mencionado
Violência gratuita, claramente inspirado na obra prima de Stanley Kubrick Laranja
mecânica (1971). Nestes filmes tratava-se de um mergulho e simultâneo estudo da
“maldade humana”. Mas em A fita branca, ao apresentar sua obra como uma leitura da

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origem do mal (ele fala em explicar o que viria a acontecer) Haneke faz uma
passagem abrupta e inaceitável da esfera da família e do estudo da violência para o
âmbito do Estado. Faltou mediação.

O filme de Haneke é forte, mas sua tese é equivocada. Esse narrador “puro” acaba
servindo para isolar e extirpar o passado como uma excrescência. O presente é o
tempo dos “bons”, o tempo da voz rouca e simpática do narrador. A banalidade do mal
se transforma novamente em um mal monstruoso. Mas na verdade não existe
explicação psicológica para o nazismo, existem sim várias tentativas de se explicar
aquilo, mas isolar esta cidade e fazer dela uma encenação das origens do mal é
patético e ingênuo, ou, pior, algo que revela uma profunda incompreensão da história
e em que medida o nazismo ainda é um fantasma que precisa ser exorcizado na
cultura moderna e resiste à analise.

O projeto de "arqueologia do nazismo" é central no filme de Haneke, estrutura-o e este


mesmo projeto é o responsável pelo eu fracasso. Entendam-me: considero a obra
muito boa, mas o projeto político-histórico que a sustenta é indefensável. Mostrar a
podridão humana sempre foi uma das grandes forças das artes, isto Haneke faz bem, 4
mas ele tem uma agenda política em A fita branca. Esta sufoca o seu empreendimento
de retrato da humanidade. Daí ser essencial chamar a atenção para a construção da
narrativa, ponto essencial na articulação da trama e do modo como ela enreda o
espectador. Com esse narrador simpático estabelece-se esta extirpação do universo
nazista do nosso mundo. O nazismo fica explicado e isolado. Isto é confortável para
aqueles que acreditam que a Shoah aconteceu porque um bando de loucos
pervertidos estavam no poder. Mas não foi bem assim. Nem banalidade do mal nem
teratologia. O filme defende uma tese conservadora e de direita mas sem realizar uma
grande obra. Pois existem muitas obras "de direita" que são excelentes e muito
melhores, como as dos diretores Leni Riefenstahl ou Syberberg. Concordo que não é
justo para com esses dois diretores a comparação com Haneke, mas a aproximação é
importante no nosso contexto, já que tratamos aqui da constelação cinema, nazismo e
violência. Ou seja, Haneke ficou aquém da "grande estética da direita" que tem lá suas
relações muito explicitas com o nazismo.

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Como Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy o mostraram (em O mito nazista,
Editora Iluminiras), o nazismo foi uma manifestação do "estético" e talvez justamente
aqueles grandes artistas, Riefenstahl e Syberberg, apresentem isto de modo acabado.
Também a relação entre o estético e o sacrifício está clara nesses diretores. Neste
filme de Haneke existe mais um pendão para o estudo da maldade, mas sem a
mesma capacidade de atingir o âmago do estético na sua relação com o sacrifício,
como acontece de modo muito mais elaborado e auto-consciente no seu Violência
gratuita. Em A fita branca existe uma redução do político às relações humanas
afetivas, trata-se de um verdadeiro rapto do político, sua transformação em meras
relações familiares ou de vizinhança. Seu compromisso com a direita também fica
claro com a referida imagem quase simpática que ele apresenta do barão. Esta
simpatia pela aristocracia é típica de uma tradição de direita alemã que não sabe
muito bem o que fazer com o nazismo, já que este foi o triunfo da direita que teria sido
orquestrado de modo desastrado por não aristocratas. No filme, o narrador se torna
uma tábua de salvação simples e confortável que anula uma possível grandeza, que
seria justamente a capacidade dessa obra de mergulhar neste pequeno e denso
universo das relações familiares/de vizinhança. Ao dar o passo em direção ao projeto
5
arqueológico do nazismo o filme se afunda.

Mas isto não impede que tenhamos prazer estético com A fita branca. Nesse sentido,
Haneke continua sendo o grande diretor que consegue encenar o mal e a violência tal
como a grande tradição trágica sempre o fez. Ele tem uma profunda compreensão do
jogo empático que sustenta o espetáculo de crueldades. Ele sabe jogar com o “como
se” estético, ou seja, sua capacidade de simulação de nosso mundo “real”, que
substitui e realiza simbolicamente nossos desejos de violência e sacrifício. Seu único
equivoco em A fita branca foi tentar misturar a cena clássica do trágico com uma
agenda política. Na tragédia clássica, o acaso (tyche) e o erro trágico (hamartia)
constituem o seu fundamento. Mas eles retiram a tragédia do campo da historiografia
e a remetem ao da filosofia, como bem percebeu Aristóteles.

Se na modernidade a tragédia se tornou histórica, como em Shakespeare, ela


abandonou também este acaso e erro nas suas formas trágicas clássicas. Haneke, no
entanto, mistura o acaso da tragédia clássica com um projeto moderno de apresentar
a história. Ele mistura o estudo da psicologia infantil e da violência política com um

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projeto de explicação das origens do nazismo. Tudo isto sob a vestimenta do
dispositivo trágico em sua forma clássica, que é avesso à reflexão sobre a história e
seus personagens. Neste momento ele passou a exigir uma leitura política de seu
filme e aí o espectador tem o direito de fazer uma parada estratégica e conter a sua
empatia para com o filme e seu diretor.

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