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Kitty McKenzie

Kitty McKenzie # 1

AnneMarie Brear

Leabhar Books
O desejo da mariposa pela estrela, da noite pelo dia seguinte, a
devoção a algo distante, da esfera do nosso sofrimento.
- Shelley.
Índice
Página do título
Epígrafe
Direitos autorais
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Sobre o autor
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Título Original: Kitty Mckenzie
Copyright©2014 por AnneMarie Brear
Copyright da tradução©2020 Leabhar Books Editora Ltda.

Tradução: Esther Trojack e Ricardo Marques


Revisão: Ricardo Marques e R. Cappucci
Diagramação: Jaime Silveira
Capa: Luis Cavichiolo

Todos os direitos reservados.


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Capítulo Um

York, Inglaterra, novembro de 1864.

PELA JANELA DO andar de cima, Katherine McKenzie olhou ao


longe por sobre os telhados de York. As nuvens cinzentas se separaram,
permitindo que a fraca luz do sol se infiltrasse pelas árvores nuas, banindo a
escuridão dali. Abaixo, dois homens fortes enchiam a traseira de uma
carroça com os móveis da casa. Seu olhar desviou-se prolongadamente para
o triste grupo formado por seus irmãos e irmãs. Variando de idade entre
dezesseis e dois anos, eles se aguentavam de pé, juntos, no gramado
exuberante com suas pequenas bagagens colocadas ordenadamente à sua
frente. Seus rostos pálidos, que espiavam por baixo de seus chapéus,
revelavam pouca emoção enquanto homens de aparência severa iam e
vinham de seu lar, outrora quente e feliz. Mas é claro, agora não havia mais
evidências disso.
Kitty encostou a testa no vidro frio e lutou contra as lágrimas que se
acumularam ao olhar o que restava de sua família. Toda a manhã, as
crianças têm escutado e assistido a estranhos invadindo cada cômodo,
tomando notas e dimensionando todas as posses que um dia foram
importantes para a família.
Eles entendiam pouco do que estava acontecendo, mas ela havia lhes
dito para esperarem do lado de fora, enquanto ela e Rory resolviam tudo.
Seus irmãos e irmãs, chocados e confusos, fizeram como ela os havia
instruído, não se atrevendo a falar sobre o que viam. O falar viria depois.
Suspirando profundamente para acalmar a si mesma, Kitty se afastou
da janela.
No andar de baixo, uma variedade de homens perambulava,
murmurando em voz baixa, anotando o que restava e quanto dinheiro cada
item traria.
Abutres, era assim que Rory os chamava, mas Kitty sabia que tudo
aquilo era sobre o ciclo da vida. Ela havia aprendido muito sobre a vida nas
últimas semanas. Nada era muito encorajador, no entanto, tinha que ser
suportado.
Ela suspirou, esfregando a parte de trás de seu pescoço, rígido pela
tensão.
A enormidade do que ela enfrentava a deixou fria. As
responsabilidades nunca foram dela. Sempre houve outros para cuidar de
seu conforto. Ela poderia enfrentar isso? Poderia orientar as crianças nesse
tempo difícil? Quando os caixões de seus pais desceram abaixo da terra, ela
prometeu a eles que manteria a família unida custasse o que custasse. Ela
faria o que fosse necessário para manter o restante da sua família a salvo.
Como a mais velha, era seu dever cuidar deles, mas, secretamente, ela se
questionava sobre quem cuidaria dela.
Ouvindo gritos vindos de baixo, ela deixou o vazio quarto de seus pais
e apressadamente cruzou o patamar e desceu o carpete vermelho da escada.
No corredor, havia uma pequena discussão na qual dois supostos
cavalheiros brigavam por um vaso chinês, o qual cada um segurava
firmemente. Indo até eles, Kitty fez o seu melhor para ser educada, mesmo
que sua raiva a fizesse semelhante a uma chaleira no fogão. — Cavalheiros,
por favor. Qual o problema?
Um grande homem barbudo virou seu rosto corado para Kitty. Suas
juntas estavam brancas onde agarrava o vaso. — Srta. McKenzie, esse
homem está insistindo que isto pertence a ele quando na verdade foi
reservado para mim, por meus serviços prestados.
A respiração do homem cheirava a álcool e a fumaça a inundava em
ondas doentias.
— Isso é uma grande mentira! – Os olhos redondos do outro
encararam seu oponente. — Diz aqui, nas anotações que tenho, que esse
vaso em particular foi concedido à minha empresa.
Kitty ansiava por se livrar desse pesadelo. Hoje marcava o fim da vida
como sua família conhecera, e nenhum desses abutres se importava o
suficiente para serem ao menos compreensíveis.
Chegando um pouco mais perto dos dois homens em guerra, Kitty
sorriu com falsa doçura. — Eu poderia auxiliá-los, então. – Sem hesitar, ela
pegou o vaso das mãos do homem e o deixou cair no chão de mármore do
corredor. O estilhaço da porcelana silenciou a conversa e os dois homens
ofegaram em uníssono.
— Agora, cavalheiros, não há mais nada sobre o que discutir. – Com a
dignidade que lhe restava e com a cabeça erguida, ela caminhou pelo
corredor e entrou na cozinha.
Uma atmosfera mais quente prevalecia na cozinha, pois nenhum
cobrador de dívidas permanecia ali. Um pequeno fogo estava aceso no
âmbito e a Sra. Flowers, a cozinheira, preparava um bule de chá. Sem
receber por muitas semanas, a gentil senhora permaneceu até o fim para
ajudar Kitty e as crianças durante esse período difícil.
Sentada em um banquinho esquecido, Kitty sorriu agradecida quando a
senhora lhe deu uma xícara de chá.
— Como vai lá dentro, senhorita? – A cozinheira apontou com a
cabeça em direção à parte da frente da casa.
— Terrível – Kitty respondeu com um suspiro, afastando uma mecha
de cabelo solta no seu rosto para trás.
A Senhora Flowers mexeu o leite no fogão, pronta para fazer chocolate
quente para as crianças. – É realmente um momento triste. Agradeça a Deus
que sua querida mãe não viveu para ver esse dia, certamente teria partido
seu coração. – Um olhar melancólico cruzou seu rosto.
Kitty se absteve de comentar. Ela culpou seus pais por terem deixado
suas finanças chegarem nesse estado. Agora, ela e Rory deveriam consertar
os danos. Ela amava seus pais, mas sua natureza amorosa e generosa não
apenas custara suas vidas, mas o futuro e a felicidade de seus filhos. A
inaptidão de seus pais em administrar seus fundos ao longo dos anos, agora
deixava artesãos e mercadores brigando por suas dívidas. E, com quase
vinte e um anos de idade, ela ficara responsável não apenas por ela mesma,
mas por mais seis membros da família.
A porta do lado de fora da cozinha bateu contra a parede. Rory entrou,
seu rosto geralmente bonito estava vermelho de raiva e seus olhos azuis em
chamas.
— Você sabe quanto é que aquele gorducho, O’Brien, acha que os
cavalos valem?
— Não, e também não me importo. – Kitty limpou os olhos com a
mão. O cansaço fazia com que eles ardessem. – Não fará diferença para
nós, pois não veremos um centavo.
— Papai gastou muito dinheiro com eles – Rory defendeu os animais
que ele amava.
Kitty pulou do seu lugar, derrubando o banquinho. Batendo o punho
sobre a mesa, ela olhou fixamente para seu irmão. — Bom, se o papai não
tivesse gasto uma boa quantia com eles e outras coisas não essenciais, nós
não estaríamos no caos no qual nos encontramos.
Surpreendido por seu ataque, o temperamento de Rory rapidamente se
desfez e ele abaixou sua cabeça.
— Sinto muito, Kitty. Tem razão, é claro. Nada disso nos pertence
mais, portanto para nós não tem a mínima importância. Eu apenas lamento
ter que dizer adeus a eles, só isso.
— Eu sei. – Ela concordou, ciente de que o choque de tudo que havia
acontecido nas últimas semanas ainda não havia sido totalmente assimilado.
Perder os pais de maneira inesperada não apenas os devastou, mas assustou
também. E descobrir, no dia do funeral, que deveriam renunciar à sua casa e
posses, causara ainda mais transtornos. Eles viveram aterrorizados por
semanas, temendo por esse dia. Nenhum amigo ou parente distante veio
levá-los para longe dessa terrível provação.
— Aqui, Senhor Rory, por gentileza poderia levar esse chocolate para
os mais jovens? Eles já devem estar ansiosos por isso – a Senhora Flowers
disse com toda atenção materna. — Preciso ir daqui em alguns minutos para
pegar o coletivo.
Rory saiu, equilibrando uma bandeja de xícaras fumegantes com
chocolate quente. Enquanto a Senhora Flowers limpava tudo, Kitty voltou
ao corredor para dar mais uma olhada em seu lar.
Os abutres finalmente se foram. O silêncio desceu como a névoa do
inverno.
Em sua mente, Kitty ainda podia ver os lustres de cristal. Ela passou os
dedos pelos caros painéis de madeira e papel de parede de seda que
decoravam cada cômodo da casa grande.
Visitou a sala de desenho, a sala de espera, a sala de estar da frente e a
biblioteca.
Risos e música de festas anteriores ecoaram em seus ouvidos.
Sua mãe era conhecida por encher a casa de pessoas animadas e
interessantes. Kitty vislumbrou tudo como era antes, não como estava
agora, uma combinação de cômodos frios e vazios. Ela se virou para subir
as escadas no momento em que um carroceiro a chamou na porta da frente.
— Com licença, srta. Isso caiu de um dos armários quando o mudamos
de lugar. Eu pensei que gostaria de guardá-lo. – Ele estendeu uma pintura
emoldurada dos pais dela, do dia em que se casaram.
— Obrigada. – Kitty sorriu para ele que, tirando o boné, seguiu seu
caminho.
Deixada sozinha mais uma vez, ela olhou para os pais enquanto eles a
encaravam inocentemente. Seu pai, Jonathan McKenzie, alto e orgulhoso
em seu terno de casamento, estava atrás de sua nova esposa, que se sentava
ereta e de forma digna em uma cadeira um pouco à esquerda dele. Jonathan
e Eliza McKenzie haviam encontrado o amor verdadeiro e nunca hesitaram
em mostrá-lo um ao outro, ou a qualquer outra pessoa. Durante vinte e dois
anos, seu amor e satisfação envolveram uma teia de felicidade em torno não
apenas de si mesmos, mas também de toda a família.
A família McKenzie um dia ocupara uma posição estimada na
comunidade abastada, com boa aparência, boa saúde e uma linda casa cheia
de crianças.
A única coisa que faltara era a prudência em suas finanças.
Sua mãe herdou uma grande quantia em dinheiro após a morte de sua
avó.
Jonathan era diplomado como médico, mas em vez de abrir uma
clínica para clientes ricos, ele preferiu ir aos não afortunados de York.
Logo, o dinheiro da mãe acabou.
Consequentemente, fizeram empréstimos pesados no banco, esperando
que um rico tio solteiro de Jonathan falecesse e deixasse ao seu pai, como
herdeiro, a sua fortuna. Por obra do destino, porém, o tio rico ainda vivia e
desfrutava de sua riqueza, enquanto os pais dela afundaram em dívidas e
então morreram prematuramente.
Apenas quatro semanas atrás, seu pai, depois de visitar pacientes nas
favelas, trouxe, sem querer, a morte para casa? Kitty estremeceu com a
lembrança da rapidez com que a febre tifoide levou a ele, sua mãe e sua
irmãzinha, Davina, com apenas quatro anos de idade.
No dia seguinte ao funeral, os cobradores vieram reclamar suas
dívidas, grandes e pequenas. O procurador de seu pai, o Sr. Daniels, veio
em seu auxílio e aconselhou-a sobre a melhor forma de agir. Infelizmente, a
única solução que restava era vender tudo. Agora eles não eram apenas
desabrigados, mas também pobres, desesperadamente pobres.
— BEM, ACABOU. – Kitty trancou a porta da frente da casa.
Colocou a chave embaixo do tapete para o advogado recolher e parou. Pela
primeira vez em toda essa provação, sentiu sua determinação vacilar. Sua
casa se foi assim como seus pais. Nunca mais seus irmãos e ela ouviriam o
riso deles por toda a casa. Todas as memórias dentro dela morreriam e
seriam substituídas pelo amor e pelos sonhos de outra família. Não parecia
certo. Não era certo perder tudo! Por que seus pais nunca pensaram no
futuro?
Reunindo coragem, Kitty calçou as luvas e virou-se para a o restante
da família.
Seis rostos ansiosos olhavam-na, esperando que ela assumisse o
controle de suas vidas.
Rory, aos dezoito anos, alto e loiro, segurava Rosie, de dois anos de
idade, nos braços. Rosie, a caçula e ainda bebê, foi a menos afetada pelos
acontecimentos das últimas três semanas.
Martin, aos dezesseis anos, se esforçou para crescer como Rory, mas
seu rosto gordinho infantil e seus olhos azuis inocentes fizeram Kitty pensar
que ele ainda era um menino. Mary estava perto de Martin.
Ela, aos quinze anos, era alta e esbelta, com longos cabelos negros
como os de sua mãe. Depois estavam, Joe e Clara, dez e oito, dois pequenos
malandrinhos divertidos que mantinham todos em alerta, mas eram
adoráveis demais para ficar em apuros por muito tempo.
— É melhor nós começarmos, pois temos uma longa caminhada até
Davygate. O Sr. Daniels teve a gentileza de nos arranjar alguns quartos para
alugar. Ele mesmo pagou a primeira semana. – Kitty sorriu, tentando aliviar
o clima.
— Por que devemos andar, Kitty? Não podemos pegar a carruagem ou
um coletivo? – Clara perguntou, esquecendo tudo o que Kitty lhe explicara
naquela manhã.
— Não temos mais carruagem, pequena, nem podemos alugar uma.
Somos todos fortes e podemos caminhar facilmente até Davygate.
No final do caminho, eles pararam quando sua vizinha, a Sra.
Wentworth, saiu para se despedir. Tendo vivido lado a lado por vinte anos,
os McKenzies e os Wentworths eram sociáveis, embora não próximos. Kitty
sabia que a Sra. Wentworth acreditava que os McKenzies eram falsos
pretendentes à sua classe e ficava muito satisfeita em ver a queda deles.
— Então, meus queridos. Está na hora de irem embora? – O olhar da
Sra. Wentworth flutuou sobre eles com uma alegria quase reprimida.
— Sim, senhora Wentworth. Obrigado por ser uma vizinha tão gentil e
boa. Adeus.
Kitty inclinou a cabeça para a senhora e sabia que seu sarcasmo tinha
sido perdido ali. A Sra. Wentworth adoraria realizar depressa sua próxima
festa do chá, para declarar verdadeiros os rumores de sua situação
desesperadora. Kitty suspirou, o que importava agora? Os rumores não
podiam machucá-los mais, eles estavam além de tais desfeitas, pois estarem
sem-teto e sem amigos era uma condição muito pior. Ela se preparou para
seguir seu caminho, deixando as crianças menores acenarem.
— Espere, Kitty. Tenho algo para você. – A Sra. Wentworth enfiou a
mão no bolso da saia, tirando uma moeda. — Para ajudá-los, meus queridos
– disse ela com um toque de presunção.
Sentindo a vaidade da outra mulher, a ira de Kitty aumentou. —
Obrigada, mas não, Sra. Wentworth. Ainda não estamos reduzidos à
caridade. – Kitty fez um sinal para que os outros a seguissem, deixando a
Sra. Wentworth de boca aberta atrás deles.
— Por que não aceitou, Kitty? – Rory perguntou, alcançando-a. —
Deus sabe que vamos precisar.
Kitty ajeitou a alça da mala de forma mais confortável na mão. — Se
tivesse vindo de outra pessoa, eu aceitaria, mas não dela. Nunca gostei dela,
e ela nunca gostou de nós, mesmo enquanto nos sorria em seus jardins.
Eles apertaram o passo e andaram sem falar enquanto atravessavam as
ruas movimentadas de York. Os pensamentos de Kitty giravam em torno de
sua cabeça enquanto tentava esquecer o passado e se concentrar no futuro.
Os quartos alugados só os alojariam por uma semana ou duas.
Em sua retícula, Kitty guardara todo o dinheiro que possuía, o que não
era muito. Logo, ela teria que dar a notícia de que não apenas Rory, mas
também Martin e ela teriam que encontrar trabalho se quisessem morar em
algum lugar bom.
No entanto, por enquanto, ela deixaria de lado essas coisas e apenas
guiaria a família durante a primeira noite fora do único lar que conheceram.
Por um momento fugaz, o pânico tomou conta dela com tanta força que ela
não conseguia respirar. “Por favor, Deus, faça-me forte. “
Capítulo Dois

RORY LEVANTOU A pesada aldrava e bateu três vezes.


A porta pintada de verde se abriu para revelar uma pequena mulher
redonda com um sorriso alegre. Ela os conduziu para o corredor. — A
família McKenzie? Bem-vindos, meus queridos, bem-vindos. Sou a Sra.
Halloway. O Sr. Daniels me contou tudo sobre vocês. Venham por aqui, por
aqui. – Ela acenou para a escada que levava aos seus quartos. A
Sra. Halloway continuou a tagarelar enquanto levava Kitty em uma
excursão pela casa.
Quando finalmente a anfitriã os deixou, Kitty massageou as têmporas
para aliviar uma terrível dor de cabeça. Ela olhou para as crianças cansadas
e miseráveis.
— Todos vocês, encontrem um lugar para sentar e descansar – disse
Kitty. — A Sra. Halloway vai mandar nos trazer uma bandeja de comida e
um pouco de chá. Então vamos desfazer as malas.
— Eu não gosto daqui. Eu quero ir para casa – Clara declarou.
— Bem, nós não podemos, Clara. – Rory fez uma careta enquanto
olhava ao redor da sala. — Então, quanto mais rápido você se acostumar
com isso, melhor.
— Não há espaço suficiente para todos aqui, não é mesmo? – Martin
falou.
— Não, não há, mas teremos de ficar aqui – disse Kitty. — Pelo menos
não tivemos que pagar por isso.
— Quanto tempo vamos ficar aqui? – perguntou Rory, afastando as
cortinas da janela para ver o quintal abaixo.
Kitty passou a mão pelo rosto. Ela sentiu que poderia dormir por uma
semana. — Não podemos ficar aqui por muito tempo, não temos dinheiro
para tal. – Kitty fez uma pausa e olhou de Rory para Martin. — Eu não ia
dizer isso ainda, e odeio dizer agora, mas nós três teremos que encontrar
trabalho e em breve.
— Eu? – Martin olhou para Kitty.
— Sim, pequeno. Sinto muito, mas não há outro caminho. – Kitty
colocou o braço em volta dos ombros dele.
Martin se endireitando, virou-se para ela. Com a determinação cravada
em seu rosto. — Não me incomoda o fato de eu ter de sair para
trabalhar. Eu ficaria satisfeito em fazê-lo. – Ele sorriu. — Pode confiar em
mim.
Mais tarde, enquanto os outros dormiam, Kitty e Rory sentaram-se à
mesinha e discutiram seu futuro.
Rory mexeu sua xícara de chá várias vezes. — Já conversou com
algum amigo da família?
— Não. – Kitty balançou a cabeça. – Tenho vergonha, meu orgulho me
impede de enviar mais cartas para pedir ajuda. Estamos quase num estado
de penúria, mas não posso escrever mais uma carta pedindo ajuda às
pessoas que agora nos evitam.
— Eu não posso acreditar que ninguém nos ajudará.
— Os amigos da mamãe e do papai obviamente não eram realmente
amigos. Agora não há mais festas, piqueniques de verão e grandes bailes
para desfrutar, e todos eles desapareceram misteriosamente.
— Eu nunca esperei estar nessa posição. Meu destino era ir para a
universidade no próximo ano.
Ela deu um tapinha na mão dele. — Eu sei e sinto muito que tenha
seus sonhos destruídos, mas os meus também foram.
— Por que isso aconteceu? É tudo culpa deles. Eu os odeio por fazer
isso conosco. Por que eles não podiam ter pago suas contas como todo
mundo?
Kitty balançou a cabeça. — Eu não sei, mas o que está feito está feito
agora. Temos que pensar em nós, em ficar longe do orfanato.
Seus olhos azuis imploraram. — Nunca nos deixe passar por aquelas
portas, Kitty, me prometa.
— Eu prometo. – Embora ela tenha prometido, as palavras eram fáceis
de dizer. Mas por não ser qualificada e nunca ter feito trabalho manual, se
perguntou como poderia cumprir essa promessa. O desespero a preencheu.
— Então, quanto dinheiro temos? – A preocupação enrugou sua testa.
Kitty notou que seu cabelo loiro precisava ser cortado. Ela suspirou. —
Não muito. Consegui reunir cerca de 45 libras.
— Quarenta e cinco libras. – Rory se ajeitou na cadeira. — Isso não é
suficiente.
— Estou ciente disso, Rory, e abaixe o tom de voz – Kitty advertiu,
apontando para as crianças adormecidas. — É por isso que nós precisamos
encontrar um emprego remunerado tão rápido quanto seja possível, a partir
de amanhã.
Os olhos de Rory se arregalaram. — Como é que vamos encontrar
emprego? Não sabemos nada sobre trabalho.
— Sim, eu sei, mas vamos aprender rapidamente. Nós precisamos.

KITTY ACHOU QUE conhecia bem a cidade de York, mas depois de


passar o dia todo andando de uma rua para outra, percebeu que sua cidade
natal era muito grande e complexa. Antigamente, conduzida de carruagem,
ela e a mãe frequentavam as ruas principais para fazer compras. Agora,
vista de perto e a pé, aquelas ruas mostravam a ela o início de um enorme
labirinto de ruas e becos. Kitty pensou que aquelas ruas secundárias
deveriam conter muitas pequenas lojas e fábricas. Era isso que ela precisaria
investigar se não conseguisse um emprego em um estabelecimento mais
adequado.
Enquanto Kitty caminhava cansada pela rua estreita de paralelepípedos
em direção à pensão, viu Joe e Clara sentados no degrau da frente jogando
bolinhas de gude. Ao vê-la, eles disputaram uma corrida entre si para ver
quem chegava até ela primeiro. Joe venceu e virou-se para zombar de Clara.
Mesmo que o cansaço dominasse seus músculos, Kitty sorriu para eles,
contente de vê-los correndo. Depois de tanta tristeza recente, aquilo era uma
mudança bem-vinda.
No corredor, Kitty tirou as luvas. — Eu acho que não devem brincar na
rua. Nunca foram autorizados a fazer isso em casa.
Joe encolheu os ombros. — Não há nenhum outro lugar para
brincar. Aqui não tem quintal. Quanto tempo vamos ficar aqui? Eles não
têm grama em lugar nenhum. Como posso jogar bola?
— Eu sei que é difícil e não é com o que está acostumado, mas nós... –
De repente, uma porta lateral se abriu. Uma mulher alta, com o rosto
angular severo, saiu, impedindo-os de entrar. Seus cabelos castanhos
escuros estavam salpicados de cinza e presos em um coque muito apertado
na parte de trás da cabeça. Ela os encarou com olhos escuros e redondos e
ergueu o queixo para espiar pelo nariz comprido e afiado. — Deve manter
as crianças no andar de cima, nos quartos o tempo todo.
Um farfalhar de saias veio detrás deles e, girando, Kitty viu a Sra.
Halloway corar, correndo pela porta aberta carregando pacotes de
compras. — Nancy, chegou cedo em casa – ela falou com entusiasmo para a
mulher alta.
— Obviamente. – A outra mulher fez uma careta. — Onde
esteve? Estou em casa desde o meio-dia.
A Sra. Halloway colocou suas compras na mesa do salão e deu um
sorriso irônico. — Fui fazer compras e visitar amigos. A velha Sra. Kettle
tem um baú e pensei que teria...
— Não tenho tempo para ouvir conversa fiada, mas quero saber por
que há crianças neste edifício.
— Eu queria escrever sobre a família McKenzie, Nancy. – A
Sra. Halloway torceu as mãos. — Por favor, não fique com raiva. Como
está a tia? Ela está se sentindo melhor?
— Apenas responda à pergunta.
— Sim, eu sei. Eu sei. – A Sra. Halloway mordeu o lábio inferior. Ela
olhou para Kitty. — Srta. McKenzie, esta é a minha irmã, Srta. Stanley.
Nancy, esta é a Srta. McKenzie e seu irmão e irmã.
Nancy Stanley ficou ereta, a cabeça virada na direção da irmã,
ignorando totalmente Kitty e as crianças. Ela cruzou os braços sobre o peito
liso. — Sabe qual a minha política sobre as crianças.
A Sra. Halloway se mexeu ansiosamente. — Sim, mas o Sr. Daniels
pagou seus quartos com antecedência. Eu não acho que haveria problemas
apenas desta vez. Eles são sem-teto.
— E pensou que poderia se safar porque eu estava fora – acusou a
irmã. — Vou devolver o dinheiro ao Sr. Daniels.
A Sra. Halloway corou. Lágrimas brotaram em seus olhos quando ela
pegou suas compras e as guardou.
Nancy Stanley olhou para Kitty. — Eu não admito crianças nestas
instalações. Elas são perturbadoras e travessas. Meus outros hóspedes não
desejam ser incomodados com o barulho que elas fazem.
— Garanto-lhe, Srta. Stanley, que as crianças serão bem-comportadas.
Ela zombou na cara de Kitty. — Não ficará aqui tempo suficiente para
que eles sejam qualquer outra coisa. Vá embora pela manhã. – Ela se virou
e os deixou.
Assustada com a ordem, Kitty não conseguiu falar. “Como isso pode
estar acontecendo conosco?”
Ela e as crianças entraram no quarto alguns minutos depois. Tirando o
casaco, ela ansiava por se sentar.
— Qual é o problema? – Mary perguntou
— Srta. Stanley, proprietária deste estabelecimento, não gosta de
crianças.
— Oh, eu a conheci hoje. Ela bateu na porta porque Rosie estava
chorando. Ela caiu e bateu a cabeça.
— Ela está bem? – Kitty cruzou o quarto para chegar até Rose, que
brincava em um tapete com sua boneca e a pegou no colo.
— Está bem, apenas com um pequeno inchaço, mas a Srta. Stanley
disse que se a ouvisse novamente, nos expulsaria.
Kitty olhou para Mary. — Ela disse isso?
Mary balançou a cabeça em sinal de concordância. — E ela disse que
se estivesse aqui na semana passada quando o Sr. Daniels ligou, nunca nos
teriam reservado quartos.
— Não importa. Ela me disse que devemos sair de manhã. – Kitty
sentou à mesa e deixou Rosie saltar do seu joelho. Pensamentos permearam
sua mente. Teriam de sair dali sem ter para onde ir. Lentamente, ela tirou os
sapatos e esfregou seus pés doloridos.
— Teve sorte? – Mary serviu à Kitty uma xícara de chá do pequeno
tabuleiro. — Não, nada. Eu acho que andei por todas as ruas de
York. Alguns estabelecimentos me mostraram contas, dizendo que a mãe
lhes devia. Eu não podia correr o risco de ir a qualquer loja que mamãe
pudesse ter frequentado. – Ela suspirou e tomou um gole de chá. — Mmm...
este chá está adorável.
Mary parecia envergonhada. — Sim, bem... eu estou com medo que
tenha sido adicionado à nossa conta. Quando a Sra. Halloway disse no café
da manhã que eu poderia pedir uma bandeja a qualquer hora do
dia, não achei que ela nos cobraria. Eu sinto muito.
Kitty fez uma careta, mas estendeu a mão deu um tapinha na dela. —
Não se preocupe, você não sabia.
— Espero que Rory e Martin consigam encontrar trabalho hoje –
murmurou Mary.
— Eu também, – concordou Kitty.
DEPOIS DO CAFÉ, na manhã seguinte, uma refeição que a Srta.
Stanley insistiu que fizessem nos seus quartos, eles puseram seus pertences
nas malas e despediram-se da Sra. Halloway. A Srta. Stanley estava parada
na porta, carrancuda, enquanto os observava descer a rua.
Quando viraram a esquina, Kitty parou ao ouvir o nome dela sendo
chamado. A Sra. Halloway veio tropeçando na direção deles, carregando
uma enorme cesta de vime. Rory correu para ajudá-la.
Ofegando um pouco, a Sra. Halloway colocou as mãos nos quadris e
respirou fundo, sorrindo o tempo todo. — Eu não pensei que seria capaz de
fugir com isso. – Ela ofegava com um sorriso. — É melhor eu voltar antes
que ela descubra que não estou lá, mas primeiro... bem, quero apenas pedir
desculpas pela forma como ela os tratou e se precisarem de algo, basta que
me mandem um recado e eu farei o meu melhor para ajudar. – Ela sorriu
para cada um deles. – Agora, há comida suficiente para durar vários dias, se
forem com calma.
— Devolveremos o cesto assim que estivermos acomodados. – A voz
de Kitty disse com emoção.
— Bom Deus, não moça! Nancy terá um ataque se souber o que eu
fiz. Não, a cesta é sua. Temos outras, não tão grandes quanto esta, que
nunca foi usada porque era muito grande. – A Sra. Halloway sorriu
novamente e bagunçou o cabelo do jovem Joe. — Tomem cuidado agora.
— Não posso lhe agradecer o suficiente, Sra. Halloway. É muito
generosa. – Kitty impulsivamente beijou o rosto da mulher mais velha.
— Não, moça, eu gostaria de ter feito mais. Bem, adeus agora. – Ela
correu de volta até a rua.
— Isso foi muito gentil – disse Rory, pegando o cesto.
— Sim, sim, foi. – Kitty pegou a mão de Rosie e prometeu
silenciosamente um dia retribuir a bondade da Sra. Halloway, se não a ela,
então, pelo menos a alguém.
Eles passaram a maior parte da manhã procurando quartos para
alugar. Frustrantemente, as melhores residências foram excluídas do
orçamento de Kitty. Foi decepcionante ver conjuntos de quartos arrumados
ou casas compactas com quintais igualmente pequenos, sabendo que eram
muito caros para eles. Rory e Martin não haviam conseguido trabalho no
dia anterior, limitando suas opções.
Com o passar do dia, as crianças se cansaram. Encontrar um lar
decente não era tão fácil como ela pensara. Kitty balançou a cabeça por sua
ignorância. O medo do perigoso desconhecido se elevava continuamente
em sua mente, fazendo-a duvidar de todas as suas decisões.
“O que farei? “
O orfanato veio à sua mente e saiu imediatamente. Nunca bateria
naquela porta! Jurou junto ao túmulo de seus pais que sempre manteria a
família unida e, no minuto em que passassem por aquela porta, eles seriam
separados.
No final da tarde, os mais jovens reclamaram que não podiam
mais andar. Kitty parou e olhou em volta. Presa em seus pensamentos
sombrios, ela perdeu a noção de onde andavam.
Eles estavam em uma área pobre da classe trabalhadora. Ruas de
paralelepípedos e becos estreitos corriam uns em direção aos
outros. Esgotos abertos enchiam as ruas estreitas de sujeira. Prédios
cobertos de fuligem, principalmente de aluguel, de três e quatro andares, se
encobriam o sol fraco que tentava aquecer as pessoas que transitavam pelas
ruas da cidade. O cheiro de cascas de vegetais podres, fumaça das inúmeras
chaminés, umidade e lixo enchiam suas narinas.
Clara tapou o nariz. — Não consigo respirar, Kitty. O fedor faz meus
olhos lacrimejarem.
— Eu sei, pequena, mas precisamos aguentar um pouco. – Ela sorriu
para a irmã. Eles estavam acostumados com os jardins cheirosos de sua
antiga casa e com o ar fresco do campo, que chegava até o longo jardim nos
fundos da casa.
— O que devemos fazer, Kitty? – perguntou Rory. — O peso desse
cesto aumenta a cada passo.
— Acho que devemos encontrar um lugar para dormir esta noite e, em
seguida, tentaremos novamente na parte da manhã. – Ela tirou o cabelo dos
seus olhos. — Talvez haja uma pensão por perto. Devemos voltar à última
esquina?
Ela olhou para os prédios antigos que pareciam poder cair a qualquer
momento. Eles se afastaram por onde vieram, até que, com um grito, Clara
tropeçou e caiu no chão.
— Querida, está bem? – Kitty se agachou para ajudá-la. — Meus pés
doem. – Ela lamentou. — Minhas botas estão apertando.
— Silêncio agora, deixe-me dar uma olhada.
Tirando a bota de Clara, Kitty empalideceu com as bolhas vermelhas e
as feridas escarlates que cobriam o pé da pobre menina. Era um milagre que
ela conseguisse andar. Obviamente, Clara não seria capaz de dar outro
passo neste dia. Kitty olhou para Rory. — Corra para a esquina e pergunte a
alguém onde podemos dormir esta noite.
O proprietário de uma pousada em decomposição, que Rory encontrou
na esquina, coçou a axila e olhou para Kitty. Ele ostentava uma barba
grande e, quando abriu a boca, revelou dentes pretos podres. — Então,
precisa de quartos para todos eles? – Ele olhou para cada uma das crianças.
— Sim.
— Não estamos acostumados a ter muitos hóspedes. Terá o que
precisa. – Ele esfregou o queixo enquanto seu olhar vagava apreciativo
sobre ela.
— Não temos muito dinheiro. – Kitty mordiscou o interior de seu
lábio, consciente de que cada homem na estalagem olhava para ela. Ela
odiava a atenção deles. Claro, ela sabia que tinha alguma autoestima pela
boa aparência e não se considerava simples, mas além disso, realmente não
se importava se os homens a achassem atraente.
O dono da estalagem sorriu e se inclinou para mais perto. — Bem,
moça, com sua boa aparência e cabelo cobre, poderia ganhar mais dinheiro
sem problemas.
Insultada, ela se endireitou, desejando ter mais de um metro e meio de
altura para poder encarar o homem. Seu olhar malicioso como se ela fosse
um pedaço de carne para sua escolha a fez ferver.
Examinando a sala, ela notou uma sujeira grossa em todas as
superfícies. Serragem, cheia de pequenos insetos pretos que saíam
rastejando sobre suas botas, cobriam o chão. Pelo canto do olho, Kitty viu
Mary tirar algo que rastejava pelas suas saias.
Não. Ela não faria isso. Ela não os faria ficar aqui apenas para
economizar alguns xelins. Do jeito que o senhorio a olhava, ela sabia, com
o instinto natural de uma mulher, que ele seria um problema. Estremeceu só
de pensar em que estado estariam os aposentos acima. Dando a Rory um
aceno de cabeça, que ele entendeu instantaneamente, ela conduziu as
crianças para fora da pequena e abafada sala de jantar, alcançando a rua.
— Graças a Deus não nos fez ficar lá. – Rory disse, soltando a
respiração reprimida.
Zangada com suas atribuições e com um sentimento de inutilidade,
Kitty virou-se contra ele. — Bem, a menos que encontremos trabalho e um
lugar decente para viver, então são homens como ele que teremos de aturar!
Passava um coche ao qual Kitty prontamente fez sinal para que
parasse, o que salvou Rory de qualquer outra bronca. Quando todos se
apertaram, Kitty pediu ao cocheiro que os levasse a um hotel respeitável. A
miséria substituiu sua raiva. Ela olhou para outro lado para esconder suas
lágrimas.
Capítulo Três

KITTY RECLINOU-SE NA banheira e deixou a água quente e


relaxante entorpecer seus sentidos. Um fogo brilhava vermelho na lareira,
aquecendo a sala. Ao lado, os três meninos estavam sem dúvida desfrutando
do mesmo luxo. Foi realmente o desperdício de um bom dinheiro. No
entanto, depois de tudo o que haviam sofrido desde a morte dos pais,
perdendo a casa, o acontecido naquela horrível pousada antiga, além da
agonia que Clara sofrera com seus pés, Kitty acreditava que eles mereciam
um pouco de mimos. Teria que ser uma noite para durar uma vida.
Ela balançou a cabeça de maneira negativa. É claro que, depois dessa
noite, teria que parar de ceder à tentação de conseguir o que desejava, pois
logo não restaria como pagar por isso.
Um desespero esmagador tomou conta dela. Nunca em sua imaginação
mais louca ela pensou que terminaria assim. Seu futuro havia sido
planejado há algum tempo, pelo menos um ano ou mais. Ela até conversou
com seus pais sobre sua maneira de pensar. Ela deveria ter saído no final de
maio para ir para a França e depois para a Itália com uma amiga idosa de
sua mãe durante o verão. Ao voltar para a Inglaterra, ela pretendia ficar com
os amigos em Londres e talvez tentar ser enfermeira e levar suas novas
habilidades para o exterior, como Florence Nightingale, ou seguir os passos
do intrépido Dr. Livingstone.
Eventualmente, ela queria escrever um livro sobre suas experiências.
Agora, tudo isso se foi. Em vez disso, ela tornou-se membro da classe
trabalhadora e mãe substituta de seus irmãos e irmãs.
Lágrimas brotaram dos seus olhos, mas ela lutou contra elas. Não
podia esmorecer agora, não quando todos dependiam tanto dela.
Deveria se concentrar no que era importante: conseguir um lar. Mais
tarde, quando estivessem satisfeitos e felizes, ela pensaria em uma maneira
de realizar seu sonho de viajar.
COMO PREVISTO, A conta do hotel consumiu uma quantia
substancial de seu dinheiro. Kitty estremeceu ao pensar em qual seria a
situação deles no final do dia. Eles percorreram as ruas movimentadas da
cidade perguntando sobre lugares para alugar e empregos para Rory e
Martin. Pouco antes do meio-dia choveu e, em poucos minutos, eles
estavam molhados e desanimados. Os pés de Clara, apesar de muito
enfaixados antes de sair do hotel, sangraram novamente. Ela choramingou
pela dor.
Percorrendo uma pista escorregadia e encharcada que levava ao rio
Ouse, Kitty fez o possível para carregar o cesto e a própria mala, enquanto
Rory ergueu Clara nas costas e Martin levou Rosie. A chuva aumentou com
trovões altos. Um raio riscou o céu, e eles rapidamente correram para a
fachada protegida de um antigo armazém abandonado.
— O que vamos fazer, Kitty? – Rory bradou. — Não podemos
continuar assim.
Kitty suspirou e empurrou o cabelo molhado para trás das orelhas. Há
muito tempo ela havia tirado o chapéu desarranjado e destruído. — Eu não
sei o que fazer. Estivemos no escritório de todos os agentes em York, tenho
certeza. Nenhum deles tem algo que possamos pagar.
Talvez seja a hora de procurar algo nas áreas mais pobres.
— Mas esses lugares são nojentos. – Disse Rory, ao colocar Clara de
maneira mais confortável em suas costas.
Irritada e cansada, Kitty encolheu os ombros contra o frio. — Chegou
a hora de entender que não estamos em posição de criticar. Até que
tenhamos alguns proventos, teremos que aguentar o que encontrarmos.
— Eu não quero viver em um buraco infestado de ratos e pulgas. – O
rosto de Rory ficou vermelho de frustração quando outro trovão rugiu
acima deles.
— Bem, pode ficar aqui e morar nesta porta, por mim, tudo bem –
retrucou Kitty, enquanto a chuva caía em um ângulo que os encharcava. —
Vamos lá – ela ordenou aos outros.
Eles andaram mais duas ruas antes de outro trovão alto e um flash de
relâmpago os fazer se abrigarem na porta de um antigo edifício.
Uma mulher que compartilhava aquele teto os olhou desconfiada. Ela
usava roupas simples e remendadas.
Seus cabelos castanhos e com mechas pendiam lisos em volta dos
ombros e seus olhos azul-claros os encaravam com um rosto frio e
comprimido. – Estão perdidos ou o quê?
Olhando por cima do ombro de Martin, Kitty sorriu. — Sim, algo
assim. Na verdade, estamos procurando um lugar para ficar.
A mulher espiou por entre os cabelos molhados que escorriam pelo
rosto. — Algum lugar para ficar por aqui? Não, não existe ninguém do seu
tipo aqui.
— Precisamos de hospedagem, mas não temos muito dinheiro.
A mulher fungou, passando a mão pelos olhos para clarear a visão. —
Já percebeu onde está?
— Sim, mas estamos desesperados.
A mulher empobrecida a analisou por um momento. Aparentemente
satisfeita com o fato de Kitty parecer genuína, ela indicou na rua. — Há um
porão no prédio onde eu moro, se estiver interessada. – Ela acenou para
Kitty como se dissesse que estava fazendo um favor a ela.
— Ele está por perto? – Kitty ignorou o som de nojo de Rory.
— Sim. Sigam-me, embora alguém já possa tê-lo ocupado agora.
Sempre há alguém querendo um lugar pra descansar seu corpo. – Ela saiu
na chuva, sem esperar que eles reunissem todos os seus pertences.
Apressando-se para alcançá-la, pois a mulher era realmente rápida,
Kitty pediu aos outros que seguissem o ritmo enquanto se dirigiam àquele
emaranhado de becos, ruas e vias secundárias.
Prédios de todas as formas e idades se erguiam acima de suas cabeças.
A chuva mandava a maioria das pessoas para dentro de casa, mas algumas
permaneciam em suas portas, observando aquele grupo miserável passar.
Kitty estava ciente de sua aparência e ouvia os sussurros. Mulheres com
olhos frios e especulativos e crianças com os pés descalços e narizes
ranhosos empurravam-se umas às outras para se posicionarem para olhar
fixamente para os recém-chegados. Aqui, nas entranhas da cidade, as
pessoas viviam e respiravam pobreza. Desespero, depressão, fome e a
ameaça de enfermidades os enfrentavam a cada momento de suas vidas.
Kitty perdeu todo o senso de direção. Ela presumiu que eles estavam
na área de favelas de Walmgate.
Fora isso, ela não tinha ideia e, no momento, não se importava.
A mulher não falou enquanto caminhavam e, quando de repente parou
em frente a um prédio grande e muito deteriorado, Kitty e as crianças
suspiraram coletivamente. Todos estavam cansados, encharcados e famintos
e desejavam apenas alguns minutos de descanso da chuva pesada.
— Lá é onde eu moro, a primeira porta à esquerda. – Ela apontou pela
porta aberta dentro da escuridão. — Logo abaixo da porta, há um conjunto
de degraus que levam ao porão.
— Existe alguém com quem devemos falar sobre isso? – Kitty
perguntou timidamente. A sujeira do esgoto passou por suas botas. O lixo
ladeava o pequeno beco. Ela não tinha certeza se poderia suportar a ideia de
entrar no prédio.
Eles podiam ouvir gritos e xingamentos vindos dos quartos acima
deles e em algum lugar além, um bebê chorava.
A mulher começou a rir, uma risada surpreendentemente alegre. —
Meu Deus, tem muito a aprender, não que eu ache que vá demorar tanto
tempo aqui. – Ela parou de rir tão rápido quanto começou e, com uma
fungada, levou-os para dentro do prédio.
Virando-se rapidamente, ela desceu um conjunto de degraus de pedra
inacreditavelmente íngremes que quase os colocaram de costas. No fundo,
uma porta quebrada inclinava-se para além do interior escuro.
As crianças tropeçavam umas nas outras, parando, olhando
horrorizadas para a masmorra escura, úmida e totalmente nojenta que as
cercava. Clara chorou novamente com Rosie se juntando a ela, ambas
tomadas pelo medo.
Rory pigarreou, mas antes que ele tivesse chance de falar, Kitty deu
um passo à frente.
— Quanto pagaríamos para alugar isso?
— Normalmente, poucos centavos, mas todos paramos de pagar até
que o dono do lugar conserte tudo. O aluguel dele parou de chegar há
meses. Nós nos recusamos a pagar algum dinheiro por esse lugar que está
prestes a cair em torno de nossas orelhas. – Ela cruzou os braços diante do
peito. Um rubor irritado coloriu suas bochechas. — O homem teme por sua
vida nesse beco. Ele é odiado ferozmente por aqui!
Kitty franziu a testa. — Então ninguém se importará de ficarmos aqui?
— Não. A mulher virou-se para a porta. — A menos que vocês causem
problemas. Neste edifício, gostamos de manter a cabeça baixa. Imagine que
muitas pessoas não ficarão felizes se a polícia começar a sentir o nosso
cheiro. Compreende?
— Sim, sim, é claro. – Kitty assegurou. — Não terá nenhum problema
conosco.
— Isso mesmo, nenhum problema – Rory se intrometeu. — Porque
não vamos ficar aqui.
— Por enquanto, Rory – Kitty o silenciou. — Simplesmente porque
não há outro lugar.
— Bem, faça a sua vontade. – A mulher virou-se para a porta. — Mas
se precisarem de algo, estou bem acima de vocês.
— Espera! Qual é o seu nome?
Olhando por cima do ombro, a mulher lhe lançou um olhar estranho.
— Ninguém fala muito sobre nomes por aqui. Não existe um clube social,
sabe.
— Não, eu sei disso, mas ainda assim seria bom se pudéssemos ser
amigas? – Ela sorriu. — Meu nome é Kitty, Kitty McKenzie. Esses são
meus irmãos e irmãs, Rory, Martin, Mary, Joe, Clara e a pequena Rosie.
— Sim, bem, me chamo Connie, Connie Spencer. – Com isso, ela
subiu os degraus e sumiu de vista.
Kitty voltou-se para sua família e para a terrível percepção de onde
eles estavam. As paredes pareciam viscosas de mofo. Pequenos riachos de
água escorriam das rachaduras nos tijolos.
Mofo e manchas cobriam o teto e sangravam dos andares acima. Ela
estremeceu, tentando não adivinhar o que poderiam ser. Anos de sujeira e,
em alguns lugares, serragem imunda cobriam o chão. Um fedor de
mortificar veio de algum lugar. Kitty esperava que por Deus não houvesse
nada morto ali.
Do outro lado da porta havia uma pequena lareira com o que parecia
ser algum tipo de prato de cozinha por cima. Uma prateleira acima servia
como grelha. Situada no nível da rua, acima de suas cabeças, a janela
solitária media cerca de dois pés de largura e três de comprimento. Poeira
espessa e teias de aranha bloqueavam a maior parte da luz cinza. A parede à
esquerda dos degraus era, examinando de perto, feita de tábuas de madeira
muito finas. Kitty deu um forte empurrão e tudo caiu com facilidade,
expondo outra parte do porão que tinha quase o dobro da área principal.
— Alguém deve ter tapado o quarto para melhorar o aquecimento –
disse ela.
— Não podemos ficar aqui, Kitty! Os porcos viveriam em melhores
condições, tenho certeza. – Rory protestou.
— Sinto muito, mas a meu ver, não temos escolha. É isto ou voltar
para chuva.
— Poderíamos ficar em um hotel hoje à noite e olhar novamente
amanhã. Ainda temos dinheiro sobrando. – Implorou.
— Não. Por impulso, deixei-nos ficar naquele hotel ontem à noite e
veja quanto isso nos custou. Precisamos usar o dinheiro restante com
sabedoria ou estaremos no orfanato antes que perceba, e não deixarei que
isso aconteça. – Ela ficou com as mãos nos quadris. — Temos que
aproveitar ao máximo o que temos, que é esse porão, por enquanto.
— Espera que durmamos nessa imundície! – Ele explodiu.
— Vamos limpar o local. Só porque as circunstâncias nos forçaram a
morar aqui, isso não significa que temos que viver como os outros desse
lugar.
— Mas não temos nada para limpar. – Disse Mary.
Kitty sorriu para ela. Mary sempre foi sensata. — Isso mudará em
breve. Vamos às lojas e compramos o que precisamos.
— Oh, isso é maravilhoso. – A voz de Rory se levantou com raiva. —
Está disposta a gastar dinheiro com materiais de limpeza, mas não com um
lugar decente para dormir?
— Chega, Rory! – Kitty virou-se para ele. — Já cansei de ouvi-lo
choramingar. – Respirando fundo para se acalmar, ela se virou para Martin
e Joe. — Agora, os dois me ajudarão?
Martin e Joe acenaram com a cabeça, seus rostos pálidos e seus lábios
azuis de frio. — Bom. Certo, primeiro quero que ambos partam todas as
tábuas de madeira... Ali faremos o nosso primeiro fogo. – Kitty espreitou na
lareira. As cinzas entupiram-na, mas usando um pedaço de madeira, ela
logo a limpou e juntou tudo formando um monte de poeira no chão.
Endireitando-se, ela foi até as malas e tirou sua pequena bolsa.
— Mary, fique aqui e cuide de tudo, enquanto Rory e eu vamos às
lojas. – Ela percebeu, com um pouco de choque, que iria gostar do desafio
de transformar esse porão esquálido de volta em algo com aparência de
habitação. Nunca antes ela havia definido uma tarefa que exigia tanto um
resultado bem-sucedido. Estava determinada a fazê-lo. Todos eles
dependiam do julgamento sensato dela. O bem-estar deles repousava
firmemente em seus ombros.
— Eu não vou – Rory interrompeu seus pensamentos.
— Bem, fique aqui e ajude a limpar.
— Eu também não vou ficar aqui. Se quer ser uma empregada
doméstica, pode fazê-lo por conta própria.
Por um momento Kitty não tinha a certeza se o compreendia.
— Estou falando sério.
Com um arrepio de consternação, ela percebeu que sim. — Vai
embora?
Rory evitou o seu olhar e retirou sua maleta de entre as outras. —
Desculpe, Kitty, mas não aguento ficar aqui nem mais um minuto.
Ela piscou rapidamente para se livrar do choque. A necessidade de
chorar a inundou. — Ainda está chovendo. Não pode voltar e para onde irá?
— Eu posso tentar alguns dos meus amigos. A família Preston vive ao
longo de Bootham e foi ao funeral de mamãe e papai. Talvez eles me
permitam ficar por uma ou duas noites até eu conseguir arrumar alguma
coisa.
— Eles não estavam tão dispostos a ajudar quando eu lhes enviei uma
carta antes. – Ela desafiou. — Eles tinham todas as desculpas do mundo na
época.
— Eu posso tentar.
O coração de Kitty se virou. O pânico arranhou-a. — Prometemos no
túmulo estar sempre juntos. Deveríamos ser o apoio um do outro para tudo
isso. – Ela não podia acreditar que ele a estava abandonando, a todos eles.
Rory abaixou a cabeça e Kitty cerrou os dentes. “Ele não pode nem me
olhar “.
Ela respirou fundo. Não queria dizer algo do qual mais tarde se
arrependeria.
Depois de alguns segundos, Rory ergueu os olhos e pôs a maleta entre
as mãos. — Eu tenho que ir. Sinto muito, Kitty. – Ele estava quase
chorando e seu queixo tremia. — Não posso ficar aqui nesta cela.
— Isso é apenas temporário. Por favor, não vá.
— Eu preciso.
Ela engoliu suas lágrimas. — Tudo bem. – De sua bolsa ela deu a ele
uma quantia de dinheiro extremamente preciosa. — Aqui estão cinco libras.
Isso é tudo o que posso ceder.
Ela se virou, indo até onde os outros estavam, espantados com o que
estava acontecendo com sua família.
Pegando as tábuas quebradas, Kitty as quebrou em pedaços menores
para acender.
Ela fez barulho suficiente para abafar o choro silencioso, enquanto
cada um se despedia do irmão mais velho. “Como ele pode fazer isso
conosco?” Uma dor aguda de traição torceu seu estômago.
Quando Rory se foi por mais de cinco minutos, Kitty descartou a
madeira e pegou sua bolsa novamente. — Vou às lojas comprar algumas
coisas. Mary, ajude as crianças a tirar a roupa molhada. Deveríamos ter
feito isso primeiro. Eu não havia pensado nisso. – Kitty parou para olhar
para eles. Pareciam estar bem. No entanto, no futuro, deveria ter mais
cuidado. Ela tinha que ser mãe, criada e todos os outros papéis para eles a
partir de agora.
— Martin, Joe, enquanto eu estiver fora, procurem jornais para
acender o fogo. Talvez possam pedir à Sra. Spencer alguns fósforos. Vou
conseguir mais, mas podem encontrar algo e iniciar o fogo enquanto eu
estiver fora. Apenas tomem cuidado e não vão muito longe. Fiquem dentro
do prédio.
Kitty os deixou e subiu os degraus. No topo, ela parou para abotoar o
casaco e ajeitar o chapéu preto de aspecto triste. Não chovia mais, mas o
céu ainda brilhava preto e ameaçador. Atrás dela, perto da escada que
levava ao próximo andar, uma porta se abriu. Kitty sorriu quando Connie
saiu carregando uma sacola de compras. — Está indo às lojas também?
— É... sim – Connie murmurou, passando.
— Gostaria de saber se poderia nos emprestar alguns fósforos para
iniciar o fogo e papel, se tiver algum?
Assentindo, Connie voltou a entrar em sua própria casa e, em alguns
instantes, voltou com fósforos e papel. Kitty chamou Martin, que os aceitou
com gratidão.
Voltando para Connie, Kitty sorriu. — Posso acompanha-la? Não
conheço essa área.
Connie deu de ombros. — Sim, se quiser.
Andando em ritmo acelerado, Connie não falou. Não que Kitty se
importasse, ela estava ocupada demais observando as ruas e becos que
Connie percorria. Em pouco tempo, elas estavam se misturando com a
multidão que se apressava, que se aproveitava daquele período que precedia
a chegada da escuridão.
Chegando ao mercado, Connie fez uma pausa. — Suponho que
precisarão de algumas coisas, então?
Kitty riu. — Sim nós precisamos.
— O armazém Boyle, perto de Goodramgate, lá eles terão o que
deseja.
Ela assentiu, mas hesitou. — Poderia... quero dizer... poderia vir
comigo, se não for pedir demais?
— Eu tenho as minhas próprias compras. – Connie fungou.
— Sim, claro que sim. Sinto muito. – Kitty corou e olhou para o céu.
Logo estaria escuro. Dizendo adeus a Connie, ela levantou as saias e se
afastou.
Uma hora depois, Kitty percorreu o mercado se esbarrando na
multidão. Ela gastou muito tempo e dinheiro no armazém, e agora estava
preocupada com a maneira como as crianças estavam lidando com a
situação. Esquivando-se de um carrinho de frutas sendo levado por um
homem idoso, ela ouviu vozes exaltadas e parou. Um peixeiro discutia com
Connie sobre seus preços e um pequeno grupo parou para assistir.
Recuando, Kitty observou Connie discutindo seu caso. O resultado
final, o peixeiro, deu a Connie mais peixes em troca do seu
dinheiro. Depois que tudo terminou e a multidão se dispersou, Kitty
caminhou para perto de onde Connie estava, contando seu dinheiro. Não
querendo ser rejeitada por ela novamente, Kitty fingiu estar interessada em
comprar alguns legumes de uma banca.
— Não compre desse... – veio o sussurro no ouvido de Kitty. Olhando
para cima, ela emparelhou seus olhos aos de Connie.
— Não?
Connie balançou a cabeça e depois acenou com a cabeça na direção de
outra barraca de vegetais no final da fila.
Enquanto andavam pelo mercado, Kitty continuou fazendo perguntas
e, eventualmente, Connie ficou um pouco mais à vontade. Ela transmitiu a
Kitty um pouco do seu conhecimento do mercado e das compras em geral.
Ela disse a ela quem fornecia os melhores produtos pelo melhor preço e
onde comprar roupas baratas, mas ainda boas.
Caminhando de volta pelas ruas escuras, Kitty contou a Connie suas
circunstâncias e como a partida de Rory doía mais do que ela podia
reconhecer abertamente aos outros. — Ele vai voltar, é claro. – Ela
resmungou. — Duvido que ele fique longe por mais de uma noite.
— Ele nunca deveria tê-los deixado.
— É difícil para ele, Sra. Spencer. Não posso culpá-lo ou ser dura
demais com ele. Está tão assustado quanto eu.
Virando para a rua do seu prédio, ouviram palavrões. O carroceiro de
entregas esforçava-se para manter as crianças do beco longe das suas
mercadorias.
— Oh meu Deus. Eu esqueci-me do homem das entregas. – Kitty
levantou as saias e começou a correr.
— Já não era sem tempo – gritou o carroceiro. — Eu estava pronto
para levar tudo de volta. – Ele desceu e começou a descarregar as compras
dela.
Kitty chamou os meninos antes de ela e Connie ajudarem o carroceiro.
A escuridão sombreava os casebres ao mesmo tempo que tudo já
estava fora do veículo e empilhado no porão. Camas de ferro com colchões
finos e grumosos, mais almofadas, lençóis e cobertores empilhados em
cima deles estavam em um canto, enquanto uma mesa pequena e quadrada,
feita a baixo custo, e quatro cadeiras ocupavam outro canto. Perto do fogo,
que não tinha sido aceso apesar de todas as tentativas de Martin, havia um
balde, uma vassoura e uma escova de esfregar, uma chaleira, uma lanterna
com óleo, uma caixa de velas de sebo, não de cera, e, por último, uma caixa
de louça e talheres baratos, incompletos e terrivelmente feios, segundo os
padrões de Kitty.
Mais cedo, no mercado, Kitty havia comprado um monte de trapos,
além de sabão, chá, açúcar, pão, queijo, presunto e maçãs, para adicionar ao
cesto que a Sra. Halloway lhes dera. Finalmente, ela obteve uma pilha extra
de jornais velhos para acender o fogo.
— Meu Deus, sabe mesmo como não gastar – comentou Connie,
enquanto eles estavam no meio de tudo isso.
Kitty tirou o casaco, o chapéu e as luvas. — Isso basta para começar.
Ela sorriu, ao ver a mulher mais velha olhando para a bagunça.
— Vou te dar uma ajuda, pelo menos por um tempo, até o meu marido
voltar para casa.
— Obrigada, Sra. Spencer, isso é muito gentil. – Kitty abanou a cabeça
maravilhada com as complexidades da outra mulher.
— Bem, sabe o que eles dizem, muitas mãos significam menos
trabalho.
Com Connie na vassoura e Kitty seguindo o seu esfregão como alguém
demente, fizeram progressos com a sujeira do porão. Clara e Joe, armados
com trapos amarrados no final de pedaços de madeira, atacaram as
numerosas teias de aranha penduradas em grandes adornos no teto. Martin
foi buscar água da torneira no final da rua. Foi um trabalho duro carregando
o balde cheio até os cortiços, mas era a única torneira onde a água estava
limpa e não desligada. Aparentemente, assim lhes disse Connie, a água da
outra torneira, na parte de trás dos edifícios, deixou as pessoas doentes.
Quando o braço de Kitty doeu por causa da esfregadela, Mary disse-
lhe para descansar e assumiu o controle. Como nenhum deles tinha
trabalhado em tarefas domésticas antes, eles acharam difícil de se fazer e
logo se cansaram. Kitty limpou a lareira com um pano úmido e voltou a
enchê-la com uma montanha de papel e pedaços de tábuas finas quebradas.
Logo, o fogo bramiu. As chamas subiram tão alto pela chaminé que
acenderam toda a fuligem acumulada.
Os inquilinos que moravam nos andares mais altos descobriram, para
sua surpresa, a fumaça subindo pelas rachaduras nas paredes.
Eles entraram em pânico, pensando que o prédio estava pegando fogo
e que todos iriam queimar até a morte.
Connie apagou a grande fogueira de Kitty e ateou um fogo mais
aceitável, depois subiu até o patamar para acalmar a todos. Kitty abanou
com as duas mãos. — Acho que essa é uma maneira de se apresentarem.
O calor do fogo, que ardeu bem devido à chaminé ter sido limpa e
desentupida, colocou-a e às crianças em melhores condições de espírito.
Martin pegou um pano molhado. — Segure minhas pernas, Kitty. Vou
limpar a janela lá em cima.
— Cuidado – alertou Kitty, colocando uma cadeira em uma caixa e
subindo nela.
Mary acendeu duas velas e colocou uma em cada extremidade da
lareira. Ela pegou a louça e os talheres da caixa, colocando-os
cuidadosamente sobre a mesa, junto com a comida que Kitty comprou e o
que restava no cesto.
— Eu estou com fome. – Joe esfregou sua barriga.
— Vamos comer em um minuto, Joe. – Mary bateu em sua mão
enquanto pegava um pedaço de queijo.
Todos eles pularam de susto quando uma voz alta saiu de lá de cima.
Ao girarem, eles se depararam com um baita de um homem em pé no topo
dos degraus. Ele devia passar de seis pés de altura e pesava cerca de vinte
pedras. Os seus ombros eram grandes e poderosos. Ele tinha uma grande
cabeça, com cabelo loiro e sobrancelhas peludas para combinar.
— Então, um homem vem de um dia duro de trabalho e tudo o que ele
encontra é uma lareira vazia e uma mesa! – Ele olhou para eles por um
momento antes da sua expressão se transformar num grande sorriso e os
seus olhos castanhos dourados amoleceram.
— Não, lamento muito, amor. – Connie correu para pegar as compras
que tinha feito há quase duas horas. — O tempo passou voando pra nós.
— Então temos novos vizinhos? – Ele sorriu.
— Max, estes são os McKenzies. – Connie o apresentou a cada um. —
Este é meu marido, Max Spencer.
Kitty percebeu como Connie se transformou na presença do marido.
Desapareceu a expressão azeda e o azul desbotado de seus olhos. Em vez
disso, eles se transformaram em pontos brilhantes de luz. Manchas intensas
de cor apareceram em suas bochechas.
— Estamos muito satisfeitos em conhecê-lo, senhor Spencer – disse
Kitty, apertando a mão dele.
— Não, moça, sou apenas o Max. Sr. Spencer é meu pai. – Nisso ele
rugiu com uma risada contagiante, fazendo-os rir.
Connie pegou-lhe pelo braço. — Vamos lá então, vamos tomar um
chá.
— Porque não compartilham do nosso? – Kitty ofereceu. — Há muita
comida.
— É uma grande oferta, moça, mas vejo que já tem muito que fazer
mesmo sem que nós comamos também. – Os olhos do Max cintilaram. —
Talvez o façamos noutra altura, hein?
— Sim, isso seria adorável. – Ela sorriu de volta. — Boa noite.
Depois que os Spencer saíram, Kitty e Mary colocaram as três camas
de ferro no final do porão e as arrumaram com colchões irregulares, lençóis
remendados, travesseiros duros e cobertores finos.
Kitty e as crianças sentaram-se à mesa. Tendo apenas quatro cadeiras,
Martin e Joe sentaram-se em caixas viradas para cima. Eles comeram a sua
simples refeição de pão, queijo, presunto e fruta com gosto. Kitty esqueceu
de comprar leite e, pela primeira vez na vida, as crianças beberam seu chá
sem ele.
Depois de um dia tão exaustivo, as crianças caíram na cama sem
reclamar e se abraçaram para se aquecer.
— Queria que Rory estivesse aqui – Martin murmurou, olhando para
sua xícara de chá preto.
A noite agitada os levou a jogar a partida de Rory no fundo de suas
mentes, mas agora no silêncio calmo, seus pensamentos voltaram para ele
— Foi escolha dele – declarou Kitty, magoada com o que ela
considerava uma covardia. — Mas acredito que ele voltará em breve.
Mary olhou para ela e, embora o porão tivesse melhorado desde o
início da tarde, ainda era um choque enorme para eles viverem nessas
circunstâncias. — Acha que ele voltará então?
Kitty levantou-se da mesa e cutucou as brasas brilhantes do fogo. —
Claro. Nós somos a família dele. Nós somos tudo o que ele tem. – Ela deu
de ombros, não queria particularmente falar sobre Rory. Ele a envergonhou
com suas ações de coração fraco. De fato, seu egoísmo a surpreendeu e a
irritou. Como ele poderia tê-los deixado tão facilmente? Ela nunca
esqueceria que ele os abandonara, mas o perdoaria.
— Talvez ele tenha ido para a família Preston e eles nos ajudem agora.
– Martin disse.
— Eu duvido. Eles não queriam nos ajudar antes. De qualquer forma,
não posso viver esperando que alguém venha em nosso auxílio. Agora,
devemos dormir um pouco. Temos que procurar trabalho amanhã.
Kitty ficou junto ao fogo moribundo depois de todos terem
adormecido. O som sinistro de um gato ecoou na rua e ela tremeu. Sem o
calor e a luz do fogo, o frio e a escuridão recuperaram o porão. Em algum
lugar acima, o prédio rangia e gemia.
Ela olhou em volta para o que tinha acontecido com a sua vida. Um
porão úmido e suja era tudo o que servia como um teto à sua família, para
ter sobre suas cabeças, do contrário, estariam nas ruas. A emoção fechou-
lhe a garganta e as lágrimas ardiam-lhe os olhos, mas ela estava muito
cansada e desanimada para chorar. Estava vivendo num porão...
Capítulo Quatro

O FRIO ÚMIDO acordou Kitty. Ela teve uma noite agitada. O som de rangidos nos andares superiores do edifício a
impediu de dormir. Sem um relógio para saber as horas, acordou muito antes de ouvir alguém mover-se nos andares superiores.
Depois de colocar seu vestido de lã preto, do luto, acendeu o fogo e, em seguida, acordou Martin.
— Que horas são? – Perguntou ele, esfregando seus olhos sonolentos.
— Não sei. Eu diria por volta das cinco horas, embora ainda não tenha
ouvido o homem que bate à porta. – Ela tremeu e vestiu o casaco. Não
tendo criados para acordá-los na hora certa, eles agora dependiam do
homem que caminhava pelos corredores escuros todas as manhãs, batendo
nas janelas daqueles que precisavam se levantar e ir trabalhar. Tanta coisa
tinha mudado e eles não tinham outra escolha senão adaptar-se à sua nova
vida.
— Venha para junto do fogo ele está produzindo um pouco de calor.
Eu pus a chaleira para ferver.
Martin estendeu as mãos para as chamas. — Ainda bem que sabe
como fazer uma xícara de chá.
— Sim, sei, macaquinho atrevido. – Ela levantou uma sobrancelha
para ele. — Mas também tenho de aprender a fazer refeições adequadas.
Não podemos viver de sanduíches para o resto das nossas vidas.
— Talvez a Sra. Spencer te ensine. – Ele pôs várias colheres de açúcar
no copo.
— Ei! Não tanto assim. – Ela tirou o açúcar. — Isso tem que durar
algum tempo. Tudo terá de ser em pequenas quantidades a partir de agora.
Logo, o restante dos irmãos despertou, reclamando de fome. Com água
quente aquecida no fogo, Kitty e Mary ajudaram os mais jovens a se lavar.
Passos acima de suas cabeças foram como um sinal para Kitty calçar
suas luvas. — Vem, Martin, está na hora de ir. – Ela virou-se para a Mary.
— Ficarão bem. Arrume algo para o café da manhã e fique perto do porão.
Voltaremos ao fim da tarde.
Ela apontou o dedo ao Joe e à Clara. — Ajudem a Mary a cuidar da
Rosie e comportem-se.
No topo dos degraus, eles encontraram Max.
— Bom dia – ele cumprimentou. — Porque estão acordados tão cedo?
Tem formiga nas camas?
Kitty balançou a cabeça enquanto ela e Martin desciam os degraus ao
lado dele. — Tenho certeza de que tem, mas na verdade estamos à procura
de trabalho. Sabe de algum?
— Não, menina, não há muitos que trabalhem por aqui. Os empregos
são difíceis por estas bandas.
— Onde é que você trabalha? – Martin perguntou.
— No rio. Eu trabalho em um armazém que possui barcaças
próprias. Enviamos nossas coisas pelos portos fluviais ao longo da costa.
— Acha que haveria chance de Martin conseguir um emprego lá? –
Kitty empurrou as mãos profundamente nos bolsos de seu casaco para se
aquecer.
— Bem, moça, não fará mal tentar – rosnou Max, dando um tapa
nas costas de Martin. — Vamos lá, rapaz, vamos ver o que há para o dia.
Kitty e eles se afastaram em direção ao rio.
Kitty parou no fim da rua e ponderou sobre o que fazer a seguir. Hoje
era o seu vigésimo primeiro aniversário. Ninguém se lembrava, mas isso
não importava. Iria celebrá-lo, arranjando um emprego. Marchou para o
mercado cheia de confiança.
Mesmo naquela madrugada, o mercado fervilhava de gente. Os donos
das barracas preparavam tudo e as mulheres faziam as compras. Grandes
multidões passavam pela praça do mercado a caminho do trabalho, nas
inúmeras lojas, fábricas e moinhos.
Em cada barraca, Kitty perguntava por trabalho; cada um dos
barraqueiros sacudia a cabeça para ela. Saiu do mercado e foi para as ruas
vizinhas.
A primeira rua começava com a chapelaria. Olhou para a exibição de
chapéus coloridos em tamanhos diferentes. Para além da exposição, viu
uma vendedora limpando o balcão. Sorrindo, Kitty entrou na loja. Ela
conhecia um pouco de chapéus, não a sua fabricação, mas possuía um bom
gosto de estilo e tinha usado muitas criações que ela e sua mãe tinham
adornado.
A comerciante deu um firme não ao seu pedido de emprego e disse-lhe
que usar chapéus não lhe dava talento para fazê-los. Castigada, e um pouco
envergonhada, ela entrou e pediu emprego uma tabacaria. O lojista irritante
disse-lhe que não empregava mulheres.
As ruas pareciam intermináveis conforme Kitty procurava
emprego. Foi repetidamente humilhada quando lhe pediram experiências e
referências anteriores. Claro, ela não tinha nada disso e foi continuamente
recusada.
Cansada e infeliz, decidiu voltar para o porão. Ela olhou com inveja
para os coches que passavam, mas quanto menos dinheiro gastasse, mais
tempo eles conseguiriam ficar longe do orfanato. Contra todas as
probabilidades, estava determinada a manter a família unida e construir uma
vida boa para eles.
Seus pés latejavam e o estômago roncava de fome. Ela não tinha
comido nada o dia todo e de repente estremeceu. Sua cabeça latejava de dor
e estendeu as mãos para encostar-se a uma parede de tijolos. Crianças
brincando na sarjeta pararam para encará-la antes de saírem correndo. Ela
fechou os olhos momentaneamente, mas se forçou a andar.
No topo dos degraus do porão, ela hesitou, endireitou os ombros e
convocou um sorriso. Com a cabeça erguida, entrou para cumprimentar sua
família.
A porta na parte inferior estava fechada, devidamente fechada. Alguém
colocou de volta nas dobradiças.
Girando a maçaneta, Kitty espiou. Um fogo quente brilhava. Comida
de dar água na boca borbulhava em uma panela grande na prateleira
ardente.
Um tapete de trapo multicolorido estava em frente à lareira. Acima do
fogo havia um espelho quebrado e, na prateleira, um relógio de carrilhão
manchado.
Entrando ainda mais no quarto, ela viu as camas feitas e as roupas
arrumadas. Um pano remendado, de cor creme, cobria a velha mesa. De
onde todas essas coisas vieram e onde estava sua família?
O som das vozes das crianças flutuou para ela pouco antes de
descerem os degraus do porão de braços estendidos.
Connie se conteve mais perto da porta, observando Mary e os mais
novos, explicando seu dia.
— Shh, shh! Devagar, não posso abraçá-los todos de uma vez. – Kitty
riu. — Mary, pode me dizer de onde veio tudo isto? – Ela abriu os braços
para abarcar todos os seus novos pertences.
— Sim, são da Sra. Spencer. – Mary olhou com gratidão para Connie.
— Ela nos deu.
Kitty se soltou dos bracinhos enrolados ao seu redor e caminhou até
Connie. — Muito obrigada.
— Não – Connie dando um tapinha em suas mãos — são apenas
algumas coisinhas e eu não gostava delas.
— Quer tomar uma xícara de chá conosco?
— Hum... bem...
— Oh, sim, venha e tome um chá, Sra. Spencer. – Disse Clara, com
covinhas.
— Sim, tudo bem então. – Connie sentou-se à mesa enquanto Mary
enchia a chaleira com o balde de água.
Kitty ouviu o tom de Connie suavizar quando falou com as crianças e
viu como o seu olhar seguia os movimentos delas com atenção arrebatada.
Mary passou as xícaras ao redor. — Conseguiram trabalho, Kitty?
— Não, eu não. – Seus ombros caíram. — Mas o Max levou Martin
para ver se ele pode trabalhar no depósito também.
— Se arranjar esse emprego estiver ao alcance do meu Max, ele
arranjará. – Connie acenou com a cabeça.
— Sei que Martin foi educado para ser um cavalheiro e não tem
experiência em trabalho manual, mas é forte e inteligente. – Kitty passou
uma das mãos sobre os seus olhos cansados. Muita coisa dependia de
Martin ter trabalho.
Joe pôs a mão no braço dela. — Podemos comer agora? Estou com
fome.
Mary virou-se para ele. — Não faz nada além de comer, Joseph
McKenzie.
— Ele é um rapaz em crescimento. – Connie soprou sobre o chá para
esfriá-lo. — Suba as escadas, Joe, e pegue mais lenha da minha cesta, bom
rapaz.
Kitty viu-o partir e depois olhou para vestígios dos pertences de Rory.
Connie abanou a cabeça. — Ele não voltou, menina.
Ela virou as costas, desconfortável por Connie conhecer os seus
pensamentos. — Ainda há tempo. Talvez esteja nos arranjando um lugar
para ficar ou até pode ter arranjado trabalho. Ele poderia se tornar um
escrivão ou algo assim...
— Sim, talvez. – O murmúrio silencioso de Connie não pareceu
convincente, e Kitty encolheu por dentro.
Mary agarrou as mãos da Kitty. — Esta manhã foi horrível. Pus
demasiada lenha na fogueira e apaguei-a. A Sra. Spencer ouviu-me
chorando enquanto passava e desceu para ver se eu precisava de ajuda. Ela
levou-nos para o seu quarto. Ficamos perto da lareira dela enquanto ela nos
dava o café da manhã. Tivemos tanto frio!
— Como posso agradecer-lhe, Sra. Spencer? – Kitty sorriu, mas as
lágrimas vieram com muita facilidade e ela as enxugou apressadamente.
— Não foi nada demais. E não vai demorar muito até a Mary ter tudo
resolvido. – Connie deu a Mary um aceno tranquilizador. — Basta um
pouco de aprendizagem, é só isso.
Joe voltou com a madeira e atirou-a ao chão com um estalido. —
Fomos com a Sra. Spencer a uma loja de penhores. – Os olhos dele se
arregalaram em excitação. — Nunca tinha estado dentro de uma loja de
penhores.
Connie fungou. — Bem, esperemos que não tenha necessidade de ir
outra vez, rapaz, e empilha bem essa madeira.
— E a porta? Kitty perguntou. — Quem fez isso?
Joe olhou para cima da lenha que empilhava. Um sujeito lá de cima
deu-nos uma ajuda quando nos viu a tentando arrumar a porta. Ele
consertou as dobradiças e pôs a maçaneta, era dele. Mas ele disse que íamos
precisar dela mais do que ele.
— Um amigo? – A Kitty levantou as sobrancelhas. — Então, fizemos
outro amigo?
— Tash McNeal vive no último andar – disse Connie. — E é um
escocês, mas simpático o suficiente. A mulher dele morreu há dois anos. —
Não o vemos muito agora, ele mesmo mantém assim. – Ela virou-se para a
Mary. — Mexe o guisado, Mary.
Mary levantou-se para obedecer.
Connie inclinou-se para mais perto da Kitty. — Vai sair à procura de
trabalho amanhã?
Kitty acenou com a cabeça. — Embora eu pense que já andei em todas
as ruas e caminhos de York. Os empregadores me recusam porque não
tenho experiência nem referências.
— Pode ler e escrever, isso é o que deve dizer a eles. Pode ser que faça
a diferença.
Kitty conversou com Connie um pouco mais antes de ouvirem a voz
estrondosa de Max e o tom mais baixo de Martin. O ar frio atingiu a sala
quando eles entraram.
— Foi contratado? – Kitty perguntou a Martin.
Ele sorriu. — Sim!
Kitty pulou para abraçá-lo, assim como os outros.
— Sou apenas um entregador por enquanto, mas logo quero tentar
entrar nos barcos e ir para os portos ao longo da costa.
— Acho que devemos dar um passo de cada vez, não é mesmo? –
Kitty riu e abraçou-o novamente.
— Muito bem, rapaz – disse Connie.
Kitty girou para agarrar a mão grande de Max. — Não posso lhe
agradecer o suficiente, Max.
— Não, moça, não foi por minha conta. O garoto se saiu bem com as
perguntas do supervisor.
— Vai ficar e jantar conosco? – Kitty sorriu. — Deveria, já que foi
sua esposa quem cozinhou. – Ela sorriu para Connie.
Espremidos ao redor da pequena mesa com cadeiras extras trazidas dos
aposentos de Spencer, sentaram-se e comeram o ensopado caudaloso e
saboroso. Depois, Mary e Clara lavaram a louça, usando o balde como
pia. Martin foi até a torneira e encheu o balde, deixando-o pronto para a
manhã seguinte.
Connie brincou com Rosie, enquanto Kitty e Joe ajudaram Max a
construir uma engenhoca de guarda-fogo a partir de peças que ele guardara
ao longo dos anos. O novo sistema significava que eles poderiam comprar
carvão barato e manter o fogo aceso durante a maior parte da noite para
evitar o frio.
No pequeno quintal nos fundos do prédio, Kitty segurou a lanterna
para Max enquanto ele vasculhava suas preciosas pilhas de ferramentas
caseiras alojadas em um galpão.
— Sou muito grata por terem nos ajudado – disse Kitty, olhando em
volta para cada pequeno movimento na escuridão.
— Não pense nisso, moça – Max falou por cima do ombro.
— Temo imaginar o que poderia ter acontecido conosco se não os
tivéssemos conhecido.
Max se endireitou e encarou-a na luz fraca da lanterna. — Minha
Connie não tem amigos e me surpreendeu como ela tem estado com sua
família. Me agrada tê-la tão alegre quanto ultimamente. – Ele sentou-se em
uma caixa virada. — Nós nos casamos há dez anos e ela é solitária. Tem
sido difícil para ela, pois ela perdeu muitos de nossos bebês e isso a deixou
um pouco defensiva. Ela não sabe como demonstrar seus sentimentos, mas
tem um bom coração se olhar além de sua rudeza.
Kitty sorriu. — Ela tem sido uma dádiva de Deus, de verdade. Serei
sua amiga enquanto ela me quiser.
— Ela teve uma vida difícil, cuidando de pais egoístas e inválidos até
os dois morrerem. Ela não tinha família, a não ser eles e, portanto, todas as
suas demandas caíram nela. Eles não a deixavam sair e se divertir. Faziam
com que ela se sentisse culpada por ficar muito tempo nas lojas. – Ele fez
uma pausa para inspecionar um pote sujo cheio de pregos dobrados
enferrujados. — Eu estava feliz por ter casado com ela. No entanto, acho
que demorei seis meses para fazê-la sorrir. – Ele olhou para cima e sorriu.
Kitty devolveu. — Talvez ela tenha demorado muito para perceber a
sorte dela em se casar com você.
Ele rugiu de tanto rir. — Eu gosto de você, Kitty McKenzie.

KITTY ABRIU CAMINHO entre os compradores de Natal no


mercado. Mulheres e crianças a pressionavam e a empurravam enquanto ela
descia por uma passagem estreita entre as barracas. Irritada, cutucou uma
mulher nas costelas para afastar seu corpo do caminho.
Nas últimas quatro semanas, ela se acostumou ao barulho e cheiro do
mercado, mas de vez em quando sentia vontade de visitar uma loja
de qualidade, como costumava fazer com a mãe. Às vezes, ela sonhava em
comer algo leve e saboroso, em vez das refeições pesadas, mas saudáveis
que Connie ensinara Mary a cozinhar. Ela ficou com água na boca ao
pensar em morder um pedaço de chocolate ou uma torta de morango com
cobertura de creme.
Bufando irritada, ela descartou o pensamento. Não adianta pensar no
que não pode ter, no entanto, às vezes, o choque de viver tão perto de outras
pessoas a enchia de desânimo.
Ouvir as vozes de estranhos do lado de fora da pequena janela do
porão, e passos caminhando sobre suas cabeças em todos os momentos do
dia e da noite a deixavam louca.
Além disso, ter que aturar vermes e sujeira em todos os lugares era
demais para enfrentar em alguns poucos dias. Os gritos e discussões entre
pessoas e vizinhos assustaram não só ela, mas também as crianças.
Eles viram paisagens de degradação e algumas atitudes bestiais de
homens e mulheres que usavam as áreas comuns para todo tipo de
coisa. Abuso, negligência e misturar-se com personagens desagradáveis, era
um fato fazia parte da vida cotidiana dos cortiços. Kitty agonizava por não
conseguirem deixar o último degrau da sociedade. Seus pais ficariam
horrorizados por viverem agora entre as mesmas pessoas a quem haviam
auxiliado um dia.
Alcançando o seu bolso, ela dedilhou as poucas moedas que tinha. O
magro salário de Martin não ia muito longe e mal comprava comida e
carvão. Ela tentou arduamente não comprar mais do que as refeições
básicas. No entanto, era difícil viver com uma dieta branda de pedaços de
carne, batatas e pão depois de comer bem durante toda a vida.
Na noite passada, ela e Mary baixaram a barra dos vestidos de Rosie e
Clara. Martin precisava de botas novas, uma vez que usava as suas todos os
dias para o trabalho e elas mostravam seu desgaste. Ela se preocupava
incessantemente com a falta de dinheiro e com a incapacidade de encontrar
trabalho.
Connie sugeriu que as crianças trabalhassem nos moinhos ou nas
fábricas, mas Kitty recusou. Ela não teria isso em sua consciência. As
crianças mais novas não precisariam se escravizar em condições perigosas
enquanto ela respirasse. Ela estava determinada a melhorar a vida das
crianças, mas a tarefa se mostrou mais difícil do que pensava
inicialmente. Deu graças por ter Connie. Kitty estremeceu ao pensar em
como eles estariam agora, se não fosse ela.
Abruptamente, Kitty parou. Um homem esbarrou nela por
trás. Ignorou o comentário rude dele enquanto olhava para as costas de um
homem alto e loiro. Rory. Ele estava na barraca na próxima fila. Levantou a
mão, pronta para chamá-lo, quando ele se virou. O estranho olhou
diretamente para ela, seu rosto não era o do irmão.
Kitty deu um passo atrás e abaixou a mão. Seu coração parecia bater
contra as costelas. Ela mordeu os lábios para parar as lágrimas. Sua
decepção mostrou o quanto ela sentia falta dele. Onde ele estava? Estava
em segurança? Onde morava? Ela não recebeu nenhuma notícia dele, mas
ele estava constantemente em sua mente.
Ela sacudiu sua cabeça. As lágrimas não resolveriam nada. A raiva
instalou-se no lugar da angústia. O fato de ele desaparecer sem fazê-la saber
se estava bem, a deixou irritada e alarmada. Quando ele desse as caras,
ouviria duras críticas ao seu comportamento irresponsável.
— Cuidado aí, moça! – Um rapaz gritou com Kitty quando ela
tropeçou nele e no seu carrinho de madeira cheio de cenouras. — Podia ter
me derrubado com todas as minhas compras. – Ele lutou para manter o
carrinho-de-mão de pé.
Kitty pediu desculpas, mas, ignorando-a, ele continuou o seu caminho.
Um risinho vindo da direita chamou-lhe a atenção.
Uma velha curvada sentada atrás de uma barraca de roupas de
segunda-mão. — Eu teria gostado de vê-lo ser mandado para o inferno.
Assentindo, Kitty se virou.
— Ei, você aí!
Olhando para trás, Kitty franziu o cenho de surpresa quando a mulher
a chamou. Toda vez que passava pelo mercado, ela se certificava de sorrir
para os donos das barracas, na vã esperança de que eles lhe oferecessem um
emprego. Indo mais para perto, ela distraidamente pegou as peças de roupa
empilhadas no alto da mesa, não querendo demonstrar sua ansiedade.
— Você se chama Kitty, não é?
— Sim.
— Parece estar à procura de trabalho.
— Sim. – Kitty cruzou os dedos atrás das costas para dar sorte.
— Se importaria de ficar nesta barraca por um pequeno trocado?
— O que exatamente quer que eu faça? – Ela não queria ser usada pela
velha, mas a chance de ganhar um pouco de dinheiro era maravilhosa.
— Apenas me venda mercadorias, só isso. Não é difícil fazer isso. –
Um ataque de tosse severa assolou a mulher, fazendo-a lutar para respirar.
Horrorizada com tanta angústia, Kitty correu para o fundo da barraca e
viu uma jarra de água e uma caneca. Ela serviu uma bebida para a senhora.
— Sim, obrigada por isso. Foi por isso que te perguntei sobre ficar
aqui. Tem dias que mal consigo sair da cama. – A velha tropeçou enquanto
se levantava.
Kitty estendeu a mão para apoiá-la. — Eu vou ajudá-la com a
barraca. Apenas me diga o que preciso saber.
Após cinco minutos de instrução, Kitty atendeu seu primeiro cliente
com a velhinha assistindo. Algumas peças de vestuário eram de boa
qualidade, enquanto outras não passavam de trapos. As pilhas caíam sobre a
mesa sem ordem. Os clientes resolviam o que queriam e geralmente
deixavam as roupas ali amontoadas.
A velha deu um passo à frente. — Meu nome é Martha
Sedgewick. Você é próxima de Connie Spencer, não é?
— Sim, somos amigas.
— Minha saúde não está boa. Não vou durar mais um inverno aqui
com essas condições.
— Vou trabalhar duro para a senhora.
— São seis dias por semana. Menos aos domingos. Todas as manhãs,
irá ao meu armário na antiga construção ao final do mercado. Recolherá as
roupas em um carrinho de mão, montará a barraca e trabalhará até às seis e
meia da noite. No final do dia, deverá guardar tudo no armário novamente.
— E o meu pagamento?
— Oito xelins por semana.
Kitty concordou. Não era uma fortuna, para os padrões de ninguém,
mas pelo menos era dinheiro.
Martha colocou um dedo artrítico no rosto de Kitty. — Acho que
também não poderá me roubar. Eu posso ser uma velha doente, mas não sou
burra. – Ela caminhou para longe, encurvada e tossindo.
Kitty se acomodou atrás da banca e ficou olhando os comerciantes que
passavam. Ela finalmente conseguira algum trabalho. Um sorriso bobo não
saía do seu rosto.
O vento soprou, e o dia ficou frio. No entanto, o mau tempo não
afugentou os compradores que tinham apenas dez dias antes do Natal para
fazer todas as suas compras.
Kitty não parou um segundo de atender clientes. As mulheres
vasculhavam as peças na esperança de encontrar uma boa saia ou uma bela
blusa para o feriado especial. Afastavam as roupas de criança procurando
calças ou jalecos.
Por volta das duas e meia da tarde, uma pausa nos clientes significou
que Kitty finalmente pôde se sentar no banquinho envelhecido de Martha
para descansar os pés doloridos.
— Bem, eu acho que pode tomar isso. – A dona da barraca à direita de
Kitty passou para ela uma xícara de chá preto fraco e uma fatia de pão com
bacon pingando.
— Obrigada. – O estômago de Kitty retumbou em resposta e ela
corou. — É muita gentileza.
— Eu sou Iris Nettlesmith. – Ela indicou sua tenda. — Eu vendo
utensílio domésticos e peças.
— Prazer em conhecê-la, sou Kitty McKenzie.
Iris olhou-a de cima a baixo. — Você não é do nosso tipo, é,
moça? Fala como gente elegante.
Kitty engoliu em seco. — Moro em um porão de um prédio residencial
em Walmgate, Sra. Nettlesmith. Acho que agora isso me faz uma de vocês.
Iris riu. — Bem, moça, se trabalhar tão duro como fez esta manhã,
estará tudo certo da minha parte.
Às seis horas, Martha Sedgewick veio mancando de volta à banca. Ela
olhou para a lata de dinheiro surpresa. — Esteve ocupada.
— Sim. – Kitty disse, esperando que a velha mulher ficasse
satisfeita.
Iris dirigiu-se a elas. — O rosto adorável de Kitty e a maneira
agradável de falar, faz com que as pessoas comprem mais do que querem, e
elas nem se dão conta disso.
Martha espreitou à volta da banca e acenou com a cabeça. — Suponho
que sim.
— Então vai vir todos os dias? – Kitty ficou aliviada. Começou a
colocar a roupa no carrinho de mão, doíam-lhe os pés.
— Não, menina, eu faço isso. Vá para casa.
Ridículas lágrimas embaçaram sua visão. — Obrigada, Sra.
Sedgewick. Não se arrependerá de ter me contratado, prometo.
Capítulo Cinco

NO DIA SEGUINTE, Kitty correu para o mercado antes mesmo de Max e


Martin partirem para o armazém. Na luz prateada do amanhecer, ela abriu a
trava da porta. Pacotes grandes, empilhados com todos os tipos de materiais
de segunda-mão, alguns danificados, enchiam o lugar. Levou um tempo e
escolheu as melhores peças. Olhando em volta, franziu o cenho para a
bagunça do depósito. Obviamente, os caixotes não eram separados há
meses. Em vez disso, alguém jogou cada nova remessa de roupas em cima
dos outros caixotes. Um forte desejo de ficar e organizar as coisas a fez
apertar as mãos em sinal de frustração. No entanto, ela tinha uma barraca
para montar e, se não se apressasse, Martha pensaria que não ela não havia
vindo.
Seu segundo dia se mostrou tão estafante quanto o primeiro, e mais
uma vez ela almoçou de pé.
Durante o dia, ela e Iris conversaram e riram. A sensação de bem-estar
e alegria de Natal ecoou por todo o mercado.
Quando Martha chegou à noite para pegar o dinheiro das vendas do
dia, ela assentiu em aprovação pelo esforço de Kitty.
Kitty parou para dobrar e guardar as roupas. — Podemos falar
rapidamente antes da senhora ir, Sra. Sedgewick?
— Sim.
— Será que... – ela respirou fundo. — Seria possível eu organizar a
tenda de alguma forma? – Ela perguntou cautelosamente.
— Como assim? – Martha franziu as sobrancelhas.
— Bem, acho que se a barraca parecesse mais arrumada, mais pessoas
gostariam de vir e dar uma olhada nela. Isso atrairia as pessoas.
Martha apontou o dedo para ela enfurecida. — Só está aqui há dois
minutos e está tentando me dizer como fazer?
— Não, não, por favor, deixe-me explicar. – Ela desejou ter mantido
sua boca grande fechada. — Estou simplesmente tentando melhorar a tenda,
o que, por sua vez, lhe trará mais dinheiro.
Iris, ao ouvir a conversa, aproximou-se e cutucou Martha. — Nunca
antes arrecadou esse tanto de dinheiro em dois dias, então ela deve ter algo
nessa bela cabeça. – Iris cruzou os braços sobre o peito ossudo.
Martha coçou o queixo. — Sim, bem, acho que não faria mal, mas
estou lhe dizendo, se tudo isso significar uma queda nos clientes, então,
você está fora. – Martha a encarou duramente antes de voltar a contar seu
dinheiro.
Iris balançou a cabeça e piscou para Kitty.
Depois que Martha partiu, Kitty empacotou tudo, pegou o carrinho de
mão de madeira, deu boa noite a Iris e aos outros clientes e o levou até o
estoque. Lá dentro, acendeu uma vela em um suporte que pegou emprestado
de Iris. Seu brilho suave fez a sala parecer mais quente do que realmente
era. Kitty tirou o casaco e as luvas e começou a tirar as roupas dos caixotes.
Em pouco tempo, seis montes cada vez maiores a cercavam – roupas
de homens, mulheres, meninos, meninas e bebês. Roupas arruinadas se
transformavam em fardos de pano vendidos a meio centavo o quilo.
Kitty perdeu a noção do tempo enquanto organizava. A porta bateu,
ecoando na sala fria, e ela quase saltou de seu corpo.
Um homem de aparência decadente, com cabelos oleosos aparecendo
sob um boné sujo, estava parado na porta. Ele usava uma jaqueta verde suja
e uma calça marrom que parecia nunca ter visto água e sabão.
Ele sorriu, revelando vários dentes perdidos. — O que temos aqui,
então?
Endireitando, ela levantou a sobrancelha em desprezo. — E o senhor
quem seria?
— Eu ia lhe fazer a mesma pergunta, Senhorita. – Seus pequenos olhos
redondos se estreitaram. — Eu tenho todo o direito de estar aqui. Eu
trabalho para a Sra. Sedgewick. Então saia.
— Martha nunca me disse que iria contratar alguém. Qual é o seu
nome, então?
— Isso não é da sua conta. – Ela olhou para ele e atravessou o espaço
vazio. Ele parecia inofensivo, mas bloqueou a única saída.
Coçando a cabeça debaixo do boné, ele olhou ao redor. — Meu nome é
Kip. Estou prestes a deixar suas pilhas de roupas ainda maiores.
Kitty levantou o queixo em desaprovação. — O que você disse?
Kip sorriu antes de desaparecer na escuridão do lado de fora apenas
para voltar alguns minutos depois carregando uma caixa de roupas. Ele
despejou sem cerimônia aos pés dela.
Olhando das roupas para Kitty, ele riu. — Como achou que Martha
conseguia todo esse estoque? Ele não chega aqui sozinho.
Ela se abaixou e olhou através das novas adições, todas as saias e
blusas femininas em muito bom estado. Ela levantou uma linda blusa azul.
As roupas desta caixa eram de melhor qualidade que as outras. — Comecei
a trabalhar para ela há dois dias.
— Como está o velho pássaro?
— Não muito bem. É por isso que estou trabalhando na barraca dela.
— Por que diabos está aqui a essa hora da noite? – Ele se encostou nas
portas e pegou seu cachimbo e tabaco no bolso do paletó.
— Tentando arrumar a bagunça. Acho que a barraca pode parecer
melhor com um pouco de organização.
— Sim, bem, a pobre menina está indo além de suas obrigações – Kip
murmurou, enquanto a fumaça branca e amarela flutuava em sua cabeça.
Houve um movimento atrás de Kip, e Kitty viu a grande figura de Max
entrar na fraca luz de velas.
— Kitty? – A voz de Max ecoou por cima do ombro de Kip, fazendo o
homem mais jovem soltar o cachimbo da boca.
Ela o tranquilizou com um sorriso. — Estou bem.
Max passou por Kip. — Nós estávamos preocupados. Eu vim procurá-
la.
— Lamento incomodá-lo. Eu não pretendia demorar tanto tempo. –
Kitty deu um tapinha em seu braço. — Eu fiz o suficiente por um dia.
— Trancarei a porta quando terminar. – Kip se afastou da porta para
deixá-los passar.
Ela fez uma pausa. — Como sei que posso confiar em você?
Ele riu. — Se eu não entregar as mercadorias, não sou pago.
— Elas não são roubadas, são?
Kip fez uma cruz sobre o coração e piscou. — Juro pela alma da minha
mãe.
Tomando o cotovelo dela, Max a levou para fora e sussurrou: —
Duvido que ele tenha mãe.
Rindo, Kitty, cansada, voltou para casa.
FLOCOS DE NEVE flutuavam na brisa, caíam no chão e, em
segundos, derretiam. O sol, embora fraco, brilhava entre nuvens fofas. As
crianças, sendo crianças, queriam neve no Natal.
Kitty preferia que não nevasse, enquanto estava de pé atrás da banca,
olhando para aquele cenário com orgulho, antes de voltar sua atenção para
um cliente.
Iris, com uma xícara de chá na mão, olhou em volta e a viu enrolar
uma calça de menino em papel pardo e amarrá-la com barbante. — Martha
não acreditará quando vir por si mesma – ela repetiu pela enésima vez pela
manhã.
Kitty deu o pacote ao cliente, pegou o dinheiro e agradeceu. Virando-
se para Iris, ela sorriu. — Estou feliz que tenha gostado. As pessoas estão
vindo para olhar. – Ela pegou uma saia que não havia sido escolhida,
dobrou-a cuidadosamente e a colocou novamente na pilha.
Ela passou bastante tempo naquela manhã arrumando a bancada. Com
a ajuda de Iris, conseguiu encontrar uma espécie de fio e o enfiou na frente
da tenda. Lá, ela pendurou as melhores roupas. Ao longo da parte de trás da
barraca e embaixo dos suportes, ela amarrara os vestidos das meninas e os
xales atraentes para as mulheres. Em cima da mesa, colocou fileiras de
roupas dobradas, começando a arrumação pelas roupas dos homens na parte
de trás e depois diminuindo de tamanho para os bebês, na frente. Os clientes
regulares perceberam a transformação geral e não resistiram em se
aproximar para dar uma olhada adequada.
No final do dia, Martha contou o dinheiro.
— Está feliz com as mudanças? – Ela esperava que Martha ficasse
satisfeita.
— Sim.
— Tenho mais algumas ideias, se quiser ouvi-las.
— Pode fazer o que quiser. As vendas aumentaram em relação aos
Natais passados. – Martha disse a ela sem erguer os olhos.
— Estou satisfeita com isso. – Kitty sorriu. — Só que para as outras
ideias, precisará gastar um pouco de dinheiro.
Com isso, a cabeça de Martha se levantou. — Como assim gastar
dinheiro?
— Gostaria de obter melhores estandes para pendurar as roupas e
alguns bons cabides. Eu pensei que poderíamos pendurar vestidos dentro da
baia na parte de trás para que as mulheres possam vê-los por completo.
Talvez nós...
— Agora espere um minuto! – Martha bateu a tampa da lata. — Eu sei
que tem um passado de muito dinheiro, mas suas maneiras extravagantes
não valem por aqui. Quem você acha que tem dinheiro nos bolsos para
gastar em vestidos bonitos que cabem em cabides?
Kitty, preocupada por ter impulsionado Martha longe demais,
permaneceu quieta. Ela não queria perder o emprego um dia antes do Natal
e, especialmente, depois de todo o seu trabalho duro. Ela esperou até a outra
mulher recuperar o fôlego, depois pediu desculpas.
Martha virou-se murmurando e pegou a lata. Ela abriu e tirou algumas
moedas e depois fechou a tampa novamente. Voltando para Kitty, ela
estendeu a mão.
— Aqui está o seu dinheiro.
Com o coração afundando, Kitty aceitou o dinheiro. Depois de uma
segunda olhada na quantia, percebeu que Martha havia lhe dado muito. —
Martha, aqui tem doze xelins.
— Sim, está certo.
Kitty olhou do dinheiro em sua mão para Martha. O terror a sufocou.
— Perdi meu emprego?
— Perdeu o emprego? – Martha franziu a testa. — Do que está
falando? Claro que não. Como se saiu bem, ganhou um bônus de Natal e
pode comprar as roupas que deseja para as crianças.
Kitty fechou os olhos brevemente em alívio. — Obrigada.
— Vejo você em alguns dias. Bom Natal. – Martha acenou para Iris,
que ouvia a conversa e depois se afastou para a casa.
A escuridão do inverno desceu com outra rajada de neve.
Rapidamente, Kitty guardou as roupas. Outros donos de barracas fizeram o
mesmo, enquanto gritavam Feliz Natal uns aos outros.
— Bem Iris, eu encerrei o dia. Quero chegar em casa para ver as
crianças. – Kitty carregou o carrinho de mão. Separou uma blusa azul de
lado, pretendendo que fosse o presente de Natal de Connie. Connie usava
sempre as mesmas poucas peças de roupa semanalmente. Nunca gastou
dinheiro consigo mesma.
— Pegou algumas roupas para as crianças?
— Não, não quero ser gananciosa. Acabei de selecionar uma blusa
para minha amiga, como agradecimento por toda a ajuda dela.
— Escute moça, Martha não oferecerá bônus novamente até o próximo
Natal, se ela durar até lá. Então, faça o que precisar enquanto tiver a chance.
Kitty mordeu o lábio. — Acha que ela está assim tão doente?
Iris assentiu. — Sim, eu acho. Seu peito está muito ruim e ela não
atravessou o inverno inteiro ainda. – Iris se aproximou. — Se eu fosse você,
moça, veria se ela a deixa comprar essa barraca. – Iris ergueu as
sobrancelhas. — Coloque algo no papel em breve, caso contrário estará sem
emprego.
No caminho para casa, a cabeça de Kitty ponderou sobre as palavras
ameaçadoras de Iris. Pensou sobre elas durante a noite enquanto ajudava as
crianças a colocarem correntes de papel coloridas ao redor do porão. Iris
estava certa e ela precisava agir, mas como poderia comprar a banca? Todo
o dinheiro dela e de Martin era utilizado para viver. Não havia nada
reservado para o futuro.
Max conseguiu arrumar uma pequena árvore de Natal para eles, e as
crianças a decoraram. Embaixo, eles colocaram os pequenos presentes que
Kitty havia comprado.
— Parece um pouco triste essa noite, moça. Algo está errado? –
Connie perguntou, segurando Rosie no joelho.
— Estou bem. – Kitty serviu outra xícara de chá. Ela não queria contar
a Connie seus medos sobre Martha e a barraca e estragar o humor da noite.
Além disso, podia estar preocupada sem motivo algum.
Agora era rotina para Max e Connie descer todas as noites para
compartilhar uma xícara de chá com ela e as crianças. De fato, Connie
passava quase todo o tempo no porão.
Durante o dia, ela ficava com Mary e os pequenos, ensinando-os sobre
a vida nos cortiços e mostrando a Mary como fazer jantares com pouco.
Nos fins de semana, se o tempo estivesse bom o suficiente, eles levavam as
crianças para passear e brincar.
— Sei que deve ser difícil, é seu primeiro Natal fora de casa –
sussurrou Connie, sem deixar os outros ouvirem.
— Sim, mas vamos sobreviver. – Kitty mexeu o chá. — Quero que as
crianças sejam felizes e que não se baseiem nas festividades de seus outros
natais. Sentimos falta dos nossos pais e da irmã Davina. No entanto, poderia
ter sido muito pior se não a tivéssemos conhecido.
— Não, você teria conseguido. É mais forte do que pensa. – Connie
afirmou para ela.
Ela deu um abraço amoroso em Rosie e depois deixou a menininha se
ajeitar para ir olhar a árvore de Natal. — Eu posso dizer honestamente,
moça, você fez a mim e ao Max o casal mais feliz de York. Não consigo
imaginar a vida sem vocês nela. Minha vida era tão solitária antes de vocês
chegarem, e eu nem sabia disso.
Kitty pegou a mão dela e sorriu. Connie nunca tinha falado de maneira
tão íntima com ela antes.
A amizade deles crescia cada dia mais, e Kitty estava agradecida por
ela, assim como Connie, ela nunca havia conhecido um amigo de verdade.
— Para nós, este Natal será o melhor que já tivemos – continuou
Connie.
— Nossos natais estavam sempre cheios de barulho e visitantes –
recordou Kitty, — e sabe, eu nunca os apreciei realmente. Nós nunca
tivemos um Natal assim, com todos reunidos e crianças ao redor da árvore
na manhã de Natal. Oh não, minha mãe consideraria isso um fracasso. Ela
sempre convidava metade dos amigos para o dia de Natal e a outra metade
para o dia seguinte. – Kitty deu de ombros e suspirou. — Nós, crianças,
geralmente éramos deixados de lado em favor dos convidados. Mamãe
nunca percebeu que estava nos tratando dessa maneira. Ela pensava que,
enquanto o berçário estivesse cheio de brinquedos, ficaríamos felizes, mas
eu nunca fui.
— É engraçado como duas vidas podem ser tão diferentes, mas tão
iguais – murmurou Connie, olhando para as brasas de fogo.

O DIA DE Natal amanheceu frio e chuvoso.


Kitty jogou as cobertas para baixo e vestiu o casaco, colocou os pés
em um velho par de chinelos e caminhou até a lareira. Brasas piscavam
entre as cinzas.
Cuidadosamente, ela colocou pequenos pedaços de madeira, soprando
suavemente até que pegasse fogo.
Satisfeita com o fogo, colocou a chaleira para ferver e a frigideira ao
lado. Quando as crianças saíram cambaleando da cama, as chamas lambiam
a parte de trás da chaminé e um delicioso cheiro de bacon frito perfumava o
porão.
— Podemos abrir nossos presentes agora? – Clara perguntou, olhando
seu café da manhã. — Não, vamos esperar Connie e Max descerem. – Kitty
se inclinou para beijá-la na bochecha. — Há água quente na tigela perto do
fogo. Lave-se e ajude Rosie a se lavar também.
Mary arrumou suas camas. — Joe, pode ir até a torneira e pegar mais
água, por favor?
Joe suspirou dramaticamente. — Isso pode esperar?
— Não. – Mary dobrou um cobertor. — Quanto mais cedo fizer, mais
cedo abriremos nossos presentes.
Kitty sorriu enquanto preparava o chá. Depois de viver assim por seis
semanas, eles estavam lentamente aceitando a mudança. É certo que, a
princípio, as crianças esperavam que tudo voltasse a ser como antes e viver
sem servos havia sido uma mudança desagradável, mas agora haviam
assimilado que esse era o seu modo de vida por enquanto. Se Rory ainda
morasse com eles, teriam três salários entrando. Com três salários,
poderiam deixar o porão e alugar quartos em outro lugar. Diariamente, ela
esperava que ele batesse na porta e, humildemente, pedisse perdão. As
crianças sentiam falta de seu belo irmão, e não recebiam nenhuma palavra
dele. No entanto, além disso, a revolta superava a dor.
Durante toda a semana, ela acreditou que ele retornaria no Natal,
apenas para ficar por cinco minutos. No entanto, a cada dia, sua esperança
diminuía um pouco mais. No entanto, não adiantava insistir nessas coisas.
Falar sobre ele se tornara um assunto tabu.
Ela suspirou e olhou para a porta, esperando que ela se abrisse e Rory
ficasse ali. Ele viria hoje - era Natal. Kitty olhou para o relógio. Ainda
havia tempo.
A voz estridente de Max enquanto descia os degraus, causou um
rebuliço entre as crianças. Com grande emoção, eles abriram a porta para
ele e Connie. Com um berro que quase fez o teto subir, ele os abraçou antes
de içar Rosie no ar. Em seguida, os levou a cantar canções de Natal
enquanto colocava pequenos pacotes debaixo da árvore.
Kitty rindo, desviou de Max e seus irmãos para pegar a mão de Connie
e admirar a blusa azul que lhe dera no dia anterior. — Feliz Natal. Está
adorável. – Ela beijou a bochecha de Connie e sorriu quando a outra mulher
corou.
— Sim, obrigada, moça. Feliz Natal. Agora, estou com o ganso
cozinhando no andar de cima, vai demorar um pouco. Vou subir e colocar
os legumes mais tarde. Vai à igreja hoje?
— Er... Não, na verdade não. Sempre íamos no Natal e na Páscoa, mas
na maioria dos domingos, mamãe e papai levantavam-se um pouco tarde
devido ao fato de chegarem em casa no início da manhã, das suas atividades
sociais. Eu penso que seria um pouco hipócrita assistir apenas às vezes. –
Kitty deu de ombros. — Receio não ter feito muito esforço desde que eles
morreram.
— Deixa pra lá. Max e eu também não estamos tão próximos de Deus.
Eu perdi minha fé há muito tempo.
— Preciso me esforçar mais, pelo menos pelas crianças.
Connie fungou. — Aparentemente, Deus nos perdoa, os fiéis mais
fracos.
— Tem certeza? – Ela franziu a testa. — Ele pode pensar que eu não
mereço me juntar a Ele.
— Ah, moça, você colocou essa barreira. – Connie riu.
Ouvindo aquilo, Max sorriu. — Essa foi a melhor, minha querida.
Vamos rir o dia todo.
— Então – anunciou Kitty. — Acho que é hora de abrirmos os
presentes.

RAPIDAMENTE, AS FÉRIAS terminaram. O novo ano de mil e


oitocentos e sessenta e cinco inaugurou o mau tempo; a neve caía e se
acumulava em espessas camadas. Os veteranos disseram que achavam que
este inverno seria terrível e que o clima da cidade parecia refletir isso.
Pessoas xingando e insultando uns aos outros substituíram o “Feliz Natal”.
No amargo frio, os temperamentos queimavam. Parecia que ninguém tinha
uma palavra gentil para dizer a alguém.
Juntas, Kitty e Iris estavam sentadas atrás de suas barracas, aquecendo
as mãos na frente de uma pequena fogueira acesa todos os dias dentro de
um grande balde de ferro. Metade do balde era cortada e a outra metade
tinha buracos. A engenhoca básica afastava o pior do frio.
Como o comércio caiu devido ao clima miserável, Kitty teve mais
tempo para pensar em Rory.
Ele não apareceu no Natal, decepcionando a todos. Seu coração
endureceu em com relação a ele, por sua falta de consideração. Ela não
podia acreditar que ele fosse tão egoísta.
No final da primeira semana de janeiro, Kitty precisava de mais
casacos para vender. Apertando-se para se aquecer, ela esperou até Martha
terminar de contar as moedas na lata.
— Martha, estamos com poucos lenços e casacos. – A tosse estridente
da velha a deteve e ela correu para ajudá-la.
— K... Kip está chegando amanhã – disse Martha entre tosses. Ela foi
para longe, curvada e ofegante.
Kitty balançou a cabeça. Marta ficava cada dia mais doente.
— Falou com ela sobre tenda? – Perguntou Iris.
— Não, ainda não. – Kitty suspirou. — Falarei com ela em breve.
Na manhã seguinte, Kitty percorreu a neve até o mercado. Ela odiava
como as coisas cobertas de neve se chocavam nela se não deixasse suas
saias suspensas e andasse com cuidado. Alguns comerciantes agrupados
acenaram para ela e depois olharam para longe. Ela escolheu o caminho das
frutas espremidas congeladas, contente que pela primeira vez o cheiro de
frutas maduras não se espalhava por todo o lugar.
Mais perto do armazém, ela viu que a enorme porta estava aberta. Um
alarme fez seu coração disparar.
Apressando-se pelas pedras geladas, Kitty derrapou até a porta. Ela
olhou para o espaço que, ontem à noite, estava cheio de caixas abauladas.
Uma onda de medo formigou em suas costas.
Alguém as havia roubado.
Kitty se deteve no local por um momento, sem saber o que fazer. Ela
mordeu o lábio e implorou à mente para pensar direito. Pelo canto do olho,
ela notou alguém vindo em sua direção.
Iris puxou o braço de Kitty e a empurrou para o depósito, fechando a
porta atrás delas.
— Íris!
— Ouça-me. – Iris exigiu quando Kitty começou a tagarelar. —
Martha está morta.
As palavras a atingiram como um golpe físico. — O quê? Ah não.
— Eles a encontraram na noite passada. Me deparei com eles em pé ao
seu redor quando eu estava no caminho de casa. Liguei para o médico e,
uma vez que chegou, eu fui pra casa. Mas consegui pegar isso. Iris colocou
a lata de dinheiro da banca em suas mãos.
Kitty deu um passo atrás, horrorizada. — Eu... eu não posso pegar
isso.
— Agora, ouça e pense – Iris balançou o ombro de Kitty. — Isso é
tudo que conseguirá – porque um cara chamado Kip veio e quando
descobriu que ela estava morta, pegou todas as roupas.
E disse que tudo pertencia a ele. Então, agora você não tem nada. Nem
emprego. – Kitty desmoronou. — Eu sabia que algo iria acontecer. Eu podia
sentir isso. Era bom demais para ser verdade. – A miséria brotou dentro
dela, minando suas forças.
— Eu disse para que colocasse algo no papel, não disse?
Ela assentiu miseravelmente.
Iris se inclinou para mais perto. — Eu tenho uma ideia, se quiser ouvi-
la?
— Sim?
— Em algum lugar da casa, Martha escondeu todo o seu dinheiro.
Acho que você deveria tentar. – Os olhos de Iris se arregalaram de
entusiasmo.
Kitty se afastou como se tivesse sido atingida. — Eu nunca poderia
fazer isso! Isso seria roubar.
Iris a sacudiu novamente. — Se não fizer, alguém o fará. A casa dela
será ocupada antes do anoitecer.
— Sim, bem, essas pessoas terão isso em sua consciência e
provavelmente serão apanhadas também.
Iris bufou e caminhou até a porta. Abrindo-a, ela olhou por cima do
seu ombro. — Eu falei sobre isso porque achei que poderia usá-lo para as
crianças, só isso.
Atordoada, Kitty voltou para o porão. O frio penetrou em suas botas,
congelando os dedos dos pés, mas essa era a menor das suas preocupações.
No topo dos degraus do porão, ela viu Connie e Mary levando as
crianças para as lojas.
Connie pegou o braço dela. — Querida, o que você está fazendo em
casa?
— Martha morreu. A barraca não existe mais. As roupas sumiram. –
Kitty se sentou à mesa sem tirar o casaco ou as luvas. Ela jogou a lata de
dinheiro sobre a mesa. Isso lhe causava repulsa.
Connie, sentindo seu desespero, acenou para Mary ir sem ela. Depois
que as crianças se foram, Connie acendeu o fogo e pôs a chaleira para
ferver. — Sinto muito, querida. – Ela colocou xícaras de chá na mesa. —
Histórias de má-sorte são mais do que comuns nesta parte do mundo.
— O que devo fazer, Connie? – Kitty cruzou os braços sobre a mesa.
Tentou engolir as lágrimas, mas a emoção era grande demais, e abaixou a
cabeça para chorar.
— Não, querida, não esmoreça. – Connie deu um tapinha nas costas
dela. Algo vai aparecer. Você ainda conta com Martin e sabe que Max e eu
ajudaremos.
— Estou cansada de lutar – ela murmurou entre soluços. — Eu não
posso mais fazer isso.
— Teve um contratempo, moça, todos nós temos. Sei que é difícil para
você, não está acostumada, mas lutar é o que fiz durante toda a minha vida.
Estará bem novamente em pouco tempo.
Kitty se levantou. — Não quero estar bem de novo. Quero ir para casa.
– Ela abriu bem os braços. — Eu odeio esse porão. Eu odeio meus pais por
arruinarem minha vida e odeio Rory por nos deixar. – Soluços rasgaram sua
garganta. Ela não conseguia respirar.
Connie levantou-se e a abraçou. — Eu sei, querida, eu sei.
Finalmente exausta, Kitty permitiu que Connie a sentasse de volta.
— Sinto muito. – Kitty se desculpou
Connie censurou. — Que tolice. Não deve se arrepender agora. – Ela
empurrou a xícara para mais perto. — Tome uma bebida, querida.
Kitty apertou a mão dela. — O que eu faria sem você e Max?
— Bem, não estamos planejando ir a lugar algum, moça. – Connie deu
um tapinha na mão dela.
Capítulo Seis

KITTY ESTAVA SENTADA à mesa lendo a seção de empregos no


jornal, como fazia toda semana, há um mês. Uma forte queda de neve
forçava as crianças a ficarem dentro do porão. Perto do fogo, Connie e
Mary amarravam meias enquanto ouviam Clara e Joe revezando-se na
leitura de páginas em voz alta de Robinson Crusoé. A seus pés, Rosie
brincava no tapete com uma boneca de pano.
Um estampido soou na porta. Todos pararam para olhar um para o
outro. — Quem bate à nossa porta? – Joe disse, abaixando o livro.
De pé e ajeitando automaticamente as saias, Kitty colocou a mão no
cabelo, um hábito arraigado desde o nascimento, e foi abrir a porta.
Um cavalheiro alto estava nos degraus do porão. Ele usava um casaco
longo feito de lã do preto mais profundo. Nenhum chapéu adornava sua
cabeça e flocos de neve reluziam em seus brilhantes cabelos preto-azulados.
— Boa tarde.
Olhando fixamente, Kitty inclinou a cabeça. — Boa tarde.
— Estou à procura de uma Srta. Kitty McKenzie. Foi-me dito que ela
morava nessa... rua.
— Eu sou ela.
De dentro do casaco, ele puxou um rolo de papéis e os entregou a
Kitty. — Entrego esses documentos em nome da senhora Martha
Sedgewick, falecida.
Atordoada, Kitty hesitou em pegar os papéis em sua mão. Sua
experiência com documentos no passado nunca fora gentil. — O... o que
são?
— Uma cópia de sua última vontade foi feita pouco antes do
Natal. Nela, ela afirma que não tem parentes e deixa todos os seus bens
mundanos para a senhorita.
Kitty olhou para ele. Seus lindos olhos azuis-centáurea, franjados com
grossos cílios pretos, olhavam para ela e quando ele sorriu, seu coração
bateu contra as costelas. Seu corpo formigava de tanta agitação. Não tinha
certeza se era por causa dele ou pelas notícias que acabara de lhe dar, mas
por algum motivo suas pernas tremiam.
Atrás dela, Connie se levantou. — Eu sou a Sra. Spencer. Se
importaria de ficar em pé junto ao fogo por um minuto? O clima está
terrível.
Ele olhou ao redor do porão antes de olhar de Connie para Kitty. Ele
franziu a testa, mas assentiu. Se ele ficou surpreso ao encontrar alguém que
vivia em tais condições, fez bem em não comentar sobre isso.
— Gostaria de tomar uma xícara de chá? Temos leite e açúcar. – Ela
olhou Kitty discretamente, sua expressão mudou de perplexidade para um
sorriso caloroso. — Uma xícara de chá seria muito bem-vinda. Obrigado.
Kitty apontou para a mesa e escondeu as mãos no colo para disfarçar o
tremor. Ele cheirava a alguém maravilhosamente limpo e fresco. O
colarinho branco, rigidamente engomado, reluzia diante da escuridão do
porão. Seu estômago apertou, e ela teve vontade de apenas se sentar e fitá-
lo para sempre. — Por favor, sente-se, senhor? – Ela olhou para ele.
— Perdoe-me, meu nome é Kingsley. Benjamin Kingsley.
— Era advogado de Martha?
— Não. No entanto, o advogado dela entrou em contato com minha
família sobre os seus assuntos. – Ele estudou as crianças e seus arredores.
Kitty supôs que ele se questionava sobre o passado deles, mas era
educado demais para perguntar.
— Então, é da família de Martha, Sr. Kingsley? – Connie averiguava
mais profundamente, enquanto derramava água fervente no bule.
Kingsley sorriu. — Não, embora tenhamos uma conexão com
ela. Veja, há muito tempo, ela era... a... amiga do meu avô. Quando ele
estava no leito de morte, prometi que a ajudaria caso ela precisasse. Ela
nunca pediu auxílio e, por isso, pensei que o mínimo que podia fazer era
garantir que sua vontade fosse atendida adequadamente.
Connie bufou. — Bom Deus, eu não teria pensado em Martha do tipo
amante.
— Connie! – advertiu Kitty, embora as informações a atordoassem
também.
— Está tudo bem. – Kingsley sorriu. — Eu também não pensaria nela
assim, mas dizem que ela era muito bonita quando jovem. Obviamente,
chamou a atenção do meu avô.
— Por que ele não se casou com ela? – Mary murmurou, sempre
romântica.
— Porque, eu tenho vergonha de dizer... ele já era casado.
Com isso, todos ficaram quietos.
Forçando-se a se concentrar, Kitty leu os documentos até Kingsley
interrompê-la.
— Mora aqui há muito tempo?
Ela olhou para cima. Seus traços bonitos começaram a fazer seu
estômago tremer de um jeito que ela não conhecera antes. Era como se a
inteligência a tivesse abandonado e seu corpo assumisse o controle. — Mais
de três meses.
Ele assentiu. Por um instante, um olhar de simpatia apareceu em seu
rosto bonito. — É muito diferente do que estava acostumada?
Ela não pôde deixar de sorrir. Eles não se pareciam com alguém que
sempre viveu aqui? Às vezes achava que sim. — De fato.
Kingsley se levantou e olhou para ela. Seus olhos escureceram e seus
lábios se curvaram em um sorriso de orelha a orelha. — Devo ir agora.
— É claro – ela concordou, mas por dentro, seu coração disse que não,
ainda não. Ele era seu tipo, e por um pouco mais ela quis fingir que ainda
pertencia ao mundo dele.
Ele se virou para Connie e entregou-lhe a xícara. — Muito obrigado
pelo chá, Sra. Spencer. – Ele se encaminhou para a porta.
Joe chegou primeiro e abriu para ele. — Tem um casaco como meu pai
costumava ter.
Ele parou para colocar a mão na cabeça de Joe e riu. — Então seu pai
deve ter um bom gosto, rapaz.
— Ele tinha. Ele era médico.
— Sério? – Kingsley franziu a testa, como se estivesse pensando.
Kitty puxou Joe para ela. — Chega, Joe. Que o cavalheiro estava de
saída.
Benjamin Kingsley pegou a mão dela e curvou-se. — Boa tarde Srta.
McKenzie.
— Boa tarde Sr. Kingsley, e obrigada.
— Oh, eu quase esqueci. – Ele remexeu no bolso da calça e tirou uma
chave.
— É a chave de Martha. Depois de coletar o que deseja, eu ficaria
agradecido se você pudesse devolvê-la Jarret e Hunters, Advogados, na
Coney Street.
— Obrigada, eu farei isso. – Ela sorriu.
O olhar dele encontrou-se com o dela. — Se precisar de mim, deixe
um recado na Coney Street.
Kitty engoliu em seco e assentiu, deixando sua imaginação acreditar
que ele sugeria algo mais do que de fato
dizia. Envergonhada por seus pensamentos rebeldes, ela corou e abaixou a
cabeça. O que tinha acontecido com ela? Ela nunca fora do tipo que queria
a atenção exclusiva de um homem. Ela estava agindo como uma tola.
— Fique bem. – Ele levantou a mão em um último adeus a todos, antes
de subir levemente os degraus do porão.
Relutantemente, fechando a porta atrás dele, Kitty se perguntou se o
veria novamente e esperava que sim. Kingsley tinha sido uma lembrança do
passado, vestido à imagem de seu pai, e a presença dele naquele mundo
estranho a havia devolvido à outra vida que vivera, mesmo que por pouco
tempo.
Connie arrumou suas xícaras. — Foi gentil da parte dele ter vindo
pessoalmente. Pessoas como ele raramente mudam seu caminho pelos
outros e nunca entram nesta parte da cidade.
— Sim, é assim mesmo. – Suspirando, ela virou a chave na mão. —
Eu simplesmente não acredito nisso. Quem teria pensado nisso?
— Imagine a velha Martha sendo a amante de um homem rico! – Os
olhos de Connie se arregalaram de surpresa.
— O que é uma amante? – Perguntou Clara.
— Não importa – Kitty disse rapidamente.
— É melhor que vá à casa de Martha antes do anoitecer. – Connie
colocou as mãos nos quadris. — Embora eu duvide que ainda reste muito
agora.
— Eu não entendo por que ela deixou suas coisas para mim.
— Ela sabia que estava em necessidade além de você ser uma boa
pessoa, por isso.
Kitty olhou para a chave novamente. — Eu não acho que posso fazer
isso. É como roubar. Quero dizer... bem, não parece certo escolher os
pertences de outra pessoa. Além disso, eu não a conhecia tão bem. Eu ainda
estou com o dinheiro dela. Certamente...
— Pare com essa bobagem. – Connie foi até a parte de trás da porta,
tirou o casaco fino e velho do gancho e o casaco de Kitty e entregou a ela. –
Ela queria que você ficasse com isso!
— Mas, Connie...
— Oh, vou junto. Você não ganhou nada nesta vida. Trabalhou duro
por ela e ela a está recompensando.
— Eu recebi um salário, – ela protestou.
Connie se adiantou e conduziu Kitty pelos degraus do porão.

MARTHA HAVIA ALUGADO quartos em uma antiga casa grande


transformada em apartamentos, assim como todas as outras casas
georgianas da rua. As casas não apresentavam mais o esplendor de seus
primeiros anos.
A tinta descascava ao menor toque. A maioria das janelas, as que não
estavam quebradas, não tinha nenhum tipo de cortina atrás delas.
Nada mostrava que os moradores tivessem o mínimo cuidado com
suas casas nesta parte da cidade. O lixo se espalhava pela rua, e o vento o
entulhava nos lugares, como ninhos de formigas sujos. Cães e gatos meio
famintos vagavam. De vez em quando, eles irrompiam em lutas e faziam
um barulho hediondo.
Poucas das enormes árvores que um dia alinharam orgulhosamente a
rua, restaram, muitas delas foram cortadas para fabricar lenha. O resto
estava deformado e quebrado, seus galhos mais baixos desaparecidos. Até
mesmo a neve, encrostada em profundas camadas nas paredes, parecia
encardida na obscuridade da escuridão do inverno.
Kitty hesitou quando se aproximaram do prédio, pouco à vontade em
entrar na casa da mulher morta.
Um estrondo alto quebrou a quietude do final de tarde. Quando ecoou,
um grito assustador veio de algum lugar atrás das paredes cobertas de
fuligem.
— O que diabos foi isso? – Connie sussurrou, agarrando o braço de
Kitty.
— Vamos voltar. – Kitty virou-se para ir embora. No último mês, ela
andara pelas ruas todos os dias procurando trabalho, mas sem sucesso, e
estava ficando cada vez mais difícil sobreviver com o escasso salário de
Martin. No entanto, nada que Martha possuísse fazia valer a pena colocar a
si mesma ou a Connie em perigo.
— Não. Estamos aqui agora, vamos continuar com isso. – Connie
abriu o caminho para o corredor.
Kitty suspirou e, juntando suas saias pretas, a seguiu.
Os números nas portas indicavam que elas deveriam subir as
escadas. Quando chegaram ao patamar seguinte, viram que algumas das
portas não tinham números.
Connie, pegando o touro pelos chifres, como sempre, bateu na
primeira porta.
Uma mulher, segurando uma criança no quadril, respondeu. — Sim?
— Estamos atrás da casa da velha Martha. – Connie fungou.
— Ela morreu.
— Sim, nós sabemos disso. – Connie bufou. — Queremos ir à casa
dela. Sabe onde fica ou não?
A mulher levantou a criança mais alto e apontou para a porta oposta.
— Muito obrigado. – Connie acenou para a mulher, tomou o cotovelo
de Kitty e puxou-a para o outro lado.
Nervosa, Kitty colocou a chave na fechadura e abriu a porta. O quarto
escuro cheirava a mofo. Uma lareira e um fogão se alinhavam na parede
oposta. Uma porta à esquerda dava para um quarto pequeno e sem
ar; continha uma cama de ferro e uma cômoda velha.
Connie abriu cada uma das quatro gavetas e encontrou algumas peças
de roupa.
— Bem, a cama e as gavetas virão a calhar. – Connie aspirou o ar
novamente. — Sabe, acho que ninguém esteve aqui.
— Será que tinham alguém de olho no lugar? – Elas voltaram para a
sala principal para procurar mais rigorosamente.
Kitty apontou para um sofá de crina completamente imundo,
parecendo bem usado. — Não vamos levar isso.
Uma pequena mesa redonda estava no meio da sala com apenas duas
cadeiras. Na parede, pendia uma pintura de uma pequena cabana situada
entre árvores no campo. Kitty gostou e tirou-o, deixando um contorno em
forma de quadrado de uma cor mais clara do que o resto da parede
manchada de fumaça
— Ela não tinha muito, tinha? – Kitty colocou a pintura sobre a mesa.
Connie vasculhou alguns armários perto da lareira. Ela achou um
serviço de chá em porcelana fina com um belo padrão de rosas. — Olhe
aqui. Este é um conjunto atraente.
— Ah, sim, isso é adorável, muito melhor que o nosso. – Ela nunca se
acostumaria com a louça feia que usavam no porão.
— Este gabinete é o que você precisa para todas as suas coisas. –
Connie passou as mãos sobre a superfície de madeira do gabinete. – Não
acredito que ainda está tudo aqui – acrescentou, incrédula.
— Está aqui – disse uma voz da porta, — porque um almofadinha
disse que todos nós seríamos presos se tocássemos em alguma coisa.
Girando ao redor, Connie e Kitty encararam a mulher do outro lado do
corredor. Ela se apoiou no batente da porta com o bebê a seus pés.
— Bem, o que me surpreende é que você tomou nota disso –
murmurou Connie com um bufo.
— Meu marido já cruzou essa linha. Eu não vou me juntar a ele. A
mulher deu uma risada triste. — Além disso, os homens mantiveram seus
olhos abertos na casa. – Sem dizer mais nada, ela pegou o bebê e voltou
para sua própria porta.
— Eu ainda me sinto como se eu estivesse roubando – Kitty
murmurou, fechando a porta atrás da mulher.
— Eu lhe disse, ela queria que você ficasse com tudo. Ela sabia que
estava lutando e que tinha que sustentar uma família.
— Mas eu mal a conhecia.
— Bem, deve ter passado uma boa impressão nesse pouco tempo.
Kitty foi até a cozinha e pegou alguns dos potes pendurados em
ganchos acima dela. Eles seriam úteis. Em uma prateleira à direita havia
alguns itens de comida: um frasco de passas e uma pequena garrafa de
picles, além de uma placa de mármore na qual se via um pedaço de queijo
cheirando terrivelmente mal e um pouco de carne salgada. De fato, ficou
triste ao ver que uma mulher da idade de Martha tinha acumulado muito
pouco ao longo de todos esses anos.
Ela ouviu Connie conversando no outro cômodo e foi investigar. No
quarto, Connie virou a cama de lado e bateu nas tábuas do chão.
— O que está fazendo?
Connie recostou-se em seus quadris. — Ela tem de ter dinheiro
escondido em algum lugar.
— Oh, Deus do céu. Eu me sinto como um ladrão de túmulos. Abaixe
a cama agora mesmo! Nós já vamos. Eu já peguei o suficiente. – Ela virou
para ir embora.
Connie a seguiu. — Eu estou te dizendo que vale a pena procurar um
pouco.
— Não.
— Moça, você vai precisar de tudo o que está aqui.
Kitty virou-se para encarar Connie. — Por que tem tanta certeza de
que ela tem algum dinheiro escondido? Ela foi uma mulher que vendeu
roupas de segunda-mão em uma barraca a vida toda! O que a faz pensar que
ela tem hordas de dinheiro em algum lugar?
— Porque faz sentido, é por isso! Iris Nettlesmith tem uma barraca ao
lado de Martha há quarenta anos. Ela sabe que Martha fez bons negócios ao
longo dos anos, mas nunca se soube que tenha gasto muito. Ela nunca teve
família para sustentar. Então, o dinheiro deve ter ido para algum lugar.
— Eu duvido.
Connie colocou a mão na cabeça e suspirou. — Quem sabe, talvez o
avô de Kingsley tenha lhe dado dinheiro? Não fará mal algum olhar agora,
não é?
— Mais cinco minutos e depois vamos para casa e esquecemos tudo. –
Kitty tirou o casaco. Ela foi para a outra sala e começou a pressionar as
tábuas do chão. Connie puxou a cama e depois procurou compartimentos
secretos na cômoda e no armário. Depois de uma hora empurrando e
cutucando, virando e pegando qualquer coisa que não estivesse pregada,
elas desistiram.
— Eu te falei – disse Kitty, através da poeira que elas haviam
levantado no quarto.
Connie bateu com o punho na mesa. — Está aqui em algum lugar, eu
posso sentir.
Kitty riu. — Vamos lá, está quase escuro.
Ela pegou o casaco e as luvas apoiadas nas costas do sofá.
Uma das luvas caiu no chão e, curvando-se para pegá-la, algo chamou
sua atenção. O material do sofá era verde-oliva escuro, mas o tecido na
parte de trás parecia mais novo que o resto. A costura em torno de toda a
parte traseira do sofá estava em uma tonalidade diferente.
Intrigada, ela se ajoelhou e puxou um fio solto. Rapidamente, o fio se
soltou e o material caiu longe do sofá. Kitty olhou para Connie, que assistia
fascinada. Ela levantou a aba do tecido, o que revelou a estrutura de
madeira e, no fundo, uma caixa pregada em uma pequena prateleira na base.
— Oh meu Deus. – Kitty prendeu a respiração quando ela estendeu a
mão e levantou a tampa da caixa. Com cuidado, ela pegou uma sacola de
veludo. Dentro dela veio o tilintar suave de moedas se
esfregando. Entregando a bolsa a Connie, Kitty se esticou novamente e
continuou fazendo isso até que a caixa estivesse vazia.
Elas ficaram à mesa e olharam maravilhadas para trinta e duas
sacolas. — Eu... eu nunca esperei encontrar nada – Kitty sussurrou.
— Velha idiota. – Connie resmungou. — Ela vivia como uma pobre e
tinha tudo isso.
— Oh, Connie, não posso aceitar esse dinheiro. Não está certo. – A
pilha de sacos a deixou enjoada. Ela olhou desconfiada para a porta,
esperando que a polícia viesse a qualquer momento e a prendesse por
invadir o local.
Connie deu-lhe um suave golpe com o dedo em riste. — Escute, moça,
eu sei que não se sente bem com isso. Mas pense sobre isso, quem mais vai
ficar com o dinheiro? Ela não tem parentes.
Sem palavras, Kitty sacudiu a cabeça.
Connie pegou a primeira bolsa, abriu-a e colocou as moedas na
mesa. Em pouco tempo, as moedas foram empilhadas em pequenas
torres. Cada saco continha dez soberanos de ouro, totalizando trezentos e
vinte.
— Oh, moça – Connie sussurrou com os olhos arregalados.

CHAMAS LAMBIAM O carvão na lareira. Os peitos das crianças soavam


levemente enquanto dormiam pacificamente em suas camas.
Kitty estava sentada à mesa olhando para os sacos de moedas a sua
frente. Eles mudariam sua vida, e ela não tinha certeza se estava pronta para
que isso acontecesse novamente. Inacreditavelmente, o porão havia se
tornado sua casa e, embora estivesse úmido, as paredes cobertas com lodo e
os ratos tentassem comer tudo à vista, eles se acostumaram. As crianças
brincavam na rua do lado de fora e faziam amizade com as outras crianças.
Joe e Clara frequentavam uma escola próxima. Mary trabalhava duro para
manter o porão limpo e confortável, além de aprender a cozinhar, assim
como Martin trabalhava solidamente para ganhar um salário para eles. Eles
também tinham a amizade e o apoio dos Spencers. Ela estava com medo de
deixar a relativa segurança do porão para enfrentar o desconhecido
novamente.
— Qual é a melhor opção agora?
Kitty afundou na cadeira e suspirou profundamente. O dinheiro
significava que eles poderiam viver em um lugar agradável e vestir roupas
de boa qualidade novamente. Com um gerenciamento cuidadoso, eles
poderiam viver bem por um ano ou dois.
Sim, encontrar o dinheiro foi uma dádiva de Deus, mas de alguma
forma, isso não lhe deu o prazer que deveria. As dúvidas a dominaram,
jogando-a em um poço de desespero. Todo o processo de arrumar as malas,
afastar-se e recomeçar a encheu de pavor. Para onde eles iriam? Ela não
queria ter que fazer tudo aquilo de novo. Fora do porão, o mundo era frio,
solitário e assustador.
O carvão deslocou-se na lareira. Kitty bocejou e estendeu-se para
pegar o jornal despretensiosamente. Folheando as páginas, ela mal leu uma
palavra. O cansaço deixou seus membros pesados, sua mente lenta, mas ela
sabia que não iria dormir, não adequadamente.
No meio do jornal, algo a impediu de virar a página. Um título de
história saltou para ela, Contos da Colônia, Kitty leu o que se seguiu. Ao
terminar o artigo, ela apoiou o jornal no joelho e olhou para as chamas na
lareira. Em algum lugar nos recônditos de sua mente, uma lembrança lhe
ocorreu.
Seus pais organizaram um jantar. Um hóspede acabava de voltar das
colônias do sul da Austrália e da Nova Zelândia. Durante toda a noite, ele
contou histórias de suas aventuras e Kitty lembrou como ele mantinha todo
mundo fascinado por suas histórias, especialmente ela. Nos dias seguintes,
ela passou horas na biblioteca lendo livros sobre esses países, esperando
poder um dia visitá-los. O relato do cavalheiro ainda a intrigava.
Os sinos do relógio tiraram Kitty do seu devaneio. Ela colocou o papel
sobre a mesa e depois abasteceu a fogueira para passar a noite. Ao colocar o
guarda-fogo e soprar as velas, sua mente ganhou vida com planos. Quando
subiu na cama, a decisão estava tomada.
Capítulo Sete

— AUSTRÁLIA – MAX E Connie falaram com sotaque.


Kitty tomou um gole de chá. – Sim, um novo começo para todos nós.
— M... mas por que lá? – Connie balbuciou. — Por que ir para o outro
lado do mundo?
— Porque acho que seria bom para nós. As crianças poderiam se sair
muito bem em um novo país. Há muitas oportunidades para eles lá.
— Com o seu dinheiro, pode dar uma boa vida às crianças aqui –
argumentou Max.
— Eles podem viver melhor lá, Max. O ar é fresco e os dias,
quentes. O que eles têm aqui além de neblina, umidade, cinza e fumaça de
mil chaminés?
— Pode se mudar para o campo para tomar ar fresco.
Kitty ouviu as risadas de Clara e Joe surgirem do lado de fora. — Eu
tenho pensado muito sobre isso nos últimos dias. Peguei emprestados livros
da biblioteca e li muitas informações sobre a colônia.
Max suspirou e foi até a porta. — Vou levar as crianças para passear
no rio. – Ele olhou para Kitty. — Está errado o que está fazendo. Não tem
ninguém lá para cuidar de vocês como tem aqui. – Depois de içar Rosie
para o alto de seus ombros, ele saiu.
Kitty o ouviu chamar Clara e Joe. Ela olhou para Connie. — Sinto
muito.
— Não, moça, você deve fazer o que acha certo. – Seu sorriso mais
parecia uma careta. — Deus escolheu não me dar filhos e tem sido uma
pílula amarga. Eu sei que isso me incomoda muito. – Ela deu de
ombros. — Eu não queria ter amizade com você, mas o que estava morto
dentro de mim ganhou vida no dia em que te conheci.
— Oh, Connie.
— Esses últimos meses foram os mais felizes da minha vida. – Connie
fungou. — Foi um prazer cuidar dos meninos. – Levantando-se de sua
cadeira, ela colocou sua xícara de chá, do aparelho de chá de Martha, no
balde de lavar e se encaminhou para a porta.
— Está indo embora? Eu pensei que iríamos jogar charadas mais
tarde?
— Er... eu tenho coisas a fazer – resmungou Connie e subiu os degraus
do porão.
Durante toda a conversa, Mary sentou-se na cama, remendando uma
das meias de Martin. Seu rosto bonito estava perturbado, os olhos tristes. —
Eles não têm ninguém além de um ao outro e de nós.
— Eu vou encontrar os outros. – Levantando-se, Kitty vestiu o casaco
e as luvas. Precisava de tempo para pensar. A reação dos Spencers a
esvaziou. Não tinha sido uma decisão fácil de tomar, mas um novo começo
em um novo país a enchera de emoção.
Do lado de fora do prédio, algumas crianças vizinhas hesitavam. A
neve fraca caíra novamente da noite para o dia, mas logo se transformara
em lama por causa dos muitos pés que a pisavam. Como era domingo, as
ruas da cidade estavam estranhamente silenciosas. Nuvens pesadas no céu
ameaçavam trazer mais neve e, sabiamente, a maioria das pessoas decidiu
ficar dentro de casa, onde estava quente e seco.
Kitty percorreu as ruas olhando as vitrines das lojas. Ela olhou para
seu reflexo no vidro e franziu a testa. Ela não parecia velha, mas em alguns
dias, como hoje, ela se sentia uma anciã. A culpa pela mágoa que ela causou
aos Spencers a atormentava. Às vezes, era muito difícil ser
adulto. Ela percebeu o quão simples sua vida anterior tinha sido, na qual as
únicas decisões que tinha que tomar eram que roupas vestir todos os dias e
qual seria seu entretenimento. Não estava preparada para lidar com
problemas sérios. Sua preceptora não a ensinara a lidar com a situação de
sem-teto, sem um tostão ou como garantir o futuro de sua família.
Kitty se virou e saiu do meio-fio para atravessar a rua.
— Saia da frente! – Com reflexos rápidos, o condutor da carruagem
puxou as rédeas e levando seus cavalos para uma parada deslizante, a
poucos centímetros dela. Os olhos dos cavalos brilhavam, e bufos de vapor
de suas narinas flutuavam no ar gelado.
O cocheiro saltou do banco e correu para agarrar o freio do cavalo
mais próximo. — Está bem, senhorita?
Ela assentiu, atordoada.
A porta da carruagem se abriu. O condutor girou para falar com o
homem que desceu na rua. — Está tudo bem, senhor. Foi por pouco, mas a
jovem está bem. Não está, senhorita?
Kitty olhou nos lindos olhos azuis do Sr. Kingsley. Ela colocou as
mãos nas bochechas e as sentiu esquentar mesmo através das luvas. —
Foi... foi totalmente minha culpa. Eu... eu não estava... eu não vi... – Ela
engoliu em seco. — Eu... eu não estava prestando atenção.
Ele a pegou pelo cotovelo. — Tem certeza de que está bem, Srta.
McKenzie?
— Lembrou-se do meu nome. – O nervosismo de Kitty só aumentou,
por ela parecer uma tola. ” Qual era o problema com ela? “
Ele sorriu. — Sim, eu lembro do seu nome.
Ela olhou para ele por alguns momentos antes de Kingsley a guiar em
direção à carruagem. — Também me lembro onde mora e acho que deveria
ser levada para casa para tomar um gole de conhaque ou algo assim. Está
tremendo.
Kingsley falou com a segurança dos nobres e Kitty não estava em
condições de argumentar sobre sua independência naquele momento, mas
queria rir da menção dele ao conhaque, como se tivesse algo assim!
Ela permitiu que ele a guiasse para a carruagem e, uma vez sentada, ele
gentilmente colocou um cobertor em volta dela. Ele tomou uma grande
liberdade novamente, mas ela não disse nada porque estar tão perto dele
tornava impossível para ela dizer algo. Achava que não poderia continuar
perto dele se a cada vez isso significasse essa batida descompassada do seu
coração. Certamente isso não era normal.
Na curta jornada de volta à casa, ela lutava contra suas novas
emoções. A presença dele perturbou seus sentidos. Do seu lugar, suas
longas pernas quase tocavam as dela. A pele dela formigou com a
proximidade dele. O olhar sorridente de Kingsley a fez recuperar o fôlego.
Embora ele não falasse, ela se lisonjeava ao pensar que estivesse
interessado nela. Olhou para seu vestido e, consternada, observou que havia
uma pequena mancha nele. Mortificada, a cobriu com as mãos e torceu para
que ele não tivesse notado.
Parando ao lado da pequena janela do porão, Kingsley a ajudou a sair
da carruagem. Esperava que a deixasse ir sozinha, mas ele a acompanhou
até a porta. Seu cavalheirismo a fez vibrar de emoção.
Mary pulou quando eles entraram. — Oh, boa tarde, Sr. Kingsley. –
Ela olhou para Kitty como que pedindo explicação.
— Prazer em conhecê-la, Srta. Mary. Sua irmã sofreu um acidente e eu
a trouxe para casa.
Mary olhou para ele e tornou o olhar a Kitty. — Ficará para uma xícara
de chá, senhor?
— Sim, sim, obrigado. – Kingsley estava sentado à mesa, dobrando
suas pernas para que Mary não tropeçasse enquanto ia e voltava do fogo
para a mesa. — Está se sentindo melhor, Srta. McKenzie?
— Estou, obrigada. – A companhia dele a emocionou e deixou
nervosa. Seus olhos azuis-claros absorviam tudo, e ela conteve o desejo de
arrumar os cabelos. Ela o vislumbrou sob seus cílios enquanto ele sorria
para Mary quando ela lhe deu uma xícara de chá. O maxilar direito e o nariz
reto pareciam esculpidos diretamente da estátua de um deus grego. Seu
coração bateu desconfortavelmente e sua boca ficou seca.
Ela viu Kingsley mover seus dedos longos e finos para adicionar
açúcar a sua xícara e, em seguida, agitá-lo com uma colher de chá. Levou a
xícara à sua boca bem esculpida e tomou um gole do chá. Por cima da
borda, olhou para ela. Kitty corou efusivamente e desviou o olhar.
Da mesa, ele pegou um dos livros sobre a exploração precoce da
Austrália. — Está lendo isso? – Ele abriu o livro.
— Sim. Estou coletando o máximo de informações possível sobre o
país.
— Está? – Ele parecia confuso.
— Sim, estamos pensando em nos mudar para lá.
Os olhos dele se arregalaram. — Uma coincidência interessante. Eu
também. Pretendo sair no próximo mês para passar um ano ou mais lá.
Seu estômago revirou. Abaixou a cabeça para esconder sua alegria. —
Estou planejando emigrar. Minha família e eu desejamos construir uma
nova vida ali. Já esteve lá antes?
— Não, eu nunca. Mas meu pai, sim, e ele deseja que eu comece um
negócio de importação e exportação lá. Ele diz que é um lugar muito
interessante, embora muito quente no verão.
Eles conversaram por mais de uma hora sobre seus planos e o que
buscavam alcançar no futuro. Ela ficou extasiada enquanto ele falava,
observando suas expressões e maneirismos, enquanto Mary lhes dava mais
chá.
A chegada das crianças e Max interrompeu a
conversa. Instantaneamente, o diálogo que havia entre eles se foi
substituído pelo som de crianças apressadas para contar as histórias do que
tinham visto. Kitty os acalmou, lembrando-os de seus modos. Ela também
apresentou Kingsley a Max, e os dois homens apertaram as mãos. Kingsley
não se incomodou com o cavalheiro alto e poderoso, agradando Kitty
imensamente. Estava ficando claro para ela que Benjamin Kingsley não era
um homem comum e ela gostava muito disso.

— EU ODEIO ESSA tarefa – Mary murmurou, esfregando as roupas


com sabão.
— Sei que é difícil – apaziguou Kitty, fingindo não ver suas mãos
vermelhas e ásperas.
— Não podemos pagar alguém para fazer isso?
— Não. O dinheiro é necessário para coisas mais importantes. Somos
capazes de lavar nossas roupas.
Mary endireitou as costas e olhou para ela. — Tem certeza de que ir
para a Austrália é a coisa certa a se fazer?
Kitty parou de torcer um dos vestidos de Clara. — Não concorda?
Mary deu de ombros. — Eu irei aonde quer que vá, sabe disso.
— Mas não quer ir para a Austrália?
— Eu... eu só quero que tenha certeza de que isso é o melhor
— Acho que nos dará mais oportunidades, mais do que York tem a
oferecer.
— Mas você não sabe ao certo. – Mary mergulhou as roupas de volta
na água. — A Austrália está tão longe.
Uma batida na porta interrompeu a discussão. Kitty a abriu, revelando
o cocheiro da carruagem de Kingsley parado nos degraus. Seu estômago
revirou ao pensar em ver Kingsley novamente. Ela olhou além do cocheiro
para vê-lo.
— Bom dia senhorita. Eu tenho uma carta aqui do Sr. Kingsley. – Ele
passou a ela o papel dobrado. — Esperarei sua resposta lá fora, senhorita.
Fechando a porta com o cotovelo, Kitty abriu o bilhete:

Prezada Srta. McKenzie,


Ao investigar a biblioteca da casa da minha família, descobri uma
pequena quantidade de livros contendo informações sobre a Austrália.
Acredito que eles podem ser de grande utilidade para a senhorita. É com
prazer que faço a oferta para que os examine.
Estendo também meu convite para uma visita à minha casa, conforme
sua disponibilidade. Por favor avise meu cocheiro a data e horário. Ele
estará à sua disposição.
Seu humilde servo, Benjamin Kingsley.

— O que diz o bilhete? – Mary se aproximou de Kitty.


— É um convite para a casa do Sr. Kingsley.
— Oh, que emocionante! Quando vai?
Uma desilusão aguda perfurou seu coração. — Eu não irei.
— Por quê? – Mary franziu a testa.
— Porque o convite é para o uso da biblioteca de sua família, isso é
tudo. Não há menção do Sr. Kingsley estar lá. Ele disse que eu posso ir
conforme minha conveniência e seu cocheiro vai me transportar. Não desejo
visitar a biblioteca dele. – Ela mordeu o lábio, tentando negar os
sentimentos contraditórios que o bilhete produziu. Pensar que ela queria
mais do que apenas livros de Kingsley a assustou.
De que serviria isso?
Sua oferta de livros mostrava apenas seu espírito generoso, mas
também dizia que ele não queria estreitar a relação deles. O desânimo
brotou dentro dela.
— Foi gentil da parte dele. – Mary sorriu, se encaminhando de volta à
tarefa da lavagem.
— Sim...
Mary fez uma pausa. — O que foi? Não achou generoso?
— Claro, mas...
Franzindo o cenho, Mary virou-se para ela. — Mas o quê?
— Nada, eu estava sendo boba. – Ela sacudiu a cabeça, odiando o
sentimento de rejeição. Era ridículo discutir isso, mas ela não
conseguia parar de desejar que o convite tivesse sido mais pessoal.
Os olhos de Mary se arregalaram. — Esperava um tipo diferente de
convite, não?
— O que há de errado nisso? – Ela bufou. — De qualquer forma, isso
não importa. Sr. Kingsley deixou claro que o convite é apenas para livros. –
Depois de colocar a carta em cima da mesa, Kitty saiu para encontrar o
condutor.
Ele estava polindo a carruagem com um pano. — Sim, senhorita?
Ela engoliu sua decepção e sorriu. — Poderia dizer ao Sr. Kingsley
que agradeço a ele por sua oferta, mas, infelizmente, devo recusar. – Ela
voltou para dentro de casa e se pôs a lavar as roupas.

UMA HORA DEPOIS, Benjamin caminhou até os estábulos. Seu cocheiro,


Jenkins, escovava um dos muitos cavalos parados em Kingsley Manor.
— Entregou minha carta, Jenkins?
— Sim senhor, entreguei. Vim procurá-lo, mas a Sra. Kingsley disse
que não deveria ser incomodado.
— Houve uma resposta?
— Sim, senhor. A jovem senhorita agradeceu seu convite, mas não
aceitou.
Benjamin bateu as unhas na porta do estábulo. — Tem certeza que ela
disse exatamente isso?
— Sim, senhor.
Desapontado, ele murmurou seus agradecimentos e se virou. — Er...
senhor?
Benjamin fez uma pausa. — Sim?
— A jovem moça parecia um pouco chateada quando me deu a sua
mensagem.
A carranca de Benjamin se aprofundou. Voltando para casa, ele se
perguntou o que poderia tê-la perturbado. O que havia com ela? Seus
irmãos estavam doentes? Ele deveria ir lá e perguntar? Ele balançou a
cabeça e xingou. Não, ele não podia simplesmente aparecer sem motivo.
Ele chutou os pedregulhos que haviam no caminho dos
estábulos. Havia algo sobre Kitty McKenzie que o mantinha acordado à
noite. Seus encantadores olhos verdes e cabelos cor-de-cobre faziam-no
sofrer. Ela o intrigava tanto que não conseguia pensar em mais nada.
Apesar de seus planos de vida, ele sabia que ela era de uma qualidade
muito superior às jovens que sua mãe apresentava e desfilava diante
dele. Metade delas era burra demais para saber que dia era hoje, e a outra
metade o comeria vivo.
Ele enxergava a oportunidade de ir para o outro lado do mundo como
uma pausa de sua mãe, e os planos semelhantes da Srta. McKenzie apenas
aumentaram seu entusiasmo.
Ele mastigou a unha do polegar. Seu convite falhou. Por quê? A recusa
dela o surpreendeu. Ela não queria mais nada com ele? Ele imaginou que
ela gostava de sua companhia? “Imaginei que ela sentisse o mesmo que
eu...”

KITTY ESTAVA SENTADA perto do fogo costurando uma camisa


rasgada de Joe enquanto Rose brincava aos seus pés.
A porta se abriu e uma corrente de ar frio invadiu quando Connie e
Mary entraram. — Meu Deus, está congelando lá fora. Hoje não vou sair de
novo – resmungou Connie, tirando o casaco. — Maldita neve! Estou farta
disso!
— Joe e Clara chegaram, certo? — Perguntou Kitty.
— Sim, eles chegaram! – Connie balançou a chaleira para ver se havia
água suficiente nela para uma xícara de chá. Mary colocou os pacotes na
mesa e estendeu as mãos para o fogo. — Os lojistas dizem que algumas das
estradas fora da cidade estão completamente intransitáveis.
— Falando em lojistas – assentiu Connie. — Eu estava falando com
Lawson e ele disse que haviam notificado sua loja. — É uma pena quando
pessoas como ele têm de fechar as portas. – De um pequeno saco de papel,
ela deu a Rosie um pedaço de Harrogate Toffee.
— Esse sapateiro está em Petergate? – Kitty segurou a camisa de Joe
na frente dela para que pudesse examinar seu trabalho.
— Sim! Ele disse que estará morando na Nova Zelândia com o filho
agora que perdeu a Shirley. Ela morreu há dois meses. Ele disse que seu
filho é tudo o que resta. Então, ele irá na próxima semana. Parece que todo
mundo está indo para outro lado do mundo. – Connie ergueu as
sobrancelhas para Kitty.
As mãos de Kitty ficaram ociosas quando a conversa da noite passada
com Martin lhe veio à mente. Ele lhe disse que não iria com ela para a
Austrália. Em vez disso, preferia ficar com os Spencers. Ela passou a maior
parte da noite discutindo com ele, para que mudasse de ideia, mas ele se
recusou. Ele disse que gostava de seu trabalho e que em breve haveria uma
chance de ser contratado nos barcos que viajam para cima e para baixo no
país. Martin achava horrível deixar Connie e Max depois de tudo o que eles
haviam feito pela família. Em sua mente, a família estava se dividindo
novamente. Achava que Martin os acompanharia. Seria mais fácil viajar e
criar uma nova casa com um jovem com eles. Ainda poderia fazer isso sem
ele? Ela era forte e não era boba, mas estava tomando a decisão
certa? Poderia deixar Martin e os Spencers para trás? Talvez ela pudesse ter
uma vida melhor aqui em York? E o que dizer de Rory? Ele podia vir
procurá-los. Os pensamentos giravam em sua cabeça. A Austrália seria uma
excelente oportunidade para começar de novo, mas a que custo?
— Kitty! – Mary ficou na frente dela. — Kitty, já lhe perguntei duas
vezes se quer beber alguma coisa.
— Oh, desculpe. Sim, sim, obrigado. – Levantando-se, ela guardou a
camisa de Joe.
— Sabe que se eu tivesse dinheiro, abriria uma loja – disse Connie,
limpando o rosto pegajoso de Rosie com uma toalha úmida e prontamente
dando à criança uma bala de pera.
— Que tipo de loja? – perguntou Mary, colocando as folhas de chá no
bule.
— Oh, eu realmente não sei. – Connie riu. — Talvez uma loja de
doces?
Lentamente, Kitty virou-se para ela, inclinando a cabeça em
consideração e começou a pensar. Muito tempo depois que os outros foram
dormir, Kitty ficou olhando para o fogo. Martin se arrastou para se sentar ao
lado dela. Seu belo rosto jovem exibia uma expressão preocupada.
— Você está bem? – ela perguntou suavemente.
— Me desculpe se te decepcionei.
— Não, não me decepcionou. Fiquei surpresa apenas. Acho que conto
muito com você. – Ela sorriu para ele.
— Não me importo que você precise de mim, de maneira alguma. Eu
apenas sinto que ir para a Austrália não é a resposta. Eu gostaria que
mudasse de ideia, pois sentirei muito a sua falta.
Kitty suspirou e deu um tapinha no joelho dele. — Não tenho certeza
de que ir para a Austrália seja a coisa certa a se fazer, mas sinto a
necessidade de fazer algo, algo que valha a pena. Ficar o dia todo
consertando meias e cuidando de casa não é minha ideia de viver, nem
trabalhar em alguma fábrica suja. Eu pensei que começar uma nova vida em
um novo país com novas pessoas seria um... desafio.
Martin fez uma careta. — Talvez nós não sejamos tão corajosos quanto
você?
— Bobagem!
— Pode fazer algo aqui em York sem precisar ir embora. Sei que o
dinheiro deve ser gasto com sabedoria, mas, para começar, podemos sair
deste porão. Poderíamos facilmente viver em quartos melhores. Isso faria
todos felizes.
— Sim, é verdade. Só que eu ainda seria apenas uma governanta e
cuidadora. Tenho vergonha de mim mesma por querer mais.
— Todos queremos mais, Kitty. – Ele deu de ombros. — Eu quero o
meu próprio barco. Duvido que um dia eu tenha um, mas os sonhos não
machucam.
— Um barco?
— Eu gosto de estar na água.
Pela primeira vez, ela o viu, não como seu irmão mais novo, mas como
um belo jovem. — Quando se tornou tão sábio?
Ele sorriu.
— Eu não poderia ter desejado um irmão melhor.
Martin a abraçou. — Eu me sinto da mesma maneira sobre você.
Logo, ele voltou para a cama, deixando-a fitando o fogo. A pressão
para não ir para o outro lado do mundo estava aumentando. Ela não estava
imune à sensação de perda que todos sentiam deixando os Spencers, Martin
e Rory para trás. Ela poderia fazer isso? Será que ela realmente navegaria
para longe deles e não os veria novamente por anos? Era forte o suficiente?
Capítulo Oito

A BRISA CHICOTEAVA pedaços de papel nas saias de Kitty enquanto


ela passeava ao longo da Petergate, tentando tomar uma decisão que
agradasse a todos. Ir para a Austrália seria uma experiência nova e uma
aventura. No entanto, uma vez lá, eles estariam sozinhos; apenas duas
jovens mulheres e três crianças. A ideia a petrificou, mas ela se recusava a
viver uma vida sem turbulências simplesmente por medo de apostar. Muitas
mulheres fizeram isso, por que ela podia? Não era radical ou desejava
incitar uma nação como Lady Hester Stanhope. Simplesmente queria que
sua vida fosse responsável. Quando fosse uma mulher idosa, queria dizer
que havia feito algo que valesse a pena.
Ela parou em frente à sapataria de Lawson e espiou pela
janela. Sr. Lawson removendo algumas prateleiras com um martelo. Ao
lado dele, estava um homem baixo, cheio de curvas e bem vestido,
gesticulando loucamente. Suas vozes levantadas podiam ser ouvidas através
do vidro.
Quando o Sr. Lawson se virou para tirar outra prateleira da parede, ele
a notou. Antes que ela pudesse ir embora, ele abriu a porta e saiu.
— Está atrás de sapatos? Os que ainda não foram levados estão na
parte de trás. Desça a rua lateral e suba o beco na parte de trás das lojas. Há
um pequeno portão, entre por lá e escolha o que quer nos caixotes – ele
disse em um suspiro, sem lhe dar a chance de responder sua primeira
pergunta.
O outro homem saiu correndo pela porta. — Ouça, Lawson, sou um
homem razoável. Só estou pedindo que esteja disposto a acertar
metade. Não é minha culpa que as outras pessoas tenham desistido no
último minuto! Eles me disseram que iriam assumir a loja esta
semana. Agora, devido a circunstâncias imprevisíveis, sou deixado em
falta. E por contrato você ainda está ocupando o local.
Sua barriga grande se projetava para fora de seu grande casaco,
dominando seu pequeno corpo. Ele tirou um lenço do bolso do colete e
enxugou o rosto vermelho.
— Agora escute-me, Broadbent. Avisei-o há duas semanas e paguei
integralmente. Não pode voltar atrás. – Sr. Lawson era um pé mais alto que
Broadbent. — Não é minha culpa que não tenha ninguém para ficar com a
loja. Talvez se gastasse mais tempo com seus negócios, e não nas mesas de
cartas, faria muito melhor.
Kitty agiu em um momento. — Quanto é o aluguel?
Os dois homens se viraram para encará-la.

A LUA CHEIA brilhava através das finas cortinas de renda da janela do


quarto dos Spencer. Max e Connie estavam na cama acordados, mesmo que
fosse quase meia-noite. Desde o anúncio de Kitty de emigrar para a
Austrália, o relacionamento deles havia mudado. Eles pararam as visitas
noturnas ao porão para tomar chá junto à lareira. Connie parou de ir tanto lá
durante o dia. Como se, de comum acordo, decidissem se afastar da família
McKenzie.
— Acordada? – sussurrou Max, mexendo um pouco o corpo
grande. Os cobertores ondulavam ao luar que os banhava.
— Você terá de acordar em breve, então fica quieto e dorme.
— Não consigo dormir quando sei que está chateada.
— Eu estou bem.
— Não, e eu também não estou. – Apoiando-se no cotovelo, Max se
inclinou sobre ela.
Connie sentou-se contra o estrado da cama. — Sentirei falta deles,
Max. Não posso fingir que não vou.
— Sentirei falta deles também, querida.
— Não podemos ir com eles também? – ela implorou.
Max balançou a cabeça em desespero. — Veja, moça, já passamos por
isso antes. Somos velhos demais para passear pelo outro lado do mundo.
— Não somos tão velhos – declarou Connie com um bufo. — Nós
poderíamos fazer isso, e todos nós estaríamos juntos.
— E o que você acha que eu vou fazer por lá? Eu não teria emprego e
dependeríamos da jovem Kitty.
Connie saiu da cama, jogando o xale em volta dos ombros. — Acho
que haveria mais empregos por lá do que aqui.
— Mas eu já tenho um bom emprego aqui. Além disso, para cada
trabalho que eu mendigar lá fora, haveria mais ou menos uma dúzia de
jovens alinhados diante de mim. Eu não vou desistir de meu emprego ou
desta casa por nada! Metade da Irlanda foi para lá e pra América após a
fome. As pessoas não vão me puxar pelas ruas dizendo: — Aqui tem esse
trabalho, companheiro. – Pense nisso, mulher.
— Fica quieto, seu grande pedaço de pele! – Connie foi até a janela e
mexeu nas cortinas. O quintal abaixo, como todos os outros dos cortiços,
tinha um armário privativo e um varal. Lixo e entulho ocupavam o resto do
lugar. O cheiro que exalava no verão fazia os inquilinos ofegarem. Todos os
pátios convergiam para uma grande praça onde estavam empilhados os
piores resíduos e esgoto. Os figurões que dirigiam a cidade prometeram que
tudo seria levado embora, mas nunca foi. O que os ratos e animais
selvagens não comeram foi deixado para se amontoar e apodrecer. Era
melhor no inverno, quando a neve disfarçava tudo por um tempo. Logo,
porém, o sol do verão transformaria tudo numa pilha fumegante e fedorenta
de sujeira novamente.
Dentro de Connie, cresceu uma tempestade de emoções, implorando
por libertação. Durante trinta e sete anos, ela olhou pela janela. Ela passou a
vida inteira nesta casa, fechou os olhos de seus pais mortos neste
quarto. Ela passou a primeira noite de sua vida de casada aqui
também. Com a maior dor, ela sangrou vários abortos sob esse mesmo teto.
Ela já passou por coisas demais ali.
— Eu odeio esse quintal. Eu odeio esse quarto. E se não formos com
os outros, acabarei te odiando – ela sussurrou na sala silenciosa.
— Connie!
Em segundos, Connie se jogou em seu enorme corpo e o abraçou com
força. — Sinto muito. Eu sinto muito. Eu não quis dizer isso, eu te amo,
sabe disso.
Ele acariciou seus cabelos. — Eu faria qualquer coisa por você, mas ir
para a Austrália é pedir demais. Eu sinto muito.
— Eu sei e tenho sido uma mulher estúpida por amá-los tanto, por
fingir que essas crianças são minhas. – Ela chorou debruçada em seu peito,
finalmente liberando a dor e a tristeza de suportar muito de uma vida dura.

— UMA LOJA... – Connie encarou Kitty. — E sobre ir para a Austrália?


— Eu decidi desistir disso. Eu não quero deixar Martin para trás, ou
você e Max, ou... Rory. – Kitty suspirou. — Mary não estava muito
empolgada com a ideia de ir também.
Connie sorriu tristemente para ela. — Eu sei o que isso te custou,
moça. – Respirando com um alívio óbvio, Connie a puxou para perto e a
abraçou com força. — Estou muito feliz, moça. E... obrigado por pensar em
nós.
Kitty devolveu o carinho, antes de voltar a sorrir. — Então, vai me
ajudar nessa loja ou o quê?
Connie riu. — Sim, é claro. – Ela trouxe Rosie para junto de si. —
Apenas espere até Max ouvir.
Kitty pegou um coche de aluguel na via. Até a frente da antiga
sapataria do Lawson. Ela havia recebido as chaves da loja no dia anterior
para inspecioná-la antes de assinar os documentos necessários no escritório
de Broadbent.
As crianças conversavam animadamente quando Kitty abriu a porta,
mas para ela era agridoce. Ela havia desistido de seus desejos por sua
família. Esse novo empreendimento de ser lojista tinha por objetivo garantir
uma vida melhor. Ela só esperava que tivesse tomado a decisão certa.
Eles ficaram por um minuto olhando em volta. A sala principal era
uma grande praça com um banco comprido e longo de madeira que
atravessava a parte de trás da loja.
Connie deu uma volta. — É grande o suficiente, moça.
Kitty foi até o fim do banco. — Venha por aqui. Isso leva para a sala
dos fundos, que também é de bom tamanho.
Eles a seguiram, parando enquanto ela apontava dois pequenos
depósitos à esquerda. A sala dos fundos corria pela largura da loja. Uma
estreita escada de madeira no outro extremo levava para os aposentos
acima. Havia uma pia de pedra e uma bomba d’água embaixo da janela que
dava para o pequeno pátio do lado de fora.
— Não há muito aqui. – Connie espiou pela porta dos
fundos. — Parece que o pátio é privado, e é o que você deseja.
— Vamos lá para cima – insistiu Kitty.
Eles subiram a escada íngreme e estreita. No topo havia um pequeno
patamar. Uma janela dava para o pátio e um armário pálido percorria uma
parede. Havia apenas uma porta que dava para o patamar. Ao abri-la, Kitty
os levou para um espaço de tamanho adequado.
A área da cozinha ocupava a parede à esquerda. À direita, duas portas
se abriam para pequenos quartos. Ambos os quartos tinham o mesmo
tamanho e forma e cada um tinha janelas amplas que davam para a rua
movimentada abaixo.
— Bem, isso aqui já tem alguns anos e precisa de uma demão de tinta,
mas eu gostei. – Connie assentiu.
— Sim, eu também acho. Obviamente, há trabalho a ser feito. Eu diria
que há muito trabalho, mas seremos capazes de fazê-lo. – Ela ansiava que
esta loja fosse um sucesso, pois era para substituir seu sonho de viajar e se
aventurar.
— O que vai vender? – Mary perguntou.
— Roupas? – Connie passou a mão sobre as paredes para verificar se
havia umidade. – Você se saiu bem com a barraca da Martha.
— Uma loja de chá – anunciou Kitty. — Quero que se torne famosa
em toda a York.
— Então será uma loja de chá de magnatas... – Disse Connie
fungando.
Kitty passou o braço pelo de Connie. — Sim, porque são eles que têm
dinheiro para gastar com um chá. A classe trabalhadora é sábia e toma suas
xícaras de chá em casa, onde isso não lhes custa muito. Eu faliria em um
mês se eu atendesse apenas a eles.
— Sim, suponho que tenha razão.
Na rua, Kitty trancou a porta e mais uma vez ficou olhando para a
frente da loja. Acima da enorme vitrine, havia uma pequena placa
proclamando “Sapataria Lawson”. Em sua mente, ela viu uma grande
placa acima da janela anunciando: “Casa de chá da McKenzie”. Ela sorriu.
Avistou a loja ao lado. Era muito menor e em pior estado de conservação do
que as outras lojas da rua. Negligência mostrada na pintura descascada;
uma rachadura percorria o comprimento de sua grande janela. Os cômodos
acima da antiga loja tinham duas pequenas janelas e novamente um dos
painéis de vidro estava quebrado. De repente, Kitty teve uma ideia.
— Logo estaremos em casa – disse Connie, curvando-se para pegar
uma Rosie cansada. — Tem certeza de que irá ver esse sujeito Broadbent?
— Sim, voltarei em breve. – O grupo se separou e Kitty foi a Nessgate.
Ela subiu uma escada entre duas lojas, para os escritórios de Broadbent,
acima.
Um funcionário chamou sua atenção ao vê-la entrar no escritório. Com
uma reverência nervosa, ele perguntou o que ela fazia ali.
— Srta. McKenzie, estou aqui para ver o Sr. Broadbent. Eu tenho um
horário.
— Sim, claro. Por favor, sente-se, Srta. McKenzie. Perguntarei se o Sr.
Broadbent está pronto para vê-la. – O funcionário curvou-se novamente e
desapareceu por uma porta atrás de sua mesa. Ele voltou rapidamente para
levá-la para outro escritório. Nigel Broadbent sentou-se bem atrás de sua
mesa, obviamente para dar espaço ao seu estômago enorme. Embora não
fosse um dia quente, o suor escorria em sua careca e descia por dentro de
sua gola rigidamente engomada. Ele se levantou quando Kitty entrou em
seu pequeno domínio e acenou para uma cadeira do outro lado de sua mesa.
Ela se sentou ereta e arrumou as saias do vestido preto de luto. Como ela
havia planejado, precisava mostrar a ele que não era uma jovem simples e
sem profundidade. Erguendo o queixo, lembrou-se de como sua mãe
costumava ficar quando estava descontente com os criados e deixou sua
expressão da mesma forma.
Embaralhando folhas de papel, ele se sentou atrás de sua mesa e sorriu.
— Então, Srta. McKenzie, como encontrou minha propriedade?
Kitty ergueu uma sobrancelha. — Na verdade, precisará de muitos
reparos.
— Precisará? Posso garantir que a loja é muito procurada. Eu tenho
clientes...
— Sr. Broadbent. Eu vim aqui hoje para fazer um acordo comercial
com o senhor. O senhor deseja o mesmo? – Ela não deixaria Broadbent ter a
vantagem.
Broadbent puxou o colarinho.
— Parece que eu estava um pouco apressado... er... ontem.
— Oh? A loja e os quartos acima não estão mais disponíveis? – Kitty
escondeu bem sua decepção.
— Não, eu quero dizer sim. Sim, eles estão. No entanto, acredito que
me confundi ao lhe dizer a soma do aluguel.
Ele pegou um lenço e afagou sua calvície. — Receio que seja mais alto
do que mencionei.
Seu odor corporal era bastante avassalador no espaço confinado do
escritório. Ela agarrou sua bolsa e deu um olhar altivo. — Creio que
apertamos a mão na quantia que especificou, senhor Broadbent. Sempre
pensei que o aperto de mão de um cavalheiro fosse sua honra, não é assim?
– O queixo de Kitty se elevou. Seu treinamento de infância em se tornar
uma dama deu a ela um equilíbrio e uma maneira superior que deixava
Broadbent sem palavras. Sua mãe ficaria orgulhosa.
— Er... hum sim, é claro. É algo que talvez eu precise averiguar mais
uma vez... quero dizer o aluguel. – Ele puxou o colarinho novamente.
— Broadbent, acho que estamos desperdiçando o tempo um do outro.
Existem outras instalações para alugar em York. Pedirei informações sobre
elas. Bom dia para o senhor. – Kitty levantou-se de sua cadeira.
— Não, espere! Por favor, sente-se, Srta. McKenzie. – O rosto dele
ficou vermelho. — Estou certo de que podemos chegar a algum tipo de
acordo.
— Se insistir em me tratar como uma tola, senhor, então terminamos
aqui.
Ele começou a suar mais profusamente. — Não, garanto que não
estou! Por favor, sente-se e começaremos novamente. – Uma hora depois,
Kitty saiu do prédio saltando de alegria. Passeando por Nessgate, ela
colocou a mão sobre a boca para reprimir o riso. Que idiota Broadbent foi.
Ela agora possuía os títulos de propriedade não apenas da loja do
sapateiro, mas também da loja menor ao lado. No final, ela não os havia
alugado, mas comprado desde o cadeado, o estoque e até o barril do homem
gordo e tolo.
Ela havia percebido pelas conversas dele que ele precisava de dinheiro
urgente, sem dúvida pelas dívidas de jogo que o Sr. Lawson havia sugerido
e com uma confiança que ela não sabia que possuía, o subjugou até ele
implorar por misericórdia.
Essa nova tendência cruel a surpreendeu. Ela nunca soube que a tinha.
— Srta. McKenzie. – Benjamin Kingsley caminhava pelo outro lado
da rua. Ela parou e esperou enquanto ele atravessava antes de cumprimentá-
lo. Ela mexia nas mangas enquanto, por dentro, seu estômago se contorcia.
— É um prazer vê-lo novamente, Sr. Kingsley.
— Eu estava aguardando para chamá-la, senhorita. Queria lhe trazer
esses livros sobre a Austrália.
O sorriso de Kitty se desvaneceu um pouco.
— Não precisarei deles agora, obrigada mesmo assim.
Ele franziu o cenho. — Posso perguntar por quê? – O coração dela
bateu rapidamente contra as costelas diante da proximidade dele.
— Eu não vou mais para lá. Decidi ficar em York.
— Mas estava tão animada. – Os olhos de Kingsley se arregalaram de
surpresa. — Eu esperava que pudéssemos navegar para lá juntos.
— Acredito que estou fazendo a escolha certa. – Ela desejou que isso
soasse mais convincente. Vê-lo novamente colocou seu corpo em colapso.
— Preciso pensar na minha família primeiro.
— E o que você quer?
— Talvez meu tempo para fazer o que quero chegue mais tarde. – Eles
ficaram um momento olhando um para o outro. Os olhos dele enviaram
mensagens que sua boca não pronunciara. Kitty encontrou palavras secas na
garganta. Ela se afastou.
— Eu devo ir.
— Agora eu sei por que não usou minha biblioteca.
Ela forçou um sorriso. — Sem dúvida, outras pessoas a acharão útil.
— Gostaria de vê-la novamente, se desejar. – Ele pegou a mão dela e
curvou-se sobre ela. Seu olhar nunca deixando o dela. Lá dentro, seus ossos
estavam esmagados.
— Eu... eu gostaria muito.
— Posso levá-la para casa? Minha carruagem está chegando.
Ela engoliu em seco. — Isso seria adorável, obrigada.

— VOCÊ É UMA tola – Connie gemeu para Kitty. — Eu não sei


como faz isso.
Benjamin Kingsley acabava de sair depois de passar quase duas horas
com as mulheres no porão. Elas gostaram de ouvir suas histórias de
infância. Ele as mantinha entretidas com histórias de trapaças que fazia no
tutor e na babá. Kitty se divertira em cada segundo de sua presença. Ela
estava atraída por ele de uma maneira que a excitou e assustou. Ele ouviu
atentamente seus planos para as lojas, fazendo-a sentir como se ele
estivesse preso a cada palavra dela.
— O que quer dizer? – Kitty assumiu uma expressão inocente.
— Bem, para começar, você tinha dinheiro sobrando. Então consegue
convencer aquele sujeito horrível do Broadbent a lhe vender essas lojas no
próximo mês. Agora, tem um cavalheiro andando nas nuvens por você.
— Nas nuvens? Que tolice! Kingsley e eu somos apenas amigos. – Na
verdade, ela esperava que Connie estivesse certa. Ela queria que Benjamin
Kingsley tivesse sentimentos por ela, porque já estava se apaixonando
rapidamente por ele. Não importava se o que ela sentia era amor ou
adoração, ficaria feliz em sentir isso por um longo tempo.
— Hã! Amigos. – Connie sorriu. — Eu vi o jeito que os dois se
olhavam quando não estavam se encarando
Kitty foi até o saco de batatas encostado no canto da lareira e empilhou
batatas na mesa. — Não brinque com isso.
Connie se inclinou para pegar uma faca e uma batata. — Se apaixonou
por ele?
— Sim, acho que sim. Só que eu realmente não sei o que é se
apaixonar, então não posso ter certeza. – Kitty deu de ombros, enchendo
uma panela grande com água do balde. — Estou bastante assustada com o
que sinto. É tudo tão... novo para mim.
— Agora não é hora de ter medo, querida!
— Eu sei, mas conhecer alguém foi a última coisa que pensei que
aconteceria comigo nesse momento.
— Ele pode lhe pedir para que se case com ele e o acompanhe a
Austrália.
— Duvido que isso aconteça.
— Tudo é possível. A menos que ele pense que possa ser amante dele,
como Martha era para seu avô?
Todo o calor foi drenado do rosto de Kitty. — Não, ele não pensaria
isso?
Connie fez uma careta. — Como eu disse, é possível, querida.
— Eu não poderia... – Ela corou quando a imagem de beijar Benjamin
Kingsley passou por sua mente e, em resposta, seu corpo ganhou vida com
impulsos cada vez mais frequentes.
Connie riu. — Não, não importa, eu estava apenas brincando. Acho
que ele está apaixonado o suficiente para querer casamento.
Kitty ficou quieta por um momento, absorvendo as palavras de Connie
e gostando do som delas.
No entanto, ela jogou o pensamento fora e tristemente balançou a
cabeça. — E mesmo se ele me pedisse em casamento, eu o recusaria.
Ninguém quer ir para a Austrália, é por isso que comprei a loja.
— Eles se adaptam, você sabe, e seu casamento mudaria tudo. –
Connie acrescentou sabiamente.
— Talvez sim, mas sou responsável pela felicidade deles e, se eles não
se adaptassem e fossem infelizes, me sentiria culpada por colocar meus
desejos antes dos deles. Eles já sofreram o bastante com a perda de nossos
pais e de sua antiga casa, sem mencionar que moram em um porão e seu
irmão mais velho desapareceu, sem que eu estivesse de acordo com isso.
— Sim, mas...
— Não, eu não devo ser egoísta. É meu dever ajudá-los a se tornarem
adultos decentes, felizes e saudáveis. Essa é a minha prioridade. Além
disso, duvido muito que o Sr. Kingsley me peça para casar com ele.
Imagino que ele tenha muitas damas em sua lista como possíveis noivas.
Então, eu não estou sendo tão virtuosa quanto imagina.
— Absurdo. É uma atitude nobre e fina que os coloque antes de si
mesma, e isso é um fato.
— Bem, nobre ou não, é tudo o que posso fazer se quiser viver em paz
comigo mesma. Eles só agora estão começando a se parecer com seus
antigos eus. Isso é possível, principalmente, porque têm a você e ao Max.
Eu não posso quebrar seus corações, arrancando-os de vocês dois. De certa
forma vocês substituíram nossos pais, e eu não conseguiria fazer as crianças
se despedirem de mais dois pais.
— Não, moça, eu não conseguiria imaginar minha vida toda sem
vocês. – Connie fungou quando a voz dela foi coberta de emoção. Ela
rapidamente começou a descascar as batatas.
Para cobrir o constrangimento de Connie, Kitty pegou mais vegetais
do saco. — Acha que Max concordará em mudar sua vida para a parte de
cima da loja?
— Sim, ele vai. Ele fará qualquer coisa para mantê-los em York.
Kitty descascou e cortou um nabo. — Eu tenho ótimos planos.
Derrubar a parede entre as duas lojas aumenta muito a área para mais mesas
e cadeiras. Pensei que poderíamos fazer o mesmo lá em cima. Dessa forma,
teríamos uma grande sala de estar. Significa que viveríamos todos juntos
como uma família, em vez de duas residências separadas. O que acha?
— Você não é apenas um rosto bonito, é? – Connie riu antes de se
esquivar de um pedaço de casca que Kitty jogou.
Capítulo Nove

KITTY CAMBALEOU COM o peso do balde cheio no pátio da loja.


Ela largou o balde por um momento para afastar o cabelo dos olhos e
empurrá-lo para trás do lenço. Atrás dela, os martelos dos construtores
ecoaram no beco.
Ela molhou os lábios e provou da poeira. Um olhar sobre suas roupas
revelou que o trabalho árduo da manhã deixara sua marca também. A
sujeira cobria o avental e as saias cinza. Por um momento, a culpa a
invadiu. Ela havia entrado no meio luto muito cedo, mas agora como
membro da classe trabalhadora, acreditava que o costume poderia ser um
pouco alterado para se adequar à situação. As classes mais altas podem
pagar as despesas extras de diferentes roupas de luto, mas ela não podia.
Enquanto Kitty jogava o conteúdo do balde no piso de pedra,
Benjamin Kingsley passava pelo portão que dava para a pequena entrada ao
lado. Água suja espirrou em suas botas de couro polidas. Gotas marcavam
suas calças pretas.
Ela olhou horrorizada para a água em volta das botas dele. — Oh! Oh,
sinto muito.
Ele olhou para baixo e depois para Kitty. Ele piscou. — Então é assim
que serei recebido de agora em diante, é? – Ele sacudiu os dois pés.
— Sr. Kingsley, por favor, perdoe-me.
— Está tudo bem, sério. – Ele sorriu.
— Sinto muito. – Kitty não podia acreditar que jogara água sobre a
única pessoa que queria impressionar. — Suas botas e calças... encontrarei
um pano ou algo assim...
— Não se preocupe com isso. Eles secarão. – Ele descartou o incidente
com um aceno de mão. — Eu vim ver seu novo estabelecimento. – Seus
magníficos olhos azuis brilharam para ela.
Tomando o cotovelo dela, ele a conduziu pelas pilhas de entulho da
construção e para a sala dos fundos. Era difícil para eles falarem com o
barulho dos construtores, então eles ficaram apenas um minuto em cada
cômodo. Do lado de fora no pátio mais uma vez, eles sacudiram a poeira de
suas roupas quando Connie, Mary e Rosie entraram pelo portão lateral.
— Querida, temos pastéis e refrescos – anunciou Connie antes de
perceber que eles tinham visita. — Bom dia, Sr. Kingsley.
— Bom dia, Sra. Spencer, Srta. Mary, e como vai pequena Rosie? –
Ele se inclinou para tocar a bochecha de Rosie.
— Já tenho quase 3 anos – Rosie ergueu três dedos gordinhos.
— Que garota inteligente você é.
Benjamin riu.
Connie sentou-se em uma caixa virada. – Gostaria de um pastel, Sr.
Kingsley?
— Tem o suficiente para todos? – Disse Benjamin encontrando outra
caixa vazia e a virando-a de cabeça para baixo.
— Sim, eu comprei mais. – Connie assentiu para ele.
Eles ficaram sentados em silêncio, saboreando a deliciosa comida e
deixando o sol tocar seu rosto, mesmo que ele contivesse pouco de calor.
— Olhe para isso. – Mary apontou para um narciso-amarelo crescendo
através da pilha de entulho empilhada no canto. Era a única cor brilhante no
quintal sombrio.
— É impressionante ver que a primavera está a caminho – disse
Connie.
— Vou ter grandes vasos e enchê-los de flores para colocar em todo
este quintal. – Kitty tomou um gole de refresco para lavar a poeira da
garganta, lembrando-se dos jardins amados de sua antiga casa e das muitas
horas passeando pelos canteiros e conversando com o jardineiro.
— Temos as mais belas exposições de flores no nosso jardim –
Benjamin esticou as pernas. — Temos o que chamamos de caminho do
bosque. É um imenso bosque de bétulas prata altas e, na primavera, há
exibições em massa de campainhas azuis, campânula-branca e narcisos.
Quando uma brisa sopra através das flores, parecem ondas bonitas e
coloridas, a fragrância é irresistível.
— Parece maravilhoso. – Kitty sorriu quando ele se virou para ela. Ele
possuía uma voz adorável, profunda e rítmica.
— Gostaria de visitar o jardim um dia? – Seu olhar terno a deixou
encantada.
— Sim. Sim, claro. – Alegria irradiou por suas veias. — Isso seria
muito agradável. Obrigada.
Depois de comerem, Connie e Mary entraram para continuar
limpando. Rosie perseguia borboletas no pátio, enquanto Kitty e Benjamin
estavam no portão.
— Eu voltarei amanhã, se você quiser. – Ele não usava chapéu e uma
brisa súbita e fresca soprou seu fino cabelo preto-ébano.
Um imenso desejo de alcançá-lo e tocá-lo consumiu Kitty. — Sim, por
favor, volte – ela sussurrou, mal reconhecendo sua voz, que tinha um nó na
garganta.
Ela segurou as mãos firmemente juntas para que não se desviassem
para o rosto dele. Seus olhares se mantiveram. A qualquer momento, Kitty
tinha certeza de que ele a beijaria. Ela ansiava que ele fizesse isso, sabendo
que seria divino. Era hora de experimentar seu primeiro beijo e ela não
queria ninguém além dele para fazê-lo.
Seus olhos escureceram e lentamente ele abaixou a cabeça. Kitty
suspirou em antecipação, pronta para sentir seus lábios nos dele.
— Pegue a borboleta, Kitty – Rosie cantou para ela, correndo e
agarrando as saias.
O encantamento quebrou, e Benjamin se levantou. — É melhor eu ir. –
Ele pigarreou, fez um aceno e saiu.
Kitty colocou as mãos no rosto quente. Seu coração batia forte contra o
peito.
“Por Deus! Como vou conseguir manter meus sentimentos sob
controle? “

NO INÍCIO DA manhã do sábado seguinte, toda a família se reuniu na


loja para iniciar a enorme tarefa de pintar. Durante a semana, as mulheres
completaram a tarefa colossal de lixar toda a tinta descascada e lavar as
paredes com prontidão.
Fazendo isso eles mesmos, economizou-se muito dinheiro, pois Kitty
aprendeu a rapidez com que o dinheiro era gasto em tais reformas. Seus
braços, ombros e costas doíam como nunca antes, mas em sua exaustão, ela
se sentia orgulhosa de tal conquista.
As paredes, que antes faziam as divisas, foram postas ao chão,
deixando apenas duas colunas substanciais como suporte nas lojas. Uma
lareira de bom tamanho praticamente enchia a parede final. Isso tornaria a
loja muito mais quente e pareceria mais aconchegante no inverno para os
clientes.
— Certo, Martin e Mary, comecem nas paredes de dentro da loja. –
Kitty amarrou seu avental. — Comecem na parede oposta e retornem. Ali
está sua tinta. Eu já adicionei a cor a ela. Certifiquem-se de não pintar os
tijolos ao redor da lareira.
— Quer que eu comece do lado de fora? – Perguntou Max, armado
com tinta, pincéis e panos.
Uma escada já estava encostada na parte externa da loja.
— Sim, por favor, Max. Sabe que a cor será verde-escuro por todo o
lado. Quando estiver seco, faremos as duas faixas acima e abaixo do sinal
vermelho e...
— Eu sei, eu sei. Tinta amarela para o letreiro. Você disse isso cem
vezes nesta semana. – Ele brincou com um tapinha no ombro dela.
— Claro.
Ele acenou para Joe e Clara, que estavam felizes demais e se
divertindo. — Vamos, seus espertinhos. Venham ajudar.
Balançando a cabeça diante das travessuras de Max, Kitty virou-se
para Connie e sorriu. — Por onde quer começar? No andar de cima ou no
andar de baixo?
— É melhor eu ficar aqui embaixo perto da comida, porque trouxe
para mais tarde e, se alguém não ficar de olho, ela desaparecerá se eu
conheço bem Joe McKenzie. – Ela fingiu ser severa, mas não funcionou e
as duas riram.
No andar de cima, Kitty pintou o primeiro quarto, dela e de Mary, de
branco. Enquanto trabalhava, ela pensou em como a semana tinha sido
satisfatória. Obviamente, alguns problemas ocorreram. Um construtor caiu
de uma escada e quebrou a perna. Embora o pior momento foi quando o
capataz da obra lhe deu a conta. Ela descobriu que eles a sobretaxaram em
quase tudo. Somente a intervenção de Kingsley os impediu de roubá-la. Ela
ficou um pouco apreensiva por ter usado quase todo o dinheiro de Martha.
O restante abasteceria a loja de chá. Os quartos no andar de cima
receberiam os móveis dos Spencer e do porão até que a loja começasse a
lucrar.
Como sempre, seus pensamentos se voltaram para Benjamin. Ele a
visitava todos os dias e ajudava da maneira que podia. Contra a vontade
dela, ele pagou por toda a tinta como “presente de despedida”, o que
demonstrou respeito por ela, mas ao mesmo tempo a fez pensar mais sobre
tudo o que ele dizia e fazia. Um amigo gastaria tanto tempo e dinheiro com
ela? Ou ele estava dando a ela dicas de que queria mais do que apenas
amizade? Connie acreditava que ele estava apaixonado por ela, e Kitty
desejou poder estar tão confiante sobre isso, mas e se Connie estivesse
errada? E se Benjamin tivesse apenas amizade em mente? Ela não achava
que poderia ser apenas amiga dele. Toda vez que o via, queria sua atenção
exclusiva, ser queimada por seu toque. Era como se ele tivesse passado
febre para ela e não houvesse cura.
Sua mão de repente ficou parada no sentido do chão. A tinta pingava
sem cerimônia. Ele iria embora em breve. Ela inclinou a cabeça. Como ela
aguentaria?
Às vezes, ela tinha raiva de si mesma por deixar suas emoções
aflorarem demais.
Apaixonar-se por Benjamin tinha sido uma coisa tola de se fazer nesta
fase de sua vida. Seu foco principal tinha que ser acomodar as crianças em
uma vida sem seus pais e sua casa. Ela era egoísta ao pensar em si mesma e
em suas necessidades. O assunto da Austrália não havia demonstrado isso?
Era importante que ela se lembrasse de sua posição, ou seja, a responsável
pela felicidade de sua família.
— Então, é aqui que está se escondendo? – Benjamin ficou parado na
porta, assustando-a.
Ela corou e ficou feliz por ele não conseguir ler sua mente. — Sr.
Kingsley. Como está hoje?
— Bem, McKenzie e você? – Ele entrou na sala.
— Estou bem, obrigada.
Ele olhou ao redor. — Você parece ocupada.
— Sim. Olhe a tinta, ainda está molhada nas paredes. – Ela não sabia
por que de repente estavam agindo como estranhos novamente, mas algo no
modo dele lhe disse que ele não estava de brincadeira. — Algo está errado?
Nenhuma risada iluminou seus olhos. — Eu vou na quarta-feira.
—N... não pode adiar mais um pouco? – Kitty largou o pincel. As
risadas contagiantes de Clara flutuavam pela janela aberta no andar
debaixo. Tudo parecia tão normal, mas por dentro as palavras dele a haviam
quebrado. Claro, ela sabia que ele embarcaria em breve, mas ter um dia real
tornava tudo tão plausível, tão final. Ela olhou para aqueles mágicos olhos
azuis-centáurea que hoje pareciam quase violetas. Connie disse que eles
foram desperdiçados por serem de um homem, mas Kitty discordou.
Emoldurados por seus longos cílios pretos, eles simplesmente a deixavam
sem fôlego.
Os cantos da boca dele se ergueram levemente. — Eu já adiei por três
semanas – ele disse suavemente. — Preciso ir na quarta-feira.
Seu coração parecia alojado em algum lugar na garganta. — Sentirei
sua falta.
— Não tanto quanto eu sentirei sua falta, meu amor.
As palavras “meu amor” a inundaram, lavando a decepção e a tristeza
do ano passado, lavando qualquer dúvida que ela tivesse sobre seus
sentimentos. Ela precisava desse carinho e sua resistência se dissolveu. Ela
atravessou o espaço entre eles, e ele a puxou para seus braços. Ela levantou
o rosto para o dele e deu as boas-vindas ao beijo como se fosse uma tábua
de salvação. Ele apertou os braços, levantando-a do chão. O beijo dele foi
duro, estampando seu domínio sobre ela, mas ela não se importou. A
sensação do corpo dele sob as mãos dela a encheu de um poder capaz de
drogar a mente. O beijo deles se aprofundou, a língua dele passou por seus
lábios e entrou em sua boca. Todos os ossos e músculos doíam de desejo.
Kitty passou os dedos pelos cabelos negros e murmurou contra seus lábios.
Depois do que pareceu uma eternidade, eles se separaram um pouco e
sorriram um para o outro. Kitty se sentiu tão tonta que se perguntou se
cairia se ele a deixasse. Ela não precisava se preocupar, pois Benjamin a
abraçou.
— Me perdoa? – Ele perguntou.
— Pelo quê?
— Por te beijar como um louco apaixonado.
Kitty riu. — Se foi um louco, certamente respondi como uma louca.
Ele juntou-se à risada dela e beijou a ponta do nariz. — Eu te adoro,
Srta. McKenzie.
Sua risada morreu em sua garganta. — Mesmo?
— Claro! Deve saber que eu te amo? – Benjamin deu um beijo em
seus lábios.
— Eu... eu não acreditava que fosse possível.
Ele a segurou pelo braço. — Não tenho o hábito de me comportar
dessa maneira com qualquer pessoa, garanto.
A alegria pulsava em suas veias. Ele a amava. Ela queria chorar de
alegria. — Eu também te amo. Embora nunca tenha me apaixonado antes,
tenho certeza de que é assim.
— Você vem comigo para a Austrália? Posso arranjar uma licença
especial e podemos nos casar antes de velejar ou até casar na viagem. –
Benjamin foi contaminado por seu próprio entusiasmo.
— Oh... eu... – Kitty se afastou, suas palavras a haviam chocado.
Casamento? Com Benjamin? Ela queria, naturalmente, mas tudo
dentro de quatro dias? E a loja e todo mundo? A forma repentina de tudo
isso a deixou perplexa. Falar sobre isso com Connie não a deixou preparada
para o que ele perguntava.
Benjamin fez uma careta. — Quer se casar comigo?
— Sim, sim! Mas agora não posso ir para a Austrália. – A felicidade
lhe escorreu como água de um balde com vazamento.
— Se está preocupada com a loja, não fique. Vou resolver tudo e...
— Não é apenas a loja. As crianças...
— Eles podem vir também
— Mas eles não querem ir. Querem ficar em York. É a única casa que
eles conhecem, e é por isso que comprei a loja, para dar-lhes uma casa e
sustentá-los. Por favor, entenda que devo colocá-los em primeiro lugar.
— E nós? – Seu rosto empalideceu. — Certamente eles pensariam
diferente quando nos casássemos?
— Não posso fazê-los partir e não posso deixá-los. Esta loja deu a eles
esperança de um futuro melhor. Eles estão mais felizes do que estavam
desde que nossos pais morreram.
— O futuro deles seria bem cuidado comigo. Todos seriam
restaurados às suas posições anteriores.
— Quer ser algemado com cinco responsabilidades extras? – Ela
desafiou.
— Kitty…
Ela atravessou a sala para olhar pela janela. Lágrimas a cegavam. A
dor em seu peito aumentou. Ela aconchegou seus braços em volta de si
mesma
Benjamin colocou as mãos nos ombros dela e beijou o topo de sua
cabeça. — Eu agi impulsivamente. Há muito para ser discutido e
organizado em quatro dias. Sei que agora seria impossível para você tomar
essas decisões. No entanto, não posso atrasar minha partida novamente. Eu
sinto muito...
— Eu entendo perfeitamente. – Mas ela não entendia realmente. Por
que o destino a tratava com mãos tão duras?
— Volto em dezoito meses – ele sussurrou em seus cabelos. – Esperará
por mim?
Girando em seus braços, Kitty o olhou nos olhos e apoiou a mão na
bochecha dele. — O esperarei para sempre.
Ele a beijou novamente, puxando-a para dentro de seus braços como se
fosse esmagá-la. Suspirando, ele levantou a cabeça. — Farei a viagem o
mais rápido possível. Depende da rapidez com que posso estabelecer os
negócios e torná-los lucrativos. A jornada de ida e de voltar leva meses,
mas prometo que serei o mais veloz possível.
— Eu estarei aqui esperando, não se preocupe. Além disso, não vai se
livrar de mim tão facilmente. – Kitty riu dele.
— Eu nunca desejaria me livrar de você, minha querida. – Ele a beijou
suavemente nos lábios. — Posso contar aos meus pais sobre nós?
— Oh meu Deus, eles nem sabem que eu existo.
— Sim, eles sabem, pelo menos eles sabem que eu a tenho visitado.
Veja bem, eu tive que contar ao meu pai por que alterei a primeira data de
partida. Eles desejam conhecê-la. Amanhã seria um bom momento? Minha
mãe a convidou para o chá da tarde.
— Ela convidou?
Ele parecia culpado. — Eles notaram a mudança em mim desde que a
conheci. Ela sugeriu uma visita.
Kitty mordeu o lábio inferior. — Acha que eles me aprovarão?
— É claro!

KITTY RESPIROU PROFUNDAMENTE com a magnificência da


mansão dos Kingsley. Em comparação, sua antiga casa, embora grande,
parecia uma prima pobre. Quando eles chegaram, os pais de Benjamin
estavam fora, para o culto da manhã de domingo. A sós, Benjamin deu-lhe
uma visita privada à casa. Em cada quarto soberbamente decorado, ele
parou e beijou ambas as mãos até que isso se tornou uma brincadeira, e as
risadas ecoaram por toda a casa.
No entanto, a primeira impressão de Kitty sobre a bela Georgina
Kingsley a arrepiou. A mulher exibia uma expressão de horror congelada
no rosto no momento em que olhou para Kitty.
Angustiada, Kitty baixou o olhar e se atrapalhou com as saias pretas.
Ela usava as melhores roupas que possuía, suas saias pretas e blusa creme,
mas sua crinolina foi comprada no mercado e suas luvas de renda preta
possuíam o brilho vítreo das roupas lavadas com frequência.
Após as apresentações, o pai de Benjamin, John, tomou a mão de Kitty
e conduziu-a a estufa. Uma criada trazia consigo uma mesa carregada com
um serviço de chá e suportes de prata cheios de pequenos bolos delicados e
sanduíches.
— Então, Srta. McKenzie, Ben nos disse que começou um negócio?
— De fato, Sr. Kingsley, eu tenho uma loja de chás. – Seus lábios se
estreitaram em um sorriso tenso.
Todos tinham prestado atenção na inspiração de ar que Georgina dera.
— É uma coisa rara, uma jovem entrar nos negócios sozinha. Deve
ter sido uma decisão bastante pensada. – O olhar de John Kingsley não
vacilou quando a olhou.
— Após a morte de meus pais, ficamos com vastas dívidas que
exigiam tudo o que possuíamos para pagá-las. Para meus irmãos e eu
sobrevivermos, eu precisava ganhar a vida para todos nós.
Georgina largou a xícara e o pires. Seus frios olhos azuis se
estreitaram.
— Certamente existem parentes que poderiam ter ajudado... sua... s...
situação?
— Receio que não tenhamos uma grande quantidade de parentes.
Ninguém se ofereceu para nos ajudar. Havia muito pouco que podíamos
fazer, além de vender tudo. – Essa conversa íntima da sua família a deixou
nervosa. Ela desejou que a conversa se voltasse para um assunto muito mais
leve.
— Não estranhou que seus parentes se afastaram?
— Acho difícil que parentes distantes, que raramente víamos, devam
mudar suas vidas para se adequar a nós. – Kitty odiava a mulher por obriga-
la a defender as pessoas que ignoraram seus pedidos de ajuda.
— E quantos são vocês, Srta. McKenzie? – Georgina levantou uma
sobrancelha. Ela usava seu nojo como uma camuflagem.
— Sou a mais velha de sete, Sra. Kingsley.
— Nossa, vocês são muitos. Então, onde moram agora? – Georgina
abanou uma poeira imaginária em seu lindo vestido cinza de seda crua com
sua crinolina tão larga que tiveram que mover as cadeiras para acomodá-lo.
— Iremos morar acima dos salões de chá, Sra. Kingsley. – Ela se
sentia como se houvesse uma corda pendurada em seu pescoço e, a cada
olhar e pergunta de Georgina Kingsley, o nó se apertava.
— Que extraordinário. Viver acima da própria loja. – Georgina não
escondeu o olhar repugnante que dirigia ao filho.
Ele se virou para sorrir para Kitty. — Claro, será apenas temporário,
até eu voltar da Austrália. Então nos casaremos.
Georgina empalideceu, sua mão tremia enquanto pegava sua xícara de
chá e pires. Kitty não tinha certeza se era devido ao choque ou à raiva.
John Kingsley levantou-se e estendeu o braço para Kitty. — Venha,
Srta. McKenzie, deixe-me mostrar-lhe os jardins e meus bons caçadores.
Eles são os melhores de York, garanto.
Quando John e Kitty saíram da estufa, Ben se levantou abruptamente e
encarou a mãe. — Como se atreve – ele falou com os dentes cerrados e todo
o corpo rígido de raiva.
Imperturbável, Georgina ficou sentada em silêncio, bebendo seu chá.
— Como me atrevo? – Ela perguntou com sarcasmo. — Meu querido, não
sei o que o está incomodando.
— Por que está se comportando dessa maneira? Ela vai ser sua nora.
Não seria demais ser gentil com ela e fazê-la se sentir à vontade. Em vez de
tratá-la como se ela fosse algo que um gato arrastou! – O peito de Ben
arfou.
— Ela não é uma de nós, meu querido. Sua união seria um erro muito
drástico. – Calmamente, Georgina se inclinou e escolheu uma pequena fatia
da torta disposta na mesa.
— É aí que se engana, mãe! Ela é uma de nós. O pai dela era médico, a
mãe, uma dama. Eles viveram bem e divertiram muitas das pessoas como
você faz.
— Não, meu querido. Eles nunca foram um de nós, pois não
permitiríamos que nossos filhos fossem jogados nas ruas após nossa morte.
– Georgina, contente, mordiscou sua torta, segura no conhecimento de sua
própria sabedoria.
—A falência pode afetar qualquer pessoa, mãe, até os Kingsleys.
— Benjamin, sabe que me lembro dos McKenzies, especialmente da
esposa? Não consigo lembrar o nome dela. – No entanto, o tom de Georgina
foi desdenhoso. — Fui apresentada a ela há alguns anos em uma festa. E
deixe-me informá-lo, ela era uma das mulheres mais vulgares que já
conheci na vida. Era alta e terrivelmente paqueradora. Era atraente, eu
reconheço isso, mas não era uma dama.
— Eu não ligo, mãe. É com Kitty, não com os pais dela, que vou me
casar.
— Então é um tolo e ficará arruinado por causa disso! – Georgina
olhou furiosa.
— Absurdo!
Georgina respirou fundo e alisou a saia. — Querido menino, só estou
pensando em você – ela disse num sorriso. — Sua felicidade é tudo que eu
quero. – Georgina foi até o filho e colocou a mão no braço dele. — Por
favor, perdoe-me, meu querido. Eu apenas me preocupo.
Benjamin suspirou. — Entenda-me, mãe, por favor. Sei que só quer o
melhor para mim, mas deve entender que sou o melhor juiz disso, não você.
— Sim, claro, querido. – Ela sorriu para ele com toda inocência.
Ele girou bruscamente e a deixou para encontrar Kitty e seu pai.
Georgina fez uma careta. Benjamin estava perdendo a cabeça de trazer
uma pessoa assim para esta casa? O padrão dos McKenzie estava muito
abaixo do qual ele deveria se casar e esse fato teria de ficar óbvio para ele.
No entanto, ela não deveria empurrá-lo para mais longe dela com palavras
duras. Em alguns dias, ele ficaria fora por muito tempo. Seus olhos se
estreitaram. Sim, uma vez que Benjamin estivesse em segurança, ela seria
capaz de trabalhar naquela jovem caçadora de fortunas. Enquanto ela
respirasse, ela não deixaria que se casassem.
Capítulo Dez

— COMO FOI? – CONNIE perguntou no momento em que Kitty


entrou pela porta.
Tirando o chapéu, luvas e casaco, o olhar de Kitty viajou de um para o
outro. As crianças brincavam no tapete em frente à lareira e Max e Martin
estavam sentados à mesa polindo suas botas de trabalho. Mary mexia uma
panela de ensopado.
— Tudo correu bem – mentiu Kitty, pendurando o casaco atrás da
porta. Depois do luxo na mansão dos Kingsley, era difícil voltar ao porão
úmido e sujo.
— Os pais do Sr. Kingsley foram gentis? – Perguntou Mary.
— Sim – Pelo menos John Kingsley foi.
— A casa era incrível? – Max questionou com um sorriso.
A isso ela poderia responder com sinceridade. — Ah, sim, a casa e o
jardim são lindos. O maior que eu já vi.
À medida que a tarde se tornava noite, Kitty respondeu às perguntas
das crianças até esgotarem o assunto. Depois do jantar, começou a chover.
Max contou às crianças uma história perto do fogo até a hora de dormir.
Quando as crianças adormeceram, Max foi para cama e Mary e Martin
também foram deitar, deixando Connie e Kitty sentadas à mesa bebendo
chocolate quente.
Connie olhou por cima da borda da xícara. — Foi realmente tão bom
quanto disse?
Kitty suspirou. — Sabe que não.
— Quem foi? A mãe, o pai ou ambos?
— A mãe dele.
— Típico.
— Ela fez o possível para fazer eu me sentir desconfortável. Era
perceptível que não me considerava boa o suficiente para seu filho.
Benjamin tentou esconder de mim sua vergonha em relação ao
comportamento dela, mas percebi que ele estava bravo com ela. – Kitty
encolheu os ombros em aceitação.
— O que vai fazer?
Ela se levantou e lavou a xícara em um balde de água. — Não há nada
que eu possa fazer. Benjamin partirá em alguns dias. Só terei que lidar com
isso quando ele voltar. Não é como se a Sra. Kingsley e eu nos movêssemos
nas mesmas esferas, não é?

K ITTY SE MANTEVE ocupada durante os dias seguintes, preparando o salão de chá para o dia da abertura, anunciado
para dentro de uma semana. Ela e Benjamin passaram o maior tempo possível um com o outro. Ele organizou os empregados da
a mudança de todos os seus pertences às acomodações acima
mansão para virem fazer
da loja. Ele a acompanhou na compra das mesas e cadeiras necessárias.
Compraram samambaias verdes altas e folhosas e as colocaram nos salões
de chá para oferecer um pouco de privacidade aos clientes. Ben insistiu em
pagar por todas as toalhas e guardanapos de linho, vasos para cada mesa,
talheres e louças. Procuraram nos armazéns por balcões e cortinas e
passaram a tarde inteira comprando os ingredientes necessários para fazer
bolos e sanduíches sofisticados. A ajuda e o apoio de Ben significavam
muito para ela. Pela primeira vez em meses, ela foi capaz de se apoiar um
pouco em outra pessoa e gostou da sensação.
Na quarta-feira, todos estavam exaustos, mas, felizmente, a maior
parte do trabalho estava concluída.
Kitty estava sentada nos fundos da loja, cercada por caixas e caixotes
de estoque.
Connie e Mary levaram Rosie para um passeio até o rio.
Os outros estavam no trabalho e na escola.
Isso a deixou sozinha para dizer adeus a Ben. Seu coração doeu com o
pensamento. Ela não sabia como sobreviveria ao tempo longe dele. Era
como se ela estivesse esperando a vida inteira para encontrá-lo, para, então,
ser cruelmente separada tão cedo. Isso lhe parecia muito errado. Houve
momentos em que desejou ignorar seus deveres, sua família e apenas
concordar em navegar com ele.
Connie se ofereceu para cuidar das crianças, caso desejasse ir com
Ben, mas Kitty sabia que essa não era a decisão correta. Ela ficaria infeliz
por estar do outro lado do mundo, longe deles e sem saber como se saíam
dia após dia. E se Rory voltasse? Como poderia culpá-lo por abandoná-los
quando ela teria feito a mesma coisa? Não. Ficar era a única resposta. Além
disso, dezoito meses passariam rapidamente estando trabalhando nos salões
de chá, para que ela pudesse esperar.
Assim que ele chegou, pouco antes do meio dia, ela se jogou em seus
braços tão logo ele entrou pela porta dos fundos. Silenciosamente, se
abraçaram, saboreando o momento. Depois de um tempo, o levou para o
andar de cima e eles se sentaram juntos no novo sofá de veludo verde-
escuro que Ben havia comprado para ela.
— Como vou suportar ficar sem você? – Kitty levantou as mãos dele
para beijá-las. — Fez muito por mim, por todos nós. Os salões de chá nunca
ficariam tão elegantes sem a sua ajuda.
— Dinheiro é para ser gasto, minha querida. Quero te dar tudo. – Ele
beijou o nariz dela. — E como não me deixa comprar uma casa para você
morar até que nos casemos, preciso garantir que esse negócio a mantenha
financeiramente até que eu volte.
— Sinto-me culpada o suficiente por tudo que já nos comprou sem que
me mantenha.
— Que bobagem está falando, minha querida. Sua recusa de uma conta
bancária em seu nome fará com que eu me preocupe o tempo todo que
estivermos separados. No entanto, se encontrar dificuldades e precisar de
ajuda, vá até o meu pai. Ele irá ajudá-la.
—Não, Ben. Essa responsabilidade é minha.
— E, como minha noiva, agora é minha responsabilidade.
Kitty balançou a cabeça com tristeza. — Nada está formalizado ainda.
Sua mãe...
— Estará assim que você aceitar. Pesquisando no bolso do casaco, Ben
pegou uma caixa preta coberta de veludo e entregou a ela.
Ela abriu a caixa e engasgou com o lindo anel de esmeralda aninhado
em um acolchoado de cetim branco. — Oh. Oh, Ben. – Lágrimas
escorreram de seus olhos. — É tão bonito
— Combina com seus olhos, meu amor.
Toda formalidade a deixou quando passou os braços em volta do
pescoço dele e chorou. A partida dele causava dor a ponto de estilhaçar seu
coração.
— Oh meu amor, não chore. Por favor, pare ou eu vou me juntar a
você. – Ele tentou aliviar o momento, no entanto, sua voz desaguou de
emoção.
— Kitty, Kitty, meu amor.
Ele a acalmou com palavras suaves enquanto a abraçava até que ela se
sentiu recomposta o suficiente para se soltar dele.
— Perdoe-me. – Kitty enxugou as lágrimas com um lenço que ele lhe
deu do próprio bolso. — É demais para se pensar. E quanto à sua mãe? Ela
nos desaprova.
— Deixe minha mãe comigo. – Ele respirou fundo. — Vai usar meu
anel? E se casará comigo quando eu voltar?
— Sim. Claro que sim.
— Olhe para você. – Ele passou os dedos pelos cabelos dela que
escorregavam de seus dedos.
Seu glorioso cabelo de cobre estava todo bagunçado. —Posso
guardar uma lembrança?
— Claro.
Ele estendeu a mão para a cesta de costura apoiada em uma mesa
lateral. Fazendo uso de uma tesoura cortou habilmente uma pequena mecha
do cabelo de Kitty. — Tem algo onde eu possa guardar isso?
Kitty pensou por um momento e depois tirou de baixo da gola do
vestido uma corrente de ouro e medalhão – o último presente de aniversário
que ela recebeu de seus pais.
Ben ergueu as sobrancelhas quando ela lhe deu o medalhão. — Tem
certeza?
— Sim. Quero que o leve consigo e, pela primeira vez, meu coração e
minha mente concordam.
— Como eu te amo. – Ben a apertou contra ele, beijando-a com um
rigor que a deixou sem fôlego. Ela se arqueou contra ele, querendo tudo o
que lhe dava e muito mais. Quando as bocas de ambos se desencontraram,
ele procurou a ternura do pescoço, ela jogou a cabeça para trás, permitindo-
lhe mais acesso.
A respiração dele, quente contra o pescoço dela, enviou calor
inundando seu ventre. Sua coluna estava doendo, latejava e ela estremeceu
nos braços dele.
— Céus, Kitty, devo parar... tenho que parar...
Ela sentiu as batidas do coração dele em seu peito, um eco da sua
própria batida. Kitty escondeu o rosto no ombro dele, desejando que seu
corpo desacelerasse. Respirou seu aroma particular de sândalo, guardando
na lembrança para quando estivesse sozinha. — Escreva para mim o mais
rápido possível.
— Eu vou. Prometo. – Ele segurou o rosto dela nas mãos e a beijou.
— Ben... – Todo instinto nela queria agarrá-lo e nunca deixá-lo partir.
Ele era dela e eles não deveriam se separar, não agora, não justo quando o
encontrou.
— Adeus, meu amor, mantenha-se segura. – Depois de mais um beijo
doce, ele se afastou.
Ela não enxugou as lágrimas que escorriam por suas faces ensopando
seu vestido.
O que importava sua aparência agora? Um soluço partiu dela.
Rapidamente, ela correu para a despensa e vasculhou as caixas e
caixotes até encontrar um calendário. Tirando um lápis pequeno do bolso,
com os dedos tremendo, riscou a data de hoje. Preferiu não pensar quantas
mais precisaria marcar.

— BEM, MOÇA HOJE é o dia! – Max falou, tomando café da manhã à


mesa em seus novos aposentos. Em poucos minutos, ele e Martin se
juntariam a todos os outros trabalhadores que andavam pelas ruas logo após
o amanhecer, a caminho de seus empregos.
— Estarei pensando em você – disse Martin, vestindo o casaco e as
botas. — Espero que tenha um ótimo dia.
— Obrigada, querido. – Kitty entregou a ele e Max seus sanduíches e
garrafas com chá frio.
Desceu as escadas com eles para a sala dos fundos.
Depois de se despedir, acendeu o fogo, pronta para a chegada de Alice
Simpson, a confeiteira que empregara dois dias atrás.
O nervoso tornara impossível tomar o café da manhã. Kitty vagou pela
cozinha até a despensa e voltou novamente, depois foi até os salões de chá e
acendeu a lareira ali. Enquanto as chamas lambiam a madeira, ela se
levantou e pela enésima vez examinou a arrumação das mesas.
Dezesseis mesas, oito em cada sala do que antes eram duas lojas. Uma
toalha de linho macia de cor creme cobria cada mesa e, no meio, havia
pequenos vasos vazios esperando para serem enchidos com flores frescas
do mercado. Nos intervalos entre as mesas, estavam as altas plantas de
folhas verdes. Samambaias menores estavam postas em pedestais. Alguns
quadros campestres que Ben havia adquirido para ela estavam penduradas
nas paredes recém-pintadas. Cortinas rendadas brancas como a neve
adornavam as grandes janelas de vidro e o piso de madeira varrido brilhava
com esmalte.
— Aqui está você. – Connie estava parada na porta, amarrando o
avental.
— Acha que é muito cedo para ir ao mercado comprar as flores para as
mesas?
Kitty colocou o corta-fogo em volta do fogo.
— Sim, querida, são apenas cinco horas. Venha tomar um café da
manhã.
— Não posso comer nada.
Elas caminharam até a sala dos fundos e verificaram o fogo ao
passarem. Ao mesmo tempo, a porta dos fundos se abriu.
— Bom dia, Alice. – Kitty sorriu.
Ela gostava da personalidade alegre de Alice. A jovem não era uma
verdadeira beleza, sendo gorda e simples. No entanto, seu sorriso alegre,
seus cachos louros emaranhados e seu talento culinário superavam qualquer
coisa que lhe faltava fisicamente. — Por favor, entre e tire seu casaco. Tem
um gancho atrás da porta.
Uma semana antes, Kitty publicou no jornal local um anúncio e as
respostas a inundaram. Mulheres de todas as idades se inscreveram e, dois
dias atrás, o pátio dos fundos se encheu delas carregando suas amostras de
doces. Ela e Connie experimentaram dos pedaços de massa mais
assustadores aos de melhor sabor de York. No final, as habilidades de Alice
Simpson superaram o resto. Agora, a mera menção à pastelaria fazia Kitty
ficar enjoada.
Connie colocou a chaleira na chapa quente para ferver. — Já comeu
alguma coisa, moça?
— Sim, uma xícara de chá e algumas fatias de pão, Sra. Spencer. –
Alice enrolou um avental branco engomado em volta da cintura e colocou a
touca sobre o cabelo. Os uniformes que Kitty comprou não eram apenas
para Alice, mas também para todos que trabalhavam na cozinha e nas
mesas.
— Bem, tome outra xícara, moça, enquanto espera os fornos
esquentarem.
Connie e Alice conversaram sobre suas xícaras de chá até Alice decidir
que os fornos estavam quentes o suficiente para ela começar. Em suas idas à
despensa em busca de ingredientes, ela cantarolava enquanto pesava e
peneirava.
Kitty e Connie voltaram para cima para ajudar Mary a colocar as
crianças para tomar banho e se vestirem.
Connie colocou tiras de bacon entremeado em uma frigideira e em
outra quebrou seis ovos.
— Querida, não vai se sentar nem por um minuto? – Connie revirou os
olhos exasperada ao ritmo de Kitty.
— Não. Vou ao mercado buscar as flores. – Ela colocou o pequeno
chapéu preto e juntou as luvas. — Acha que precisamos de mais alguma
coisa?
— Pare de se preocupar – disse Mary. — Não esqueceu nada.
De repente, Kitty sentou-se à mesa. — Tenho certeza de que
precisaremos de outra pessoa servindo na frente. E se estivermos tão
ocupados que duas pessoas na frente e duas atrás não forem suficientes?
— Querida, vai enlouquecer. Se ficar muito ocupada, eu me divido
entre os dois. Mas, até sabermos o que vai acontecer, não se preocupe.
Connie estava certa. O primeiro dia de comércio desapontou Kitty. Nas
duas primeiras horas, eles serviram apenas dois casais. Por volta das onze
horas, cinco pessoas entraram, principalmente cavalheiros de negócios
sentados em cinco mesas diferentes, o que significava que cada mesa depois
tinha que ser despojada e recolocada. Às duas da tarde, eles haviam servido
um total de doze pessoas e, no horário de encerramento, às cinco e meia, o
montante subiu para quatorze. Os balcões estavam bem abastecidos de
doces e bolos maravilhosamente feitos por Alice, bem como os pratos de
sanduíches cortados em pequenos triângulos.
Kitty deixou Alice ir para casa às quatro horas por causa do comércio
com pouco movimento. Não havia necessidade de cozinhar mais, pois havia
muita comida sobrando.
Agora, quando a tarde chegou ao fim, Connie trancou a entrada da
frente da loja e fechou as cortinas. — Calma moça, amanhã pode ser
diferente. – Connie a abraçou. — Vai demorar algum tempo até que todos
saibam que estamos aqui.
— Sim, pode estar certa. Embora deva confessar que esperava um
começo melhor do que isso. – O dia dela tinha sido exaustivo, mentalmente
mais do que fisicamente.
A desilusão sustentou a exaustão e Kitty desejou que Benjamin
estivesse lá para abraçá-la, para dizer todas as coisas certas que precisava
ouvir.
Em meia hora, limparam e arrumaram os salões de chá e Mary lavou
os últimos pratos na pia da sala dos fundos.
Terminados os trabalhos, subiram as escadas e serviram o jantar para
as crianças, quando Max e Martin entraram pela porta.
— Como foi? – Max sentou na mesa esfregando os pés. Kitty
entregou-lhe um prato de peixe defumado.
— Poderia ter sido melhor.
— Bem, ainda demorará um pouco para que o local seja conhecido –
Max repetiu as previsões anteriores de Connie.
Mais tarde, enquanto Kitty escrevia em seus livros de contabilidade,
Martin sentou-se ao seu lado. — Kitty?
— Mmm? – Ela não olhou para cima enquanto anotava as receitas e
despesas do dia.
— É meu aniversário amanhã. Eu vou fazer dezessete anos.
— Sim, eu sei. – Kitty olhou para ele, com a caneta no ar. — Eu não
tinha me esquecido.
— Eu sei que não tinha, apenas que, agora que tenho dezessete anos,
me ofereceram um emprego em um barco. Aparentemente, eles gostam do
meu trabalho e, bem, eu deixei claro para todos os barqueiros que atracam
no nosso cais que eu quero trabalhar na água permanentemente.
— Sério? – Ela se recostou na cadeira e deu-lhe toda a atenção.
— Sim, e o barco parte de manhã para Hull. Posso ir?
Ela piscou como se estivesse limpando sua visão. Quando ele se
tornou um homem? Ele trabalhou duro por eles e assumiu sua
responsabilidade sem questionar. Entrou no lugar de Rory e fez um trabalho
maravilhoso. – Como você disse, Martin, tem dezessete anos. Trabalha
como homem há algum tempo e eu realmente não tenho nenhuma opinião
sobre o caminho que deseja seguir em sua vida. Se quer trabalhar em um
barco, então tem meu consentimento. – Kitty se inclinou e o beijou na testa.
— Obrigado. Ainda darei meu pagamento.
— Não há necessidade. Guarde. Coloque no banco.
— Tem certeza?
Ela fez um sinal com a cabeça. — Precisamos aprender com os erros
dos nossos pais. O dinheiro não pode ser tomado como garantido, nunca.
Fará bem em se lembrar isso.
— Eu irei, então.
— Me prometa que tomará cuidado e volte para casa toda vez que
atracar em York. A sua primeira viagem é longa?
— Não tenho certeza, só sei que iremos para Hull e, a partir daí,
depende de qual é a carga.
— Quando sai?
— À primeira luz.
— Bem, é melhor ganhar seu presente de aniversário agora então. –
Ela sorriu.

NA MANHÃ SEGUINTE, Kitty se recusou a permitir que suas


esperanças aumentassem em relação ao movimento.
Ela dormiu pouco pela preocupação e esperava que sombras escuras
não aparecessem sob seus olhos.
Os primeiros clientes foram dois empresários retornando para uma
segunda visita.
Connie fungou. — É um bom sinal quando as pessoas voltam para
mais.
Uma visita surpresa, uma hora após a abertura, fez Kitty sorrir. A
pequena figura redonda da Sra. Halloway entrou pela porta da frente com
um braço cheio de pacotes.
— Nossa, Srta. McKenzie. Não pude acreditar nos meus olhos quando
li sobre os salões de chá no jornal. – Ela deu um beijo na bochecha de Kitty
e depois deu um passo para trás para admirar os salões.
— Oh, não é que você é inteligente mesmo?
Kitty sorriu. — Estou feliz em vê-la novamente. Como vai, Sra.
Halloway?
— Tudo bem, minha querida. Não posso ficar muito tempo ou minha
irmã Nancy se preocupará, mas pensei em aparecer para lhe desejar boa
sorte.
— Obrigado. É muito gentil e isso significa muito para mim. Não pode
ficar para um pouco de chá e bolo? Poderíamos conversar um pouco.
— Eu gostaria muito, minha querida, mas não posso hoje.
Virando-se para Mary, Kitty pediu que ela empacotasse um bolo para a
Sra. Halloway e, quando Mary voltou, Kitty o entregou à mulher mais
velha. — Isso significa um obrigado pela cesta de comida que nos deu
quando saímos de sua pensão.
— Não preciso de agradecimentos. – A Sra. Halloway sorriu antes de
olhar em volta. — É um mérito seu, minha querida. Bem, adeus, devo sair.
Aparecerei de novo em breve. – Ela saiu correndo, quase deixando cair os
pacotes e o bolo no caminho.
Kitty riu e voltou para seus poucos clientes.
Perto do meio dia, muitas senhoras vestidas na moda chegaram. Suas
joias caras brilhavam e seus criados ficavam do lado de fora, segurando
seus pacotes. Vinham em pares, logo Mary e Kitty correram, recebendo
pedidos e servindo. Vozes agudas e tons sussurrados enchiam os salões de
chá.
Connie espiou por cima da bancada para olhá-los e se espantou com a
visão. Ela agarrou o braço de Kitty enquanto passava. — Ah, moça, quem
acreditaria?
— O anúncio deve ter funcionado.
Demorou mais ou menos uma hora até Kitty perceber que suas clientes
estavam interessadas nela. Muitas vezes, Kitty ouviu seu nome ser
mencionado enquanto passava pelas mesas. É claro que os velhos
conhecidos de sua mãe poderiam ter visitado para ver o que havia
acontecido com a família McKenzie, mas ela pouco se importava com isso.
Sua principal preocupação era fazer com que salões de chá fossem um
sucesso. Se essas senhoras entediadas fofocavam, não havia nada que ela
pudesse fazer sobre isso. Pelo menos elas gastavam dinheiro em sua loja.
Quando finalmente a clientela diminuiu para apenas dois casais
sentados nas mesas perto da janela, Kitty deixou Mary atendendo-os. Ela
entrou na sala dos fundos e sorriu para Alice e Connie. — Ainda estão de
pé?
Connie se jogou em uma cadeira e abanou o rosto com uma toalha. —
Ó céus! O que aconteceu com todos eles para chegarem assim? – Ela
limpou a testa com as costas da mão. — Pensei que minhas pernas iriam
cair.
Alice riu. — Deve ter saído alguma notícia sobre minha ótima
culinária.
— Kitty! Kitty! – Mary correu acenando com um jornal na mão. —
Veja o que foi deixado em uma das mesas.
— É o jornal do dia, querida. – Connie zombou dela.
Ignorando-a, Mary colocou o jornal na mão de Kitty. — Veja a página
em que está aberta. – Mary apontou para uma coluna.
Kitty leu, seus olhos se arregalando a cada palavra. O noivado dela e
de Benjamin havia sido anunciado. — Eu não entendo. – O suor escorreu de
seu rosto. — Quem poderia ter feito isso?
— Kingsley deve tê-lo feito antes de partir – Connie afirmou o óbvio.
— Afinal, ele a pediu em casamento e lhe deu o anel para usar.
— Mas ele nunca disse que iria anunciar. – Kitty leu o pequeno
anúncio novamente. Seu estômago revirou. — A mãe dele não vai gostar
disso.
Kitty enviou Mary para fazer o jantar para as crianças quando o
horário de fechamento se aproximava. Ouviu Connie e Alice conversando
na sala dos fundos enquanto limpavam. Ela moveu uma cadeira, varreu
debaixo de uma mesa e deixou sua mente pousar em Benjamin. Por que ele
teve que anunciar o noivado?
Ela balançou a cabeça pela lógica dele. Ele não percebeu que ela teria
que enfrentar todo mundo sozinha? Abafando um suspiro, se virou para
varrer em baixo de outra mesa quando uma elegante carruagem com um par
de belos cavalos parou na rua, diante da vitrine.
Georgina Kingsley olhava para a fachada da loja do degrau da
carruagem. Kitty sentiu o ódio vindo daquela mulher. Emanava dela como
uma aura. Georgina esperou que o cocheiro abrisse a porta da loja antes de
deslizar para dentro. Examinou o ambiente com frios olhos azuis. Pousou o
olhar em Kitty apesar de não desejar. — Não estou aqui em uma visita
social. Eu não entraria em um estabelecimento como esse a menos que
fosse importante.
Por dentro, Kitty fervia. A mulher falou como se estivesse visitando
um bordel. Determinada a ser gentil, Kitty convocou um pequeno sorriso.
— Lamento ouvir isso, Sra. Kingsley.
— Estou aqui por causa do anúncio publicado no The Times nesta
manhã. – Seu desdém gravado em seu rosto pálido. — Já viu, suponho?
— Sim.
— Meu marido e eu não fomos consultados. Benjamin não fez menção
a um compromisso antes de partir.
— Entendo, mas antes que pergunte, não coloquei o anúncio.
— Meu filho não teria feito isso sem falar comigo ou com meu marido
antes. – O lábio superior de Georgina se curvou em desprezo. — Então
quem o fez?
— Ninguém que conheço, Sra. Kingsley. Eu juro a senhora. – Kitty
se esforçou para controlar seu temperamento. — Benjamin deve ter feito
isso.
Georgina olhou para o anel na mão esquerda de Kitty e seus olhos se
estreitaram em fendas.
— Onde conseguiu isso?
— Esse anel me foi dado por seu filho, Sra. Kingsley. É o meu anel de
noivado.
Ela estava muito agradecida pela loja estar vazia. Seu constrangimento
seria completo se os clientes vissem esse espetáculo. Ela suspeitava que
Connie, Mary e Alice esperavam nos bastidores prontas para sair e ajudá-la,
se necessário.
— Esse era o anel da avó dele. – O rosto de Georgina perdeu o tom de
alabastro e ficou rosa. — Ela desejou que ele desse à mulher com quem ele
se casaria.
— Então, vou usá-lo com orgulho.
Georgina respirou fundo. — A senhorita, não vai usá-lo. Nunca se
casará com meu filho. Ele merece mais do que um ser sem dinheiro como a
senhorita!
— Isso é o suficiente. – Kitty levantou a mão. — Amo seu filho e ele
me ama. Nós nos casaremos no minuto em que ele voltar da Austrália e não
há nada que a senhora possa fazer sobre isso.
Connie, Mary e Alice marcharam para ficar às suas costas, formando
uma defesa pequena, mas raivosa.
Georgina Kingsley inclinou a cabeça majestosamente. Seus lábios se
afinaram marcando a raiva em seu rosto. — Posso garantir-lhe
completamente, Srta. McKenzie, que a senhorita e meu filho nunca se
unirão em matrimônio. Se levar todos os dias da minha vida para garantir
que isso não aconteça, eu o farei. Essa é a minha promessa.
— Não pode mudar a mente de Benjamin ou o amor dele por mim.
— É aí que se engana. Ele pode estar do outro lado do mundo, mas eu
assegurarei que as cartas que lhe envio criem dúvidas sobre sua pessoa. Ele
logo perceberá que a senhorita era apenas um interesse passageiro, que não
exige mais as lembranças dele. – Ela girou nos calcanhares e caminhou até
a carruagem. O cocheiro atiçou os cavalos e ela saltou em movimento até
sumir de vista.
— Meu Deus – Connie sussurrou e colocou as mãos nos ombros
trêmulos de Kitty. – Ah, moça, terá que enfrentar um dragão, e não há
dúvida. Venha e tome uma xícara de chá.
Kitty sentou-se em silêncio enquanto as outras se mexiam e discutiam
sobre a Sra. Kingsley. Ela ansiava pelos braços fortes de Benjamin para
confortá-la e suas palavras ternas para confirmar seu amor por ela, mas
estava há muitos quilômetros de distância. Ela poderia apenas sonhar com
isso. Mas oh, como ela já sentia falta dele e não fazia nem uma semana.
Como ela sobreviveria a dezoito meses?

KITTY SE DESPEDIU de Joe e Clara do portão lateral quando eles foram para a escola. O cansaço já apertava em seus
por mais uma noite sem dormir devido à
ossos e o dia havia apenas começado. Ela passou
discussão com Georgina Kingsley. Ela estava preocupada com o fato de o
relacionamento delas ser tão ácido.
A mulher seria um dia sua sogra, mas elas mal podiam suportar a visão
uma da outra. Preocupava-a que Benjamin estivesse dividido entre elas.
— Bom dia, senhorita. – Um carteiro com uma grande bolsa vermelha
cheia de correspondências sorriu para ela.
— Bom dia. – Kitty assentiu. Seu uniforme de colete, casaco azul com
gola escarlate, punhos e canos estavam tão bem passados que pareciam
novos.
— É a Srta. McKenzie, dos salões de chá da McKenzie?
— Sim, sou eu. É novo por aqui?
— Sim, Srta. Art Tilsby, é o meu nome. Aqui está sua
correspondência.
Kitty pegou as duas cartas. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Tilsby.
— Bom dia para a senhorita. – O carteiro inclinou o chapéu pontudo.
Voltando ao pátio, ela abriu a primeira carta. Ela sabia que era de
Benjamin e seu coração disparou. Ela fez uma pausa para ler a breve carta.

Minha querida,
Escrevo esta breve missiva após embarcar no navio e enquanto espero
a partida, que será dentro de uma hora. Embora esta embarcação me afaste
de você, não posso deixar de me animar com minha jornada.
Ao aceitar meu anel, você me fez o homem mais feliz do mundo inteiro.
Eu te amo tanto. Já sinto sua falta e escreverei novamente a bordo e
postarei no próximo porto da minha escala.
Viu o anúncio no The Times? Está satisfeita? Eu devo ir agora, meu
amor, pois o último apito soou para os visitantes deixarem o navio e enviar
a correspondência.
Meus melhores votos a toda a família e novamente meu amor para
você.
Benjamin.

Kitty voltou para dentro, sentou-se à mesa e leu a curta carta


novamente.
Alice a olhou enquanto esticava a massa. — Está tudo bem, Srta.
Kitty?
— Sim. – Kitty sorriu para ela e subiu as escadas. Ela encontrou
Connie arrumando as camas das crianças. — Deixe isso, Connie. Farei em
um minuto.
— Não, moça, muitas mãos tornam as obrigações mais leves.
— Recebi uma carta de Ben.
Connie piscou. — É Ben agora?
Kitty sorriu. — É como eu o chamo. A mãe dele o chama de
Benjamin.
— Bem, o que ele disse então, querida?
— Ele enviou antes de partir. Foi ele quem colocou o anúncio no
jornal.
Connie se endireitou. — Bem, todos já esperávamos isso, moça.
Espero que ele tenha enviado uma carta para sua mãe dizendo a mesma
coisa.
Kitty suspirou profundamente. — Estou tão decepcionada que ela
esteja se comportando dessa maneira. Eu amo Ben e ele me ama. Realmente
é com isso que ela deveria se preocupar?
— Ah, moça, sabe melhor do que eu. Já viveu essa vida antes. Acha
que sua mãe teria gostado se Rory ou Martin tivessem chegado em casa
com alguém que morasse em um porão?
— Não, suponho que não. Conhecendo minha mãe, ela também teria
criado confusão. Só digo por que não preciso do problema que isso me traz.
Connie dobrou a camisola de Clara e a colocou no travesseiro. — Sim,
esqueça isso por enquanto. Sua futura sogra tem algum tempo livre para
usar, nós temos uma loja para fazer crescer.
O comércio da manhã estava devagar até o meio-dia, quando algumas
mulheres chegaram. Mais uma vez, elas se interessaram muito por Kitty.
Frustrada por ser encarada abertamente, ela decidiu permanecer na sala
dos fundos o máximo possível. No entanto, se sentiu culpada por deixar a
maior parte do trabalho para Mary.
— Kitty. Kitty! – Os sussurros urgentes de Mary fizeram com que
Kitty corresse para o lado dela e as duas olhavam para uma carruagem
enorme, puxada por quatro, imponentes cavalos pretos, parados do lado de
fora das vitrines. Os murmúrios frenéticos atrás das mãos nas outras mesas
prenderam a atenção de Kitty por um momento, mas logo foram desviados
de volta para a entrada da frente. Uma senhora pequena, gorda e idosa,
vestida com um vestido de seda cor-de-café e um grande chapéu decorado
com penas vermelhas, entrou. Seus cabelos eram cinza claro e lindamente
arrumados sob o chapéu, mas foram os olhos que chamaram a atenção de
Kitty pois eles eram do azul mais brilhante.
— Gostaria de se sentar, senhora? – Kitty quase fez uma reverência,
devido ao modo régio da mulher.
A senhora a ignorou por um momento, enquanto dava uma boa olhada
nas instalações. Algumas das outras senhoras sentadas acenaram com a
cabeça em reconhecimento, mas ninguém falou.
— Eu acredito que esses salões parecem bastante adequados –
declarou a grande dama — E qual é o seu nome, senhorita? – Ela virou um
olhar inquisitivo para Kitty.
— Srta. Katherine McKenzie, madame.
— E esses salões de chá são seus, não é mesmo?
— De fato, madame. – Kitty assentiu, desejando de todo o coração ter
ido com Ben à Austrália. Ela não sabia quanto tempo poderia lidar com esse
exame minucioso.
— Acredito que essa mesa está boa... – Ela olhou para Kitty
procurando
confirmação.
Kitty deu um passo à frente e puxou uma cadeira para ela. — Se a
madame desejar se sentar.
A pequena mulher orgulhosa estava sentada à mesa perto da janela. Ela
então se virou para as duas damas sentadas atrás dela. — Sra. Pollock, e
Sra. Seymour, este estabelecimento é do seu agrado?
Kitty fechou os olhos e prendeu a respiração.
As duas senhoras, surpresas com a pergunta, hesitaram. — Bem, Sra.
Cannon. Achamos muito agradável – elas repetiram uma à outra.
A idosa assentiu, voltando-se para Kitty e Mary, que ficaram um pouco
para trás.
— Srta. McKenzie, sou a Sra. Dorothea Cannon, de Cannonvale Park.
Como vai?
— Muito bem obrigada, Sra. Cannon, e a senhora? – Kitty forçou um
sorriso.
— Estou bem o suficiente por enquanto, embora eu vá morrer de sede
a qualquer momento. – Ela franziu a testa, mas Kitty viu um brilho em seus
olhos e conseguiu sorrir de volta.
— Um bule de chá seria do seu agrado ou talvez café?
— Café, eu acho. Certifique-se de que seja fresco e de boa qualidade.
– A Sra. Cannon acenou com a mão em direção ao balcão da tela. — Uma
variedade desses deliciosos bolinhos também, se for possível.
— Claro, madame. – Kitty saiu com Mary logo atrás. Indo para a sala
dos fundos, Kitty quase colidiu com Connie e Alice, que estavam ouvindo
na porta.
— Quem é ela? – Connie sussurrou.
— É a Sra. Cannon, agora me ajude a fazer um café fresco. – Kitty
correu para a despensa. — Mary, vá para a frente e preencha uma pequena
bandeja para a Sra. Cannon.
Por meia hora, a Sra. Cannon tomou seu café e mordiscou os bolos que
Mary colocou diante dela.
Foi só quando as outras damas sentadas atrás de suas rosas pagaram o
chá e partiram, que a Sra. Cannon chamou Kitty para junto dela. — Sente-
se, menina – ela exigiu, com um aceno da mão cheia de joias, indicando a
cadeira oposta.
Kitty sentou-se, sem ter certeza do que era exigido dela.
— Agora, deixe-me dizer uma coisa. Vim aqui hoje para dar uma boa
olhada em você e neste estabelecimento por causa de uma coisa – a Sra.
Cannon fez uma pausa, olhando Kitty com cautela: — meu neto.
— Seu neto?
— De fato. Veja, ele me disse que se apaixonara por uma jovem que
era bonita, inteligente e acima de tudo, digna. – A Sra. Cannon fez uma
pausa novamente e olhou atentamente para Kitty. — Então, pensei em
conhecer essa jovem para comprovar se ela merece os afetos do meu neto.
Kitty sentiu o sangue sair de seu rosto. Oh, Deus. Ela realmente não
podia aguentar outro confronto com um membro da família de Ben. — A
senhora é a avó de Benjamin?
Os lábios de Dorothea Cannon se contraíram. — De fato, e eu gosto de
surpreender as pessoas.
— A senhora certamente fez isso hoje, Sra. Cannon.
— Deixe-me contar os acontecimentos que surgiram desde que você
apareceu em cena. Minha filha me atormentou noite e dia por sua causa. Ela
recitou todos os detalhes de seus dois breves encontros, e garanto-lhe, Srta.
McKenzie, que minha filha é uma mulher que você não gostaria de ter
como inimiga.
Kitty fechou os olhos momentaneamente. — Por favor, acredite, Sra.
Cannon, eu ficaria muito feliz em fazer amizade com a mãe de Ben, mas,
infelizmente, ela não me verá além do meu status atual de dona de uma loja.
— Acredita que é digna dos afetos do meu neto?
— Se sou digna ou não, é algo que não posso responder. No entanto,
eu sei que amo seu neto desesperadamente e de todo o coração. – Do bolso,
ela puxou a carta de Ben e a entregou para Dorothea ler. Talvez então ela
visse o amor que eles sentiam um pelo outro.
Kitty esperou enquanto a outra mulher lia a carta.
— Excelente. Esse é o primeiro obstáculo superado. É óbvia a
profundidade do sentimento entre vocês dois. – Dorothea devolveu a carta e
sorriu, depois pegou um lenço e esfregou o canto do olho.
— Benjamin me visitou antes de partir, e fiquei encantada com a
mudança nele. Eu aceito que minha filha tenha sido culpada pela
infelicidade de Benjamin. Ela o está controlando demais para o seu próprio
bem e tenho medo de que tudo tenha sido por nada. Desde que Benjamin
era criança, tudo o que ele queria fazer era ficar longe dela e de sua devoção
por ele. O que, por sua vez, aflige minha filha e a torna mais determinada a
estar mais perto dele.
Dorothea tomou um gole de café, olhando pensativamente pela janela
o movimento da rua. — Tenho vergonha de minha filha ser uma mulher
com quem não se pode fazer amizade facilmente. Ela foi completamente
mimada pelo meu falecido marido, e eu tenho medo que John não a defenda
tanto quanto deveria.
— Achei o Sr. Kingsley muito agradável. Eu gostei muito dele.
— Sim, querido John, ele é um bom homem. Ah, não me entenda mal,
Srta. McKenzie, amo muito minha filha e a amo mais, quanto menos a vejo.
– Dorothea riu da própria piada, e Kitty escondeu um sorriso com a mão.
Dorothea de repente se levantou da cadeira, Kitty também o fez. —
Devo tomar meu caminho agora, minha querida. Gostaria de vir novamente,
posso?
— Oh, sim, por favor, Sra. Cannon.
— Me chame de Dorothea, minha querida, e acredito que você é
conhecida como Kitty.
— Sim, e obrigada, Dorothea. Foi um prazer conhecê-la. – Kitty
estendeu a mão, e Dorothea a pegou.
Juntas, elas foram para a carruagem. Quando Dorothea alcançou o
degrau da carruagem, ela fez uma pausa e voltou-se para Kitty. — Vou
contar a todos os meus amigos e conhecidos sobre seus adoráveis salões de
chá, minha querida, pode ter certeza disso. Devemos manter tudo em
família, você sabe. – Dorothea piscou para Kitty, antes de recostar-se nos
assentos de couro. Com o movimento das rédeas, a carruagem se afastou.
Lá dentro, Kitty ajudou Mary a limpar a mesa. Garantir a amizade de
Dorothea a deixou aliviada. Se ao menos a mãe de Ben fosse tão agradável.
— Ela tinha olhos lindos – disse Mary, dobrando a toalha da mesa.
Kitty concordou: “eles não eram idênticos aos de Ben?”

NA LUXUOSA SALA de jantar vermelha da mansão Kingsley, Dorothea colocou delicadamente o guardanapo de linho
jantar, sua filha estava sentada majestosamente,
ao lado do prato. No final da mesa de
mordiscando sua comida. Dorothea olhou para John antes de endireitar os
ombros. — Hoje cedo, fui para conhecer a noiva de Benjamin.
Georgina engasgou com a comida e seus olhos se estreitaram. — Posso
pedir para não mencionar essa mulher na minha presença, mãe?
— Por quê? Ela é de um tipo decente e será para Benjamin uma ótima
esposa – insistiu Dorothea. — Ele a ama. Por que não está feliz por ele ter
encontrado uma mulher que o fará feliz?
— Eu não ficarei feliz com tudo isso! Está ouvindo? – Georgina
levantou-se rapidamente, dispensando um servo prestativo com um
movimento de cabeça.
— Acalme-se.
— Não interfira, mãe. Não verei Benjamin casado com alguma
caçadora de fortunas que possui uma loja de chá! Por que a vergonha disso
me mataria.
John abaixou a faca e o garfo. — Minha querida, Dorothea está certa.
Benjamin precisa de uma esposa com inteligência. Ele ficaria louco dentro
de um mês com algo menos que isso.
O olhar frio de Georgina o silenciou. — Essa mulherzinha nunca será
minha nora. Ela também não governará esta casa! – As duas criadas se
entreolharam com medo.
—Você é mimada, Georgina. Foi desde o berço. Só que desta vez não
conseguirá o que quer. – Dorothea também se levantou, essa era a
determinação dela. — Não deixarei que arruíne a chance de felicidade desse
menino. Ele a ama e ela o ama. Eu farei tudo ao meu alcance para vê-los
casados.
— Ama? Ela quer o dinheiro dele e a possibilidade de se casar em uma
família rica. Seríamos motivo de riso para todos os nossos amigos e
conhecidos. – O rosto outrora lindo de Georgina se retorceu com despeito.
— Isso nunca acontecerá, mãe. Eu não deixarei! Prefiro que ele morra antes
de se casar com aquela moça. – Ela saiu da sala de jantar com um farfalhar
de saias de seda e perfume persistente.
Dorothea sentou-se cautelosamente, seus ossos rangendo com o
esforço. — Ela deve ser parada, John. Eu a amo, mas às vezes não gosto
dela. – Ela balançou a cabeça e pegou o vinho.
— Juntos, garantiremos que eles se casem. Escreverei para Benjamin e
pedirei para ele falar com Kitty. Levará meses para a carta chegar e meses
para uma resposta. No entanto, é mais sensato que eles estejam na Austrália
do que aqui, pois Georgina nunca lhes dará um momento de paz.
Dorothea olhou ao redor da bela sala com seus móveis, papel de
parede de seda chinês raro e utensílios de mesa luxuosos. Ela podia ver
claramente Kitty como dona de tudo isso e sabia em seu coração que era
onde a jovem pertencia, mas isso realmente aconteceria? – Um arrepio
repentino formigou em sua espinha.
Capítulo Onze

MARÇO EMENDOU EM abril e abril em maio. O clima ficou mais


quente, o que trouxe mais clientes para a loja enquanto passeavam sob o sol
da primavera.
Dorothea Cannon, fiel à sua palavra, contou a vários conhecidos sobre
os salões de chá e esses senhores e senhoras regulares mantiveram os salões
no ápice. A senhora espirituosa a visitava uma vez por semana, em uma
quinta-feira, permanecendo por mais ou menos uma hora, conversando não
apenas com Kitty, mas também com Mary. Às vezes, ela até se aventurava
pelos fundos para sentar e compartilhar uma palavra com Connie e Alice. A
capacidade de Alice de preparar comidas tão maravilhosas a interessou.
Dorothea confessou que sua própria cozinheira era muito menos talentosa.
No final de maio, Kitty estava enchendo tigelas de açúcar na mesa dos
fundos. A luz do sol entrava pela porta aberta. Ela olhou para cima quando
Connie voltou de entregar seus pedidos semanais de comida para diferentes
lojas.
Connie caiu com um suspiro cansado e apontou para o pátio. — Acho
que devemos ter algumas galinhas, querida.
— Onde as colocaríamos?
— Eu estava pensando que Max e Joe poderiam baixar algumas
daquelas placas de pedra para a parte de trás e, com um pouco de arame e
um pouco de madeira, poderiam fazer um galinheiro.
— Mas por quê? – Kitty colocou as tigelas cheias de açúcar de volta
em uma bandeja.
— Porque Hal Dunsworth cobra preços exorbitantes. Acho que não
devemos mais negociar com ele.
Kitty pegou a bandeja e olhou para Connie divertida. — Hal
Dunsworth foi o único comerciante que nos abriu uma conta quando
começamos. Os outros disseram que teríamos que provar nossa capacidade
primeiro, e que não nos deram, crédito. Então, ele merece nossa lealdade.
—Bem, ainda acho que é uma boa ideia – protestou Connie. — Gosto
da ideia de colocar ovos frescos na nossa porta dos fundos.
— Se Max quiser construir um galinheiro, ele pode – cedeu Kitty, —
e, se você quer tanto as galinhas, pode adquiri-las.
Ultimamente, Connie a preocupava. Sua querida amiga se cansava
facilmente no final de cada dia e não estava tão robusta como de costume.
Colocando a bandeja sobre a mesa, Kitty olhou analisando Connie que
estava sentada com os olhos fechados. — Está se sentindo bem?
Connie abriu os olhos e sentou-se ereta. — Claro que estou.
— Ultimamente tem estado cansada. Ontem à noite adormeceu perto
do fogo e eram quase sete horas.
— Estou ficando velha. – Connie deu de ombros.
— Oh, não me venha com essa, ainda não tem quarenta anos!
Dificilmente velha.
Connie ficou de pé e brincou com uma pilha de guardanapos. — Se
precisa saber, eu comecei a passar pela mudança...
— Mudança? Tem certeza?
— Claro que tenho certeza. Não tenho fluxo há meses. Foi-me dito
uma vez que se passa pela mudança mais cedo, se não teve bebês. – Connie
assentiu com um olhar sábio.
— Talvez seja melhor que vá a um médico.
— Absurdo. Não vou a um maldito médico pra me dizer algo que eu já
sei. É um desperdício de uma boa quantia.
— Mas Connie, sua saúde é mais importante que dinheiro.
— Não, querida, eu não irei. Então, não desperdice seu fôlego. Eu sei
o que está acontecendo. Eu conheço meu próprio corpo.
— Tudo bem, se tem certeza de que é esse o problema. – Kitty pegou a
bandeja novamente e entrou na loja. Enquanto colocava as tigelas de açúcar
em cada mesa, ela se prometeu prestar mais atenção a Connie. Não
conseguia imaginar sua vida sem ela.

NOS AGRADÁVEIS DIAS de verão de junho e julho, o comércio cresceu nos salões de chá. A cidade de York se
fins de semana, os habitantes da cidade
deliciava com o céu azul e os raios dourados do sol. Nos
aproveitavam o bom tempo para descansar e se divertir. As tão esperadas
notícias do fim da guerra civil americana despertaram o ânimo de todos. Os
operários esperavam que os estados do sul retomassem o transporte de
algodão para as numerosas usinas de Yorkshire. As pessoas demitidas nos
últimos anos poderiam novamente obter trabalho.
Nas partes mais pobres da cidade, as crianças morriam de rir enquanto
corriam descalças pelas ruas, aproveitando o sol no rosto e a liberdade da
juventude. Esses problemas mundiais não as preocupavam enquanto
brincavam. Os idosos sentavam-se em bancos, fumando cachimbos de
barro, enquanto observavam os jovens e fofocavam com os vizinhos.
Enormes cortinas de roupa pendiam secando entre prédios em filas
intermináveis, subindo e descendo os cortiços.
Os ricos, do outro lado da cidade, levavam suas carruagens e shows
abertos.
As damas passeavam em belos jardins e colhiam flores para inalar suas
fragrâncias enquanto se protegiam com bonitos guarda-sóis em tons pastel.
Festas de chá e bailes de verão foram organizados, enquanto aqueles que
ficavam em Londres no inverno voltavam para suas casas de campo,
prontos para socializar com os amigos. Era uma época tão movimentada do
ano, com caçadas a raposas e passeios pelo vasto campo, bem como
piqueniques, saraus musicais e concertos.
Dentro dos salões de chá em Petergate, no entanto, prevalecia um
clima sombrio. Kitty trabalhava como alguém possuído. Ela vivia e
respirava a loja de chá. Se levantava antes da primeira luz e ia para a cama
pouco antes da meia-noite. Se preocupava com a loja, as crianças, Connie e
Ben.
Ela perdeu peso com o estresse, mas acima de tudo, perdeu o humor.
Kitty estava sentada em seu escritório, fingindo trabalhar em suas
contas, mas sua mente vagava para longe das fileiras organizadas. Se não
fossem três as causas de sua ansiedade, ela ficaria mais feliz, mas os três
problemas a preocupavam além do desespero.
— Aí está. – Dorothea Cannon bateu com a bengala com ponta de
ouro no chão, na porta do pequeno escritório. — Você deveria estar ao sol.
Kitty levantou-se para cumprimentar sua visita. — Como está hoje? –
Ela beijou sua bochecha.
— Me parece doente, menina. – Dorothea sentou-se em uma cadeira
próxima. Sua crinolina cor de camelo se espalhava como gelo sobre um
bolo.
— Não, na verdade, não estou.
Dorothea a olhou. — Eu posso sentir que algo está errado. Não confia
em mim?
Kitty recostou-se na cadeira. Ela encolheu os ombros e mexeu na saia
cinza escura. — Tenho algumas preocupações, nada para incomodá-la.
— Deixe-me julgar isso. – A mulher mais velha inclinou a cabeça e a
pena roxa em seu chapéu balançou alegremente.
— Estou preocupada com meu irmão Joe. Recentemente, soube que
ele estava se associando a um grupo de meninos de caráter duvidoso. Ele
ficou fora até tarde e tornou-se rude com outros membros da família. Hoje
de manhã, recebi uma carta da escola dele, que me informou de suas muitas
ausências. Então, preciso lidar com ele e estabelecer algumas regras
básicas, porque obviamente permiti que ele se safasse demais ultimamente.
— Pequeno espertinho – zombou Dorothea. — Quer que ele seja
enviado para a marinha? Eu tenho um primo aposentado que pode colocá-lo
em um navio.
Kitty pôs a mão na cabeça, alarmada. — Não, obrigado, falarei com
ele.
Dorothea suspirou dramaticamente. — Muito bem então. O que mais?
— É Connie. Eu acho que ela está doente. Ela não quer ir consultar um
médico. Por duas vezes ela desmaiou esta semana. Alice e eu quase tivemos
um ataque cardíaco quando ela caiu. Connie acredita que tudo isso é pela
mudança.
— Por desencargo de consciência, chame um médico no minuto em
que ela parecer mal e não dê ouvidos a suas desculpas. – Dorothea se
inclinou para mais perto para dar um tapinha em seu braço. — E com meu
neto também está preocupada?
Ela admitiu que sim. — Embora eu não possa fazer nada sobre isso.
Não receber uma carta em meses dói profundamente. Ele disse que
escreveria uma carta a bordo do navio e a enviaria no primeiro porto de
escala. Se ele tivesse feito isso, então agora eu já deveria ter recebido. É
julho. Ele deveria estar lá agora. Teve notícias sobre ele?
— Não, e John e Georgina também não. Tenho certeza de que ele
escreveu, mas os navios no oceano estão além do nosso controle.
— Acho que estou muito impaciente. – Ela não revelou sua ansiedade
de que Georgina pusesse em prática sua ameaça de escrever cartas
envenenadas sobre ela.
Dorothea se levantou. Seus joelhos estalaram ao fazê-lo. — Me ajude,
querida menina, eu sou muito velha.
Kitty correu para ajudá-la e juntas saíram para a frente da loja.
Ao lado da carruagem, Dorothea parou. — Não desanime, querida
Kitty McKenzie. Tudo ficará bem.
A carruagem partiu, mas Kitty ficou na calçada. Ela mordeu o lábio
inferior quando os pensamentos sobre Ben inundaram sua mente. Ele levava
uma vida emocionante em um país novo e maravilhoso. Ela queria estar
com ele.
“Tudo ficará bem “. As palavras de Dorothea tocaram como um sino
de igreja em sua cabeça. Mas realmente ficaria?
Com um suspiro, ela voltou ao seu pequeno escritório. Fechou o livro
de contas e o guardou na gaveta. Quatro pequenas pilhas de moedas
estavam em cima da mesa; salários.
Kitty olhou para o dinheiro. Ela havia se saído bem o suficiente para
empregar uma menina de quatorze anos, Mildred Hollings. Mildred ajudava
na loja e nos fundos da maneira que podia e, embora mal falasse uma
palavra com as pessoas, podia trabalhar melhor do que alguém com o dobro
de sua idade.
Assim como Mildred, Kitty havia contratado uma faxineira. Uma
viúva sem filhos chamada Hetta Smith, que vinha todos os dias para limpar,
lavar e passar. A diferença óbvia entre Mildred e Hetta, além da idade, era o
barulho. Mildred não era apenas quieta, mas também terrivelmente tímida,
enquanto Hetta era alta, falante e fofoqueira. No entanto, felizmente, a
faxineira também era uma alma gentil e generosa.
Ao som da porta dos fundos se abrindo, Kitty saiu da sala.
— Está quente o suficiente para fritar um ovo nas bandeiras – declarou
Hetta quando ela e Connie entraram carregando mantimentos.
Kitty sorriu ao ver as bochechas coradas de Hetta e pegou uma bandeja
de biscoitos, mas o rosto pálido de Connie, em comparação, a preocupou.
Alice cortou um limão e o adicionou a uma jarra de água gelada. —
No verão, eu gosto de passar os domingos perto da praia.
Connie pousou a cesta e pegou o jarro. — Vou levá-lo ao balcão.
Um momento depois, um estilhaço estridente e depois um baque
quebraram a quietude dos salões.
Kitty correu para o salão de chá e encontrou Connie deitada no chão.
— Connie! – Ela caiu de joelhos ao lado de sua amiga doente. — Querida,
fale comigo. – Ela olhou para Hetta. — Diga a Mary para procurar um
médico!
Kitty acariciou a testa de Connie. — Connie, querida, pode me ouvir?
– Connie abriu os olhos lentamente e focou nela. — Fique quieta, querida, o
médico foi chamado. Ficará bem.
— Moça... o que há de errado... comigo?
— Em breve descobriremos.
Mais tarde, Kitty, Mary e Alice ficaram sentadas por uma hora em
volta da mesa nos fundos, enquanto Mildred e Hetta fechavam a loja. Max,
chamado às pressas, esperou no andar de cima até o médico terminar o
exame.
Kitty se levantou e andou de um lado para o outro, suas saias
balançando ruidosamente na quietude da sala.
Impaciente por ouvir qualquer notícia, ela desejava subir as escadas
correndo para ver Connie e falar com o médico, mas sabia que Max queria
um tempo a sós com o médico primeiro.
— Vou aquecer a chaleira, senhorita. – Alice preparou outro bule de
chá que ninguém bebeu.
O movimento todo cessou enquanto o médico descia as escadas. Hetta
e Mildred pararam de limpar o salão de chá para ouvir.
O medo entupiu a garganta de Kitty. — Quais são as novidades, doutor
Myers?
— Bem, Srta. McKenzie, não é o que a senhorita esperaria, acredito
eu. – O médico suspirou e encolheu os ombros ao colocar o casaco que
Mary lhe entregou. — A Sra. Spencer está grávida. Quase seis meses, eu
diria.
— Uma criança? – Chocada, Kitty olhou para o homem como se ele
tivesse duas cabeças. — Ela pensou que estava passando pela mudança.
— Por que ela pensava isso está além da minha compreensão. Tem
cansaço, desmaios e inchaço à volta da cintura, embora não tanto como
deveria, o que é motivado pela ansiedade. Na verdade, há muitas causas de
ansiedade para o parto da Sra. Spencer. – Ele lançou seu olhar cansado para
os rostos preocupados olhando fixamente para ele. — Ela sofreu muitos
abortos no passado quando era muito mais jovem. Para ser sincero com
todos, e como já disse ao Sr. Spencer, duvido que ela conseguirá levar essa
gravidez até o final. Se ela o fizer, não posso garantir que ela ou a criança
sobrevivam ao parto.
Todos ouviram uma respiração alta.
— Por que isso, doutor? – perguntou Hetta, cruzando os braços sobre o
enorme peito, bufando, enquanto seus pequenos olhos castanhos se fixavam
para ele. — Nossa Sra. Spencer é uma mulher forte.
— Sua história passada me diz que essa gravidez não é o que ela
deveria ter neste momento de sua vida. – Ele pegou sua maleta do chão.
— Fala como se ela estivesse em perigo – zombou Hetta.
— Hetta, por favor – calou-a Kitty.
O médico virou-se para Kitty, ignorando a explosão da mulher mais
velha. — Ela deve ter repouso absoluto e com os pés da cama sempre
elevados. O sangramento dela deve ser controlado, ou, bem... pode
imaginar as consequências.
— Ela receberá o melhor atendimento possível, doutor – Kitty disse
calmamente. — Certamente isso e boa comida serão tudo o que ela precisa.
A natureza cuidará do resto, não é?
— Sim, a natureza cuidará do resto, Srta. McKenzie, de um jeito ou de
outro.
Assim que o médico saiu, Kitty subiu as escadas. Essa notícia
inesperada a desnorteou.
Max estava fechando suavemente a porta do quarto quando ela entrou
na sala de estar. Ele envolveu Kitty nos braços. — Oh moça. O que
faremos? Ela não deveria ter bebês. Ela quase morreu da última vez. Eu não
poderia aguentar se algo acontecesse com ela.
— Nada vai acontecer, Max, e nunca mais diga nada assim. Eu
cuidarei dela e tudo ficará bem. – As palavras de Dorothea desapareceram e
Kitty engoliu suas lágrimas repentinas. — No final, será um pai orgulhoso
de um lindo bebê.
— Rezo para que esteja certa, minha menina, realmente é o que quero.
– Max beijou-a na testa, depois desceu as escadas e voltou ao trabalho.
Kitty entrou no quarto de Connie para sentar-se calmamente em uma
cadeira ao lado da cama. Connie parecia pálida, mas descansada.
Kitty segurou a mão da amiga. — Como se sente, querida?
— Melhor.
— Muito bom. Vou descer e lhe fazer um chá.
— Espere. – Connie agarrou a mão de Kitty quando ela ia se afastar.
— Falou com o médico?
— Sim. – Kitty sorriu. — Então, vamos ter um bebê para estragar?
Connie fez uma careta. — Não fique muito animada. O médico me
disse que as chances são pequenas.
— Bem, provaremos que ele está errado, não é?
— Já passei por isso antes, querida. Não é bom, acredite em mim. –
Connie fungou. — Estou surpresa por ter me dado muito bem. Seis meses.
É um recorde para mim.
— Bem, esse é um bom presságio para começar e terá o melhor de
tudo para vê-lo com um final feliz.
— Oh, querida. – Lágrimas caíram nos cílios de Connie e correram por
suas bochechas.
— Não! Pare com isso, Connie. Sem lágrimas. Guarde-as para a
alegria que sentirá quando estiver segurando seu bebê, em alguns meses.
Precisamos pensar positivamente sobre isso, quero dizer. – Kitty apontou
um dedo para ela. – Sente-se, vou providenciar um chá e uma refeição leve.

KITTY SENTOU EM uma cadeira no pátio e observou Clara e Rosie


alimentarem as galinhas. O calor de agosto aquecia seu corpo, embora seu
coração estivesse frio como gelo. Joe havia brigado de novo na escola, mas
se recusou a discutir o assunto naquela manhã durante o café, antes de
desaparecer pelo resto do dia. Desejou que o senhor Tilsby, o carteiro,
trouxesse algumas boas notícias em vez de anotações da escola. Ansiava
pelas palavras de Ben, mas a cada dia que passava, nada chegava. Dúvidas
e frustrações travavam um duelo em sua mente sempre que pensava nele.
Por que ela não recebera mais cartas? Ele pensara duas vezes agora que
estava fora levando uma vida emocionante?
— A Sra. Cannon vem hoje à noite? – perguntou Clara, tirando o pó
das migalhas das mãos.
— Pensei que viesse, mas já passou da hora habitual dela chegar. Pode
ter tido visitas e se esqueceu da hora.
Mary correu para elas, o rosto branco e os olhos arregalados. — Kitty!
Kitty!
— O que foi? – Ela se levantou. — É Connie?
— Há um policial esperando para lhe falar. Ele chamou
especificamente por você. – Mary ofegou. — Devo trazê-lo? Os clientes
estão cochichando entre si.
— Sim, sim, traga-o para a sala dos fundos. — Kitty procurou uma
moeda no bolso e tirou um centavo. Clara, leve Rosie à confeitaria. Segure
na mão dela e volte direto para cá. – Assim que passaram pelo portão, Kitty
ajeitou os cabelos e as saias. Respirando fundo para acalmar seu pânico, ela
entrou na sala dos fundos.
Sinalizou para Alice, que deixou o quintal e ficou atrás dela
oferecendo apoio. Juntas, elas encararam o alto policial que entrou na sala
dos fundos, tirando o chapéu ao fazê-lo. Mary correu para ficar atrás de
Kitty, do outro lado.
— Srta. McKenzie? – O policial falou diretamente com Kitty.
— Sim? – Ela o olhou nos olhos, preparando-se para receber más
notícias.
— Meu nome é policial Mike Bentley. Fui enviado para informar que
seu irmão Joseph está em nossas celas. Ele foi pego roubando.
“Não “. O suor escorreu de seu rosto e seus joelhos dobraram. O braço
de Alice deslizou pela cintura de Kitty, em um esforço para mantê-la na
posição vertical. Mary chorou apertando um lenço no rosto.
— Precisa vir comigo até a delegacia, senhorita.
Ele esperou enquanto Alice e Mary ajudavam a encontrar a bolsa e o
casaco de Kitty e rapidamente prenderam seu chapéu. Mesmo tendo pouco
consciência sobre o que fazia, Kitty lembrou-se de sussurrar para Mary para
não avisar Connie para que ela não se preocupasse, e depois seguiu o
policial pela porta dos fundos.
Capítulo Doze

KITTY PENSOU QUE já havia experimentado medo antes, o medo de


não encontrar uma casa para seus irmãos após a morte de seus pais, o medo
de não poder alimentá-los e vesti-los, o medo de morar em um porão úmido
e congelante. No entanto, nada a preparava para o intenso medo que descia
sobre ela enquanto caminhava pelo frio, escuro e úmido gotejamento
entupido dos corredores subterrâneos da prisão. Ao lado dela, andava o
policial alto, que tinha que abaixar a cabeça toda vez que passavam pelos
arcos apertados dos túneis da prisão. Na frente dos dois, o carcereiro que
segurava o molho de chaves na mão.
Ele era um homem gordo e grande, que fedia como aqueles que não
lavavam nem as roupas nem o corpo, os conduziu por um labirinto sinuoso
de túneis escorregadios até que parou e grunhiu em direção a uma cela.
Depois de retirar uma série de chaves dos anéis do cinto largo, ele abriu a
porta de madeira grossa cravejada de aço. Lâmpadas de óleo salpicadas
fixadas em braçadeiras de ferro no alto das paredes, exalava um forte cheiro
rançoso e a luz fraca não penetrava nas celas.
O policial trouxe com ele uma grande lâmpada de óleo e, com isso,
iluminou e chamou Joseph McKenzie para se levantar e se apresentar.
Depois de um momento, houve uma confusão, alguns gemidos e Joe
ficou diante deles, sujo e humilde.
Kitty avançou para envolvê-lo em seus braços. — Joe. Oh, Joe, você
está bem?
O policial olhou para Joe. — Reconhece que esse garoto é seu irmão,
Srta. McKenzie?
Kitty balançou a cabeça. — Sim. Sim ele é. Ele pode voltar para casa
agora? – O gordo feio riu.
O policial balançou a cabeça. — Receio que não, senhorita. Ele deve
comparecer perante o tribunal e ser sentenciado.
— Sentenciado? Mas ele é apenas um menino. Tudo o que ele roubou,
eu pago. Dou minha palavra.
— Sinto muito, senhorita. Não há nada que eu possa fazer. Sugiro que
encontre alguém para representar seu irmão, se puder pagar. Ele
comparecerá perante o juiz no tribunal.
A tontura tomou conta dela.
Joe choramingou quando os outros três jovens da pequena cela
fedorenta riram dele. Ela usou o lenço para limpar a sujeira do seu rosto. —
Calem-se, agora – ela sussurrou e, em seguida, olhou para a cela como um
aviso para as figuras rindo escondidas ali.
— Acalmem-se – o homem com a chave na mão gritou para eles. Sua
voz ecoou nos limites do túnel subterrâneo.
Kitty abraçou Joe. — Tudo vai ficar bem.
O policial pigarreou. — Temos que sair agora, Srta. McKenzie.
Joe a abraçou com força e não a soltou. Kitty odiava forçar seus braços
para longe dela, mas ela o beijou e prometeu voltar no dia seguinte.
Quando se aproximaram do final do corredor escuro, o carcereiro
bateu em seu braço, detendo-a.
— Se deseja que seu irmão esteja um pouco mais confortável, basta
passar-me a mão com alguns pedacinhos de ouro e posso ver o que consigo
fazer.
Do lado de fora, ao ar livre, Kitty respirou fundo para acalmar seus
nervos. O fedor do presídio impregnou suas roupas e encheram suas
narinas.
— O homem com as chaves pediu dinheiro para cuidar do seu irmão
certo, Srta. McKenzie?
Os olhos do policial Bentley se estreitaram.
— S... Sim, sim – murmurou Kitty, ainda chocada com a visão de Joe
na prisão.
— Meu conselho é, senhorita, que não faça isso. Qualquer dinheiro
que der para o velho carcereiro Griggs só vai cobrir seus próprios bolsos.
Ele não é confiável, acredite em mim.
A caminhada de volta aos salões de chá foi atordoada. Joe estar na
prisão a fez tremer e sentir-se doente. Como isso aconteceu? O que o levara
a roubar? Ela não deu a ele tudo o que precisava? Os pensamentos giravam
em sua cabeça.
— Kitty. O que aconteceu? – Mary esperava por ela na porta dos
fundos e a levou para cima e para o sofá. — Onde está Joe?
— Ele não podia voltar para casa, ainda não. – Ela esfregou a mão
sobre os olhos. — Odiei ter que deixá-lo lá.
— Por que ele fez isso?
— Eu não perguntei a ele o porquê. – Kitty balançou a cabeça.
Alice trouxe uma bandeja de chá. — Pedi a Mildred para fechar a loja,
Srta. Kitty.
— Obrigada, Alice. – Kitty explicou a situação para as duas e, ao fazê-
lo, se sentiu melhor. Ela começou a planejar o que deveria fazer. Ela
precisava de ajuda, mas a quem poderia recorrer?
Pela enésima vez, ela desejou a presença de Ben, os braços dele para
segurá-la.
Quando Max voltou do trabalho e ouviu as notícias, eles decidiram
explicar a ausência de Joe para Connie e as crianças mais novas, dizendo
que Joe tinha ido ficar na casa de um amigo por alguns dias. Clara achou a
explicação um pouco difícil de entender, pois todos os amigos estavam
brincando perto dela e de seus amigos hoje e ela não tinha visto o irmão.
Kitty a manteve ocupada com pequenas tarefas e, eventualmente, Clara não
questionou mais.
— Se ele for considerado culpado, moça, poderá ficar lá por um longo
tempo – murmurou Max quando as crianças estavam na cama.
— Eles ainda os transportam para a Austrália? – Perguntou Kitty, com
a voz ainda embargada. Ela ficou longe de Connie para não alertar sua
inteligência aguçada para algo errado.
Max fez uma careta. — Não, acho que não, mas não tenho certeza.
Kitty apertou as mãos no colo. — Eles... eles não o enforcariam, não
é?
Max a puxou bruscamente para ele. — Não, querida! Não pense nisso.
Ela encostou a testa no peito largo dele. — Não posso suportar, Max.
O que está acontecendo com minha família?

KITTY VESTIA UMA saia nova e uma jaqueta curta cinza-escuro,


enfeitada de preto. As roupas de meio luto que ela usava eram uma
homenagem adequada ao seu desespero e combinavam com as sombras sob
seus olhos. Ela saiu de casa cedo, antes que os outros acordassem, e pegou
um coche que estava de passagem.
O grande e impressionante edifício de pedra da polícia de York estava
cheio, embora o sol apenas espreitasse sobre os telhados. Kitty ignorou os
olhares enquanto pedia para ver algum encarregado.
Os olhos do sargento idoso a observavam solenemente sob as
sobrancelhas grossas e espessas. — Srta. McKenzie, não posso lhe
transmitir informações policiais. Seu irmão deve vir perante o magistrado.
O cavalheiro de quem seu irmão roubou é bastante inflexível o qual não
desistirá das acusações. Receio que nada possa ser feito, exceto contratar os
serviços de alguém para representar seu irmão.
Kitty se inclinou para frente. — Se soubesse o nome do cavalheiro,
poderia vê-lo. Se eu pudesse falar com ele, ele poderia estar disposto a
retirar as acusações contra meu irmão. Preciso fazer algo para ajudá-lo.
Ela implorou ao sargento por mais dez minutos antes que ele
levantasse a mão, interrompendo a conversa.
Ele levou Kitty até a rua, mas antes que ela se virasse, ele a pegou pelo
cotovelo, sussurrou o nome e o endereço de um homem e desapareceu
rapidamente no prédio.
Agarrando-se à pequena esperança de implorar misericórdia ao
cavalheiro desconhecido, Kitty correu pela rua e chamou outro coche.
O nome do cavalheiro era familiar, talvez um antigo conhecido do pai
dela.
Ela respirou um pouco mais fácil sabendo que alguém da sua classe
iria ouvi-la.
O coche a deixou em uma rua larga e arborizada. Casas de três andares
que ficavam em jardins cultivados atrás de cercas baixas de ferro e pedra.
Era uma rua não muito diferente daquela onde ela morava. Ela sacudiu o
pensamento deprimente da mente e bateu a aldrava de bronze contra a porta
pintada de preto do número sete.
Um mordomo respondeu à convocação e, depois de perguntar sobre o
assunto, deixou-a entrar para ficar no hall. Depois de alguns minutos, ele
voltou para levar Kitty a uma pequena sala mais abaixo no corredor.
Dentro da sala, Kitty olhou para o número de livros que revestiam as
paredes e a enorme mesa que dominava a sala. Um homem de meia-idade,
dispendioso, vestido com um terno marrom escuro, com olhos afiados e
uma calvície acentuada, estava de costas para a janela. Seu olhar altivo se
concentrou nela enquanto ela entrava na sala.
— Bom dia. – Kitty sorriu e escondeu as mãos trêmulas atrás das
costas.
Ele fez uma careta e sentou-se em sua linda mesa de nogueira. — Srta.
McKenzie, eu presumo...
— Sim, sou. – Seu olhar superior fez seus ânimos crisparem, mas ela
se concentrou na questão. Ele continuou a encará-la como se ela estivesse
embaixo dele e a lembrou de Georgina Kingsley. — Por favor, posso dizer
que me arrependo profundamente pelo meu irmão, por seu comportamento
intolerável. Além disso. garanto que ele nunca fez algo assim antes...
— Nem fará novamente. – Os olhos do cavalheiro se estreitaram.
— Por favor, senhor, se pudesse retirar as acusações contra meu
irmão...
— Seu irmão precisa aprender uma lição. Pessoas do seu tipo não
podem andar pelas ruas cometendo crimes contra pessoas decentes desta ou
de qualquer outra cidade. – A voz do cavalheiro se elevou e ele
visivelmente se sacudiu para verificar seu temperamento enquanto encarava
Kitty.
Tremores percorreram sua pele. — A... acredite em mim, meu irmão
nunca mais irá agir de uma maneira tão vergonhosa novamente. Ele não foi
criado para se comportar assim. Meus pais eram bem-educados.
— E também eram ladrões, mas em uma escala maior – ele rosnou
entre os dentes cerrados.
— Perdão? – Seu estômago apertou com pavor das palavras furiosas
do homem. Isso não estava planejado.
— Seu pai morreu devendo-me mais de duzentas libras. Uma quantia
que nunca consegui recuperar. E agora seu irmão continua com a
característica da família e rouba minha carteira.
O homem ficou de pé e caminhou em volta da mesa para ficar na
frente dela. Ele levantou o punho e balançou no ar acima da cabeça de
Kitty. — Não serei assaltado novamente por um McKenzie.
Mortificada, ela tropeçou para trás… — O senhor não foi à nossa casa
e recuperou algo de valor para compensar? Os avisos foram enviados após a
morte de meus pais.
O cavalheiro riu cruelmente. — Não, filha. Eu estava em Londres
naquela época e só soube disso no meu retorno. E então, era tarde demais.
— Eu... me desculpe. – Ela tentou encontrar a coragem de lutar com
ele com palavras, mas sua mente congelou. — Por favor, não castigue meu
irmão pelos erros de meu pai.
— Ah! Você se esqueceu que seu querido irmãozinho também roubou?
– Um nervo pulsou ao longo de sua pálpebra esquerda. — Seu irmão
passará os próximos dez anos de sua vida apodrecendo em alguma prisão
ou ele pode ser enviado para a Baía de Botany, eles ainda o fazem, pelo que
me disseram.
Os olhos de Kitty se arregalaram de horror. Ser enviado à Austrália
como um condenado. Ela não aguentaria.
Ele parecia orgulhoso. — Considere a dívida de seu pai como sendo
agora reembolsada.
Ela tropeçou em seu escritório, suas palavras zombeteiras a estavam
assombrando.

KITTY SENTOU-SE À mesa da cozinha no andar de cima, afastada de olhares indiscretos, incapaz de oferecer um
rosto feliz aos clientes. Ela sabia que os outros poderiam organizar os salões
de chá.
Vencida pelo desespero, Kitty olhou para o fogo e esperava que,
quando tomasse o chá com Connie, ela não fizesse muitas perguntas sobre a
atmosfera tensa que permeava a casa.
O farfalhar das saias precedeu Dorothea quando ela deslizou para a
sala de estar.
Kitty se levantou para beijar sua bochecha. — Recebeu minha carta?
— De fato.
— Sinto muito incomodá-la com meus problemas, mas não tinha mais
ninguém a quem recorrer.
— Bobagem. Somos uma família ou em breve seremos. Agora, conte-
me tudo.
Quando Kitty terminou de contar a história, Dorothea balançou a
cabeça.
— Uma boa confusão em que o menino se meteu, mas não se
desespere, querida menina. Será resolvido.
— Como? – Kitty andava de um lado para o outro. — Aquele homem
guarda apenas rancor de meu pai para se vingar contra nós. Não posso
acreditar que ainda estejamos pagando pela loucura de nossos pais. Morar
em um porão não foi o suficiente? Eu já perdi um irmão e não posso me dar
ao luxo de perder outro. – Kitty massageou as têmporas. Ela tinha que
permanecer calma. Connie não deveria ouvi-la e ficar chateada.
— Venha, sente-se, querida.
— Não suporto pensar em Joe apodrecendo em alguma prisão...
— Está se tornando dramática, minha querida. Por favor, sente-se e me
escute.
Dorothea acenou e esperou enquanto ela se sentava no sofá. — Não
fiquei parada ontem depois de ouvir as notícias. Fui ver um advogado
amigo meu que está indo para a prisão esta manhã. Teremos o jovem Joseph
em casa antes que perceba. – Dorothea deu um tapinha na mão de Kitty e
sorriu.
— Sério? Quer dizer que Joe pode vir para a casa? – O alívio a deixou
tonta.
— Estou certa disso. Tenho muitos amigos influentes e alguns favores
que me são devidos. Além disso, falei com John e ele também atuará em
seu nome.
— Isso libertará Joe?
— Não duvido. No entanto, Georgina não está muito satisfeita com
esta última provação. Isso lhe deu mais desculpas para argumentar que você
não está em condições de se casar com Benjamin. Deve garantir que Joe
fique longe de mais problemas. Caso contrário, minha filha terá prazer em
usar isso para manter você e Benjamin separados.
— Eu entendo. – Kitty assentiu, sua estima por Georgina havia
diminuído mais um pouco. — Imagino que Georgina tenha gostado do meu
desespero?
— Não foi prazer, não, mas ela mencionou isso como mais uma prova
de que sua união com Benjamin seria desastrosa. – Dorothea se endireitou.
— Chega disso. Precisamos nos concentrar em Joe e sua libertação.
— Oh, Dorothea. Como posso retribuí-la?
Dorothea piscou. — Bem, um bom começo seria fazer um chá para
nós enquanto eu vou sentar com Connie.
Passava das seis da noite quando Joe entrou na sala de estar para uma
enorme recepção. Ele estava sujo, com fome e um pouco abatido, mas Kitty
e Mary logo o colocaram no banho e o esfregaram.
Em uma camisa de dormir limpa, ele comia carne e legumes cozidos
como se não comesse há meses. Em pouco tempo, sua cabeça caiu de
fadiga.
— Venha, Joe. – Kitty o ajudou a sair da mesa.
Ela o colocou na cama e sentou-se ao seu lado, cobrindo-o até o
queixo. Nunca em sua vida seria capaz de retribuir Dorothea por trazer Joe
para casa novamente. Ela não fez perguntas sobre como isso aconteceu.
Estava apenas agradecida pela libertação de Joe de volta aos seus cuidados.
Joe olhou para ela com olhos lacrimejantes. — Sinto muito, Kitty. Eu
não quis causar nenhum problema.
— Bem, você causou. Por que fez uma coisa dessas?
Joe encolheu os ombros. — Eu suponho que... para mostrar que eu
podia, isso é tudo.
— Roubou porque podia? – Kitty se virou, sua raiva latejando,
desesperada por libertação. — Me envergonha.
— Eu sinto muito.
Ela girou de volta para ele. — Reconheceu o homem?
— Não, ele estava exibindo seu dinheiro quando saiu de uma loja. Ele
é apenas um idiota!
— Como nós éramos?
A cor saiu do rosto de Joe. — Não somos mais, somos?
— Foi por esse motivo que fez isso, porque não temos mais uma casa
bonita e dinheiro?
Ele deu de ombros novamente e se recusou a encará-la.
—Discutiremos isso outra hora, mas estou informando agora,
Joseph McKenzie, se voltar a fazer uma coisa dessas, deixarei que o
mandem para a prisão. Me entendeu?
Uma lágrima lenta escorreu por sua bochecha. — Eu não farei isso de
novo, prometo.
— Bem, não terá a chance de fazê-lo novamente. Amanhã de manhã,
você e Clara vão começar em uma nova escola. Uma escola que possui um
nível um pouco mais alto do que a que frequentam agora. Vai me custar
muito dinheiro, mas valerá a pena se isso o mantiver longe de problemas.
— Eu não quero ir para outra escola, Kitty. Por favor, não nos envie
para outro lugar.
— É o melhor, Joe. Não quero que se misture com aqueles meninos
com quem brinca. Eles são piores que os filhos dos cortiços. Quando
saímos do porão, eu deveria ter mudado você e Clara para uma nova escola
mais próxima dos salões de chá. No entanto, pensei que você preferiria ficar
na mesma escola perto de Walmgate. Vejo agora que estava errada.
— Mas, Kitty...
— Não, Joe! Não fale mais. Minha decisão está tomada.
— Mas...
— Percebe o quão perto esteve de ficar na prisão por anos? – O tom
dela o açoitou, tentando fazê-lo ciente de quão perto ele estava da ruína.
Ele abaixou o olhar. — Sim.
— Bem, pense um pouco mais e seja grato por termos amigos
maravilhosos como Dorothea Cannon. Agora, vá dormir, tem um grande dia
amanhã, antes e depois da escola.
Joe lutou para se sentar quando Kitty se afastou. — O que quer dizer?
Kitty virou-se para a porta. — Você, jovem, tem um dia inteiro de
trabalho pela frente. Obviamente, eu o deixara ter muita liberdade, que
agora perdeu. Portanto, existem muitos pequenos trabalhos na loja que são
de sua responsabilidade a partir de agora. Não achou que poderia me
preocupar assim e se safar, não é? Mudar de escola será a menor das suas
preocupações, rapazinho.

— ESSE CALOR! – HETTA reclamou pela décima vez naquela


manhã, quando voltou depois de esvaziar o balde de água suja lá fora. —
Gostaria que tivéssemos um pouco de chuva.
Mary e Kitty trocaram olhares divertidos quando ela passou, antes de
continuar a verificar o estoque que precisaria ser comprado até o final da
semana.
— Ladies, que dia faz hoje – disse Art Tilsby, o carteiro, chamando-as
pela porta dos fundos. Ele entregou a Kitty uma pequena pilha de
correspondências.
— Gostaria de tomar um copo de água gelada com limão, Sr. Tilsby? –
Kitty colocou a correspondência na mesa. Ela odiava a correspondência.
Nunca trazia notícias de Ben ou Rory.
— Sim, Srta. McKenzie. Está um forno lá fora. – Ele tirou o chapéu
para limpar o suor da testa. Sorriu e acenou com a cabeça para Mary, que
tirou a cabeça da despensa para dizer bom dia. Alice conversou com ele
enquanto Kitty servia bebidas para todos.
Ele aceitou o copo com um pequeno sorriso. — Sempre gostei de dias
quentes de agosto quando criança, mas agora acho que estou velho demais
para lidar com esse calor.
— É incomum fazer calor por tanto tempo – reconheceu Alice. — Já
são três semanas de dias em chamas constantes. Eu nunca vi algo assim
antes.
O Sr. Tilsby esvaziou o copo e o colocou sobre a mesa. — Obrigado
por isso, foi muito refrescante. É melhor eu seguir o meu caminho agora. –
Antes de chegar à porta, ele parou para sorrir para Kitty. — Eu quase
esqueci, senhorita, há uma carta lá da Austrália. Imagine a distância
percorrida? – Com esse comentário de despedida, ele foi embora.
Kitty virou-se muito devagar e pegou a correspondência da mesa. Com
mãos trêmulas, ela selecionou a carta com a caligrafia familiar de Ben. Seu
coração parecia que iria parar a qualquer momento. Ela sorriu para Mary e
Alice e depois correu para a privacidade de seu quarto.
Rasgando o envelope, Kitty pegou as poucas folhas de papel. Ela as
aproximou do rosto, maravilhada. Seu coração batia nas costelas e seu
estômago revirava em antecipação.
Respirando fundo, ela começou a ler.

Querida Kitty.
Meu amor, não posso começar a falar sobre as delícias da cidade.
Sydney é uma maravilha, mas primeiro devo perguntar por sua saúde e de
sua família. Rezo para que esteja bem.
Kitty, você adoraria, o senso de aventura que circunda a área. O porto
é uma delícia, uma beleza natural e muito emocionante, com navios
estrangeiros indo e vindo continuamente. Existem pessoas de todas as
nações que estão começando uma nova vida, mas é claro que a influência
britânica é proeminente em todos os lugares. Há momentos em que você
realmente sente que está em casa, na Inglaterra. Pode-se passar por
multidões e ouvir todos os sotaques do nosso país em uma única rua.
Desde que cheguei aqui, no último dia de maio, tenho estado
extremamente ocupado em encontrar pessoas conhecidas de meu pai.
Iniciar nosso próprio negócio não será tão difícil quanto eu imaginava.
Estou rapidamente fazendo muitos contatos e, de fato, bons amigos. Em
breve, terei tempo para investigar esta terra de oportunidades. Admito que
me excita o fato de que estarei me aventurando além das fronteiras de
Sydney e entrando em campo aberto.
Disseram-me que partes da expedição partem regularmente para
explorar a vastidão dessa terra quente e seca, e novos municípios estão
simplesmente evoluindo em questão de dias, em lugares onde, algumas
semanas antes, havia apenas arbustos impenetráveis. A atividade agitada
daqui Kitty, me deixa ansioso para terminar meu trabalho na cidade e estar
me aprofundando no campo.
Eu sinceramente espero que você esteja sentindo minha falta e que eu
ainda tenha seu amor.
Em meus pensamentos sempre,
Benjamin.

Kitty leu a carta mais uma vez antes de sair rumo ao quarto de Connie.
Ela bateu suavemente na porta e entrou. O último mês de descanso colocou
peso na estrutura magra de Connie e ela parecia mais saudável. Agora,
havia mais cabelos grisalhos entre o seu próprio marrom natural e algumas
linhas de preocupação extras adornavam seu rosto, mas o Dr. Meyers, que a
visitava uma vez por semana, estava feliz com seu progresso.
Connie reclinada contra travesseiros, tricotando uma meia, sorriu
quando Kitty entrou. — Como estão as coisas?
— Acabei de receber uma carta de Ben. – Kitty falou enquanto lhe
fazia um carinho.
— Oh, querida, estou muito feliz por você. Ele está bem?
— Sim, ele parece extremamente feliz. Ele envia seus cumprimentos a
todos. Ele enviou outra carta, mas eu não a recebi. – Isso a entristeceu por
um momento, mas ela rapidamente voltou a reluzir e beijou a carta.
— Bem, não importa, querida. Pelo menos tem essa aqui e é melhor
que nada.
Kitty sentou-se na cama. A carta havia tirado um peso de seu coração.
Ela duvidara que seu amor continuasse assim que ele a deixasse, mas a
prova contrária liberou uma onda de emoção.
Ela não sabia se ria ou chorava. — Quer que eu leia para você?
— Sim, prossiga, pois não terei paz até o faça. – Connie riu.
Capítulo Treze

KITTY ADICIONOU OUTRA pá cheia de carvão ao fogo. Os ventos


do final de outubro batiam contra as janelas, como se procurassem uma
maneira de entrar. Ela se virou e sorriu para Martin, que fazia uma de suas
infrequentes visitas à casa. Ele cresceu uma polegada e seus ombros
estavam mais largos. Seus cabelos pretos caíam por cima do colarinho e não
fazia a barba há dias.
Martin colocou a xícara sobre a mesa. — Tenho algumas novidades.
— Oh! Não me diga que conheceu uma boa moça? – Kitty sorriu e lhe
passou um prato com bolinhos que não foram vendidos durante o dia. Seu
humor era devido ao fato de ter recebido outra carta de Ben, que ela acabara
de ler para a família.
— Não. – Ele evitou o olhar de Kitty e olhou para Max quando um
rubor manchou suas bochechas cobertas de barba por fazer. — Viajarei para
a Índia, depois pelas Ilhas do Pacífico e para a Austrália.
Um pesado silêncio desceu. Joe engoliu um bocado de bolo. —
Gostaria de poder ir à Índia e ver elefantes.
— Eu também – acrescentou Rosie, meio adormecida, aninhada no
colo de Max.
Martin ignorou Joe e Rosie enquanto continuava. — Me ofereceram
um emprego em um navio que sai em uma semana de Portsmouth. O
proprietário quer negociar no Pacífico Sul. Sydney será sua base. – Todos o
encararam. Ele olhou para Kitty. — Não está feliz por mim?
— Feliz? – Kitty pulou de seu assento.
A raiva ardia dentro de seu peito, quase a sufocando. — Eu não
acredito! – Em um acesso de intempestividade, ela bateu no prato de bolos;
alguns deles caíram sobre a mesa. Martin recuou sob seu ataque.
— Kitty, eu...
— Não acredito que está nos deixando para ir para o único lugar que
eu queria que fossemos em primeira instância. Todos nós tivemos a chance
de morar lá com Ben. Percebe do que eu desisti porque pensei que todos
queriam ficar aqui juntos? Eu já estaria casada com Ben agora! – Enquanto
ela os olhava, desafiando-os a negar, as lágrimas ameaçavam cair.
Mary pegou sua mão. — Nós ainda estamos juntos. – Kitty virou-se
para ela.
— Nós estamos? Rory, Deus sabe onde está e Martin deve viajar para
o outro lado do mundo, para onde Ben está. Como isso é estar juntos?
Deixei Ben ir sozinho, porque todos disseram que ficar aqui era melhor.
Martin levantou-se lentamente da cadeira. — Kitty, me desculpe. Eu
não sabia que eu adoraria tanto a navegação marítima.
— Você disse que queria ficar aqui.
— Eu pensei que sim, mas vi muito nos últimos meses e quero ver
mais. Eu sinto muito.
Max se levantou, colocando Rosie em sua cadeira. Ele enfrentou os
dois. — Não vamos gritar como vendedores de peixes.
— Vou gritar tudo o que quiser, Max Spencer! Eu ganhei o direito –
Kitty bradou.
Martin puxou as calças. — Nunca esperei viver minha vida dessa
maneira ou ser tão apaixonado por ela. Quando estou em águas abertas, é a
sensação mais maravilhosa. Sei que apenas subi e desci a costa e fiquei feliz
com isso, até conhecer o capitão Peterson. Ele gostou do fato de eu ter
estudado e disse que eu poderia ir longe. Eu poderia até receber o título de
capitão um dia, imagine isso? – A ansiedade de Martin iluminava seus
olhos.
O coração de Kitty deu um pulo. Sua raiva a abandonou tão de repente
quanto veio; deixando-a esvaziada e espremida como um pano de prato.
Quão orgulhosa ela ficaria se ele conseguisse isso depois do que eles
haviam suportado? Seus pais ficariam tão felizes que um de seus filhos
tivesse evoluído. Ela suspirou. — Bem, é a sua vida, Martin. Deve fazer o
que achar melhor.
— Desta vez, minha viagem é apenas para Hull. Então, voltarei em
dois dias se tudo correr conforme o planejado. Virei vê-la então. Devo estar
em Londres até o final da próxima semana. O capitão Peterson quer se
reunir com sua tripulação um ou dois dias antes de partirmos.
— Então está em uma posição de autoridade agora, filho? – perguntou
Max, afagando distraidamente os cabelos de Rosie. — Sim, mas existem
alguns homens acima de mim. Ainda não tenho certeza de qual posição
terei, mas o capitão Peterson me disse que quer me treinar. Os outros
homens dele não são tão espertos quanto ele gostaria. Ah, eles conhecem o
mar como as palmas das mãos, mas o capitão quer treinar alguém educado.
– Martin sorriu. — Quando chegarmos à Austrália, se o negócio do capitão
for bem, há uma chance de que ele consiga outro barco e que possa ser meu
um dia.
Kitty arrumou os bolos de volta no prato. — Como conheceu esse
capitão?
Martin baixou o olhar. — Eu eh... o conheci em Hull há cerca de um
mês. O capitão me ajudou a sair de uma situação complicada com eh... uma
determinada eh... mulher. – Ele se virou para encarar os carvões em chamas
na lareira, seu rosto queimando da mesma cor das brasas. Max piscou para
Kitty, e Clara riu. Martin saiu logo depois, prometendo estar em casa
novamente em dois dias, e Kitty suspirou ao saber que agora havia perdido
dois irmãos. Ela só esperava e não perder Benjamin também.

UMA CHUVA TORRENCIAL ricocheteava na rua quando Kitty abriu


os salões para os negócios na manhã seguinte. O céu cinzento do outono
substituiu o azul do verão e ela suspirou ao pensar em enfrentar outro
inverno sombrio.
Alice sugeriu que elas deveriam oferecer sopa e tortas quentes como
alternativa aos sanduíches, agora que o clima ficara mais frio. Kitty, Mary e
Alice discutiam essa nova ideia quando de repente a porta dos fundos foi
aberta e Mildred, muito molhada, entrou com Hetta logo atrás dela.
— Céus! Que clima! – Exclamou Hetta, tirando o casaco. — Estou
encharcada até os ossos.
— Encharcada até os ossos – repetiu Rosie de sua cadeira.
— Vou pôr a chaleira no fogo. – Mary riu. — Uma boa xícara de chá
quente vai consertá-la em pouco tempo.
— Eu odeio o frio – lamentou Hetta, amarrando o avental. — Meus
ossos doem o tempo todo e depois meu peito. Oh, meu peito dói tanto que
tenho que ficar na cama. Não acreditaria pelo que eu passei. – Não
acreditaria o que eu tenho que passar. – Hetta continuou falando sobre suas
aflições e dores, deixando Kitty levemente louca com seus gemidos, mas
sabia que no fundo Hetta era uma boa mulher com um grande coração.
Batidas urgentes na porta dos fundos interromperam a conversa.
Mildred abriu e apareceu um jovem ensopado e cheio de espinhas.
— Srta. McKenzie? – Ele chiou, curvando-se para recuperar o fôlego.
Kitty franziu a testa. — Sim, sou a Srta. McKenzie. Entre. Posso
ajudá-lo?
— Fui enviado antes dos outros... para avisar. – Ela fechou os olhos. O
que tinha acontecido agora?
— Do que está falando, rapaz? – Hetta colocou as mãos nos quadris
largos.
— Calma, Hetta. – O coração de Kitty se revirou. Ela conduziu o
garoto para dentro e fechou a porta. — Diga-me o que aconteceu.
— O Sr. Spencer foi ferido no armazém e está sendo trazido para cá.
Eles estão a caminho agora – ele disse rapidamente, com o rosto vermelho
pelo esforço.
— Ele se machucou? Foi muito ruim? Um arranhão? Uma pancada na
cabeça?
O garoto baixou os cílios, desviando do olhar dela. — Muito ruim,
senhorita. – Por um segundo, ninguém se mexeu, antes que a sala
explodisse em vozes.
Todas as mulheres se mexeram ao mesmo tempo, mas não foram a
lugar algum.
— Parem! Fiquem quietas todas vocês. Não consigo pensar. – Kitty
voltou-se para o garoto. — Sabe onde mora o Dr. Myers?
— Está tudo bem, senhorita, o médico já foi enviado.
— Por que ele não foi levado para o hospital?
— Ele pediu para ser trazido para casa. Suas últimas palavras antes de
desmaiar foram que ele não morreria em um hospital.
Kitty pestanejou e tentou organizar seus pensamentos. Ela deveria se
preparar para receber os homens que traziam Max para casa, mas tudo que
conseguia pensar era no fato de ele ter se machucado, e então Connie...
— Vou colocar água para ferver, senhorita – disse Alice, e acrescentou
mais carvão ao fogo.
— Sim, bom. Agora Mary, suba e coloque um cobertor velho em cima
da cama de Martin. Vamos colocar Max lá para o médico atendê-lo. Então,
diga a Connie... que... que Max sofreu um leve acidente, mas nada muito
terrível, apenas alguns arranhões e contusões. Não a quero preocupada.
Ela olhou para Mildred, que ficou em silêncio junto à porta que dava
para o salão de chá. — Mildred, você terá que cuidar do salão por um
tempo. Se ficar muito ocupada, o que pode acontecer por causa da chuva,
chame Alice para ajudá-la e então. Hetta... – aqui, Kitty virou-se para
mulher mais velha. — Terá que trabalhar na cozinha. Alice mostrará o que
precisa ser feito, mas você está aqui há tempo suficiente para gerenciar, não
é mesmo?
Todas concordaram. Um grito veio do pátio.
Kitty abriu a porta dos fundos e correu na direção da chuva forte.
Um grupo de homens segurava uma porta velha entre eles, carregando
o corpo grande de Max coberto por velhos e finos pedaços de lona.
Ela não teve tempo de olhá-lo enquanto os homens avançavam pela
sala dos fundos. Eles pararam por um momento para decidir a melhor
maneira de levar Max para o andar de cima, pois não havia espaço para
colocá-lo na abarrotada sala dos fundos.
A escada era muito estreita para deixar passar os dois homens do lado,
o que deixou alguns em pé na cozinha quente. Suas roupas molhadas
fumegavam no calor. Alice colocou xícaras de chá quente e doce em suas
mãos, enquanto Kitty seguia o lento progresso subindo as escadas.
Mary esperava na sala de estar e mostrou aos homens para onde levá-
lo. Obviamente satisfeitos por se livrarem do fardo, os homens colocaram a
maca no chão, ao lado da cama de Martin, tiraram a lona de Max e depois
atiraram o grandalhão sobre a cama.
Kitty correu para o lado de Max. Seus gemidos baixos agitaram seu
estômago. Mary teve calafrios com a carne mutilada e a bagunça
ensanguentada da perna direita de Max. O braço direito estava deformado,
claramente quebrado. O rosto de Max, cortado e com arranhões da testa até
o queixo, por também ter sofrido com o impacto do acidente. Sua camisa
rasgada expunha cortes profundos em seu ombro.
Ela olhou para os trabalhadores. — Como isso aconteceu?
O mais velho tirou o chapéu e limpou a testa encharcada. — O
guindaste que transporta mercadorias das instalações dos barcos quebrou e
derrubou toda a carga. Max empurrou um jovem para fora do caminho e
acabou sendo a vítima, mas ele salvou o jovem da morte certa.
— Tem certeza de que o médico está a caminho?
— Sim.
— Espero que ele chegue em breve! Obrigada por sua ajuda! – Ela
assentiu com a cabeça para os homens e depois olhou para Mary. — Leve-
os para tomar um chá e talvez encontre uma toalha para eles. – Kitty
esperou até que saíssem da sala antes de se curvar sobre o rosto de Max e
beijar sua bochecha não ferida. — Você vai ficar bem, Max querido, eu
prometo!
— Kitty! Kitty! Os gritos de Connie assustaram Kitty e ela correu para
o quarto. — Onde ele está? – Connie lutou para sair da cama. — Ele está
bem? Mary me disse agora.
Kitty empurrou suas costas contra os travesseiros e endireitou os
cobertores. — Houve um acidente no armazém, mas Max está bem.
Alguma carga caiu sobre ele. Ele machucou a perna e teve escoriações no
rosto e no ombro.
— Quero vê-lo. – Connie jogou as cobertas de novo.
— Não, Connie! Fique na cama, por favor!
— Quero ver por mim mesma como ele está. Você pode estar
mentindo – soprou Connie ainda tentando sair da cama, mesmo que sua
imensa barriga tornasse isso difícil.
— Quando eu menti para você? Agora, pare com isso! – Disse Kitty. –
Não posso lidar com vocês dois.
— Sra. Spencer, pare de se cansar e se comporte. – O doutor Myers
estava parado na porta.
Kitty foi para o lado do médico. — Max está no quarto dos meninos,
doutor.
Mary trouxe tigelas de água quente e tiras de lençóis de algodão para
ataduras. O médico, com a ajuda de Mary e Kitty, cuidou dos ferimentos de
Max por mais de uma hora antes de finalmente ficar satisfeito, pois era tudo
o que eles podiam fazer no momento.
— Ele precisa ser vigiado constantemente pelos próximos dias. – O
médico franziu a testa enquanto juntava seus acessórios. — Alguém
também terá que vigiá-lo à noite! Tenho certeza de que não há lesões
internas, mas não posso ser otimista demais. Os hematomas surgirão assim
que o inchaço diminuir. Virei vê-lo hoje à noite.
— Não acha que ele deva ser levado ao hospital? – Perguntou Kitty. O
pai dela uma vez disse-lhe que os pobres temiam os hospitais como locais
de morte, talvez porque esperavam muito para ir ao hospital, geralmente era
tarde demais para os médicos salvá-los, mas ela sentia que Max precisava
estar lá.
— Sim, ele deveria mesmo! Mas prefiro não o mover agora. Acredito
que podemos dar conta dele. Não tenho dúvida de que podemos lhe dar
mais atenção aqui, que no próprio hospital. Vou rever a situação dentro de
uma ou duas horas. Agora eu preciso correr, tenho duas mulheres em
trabalho de parto e não tenho ideia de qual delas irá parir primeiro.
— É possível que a perna dele precise de uma operação? – Insistiu
Kitty, acreditando que o médico precisava prestar mais atenção a esse
paciente muito importante.
— Não, a fratura foi no braço dele. Sua perna parece terrível por causa
de toda a carne mutilada ao redor do osso e os rasgos na coxa. Ele deve se
curar totalmente no tempo certo, agora que está com tala. Estou mais
preocupado com lesões internas ou na cabeça. Ele pode entrar em coma.
Vou consultar um outro médico e volto assim que eu puder. Pedirei um
relatório do armazém. Estou preocupado com a Sra. Spencer, Srta.
McKenzie. Ela está pronta para ter o bebê a qualquer momento e precisa
manter a calma.
Kitty suspirou! — Acompanhe o doutor Myers, por favor, Mary.
Deixada sozinha, Kitty pegou uma cadeira no canto e a aproximou da
cama.
— O que fazer – lamentou Hetta, carregando uma xícara de chá para
Kitty. — Agora, não quero que se preocupe, Srta. Kitty. Ficarei aqui esta
noite para preparar uma refeição para todos e olhar as crianças. A senhorita
e Mary estarão ocupadas demais com o Sr. e a Sra. Spencer para se
preocupar com o resto.
Kitty queria protestar, pois não achava que poderia aguentar a conversa
de Hetta hoje à noite. No entanto, seria mais fácil ter alguém cuidando de
Rosie e mantendo Clara e Joe entretidos. — Obrigada, Hetta, eu agradeço.
— Não é um problema, Srta. Kitty. Não tenho ninguém em casa.
Então, não farei falta.
Kitty olhou para ela e percebeu que a pobre mulher estava sozinha.
Hetta não teve filhos e seu marido e seus pais estavam mortos há muito
tempo. As pessoas sob esse teto eram tudo o que ela tinha por companhia.
Aos 58 anos, ela estava sozinha em um quarto alugado em um prédio
residencial. A compaixão encheu Kitty e ela agarrou a mão da mulher mais
velha em reconhecimento antes de Hetta sair da sala. Kitty se levantou e foi
até a janela. As nuvens cinzentas de tempestade ainda mandavam o dilúvio.
Ela estremeceu de frio. O quarto não tinha aquecimento e se preocupou com
a possibilidade de Max também estar com frio.
— Como ele está? – Connie apareceu na porta, fazendo Kitty quase ter
um derrame. Connie entrou mancando na sala e sentou na cadeira.
— Volte para a cama – Kitty sussurrou.
— Sim, irei em um minuto. Quero vê-lo primeiro.
— Mas Connie...
— Tudo bem, moça. Minha hora está chegando, então não importa se
agora eu começar..., mas eu tinha que ver Max. Estou fora de controle de
tanta preocupação. – Connie pegou a mão direita de Max e a beijou. —
Meu Deus, o estrago foi grande!
— O médico disse que ele vai se recuperar logo. – Ela apertou o
ombro de Connie. — Agora volte para a cama!
— Eu quase caí na primeira vez que coloquei os pés no chão. Pensei
ter esquecido como andar. – Ela deu de ombros, sorrindo através das
lágrimas. — Tinha que vê-lo, moça.
— Eu sei, querida. – Ela deu um pequeno beijo no topo da cabeça de
Connie. — Agora, vamos levá-la de volta para a cama. – Ela ajudou Connie
a voltar para o quarto.
— Virá me buscar se ele me chamar?
— Claro, agora descanse. – Kitty sorriu e fechou a porta. Ela
encontrou Mary na sala de estar. — Está tudo bem lá embaixo?
— Sim! Alice distrai Rosie lhe dando pedaços de massa para brincar.
Ouviram os gemidos de Max e correram para o seu quarto. Seu rosto
havia perdido toda a cor e gotas de suor preenchiam sua testa. Kitty
rapidamente umedeceu um pano e as enxugou. Sua respiração era difícil e
ela pegou o sedativo que o médico havia deixado. Mordeu o lábio enquanto
media a dose certa e, em seguida, tentou derramá-lo na boca de Max. Um
pouco da mistura passou por seus lábios e o resto escorreu pelo queixo. Ela
esperava que ele engolisse o suficiente para se acalmar novamente. Ele
gemeu e tossiu sangue. Suas mãos tremiam enquanto ela o observava. Ele
parecia horrível.
— Pobre Max. – Mary enxugou uma lágrima.
— Ele está piorando – Kitty lamentou. Ela tocou sua testa. — Ele está
quente em um minuto e frio no minuto seguinte. Está suando muito, acho
que está com dor, mas não abre os olhos.
Max se contorceu e ofegou. Seu movimento fez o sangue escorrer pelo
curativo em seu ombro. Kitty gemeu.
— Ele deve ficar quieto ou rasgará os pontos. – Levantou os
cobertores para verificar os curativos nas pernas dele. Ela parou.
Mary deu um passo mais perto. — Qual é o problema?
— Olhe – Kitty sussurrou.
Ela olhou para o estômago de Max e seu peito cabeludo exposto. — O
que...
— Veja em baixo dos pelos dele, olhe através deles. O que vê?
Mary olhou para o peito e o estômago de Max. — Hematomas.
— Não, é diferente, eu tenho um pressentimento... papai costumava
me levar às vezes para visitar pacientes... eu costumava ler seus livros de
medicina, lembra? – A voz dela falhou. Ela girou da cama e desceu
correndo as escadas.
Ela não parou para agarrar o chapéu ou o casaco enquanto corria pela
porta dos fundos e pelo caminho lateral. Seu cabelo soltou-se e chicoteou
seus olhos. Ela correu pela rua, passando por pessoas de bocas abertas
quando percebiam quem ela era. Virou a esquina e continuou. Os
paralelepípedos incomodavam através de seus chinelos finos, mas isso não
a impediu. Embora sentisse uma pontada ao seu lado, continuou a correr. Às
vezes, perdia o equilíbrio e tropeçava, mas seguia em frente. A rua em que
o médico morava pairava diante dela. Ao atravessar a rua, ela foi agarrada
pelo braço e puxada de volta para a passarela no momento em que uma
carruagem disparava.
O vento frio da carruagem passou por seu rosto.
— Por Deus. Que diabos estava tentando fazer, se matar? – Questionou
o doutor Myers!
Kitty dobrou-se, esbaforida. Somente depois que ela afastou os cabelos
do rosto e ele viu quem segurava com força, o médico se acalmou. — Srta.
McKenzie? O que é isso? Os Spencers?
— Max... – Kitty assentiu, incapaz de falar. Seu peito estava pronto
para explodir quando ela arrastou o ar para os pulmões.
Ele a pegou pelo braço e atravessou a rua até a hospedaria na esquina.
Ele disse para ela esperar do lado de fora. Depois de alguns minutos
intermináveis, o médico conduzia um cavalo e se apresentava nos fundos do
estabelecimento. Ele se deteve ao lado de Kitty e ela se juntou a ele sem
que falassem uma palavra. Myers conduziu direto para os salões de chá, e
Kitty murmurou para que não a esperasse e fosse direto para Max. Em vez
disso, o Dr. Myers se apressou em ajudá-la. Juntos, eles correram para os
salões de chá pela entrada da frente.
Myers a conduziu para a sala dos fundos. O choro silencioso de
Mildred e Hetta os confrontou, interrompendo-os por um momento antes de
subirem. Silêncio! Kitty hesitou na porta do quarto enquanto o Dr. Myers
caminhava até Max. Alice estava sentada na cadeira, olhando para a cama.
Ao lado da cama estava Mary, com lágrimas fluindo descontroladamente
em suas bochechas. Na cama estava Connie, enrolada em torno de Max,
tanto quanto sua barriga enorme permitia. Gentilmente, o Dr. Myers
examinou Max onde o hematoma se estendia pelo interior do seu peito e
estômago.
Sangue escorria pelo queixo. — Sangramento interno. – Myers
balançou a cabeça. — Eu sinto muito!
Kitty ofegou e empurrou o punho contra a boca para impedir seu
gemido. Era como se alguém tivesse lhe dado um soco no peito. Ela não
conseguia respirar. Algum peso hediondo fora empurrado contra suas
costelas. Max parecia estranhamente contente e seu coração sofria com uma
dor aguda.
O grande e belo Max, tirado deles por um estranho acidente. Nunca
mais ouviriam sua voz alta e estridente, sua risada, suas piadas ou suas
histórias. Quantas horas ele entreteve as crianças no porão com suas
histórias e jogos? Mas não mais. Um soluço ficou preso em sua garganta.
Foi o único som na sala. Connie levantou a cabeça e olhou para ele. A
agonia em seus olhos fez Kitty quase se dobrar em duas. Como iriam
suportar isso?

K ITTY OLHOU AO redor do salão para as pessoas que estavam de pé ou sentadas nas mesas bebendo chá e comendo
sanduíches e bolos. Houve uma grande adesão. Deixariam Max orgulhoso. Muitos de seus colegas de trabalho e amigos foram até
o cemitério e a maioria voltou com a família para as homenagens, ali. Um bom número deles teve que ficar na sala dos fundos ou
no pátio devido à multidão. As pobres Alice, Mildred e Hetta, se encarregaram de servir a todos; até Clara fez a sua parte.
Kitty deu um sorriso encorajador enquanto ela passava com uma bandeja de
sanduíches.
Kitty percebeu que odiava a cor preta. Ela dominava a sala. Quase
todo mundo nos salões de chá a usava.
As meninas colocaram material preto nas janelas e amarraram fitas
pretas ao redor de cada vaso de flores em todas as mesas.
Parecia que todas as cores haviam desaparecido. Ela queria ver algo
brilhante e alegre e estava completamente envergonhada por ter pensado
nisso nesse dia terrível.
Dois dias era todo o tempo transcorrido. Dois dias. Para Kitty, parecia
dois anos. O tempo parou desde que Max morreu, e ela não sabia como
seguiriam em frente sem ele.
Ela olhou para Connie, sentada ao lado de Dorothea e Mary. Apesar de
sua provação, ela parecia bem, embora muito pálida, como se estivesse
envolta em uma aura pacífica. Kitty tremia. “Nada mais pode acontecer
com aqueles que eu amo, ou ficarei louca. “
—Você está bem? – Martin colocou a mão no ombro dela.
Ela estendeu a mão e acariciou seu rosto. Hoje ela também perdia o
irmão. Uma grande tristeza brotou por dentro, ameaçando sufocá-la. Ela
tinha que ser corajosa.
— A que horas sai o seu trem para Londres?
— Não vou. – Kitty franziu o cenho.
— Não vai?
— Não. Ficarei em casa! Precisará de mim agora.
Kitty se endireitou. — Ah, não. Não, Martin. Partirá naquele trem hoje
e navegará para uma nova vida. Uma pessoa nesta família sacrificando seus
sonhos já é suficiente. Eu não o deixarei fazer o mesmo.
— Mas sem Max para ajudar nos salões e sem seu salário, eu pensei...
— Não, Martin, não. Irá, e não discutirei mais sobre isso. – Ela sorriu
para aliviar suas palavras. — Eu te amo e sentirei sua falta, mas não o
deixarei ficar aqui quando tanta coisa lá fora o espera. Então, vá! Arrume
seus pertences e depois diga adeus a todos nós. – Kitty ficou na ponta dos
pés e beijou sua bochecha. — Oh, como sentirei sua falta.
Mais tarde naquela noite, Kitty e Connie sentaram-se em ambos os
lados do fogo na sala de estar. Com todos dormindo, o assobio do fogo era o
único som. Kitty olhou através da borda da xícara para Connie e novamente
teve a impressão de que ela estava em paz. Kitty se perguntou como poderia
estar depois de perder Max. — Está muito cansada?
Connie olhou para ela. — Não, moça.
— Posso pegar alguma coisa para você?
— Não, não há nada que possa pegar para mim.
Kitty hesitou. — Acho que lidou extremamente bem com esse
pesadelo, considerando as circunstâncias. – A voz dela falhou de emoção.
— Eu te admiro!
Connie sorriu. — Isso é porque não tenho mais medo.
Intrigada, Kitty franziu o cenho. — Medo? De quê?
— De ter esse bebê. Veja bem, agora Max está esperando por nós, não
tenho medo de morrer.
Chocada com essa confissão, Kitty ficou olhando-a. — M... mas você
não vai morrer, Connie, e esse bebê também não.
Connie se virou para encarar o fogo. — Não pode garantir isso, minha
querida. Não que isso importe, porque Max vai cuidar de nós. Ele foi
primeiro para não ser deixado para trás.
— Não vou ouvir esse tipo de conversa, Connie. – Disse isso,
apertando-lhe a mão. — Está me dizendo que está disposta a morrer, você e
esse bebê? É isso que está me dizendo?
Connie se levantou do sofá e olhou para Kitty com uma expressão
resoluta. — Tudo o que estou dizendo é que, se eu ou o bebê morrermos,
tudo ficará bem, já que Max estará lá para cuidar de nós!
— Bem, isso não acontecerá, e você precisa acreditar nisso também.
— Não cabe a nenhum de nós dizer o que vai acontecer, apenas o
destino pode decidir.
Connie se inclinou e deu um beijo na bochecha de Kitty. — Boa noite,
moça.
A noite trouxe uma cobertura de neve macia para a cidade de York. O
inverno ainda estava a um mês, mas a natureza decidiu alertar
antecipadamente o povo de que o frio estava ali e permaneceria por muito
tempo. As pessoas agiam um pouco mais rápido agora, tentando concluir
seus negócios para que pudessem estar em ambientes fechados, onde estava
mais quente.
Os idosos se queixavam de ossos doloridos e dores nas articulações ao
pensar em outro longo período de frio. Enquanto as mães pobres e
perseguidas se perguntavam se poderiam passar outro inverno com roupas
já muito curtas e gastas para seus filhos. O primeiro dia de abertura após o
funeral de Max mostrou-se movimentado. O tempo frio deu às pessoas a
desculpa para pedirem uma xícara de chá ou uma tigela de sopa saborosa
que as aquecesse antes de seguirem seus caminhos novamente. Alice fez
muitas tortas salgadas quentes e pastéis, que provaram ser tão populares
quanto seus bolos.
A porta dos fundos se abriu quando Hetta, com flocos de neve em seu
casaco e chapéu, marchou carregando uma cesta de vime cheia com as
roupas recém passadas da família. — A neve estará a um metro de
profundidade ao anoitecer, pode escrever o que estou dizendo! – Ela bufou,
colocando a cesta no chão e depois tirou o chapéu e o casaco. — Como
estão? – Ela as cumprimentou. Não esperando uma resposta, ela foi
diretamente a um conto sobre um inverno, que nevou por semanas a fio,
prendendo idosos em suas próprias casas.
— Pare de conversar, mulher e tome um chá – disse Connie. Indo até a
beira da cadeira, ela usou a mesa como apoio para conseguir se levantar.
— Se crescer mais, Sra. Spencer, explodirá! – Hetta balançou a cabeça
em desaprovação. — Não é o que eu gostaria.
Os olhos de Connie se estreitaram para a outra mulher. — Acha que
usar tendas como roupas é divertido?
Kitty se colocou entre elas e pegou o braço de Connie. —Subirá para
descansar? Dr. Myers...
— É um idiota – zombou Connie. Inesperadamente, ela gemeu e
balançou para o lado.
— Connie! – Kitty colocou suas costas na cadeira.
— Oh, querida! – Connie olhou para baixo. Uma mancha ensopada se
espalhou por suas saias. Todo mundo olhou, hipnotizadas pela visão.
— Eu tive uma dor estranha a noite toda. Só que pensei que era apenas
o bebê se mexendo.
Mary entrou na sala dos fundos com o pedido de um cliente. — O que
aconteceu? – Como se o tom de Mary provocasse algo em suas mentes,
todos se moveram ao mesmo tempo em pânico.
— Connie está tendo o bebê. – Kitty se perguntou se suas pernas a
sustentariam, tal era sua ansiedade.
— Precisamos ajudá-la a se deitar. – Alice começou a encher uma
panela grande com água da chaleira. — Água quente, precisamos de água
quente.
Kitty e Mary ajudaram Connie a subir.
— Precisamos das toalhas velhas para cobrir os lençóis, Mary –
instruiu Kitty.
Ela mordeu o lábio inferior. Por semanas, ela estava se organizando
silenciosamente para esse dia e agora que chegou, estava tão nervosa e com
medo de que tudo não corresse tão bem quanto ela planejara.
A declaração de Connie na noite do funeral de Max permanecia em
sua mente.
Connie segurou a mão de Kitty. — Ouça! Quero dizer isso agora, caso
não tenha chance mais tarde.
— Não, Connie, por favor...
— Ouça. Ninguém sabe o futuro, querida! Então, eu quero que saiba
que eu te amo. Eu amo todos vocês, e se eu ficar com Max e o bebê ficar
aqui, então lhe dirá que seus pais o amavam muito? Dirá isso? – Os olhos
dela imploravam a Kitty.
Kitty assentiu, com a voz embargada. — Venha, vamos ficar à
vontade. Então poderá tomar uma xícara de chá. Temos uma longa noite
pela frente. – Essas palavras assombraram Kitty quando a tarde chegou e
Connie só teve a dor estranha mais ou menos a cada hora. Por quase oito
horas, além da dor nas costas constante, Connie não sofreu mais dores.
Alice e sua mãe, Nora, a parteira local estavam conversando com Mary.
Hetta, Deus abençoe sua alma amável, levou Joe, Clara e Rosie para casa
com ela para salvá-los de ouvir os gemidos de Connie.
— Bem, Sra. Spencer. – Kitty sorriu. — Que tal um jogo de cartas?
— Sim, também, já que nada mais... – Connie contorceu seu rosto de
dor.
Imediatamente, Kitty acariciou sua mão. — Está muito difícil?
O gemido baixo de Connie chamou a atenção das mulheres na sala de
estar. Em segundos o quarto estava cheio. Nora foi direto para Connie e
esfregou suas costas enquanto ela se arqueava de dor.
— Agora, moça, é isso, vamos lá. Muito bem – murmurou Nora.
A dor recuou e Connie relaxou novamente. — Essa foi pior ainda.
Obviamente, o pequeno ser decidiu se mexer.
Nora assentiu, sorrindo. — Acho que deveria tentar dormir enquanto
pode. – Ela enxotou todo mundo de novo, exceto Kitty, que se recostou na
cadeira.
Pelas próximas três horas, Connie cochilou entre dores intensas. Os
outros sentiram que o trabalho de parto estava progredindo e Alice, em seu
nervosismo, tinha tanta água fervida pronta que fez todo mundo rir! Kitty
pediu que Mary sentasse com Connie enquanto ela se lavava. Em seu
quarto, Kitty ficou de pé junto à janela e olhou para a rua. A neve recém
caída dava uma aparência limpa. Ela ajoelhou-se no parapeito da janela
para rezar pelos destinos desconhecidos, pedindo que Connie e seu bebê
fossem poupados.
— Deus, eu sei que não tenho sido um crente obediente, mas eu
imploro que o Senhor me ouça agora. Deixe que tenham vidas longas e
felizes, por favor – ela sussurrou.
Abrindo os olhos, ela se levantou com uma sensação de paz.
Enquanto lavava o rosto e as mãos, o anel de noivado brilhava à luz da
lâmpada. Kitty beijou sua pedra esmeralda para dar sorte e sorriu. Sentia
falta de Ben mais esta noite do que qualquer outra. Ela desejava ver seu
sorriso e sentir os braços dele ao seu redor, ouvir sua voz e ver seus olhos
brilharem só para ela. Com um suspiro profundo, endireitou os ombros e
voltou para Connie e o destino que as esperava. Quando o relógio bateu
uma hora da manhã, Nora ficou entrincheirada no final da cama.
— Certo, agora Sra. Spencer, está com vontade de empurrar?
— Nãooooo! – Connie gemeu entre dentes enquanto a contração
atingia o pico.
— Isso é bom! Bem! Sentirá quando for a hora certa – disse Nora,
observando o movimento entre as pernas esticadas de Connie.
Mary e Kitty, nos dois lados da cama, seguravam as mãos de Connie e
enxugavam a testa quando necessário.
— Está indo tão bem, querida, tão bem. Kitty a encorajou.
— Já me cansei – Connie bufou, com o rosto molhado de suor.
— Em breve tudo terminará, e seu bebê estará em seus braços! – Ela
ajudou Connie a tomar um gole de água em um copo.
— Não, não. Levará muito tempo. Sei que não vou conseguir. –
Connie entrou em pânico quando outra dor tomou conta dela. Ela apertou
suas mãos até o sangue parar de fluir, mas Mary e Kitty ignoraram isso
enquanto a ajudavam na provação. Sobre os telhados, o céu iluminou-se ao
longe, anunciando um novo amanhecer. Só que, acima dos salões de chá,
Connie enfraquecia. Meia hora antes, Nora havia enviado Alice até o
médico. Horas de constantes contrações e dores a haviam exaurido.
Nora puxou Kitty para o lado. — Estou preocupada que o bebê esteja
preso ou revirado no útero.
— Mas o médico saberá o que fazer? Kitty sussurrou.
— Sim, mas é um trabalho complicado. Com a força de suas dores,
essa bebê já deveria estar saindo e isso não está acontecendo.
Um gemido de Connie, tomado por outra contração, as interrompeu.
Desta vez houve uma mudança sutil nela quando a natureza se fez ouvir!
Connie agarrou suas coxas e empurrou. Um barulho áspero veio do fundo
de seu peito e seu rosto tornou-se rubro pelo esforço.
Gotas de suor irromperam na testa de Nora e seus cabelos grisalhos
ficaram grudados. Ela olhou para cima, do seu lugar no final da cama. —
Posso ver a cabeça, Sra. Spencer! Isso é bom! Agora, mais devagar, acabará
em um minuto, vá com calma.
Uma agitação na porta anunciou a chegada do doutor Myers com Alice
logo atrás dele. Ele entendeu a situação e chamou Nora um minuto para que
pudessem conversar em particular. A atenção deles foi logo desviada de
volta para Connie, quando ela se levantou novamente para segurar suas
pernas e empurrar. O doutor Myers falou com ela sobre isso e a elogiou
assim que terminou. Ele lavou as mãos e depois sentiu o estômago dela. Por
alguns minutos, ele ouviu e sondou seu monte estendido.
— Acho que são gêmeos, Sra. Spencer! – declarou ele, antes de se
retirar para o final da cama.
Connie, descansando entre dores, estremeceu com as palavras do
médico. — Não...
— Gêmeos! – Kitty e Mary falaram juntas! Connie olhou para elas
com medo quando outra onda de dor desceu sobre ela.
— Certo, Sra. Spencer, se esforce agora! Precisamos tirar esses
pequeninos – disse ele quando a cabeça do bebê surgiu. Rapidamente, ele
procurou o cordão umbilical em volta do pescoço. No momento seguinte, o
Dr. Meyers virou os ombros e o bebê deslizou sobre a cama. — É um
menino!
Kitty correu para beijar a bochecha vermelha e quente de Connie.
— Ele está vivo? – resmungou Connie.
Como se sentisse a dúvida de sua mãe, o sujeito minúsculo rugiu sua
fúria por ter sido, sem cerimônia, limpo com um pano quente por Nora.
— Ele tem um bom par de pulmões – declarou Nora, passando a
tesoura ao médico para ele amarrar e depois cortar o cordão. Logo depois,
Nora pegou o bebê e o envolveu em um cobertor macio de lã. — Mary,
venha. Segura este pequeno, pois há mais trabalho a ser feito.
Lágrimas se formaram nos olhos de Mary quando Nora lhe deu o bebê.
Lentamente, ela foi para a cama e se abaixou para mostrar a Connie seu
primeiro filho, seu filho. Connie levantou a cabeça para admirar o pequeno
milagre.
— Meu filho – ela sussurrou.
— Oh, Connie, como ele é bonito – Felicidade e alívio saíram de Kitty.
— Ele é tão bonito quanto seu pai.
— Acho que deve descansar um pouco antes que o próximo apareça,
Sra. Spencer – murmurou o Dr. Myers.
— Vou fazer uma xícara de chá para ela – disse Alice, saindo
correndo.
Dez minutos depois, Connie arfou e se esforçou para empurrar o
próximo bebê para fora.
— Espere, Sra. Spencer, espere – instruiu Myers. — A cabeça está
fora, mas preciso verificar o cordão.
Com a próxima contração, Connie empurrou.
— Tem uma filha, Sra. Spencer. Parabéns. – O doutor Myers limpou as
vias aéreas da bebê.
— Ela está bem? – Connie tentou se sentar, ansiosa porque o novo
bebê não havia chorado.
Antes que o médico pudesse responder, o menino nos braços de Mary
chorou e a pequena menina respondeu com seu primeiro lamento. Connie
recostou-se nos travesseiros e fechou os olhos. — Está feito, Max, eu
consegui, meu amor.
Apenas Kitty ouviu o sussurro de Connie.
— Connie! – Kitty, pensando que ela estava se afastando deles,
sacudiu os ombros de Connie com força. Assustados, os olhos de Connie se
abriram. Kitty gritou em seu rosto. — Não ouse me deixar.
— Estou cansada, querida, muito cansada – murmurou Connie. — Por
que está gritando?
Kitty inclinou a cabeça. Lágrimas tremeram na ponta de seus cílios. —
Eu sinto muito. Eu pensei... eu... não importa.
O doutor Myers espiou por cima das pernas dobradas de Connie. —
Seu trabalho ainda não terminou, Sra. Spencer. Há o pós-parto. Então
poderá dormir o dia inteiro. – Ele sorriu para ela.
Pouco tempo depois, Alice e Nora limparam Connie e arrumaram a
cama com lençóis limpos. Kitty sentou-se com a menina nos braços ao lado
de Mary, que segurava o menino. Eles viram como Connie, vestindo uma
camisola nova, recostava-se contra almofadas grossas e bebia uma xícara de
chá.
— Dois bebês. – Kitty sorriu para Connie. Seu medo de perder Connie
havia diminuído agora, quando a cor voltou às suas bochechas.
— Como serão chamados, então? – perguntou Nora, juntando os
lençóis sujos em uma cesta pronta para descer e ferver.
— Charles e Adelaide – anunciou Connie. — É um alívio
finalmente dizer o nome deles. Fiquei atormentada dia e noite pensando
que isso pudesse acabar em nada mais que um desastre.
Kitty agarrou a mão dela. — Isso é porque não me ouviu.
— Meu Deus, são nomes bonitos e não há erro – declarou Nora.
— Bem chique. – Connie sorriu. — Eu tive muito tempo para
examinar os livros de Kitty enquanto fiquei na cama por todos esses meses.
Eu estava olhando um livro sobre a Austrália e notei uma cidade chamada
Adelaide. Gostei e Max também. – O lábio inferior dela tremeu.
— E Charles? – Indagou Mary, segurando o recém-nomeado Charles
Spencer.
— Charles é o nome do pai de Max. Max queria. – Connie enxugou as
lágrimas e fungou.
— Os dois são bons nomes. – Kitty beijou a cabeça macia e delicada
de Adelaide. — Tenho certeza de que Max está sorrindo, muito orgulhoso
de seus bebês.
Capítulo Quatorze

NA VÉSPERA DE Ano Novo, pouco antes da meia-noite, Kitty estava


segurando Charles por cima do ombro e acariciando suas costas. Ela
costumava se levantar durante a noite para ajudar Connie e achava estranho
como, no silêncio da noite, seus pensamentos a deprimiam. Como noiva
apaixonada por um homem bom, ela deveria estar animada e feliz. No
entanto, seu homem estava a milhares de quilômetros de distância, e a mãe
dele, a única mulher que, em circunstâncias normais, ela deveria considerar
como segunda mãe, não gostava dela. Que situação desesperadora. Kitty
suspirou e olhou para o fogo baixo e cintilante. Ela ansiava por ser
amparada. No momento, ela desejava que os braços fortes de seu pai a
segurassem com força. Ela desejou poder dormir ouvindo suas histórias
sobre cuidar de doentes como costumava fazer quando sua vida era tão mais
simples. Mas os homens em sua vida a deixaram, um por um, primeiro seu
pai, depois Rory, Ben, Max e Martin. Cada um deles deixara um buraco em
seu coração.
A situação com Rory ainda a entristecia e a irritava. Não ter nenhuma
palavra dele em mais de um ano doía. Será que ele já se perguntou como
eles estavam? Como ele podia se comportar dessa maneira? No entanto,
tantas coisas aconteceram sem sua presença que agora ela pensava nele
apenas no passado, como se ele também tivesse morrido, como Max.
Charles fungou em seu pescoço e ela cantarolou para ele quando o rosto
sorridente de Ben lhe veio à mente. Como ela podia sentir tanto a falta dele
e ainda viver? A dor constante que carregava em seu coração sobre Ben,
estranhamente se tornara um conforto. Connie deslocou o peso de Adelaide
enquanto a amamentava.
— Já faz um tempo desde que chegou uma carta de Ben.
— Sim, tem mais de dois meses. Me assusta pensar que as cartas
venenosas de sua mãe possam funcionar, e ele pense duas vezes sobre mim.
Sei que não devo duvidar dele, mas às vezes não consigo evitar. Também
duvido de mim mesma e do que tínhamos.
— Por quê?
— Tenho medo de esquecer como ele é. Temo que ele me esqueça. Ele
poderia facilmente se apaixonar por outra, alguém que é de carne e osso
para ele, enquanto eu sou apenas uma lembrança de uma carta.
— Não, moça! Ele é verdadeiro para você. Eu sei.
— Gostaria de ter sua confiança. Sinto que tenho um peso nos ombros
que está me empurrando para baixo.
Connie acariciou a mão pequena de Adelaide. — Vivemos num mundo
estranho, moça.
— Sim, verdade. – Kitty concordou.
— Quem pensaria que o ano terminaria como está? Talvez haja uma
razão para tudo isso? – Connie deu de ombros.
— Obviamente, era para ser assim. Bem, só podemos esperar que o
Ano Novo seja muito melhor. – Ela beijou a bochecha de Charles.
— Pode ser.
— O que quer dizer com isso?
— Bem, para começar, todos nós podemos ir para a Austrália para que
se case com esse seu rapaz.
Surpresa, Kitty virou-se para encarar Connie corretamente. — Ir... ir
para a Austrália?
— Sim, por que não? É o que quer, não é?
— Bem, sim. Sim, é claro, mas existem outros fatores a considerar e a
loja e...
Connie estendeu sua mão e deu um tapinha na mão de Kitty.
— Escute, minha querida, nós temos apenas uma vida e nunca
sabemos quando ela vai acabar. Não aprendemos isso recentemente? Então,
digo que iremos aproveitar ao máximo.
— Não deixarei todos vocês aqui. – Ela balançou a cabeça, impedindo
qualquer discussão. Connie riu.
— Não, moça, não deixará nenhum de nós. Todos iremos com você.
Todos nós.
A emoção ficou presa em sua garganta. — Está falando sério?
— Sim, moça, como na vez em que teve a ideia. Ben parece tão feliz
em suas cartas que pode demorar um pouco até ele voltar para casa. Acho
que está na hora de ir procurá-lo.
— Mas há muito a considerar.
— Na minha opinião, moça, só há uma coisa a considerar, e é começar
de novo. Todos fomos azarados o suficiente para durar a vida inteira.
— Oh, Connie. – Kitty deixou as lágrimas de alegria e umas poucas de
tristeza caírem livremente. Elas sorriram entre lágrimas quando o relógio
bateu meia-noite e os gêmeos alcançaram o ano novo de mil e oitocentos e
sessenta e seis. No café da manhã, Kitty deu a notícia a seu irmão e irmãs.
Mary parecia horrorizada, mas Joe e Clara se animaram, e Rosie aplaudiu
sem saber o que estava acontecendo, mas feliz por ser incluída de qualquer
maneira.
— Não acredito que está fazendo isso conosco de novo – bradou Mary,
antes de descer as escadas correndo.
Connie levantou as sobrancelhas. — Mantenha-se forte.
Kitty desceu as escadas para informar Alice. — Alice, há uma coisa
que quero lhe contar.
— Ah, sim, senhorita? – Alice sorriu, erguendo os olhos do bolo. —
Mary saiu correndo daqui como uma bala de um revólver.
— Sim, mas esqueça isso por enquanto. Quero que saiba que eu decidi
vender os salões de chá e emigrar para a Austrália para ficar com Benjamin
e mais perto de Martin. – Kitty esperou sua reação. Alice se endireitou
lentamente e, com as costas de uma mão coberta de farinha, afastou um
cacho loiro que escapara de sua touca.
— Indo para a Austrália? – Kitty torceu as mãos diante da angústia que
passou pelo rosto da moça. Alice assentiu e passou o rolo sem dizer outra
palavra quando a porta dos fundos se abriu e Hetta e Mildred entraram.
Aproveitando o momento antes de Hetta começar a conversa, Kitty deu a
mesma notícia.
Os olhos de Mildred se arregalaram em choque, e ela tremeu um
pouco. Ela pediu licença para sair para o banheiro. Hetta sentou-se
abruptamente em uma cadeira, jogou o avental no rosto e chorou como se
seu coração se partisse. A manhã passou, entremeada por ataques de Hetta
em torrentes de choro e Alice fazendo suas infindáveis xícaras de chá para
acalmá-la. Kitty escapou para o andar de cima na primeira possibilidade de
fugir da atmosfera sombria. Ninguém falou muito e nem o comércio estava
tão forte como de costume. Mary voltou para casa no meio da tarde, fria e
infeliz. Ela foi direto para o quarto e fechou a porta. Connie dobrou a roupa
limpa, pronta para passar. — Ela virá mais cedo ou mais tarde, moça.
— Eu pensei que ela aceitaria a notícia. – Kitty mordeu o lábio
inferior. — Eu me sinto tão culpada.
— Não pode continuar vivendo sua vida para se adequar a outras
pessoas.
— Mas Ben pode voltar para casa em breve.
— Sim, ele poderia, e então ele poderia se virar pra você seis meses
depois e dizer que voltaria para a Austrália. O que significa que estaríamos
indo de qualquer maneira. Leu as cartas dele, moça. Sabe como ele está
feliz lá. Tudo o que ele está sentindo falta é de você.
— Sim, eu sei que está certa. Além disso, a casa de Ben é Kingsley
Manor. Eventualmente, retornaremos à Inglaterra.
— Exatamente, mas por enquanto, estamos pensamos no futuro e
talvez o futuro seja nesse novo país onde jovens podem dar uma boa vida
para si mesmos.
— Tem certeza?
— Sim. Eu sei que é isso que Max quer para seus bebês. Por isso
sugeri. Penso no que Max faria, agora que os nossos tesouros estão em
segurança. É meu dever tentar dar a eles o melhor que posso. – Connie
sorriu um pouco constrangida ao falar, e Kitty sorriu pela primeira vez
naquele dia. No jantar, Kitty sentou-se com a família para discutir a
mudança.
— Por que não pode ir sozinha? – Implorou Mary. — Pode deixar
Connie, Alice e eu para administrarmos a loja, não é como se não
soubéssemos.
— Não, Mary. Todos nós iremos juntos. – Connie cruzou os braços.
— Acho que essa família já foi dividida demais.
— Mas estamos estabelecidos agora. Não é como quando estávamos
no porão – continuou Mary. Ela olhou para Kitty. — Por que está fazendo
isso conosco novamente? Voltou atrás em sua palavra.
— Porque o que temos aqui? – Kitty colocou as mãos nas têmporas. —
O que resta para nós?
Mary levantou-se. — Tem a loja. Kingsley voltará e você viverá em
sua mansão.
Ao pensar em morar com Georgina, Kitty estremeceu.
— No devido tempo, sim, mas por enquanto quero estar com ele e
conhecer outro país. Será bom para todos nós. Veja o problema em que Joe
se meteu. Este pode ser um novo começo para todos nós. Por que está brava
comigo?
— Quero ficar aqui. Eu mesma administro a loja.
— Não seja boba. Tem dezesseis anos de idade – Kitty disse
— Tenho idade suficiente para saber o que quero! – Mary foi para o
quarto e bateu a porta.
Connie virou-se para Clara. — Leve Rosie e vá se deitar também,
mocinha. Ela olhou para Joe. — Mocinho, já está na hora de se colocar na
cama.
As três crianças deram um beijo de boa noite em Kitty e ela os abraçou
com força. — Bons sonhos. – Depois que eles se foram, Connie agarrou a
mão de Kitty.
— No que está pensando?
— Eu não sei se estou fazendo a coisa sensata.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que há muito em jogo. Tudo parece muito confuso para
tentar descobrir o que é a coisa certa a fazer no momento. E ultimamente,
Rory tem surgido bastante em minha mente. Por que, eu não sei. Ele se foi
há tanto tempo. Ainda assim, penso nele e me pergunto se ele está bem, por
mais que isso me enlouqueça.
— Não deveria estar se perguntando sobre ele. Ele arrumou sua cama,
moça.
Kitty andava de um lado para outro. Suas saias pretas balançavam na
quietude da sala.
— E o Ben, não tenho notícias de Ben há mais de dois meses, nem
mesmo um desejo de Feliz Natal. Estou preocupada em vender a loja,
arrumar tudo e dizer adeus às pessoas que conhecemos e nos importamos.
Eu posso estar cometendo o maior erro da minha vida. Vai ser difícil,
Connie, muito difícil. Acho que não estou disposta a fazê-lo.
— Tomou a decisão e com certeza é a melhor. Quero que seja feliz,
moça. – Connie estendeu a mão e apagou o pavio da lâmpada, mergulhando
o canto da sala na escuridão. — Está cansada, nossa moça, isso é tudo.
Precisa parar de me ajudar à noite.
Kitty colocou o guarda-fogo em volta da lareira.
— Não, Connie. Eu amo estar com os bebês, é a única chance que
tenho de passar um tempo com eles. Além disso, precisa de ajuda
— Se eu precisar, acordarei Mary. Você faz o suficiente durante o dia
com a loja. Não discutirei – acrescentou Connie, quando Kitty estava
prestes a protestar. — Agora vá pra cama.
— O que devo fazer com Mary?
— Deixe Mary comigo.
Na manhã seguinte, Connie se levantou antes de todos. O relógio bateu
cinco horas quando ela se vestiu com seu vestido de luto de crepe e
verificou se os bebês dormiam profundamente. Depois de jogar o xale preto
sobre os ombros e calçar os sapatos de casa, acendeu uma vela e se arrastou
pelas escadas.
A porta dos fundos se abriu quando Connie descia do último degrau.
Alice entrou, sacudindo a neve do chapéu e do casaco. — Oh, Sra. Connie!
A senhora me surpreendeu. Os bebês estão acordados?
— Não, moça, eles estão dormindo profundamente. Preciso falar com
você.
— Comigo? Por quê? – Alice tirou o casaco e o chapéu e tirou as botas
cobertas de neve para substituí-las por chinelos.
Connie abriu a porta do forno e ajeitou as brasas com o bastão antes de
adicionar algumas toras de madeira e alguns pedaços de carvão.
— Quero falar com você sobre Kitty. Ela está sob muita pressão e se
preocupa com todo mundo e com tudo. Ela vai acabar ficando doente.
Alice vestiu o avental e acendeu mais algumas lamparinas
posicionadas ao redor do cômodo, dando à sala dos fundos luz extra para
ela poder cozinhar até o sol nascer.
— O que tem em mente?
Connie levantou a grande chaleira preta cheia de água sobre o fogão.
— Você vai escrever uma carta por mim, para a Sra. Cannon? Minha
letra é muito ruim, parece arranhões de galinha.
— Sim, mas por quê? O que a Sra. Cannon pode fazer?
— Não terei certeza até poder conversar com ela, mas é mais provável
que ela tenha uma resposta. É uma mulher inteligente.
Rapidamente, elas escreveram a carta antes de Kitty se levantar. Então,
Alice voltou a vestir as roupas para o ar livre e correu pela rua à procura de
um coche para entregar a mensagem a Dorothea.
— Como falará com a Sra. Cannon em particular sem Kitty saber? –
Alice perguntou ao voltar.
— Kitty vai ao banco hoje. Pedirei que ela faça compras para mim
também e isso a manterá fora por mais tempo.
Às onze horas, Kitty saiu dos salões de chá e Connie suspirou aliviada
quando não mais que dois minutos depois, a carruagem de Dorothea
Cannon parou em frente aos salões de chá. Mildred abriu a porta para ela e,
com um sorriso, Dorothea entrou na sala dos fundos.
— Bom dia, Sra. Cannon – disse Alice, trazendo do forno uma bandeja
de tortas quentes.
— Bom dia, Alice. Meu Deus, que cheiro maravilhoso! Comprarei
alguns para levar para casa, se for possível. – Dorothea tirou as luvas. Ela
soltou a capa forrada de zibelina e a entregou a Mildred. — Como vai,
Connie?
— Bem, obrigada, Sra. Cannon. – Connie sorriu. — Vamos subir?
— É claro. – Dorothea a seguiu até os aposentos acima e sentou-se no
sofá em frente ao fogo ardente. Connie fungou. Os nervos ameaçavam
perturbar o bom café da manhã que ela tomara horas antes.
— Obrigada, Sra. Cannon, por responder à minha mensagem.
— Como se eu não fosse – advertiu Dorothea. — Então, está
preocupada com Kitty? Ela tem trabalhado muito? – Os inteligentes olhos
azuis de Dorothea estavam cheios de preocupação.
— Não estou preocupada com a saúde física dela, embora ela seja tão
magra quanto um cabo de vassoura. Não, é mais sobre o que ela pensa. –
Connie apunhalou o fogo com o bastão de ferro. — Tanta coisa aconteceu
com ela em tão pouco tempo. Ela tem tudo em seus ombros e não gosta de
dividir a carga.
— Eu concordo. No entanto, Kitty tem um espírito forte.
— Sim, ela tem, mas não está feliz e merece estar. – Connie engoliu
em seco, reunindo coragem. Ela nunca pediu um favor antes. — Kitty
precisa ir atrás do Sr. Kingsley, mas Mary está fazendo com que ela se sinta
culpada por voltar atrás em sua palavra.
— Mary tem que entender que nem tudo é preto e branco.
— Sim. Estou me esforçando ao máximo para conversar com ela. –
Connie suspirou profundamente. — Kitty enviou uma nota sobre nossa
mudança?
— Chegou ontem. Não fiquei surpresa. Ela não pode esperar uma
eternidade para Benjamin voltar para casa.
— Algo precisa ser feito.
— Ele está gostando da Austrália e provavelmente não voltará em
breve. Claro, tenho certeza que ele sente muita falta de Kitty, mas ele é um
jovem em uma aventura. Meu genro, John, me disse há apenas dois dias que
Benjamin realizou tudo o que precisava para lidar com os negócios e agora
está se agradando ao participar de expedições de exploração no deserto.
John está preocupado porque Benjamin não mostra sinais de retorno em
breve. Acho que se a saúde de John estivesse melhor, ele viajaria até lá para
ficar de olho nele. Não podemos nos dar ao luxo de perder o único herdeiro
de Kingsley.
Dorothea fez uma pausa quando Mildred entrou carregando uma
bandeja de chá e Connie se levantou para servir. Depois que Mildred saiu e
o chá foi servido, Connie sentou-se e suspirou.
— Max não queria ir para a Austrália quando Kitty mencionou pela
primeira vez. Ele tinha medo de estar velho demais para conseguir trabalho,
mas agora eu sei que ele quer que eu leve os gêmeos e comece uma nova
vida, dando a eles a chance de crescerem, prosperarem. Eles não vão
conseguir isso aqui. Eu não quero que Charles trabalhe em uma cova ou em
um armazém, ou Adelaide se case com alguém que bebe seu salário e lhe dê
um olho roxo toda sexta-feira à noite e um bebê todo ano. – Connie corou,
percebendo que sua conversa era direta demais para alguém da posição de
Dorothea.
Dorothea se inclinou e deu um tapinha em sua mão. — Quero que
Kitty se case com meu neto. Quero muito e farei tudo o que estiver ao meu
alcance para tornar isso possível. Eu sei que tem sido difícil para ela.
Primeiro, a morte de seus pais e descobrir que deveria sustentar seus irmãos
e irmãs sem renda, depois seu irmão mais velho, deixando-a para lidar com
tudo sozinha. Kitty me disse muitas vezes que, sem a sua ajuda e do seu
falecido marido, eles não estariam aqui agora.
Connie fungou novamente. — Independente do que fizemos, ela fez
muito por conta própria. Além disso, agora ela é da família.
Dorothea tomou um gole de chá e recolocou a xícara no pires.
— Minha filha, Georgina, não ficará satisfeita com a notícia de Kitty
se juntar a Benjamin. Tenho que ter cuidado na maneira como esse negócio
é executado.
Connie piscou. — Perdão?
— Georgina não deve ouvir os planos de Kitty. Conversarei com John.
– Dorothea deu um tapinha final na mão de Connie. — Deixe tudo comigo
também. Tudo ficará bem, e eu sei que John também ajudará. Então, não se
preocupe mais com isso. Começarei a organizar essa viagem logo pela
manhã.
DURANTE A SEMANA seguinte, nada foi dito sobre a mudança ou mesmo o início do processo. Kitty realizava suas
tarefas diárias de administrar os salões de chá e atender às necessidades de
sua família. Ela tentou falar com Mary, mas sempre era recebida de maneira
fria e essa frieza fez Kitty hesitar em colocar um anúncio de venda no
jornal. Em meados de janeiro, chegou uma carta de Ben. A alegria se
infiltrou nas veias de Kitty quando ela abriu o envelope e leu a carta. Ele
também continha uma gravura do porto de Sydney e, depois de admirá-la,
mostrou à família, que se reunia em volta dela. Ela então tirou uma imagem
a óleo de Ben. Em êxtase pela agradável surpresa, ela ofegou diante do seu
lindo rosto. Os olhos de centúria de Ben lhe sorriam e ela cambaleou sob a
enormidade de sensações que a inundaram. Um soluço rompeu o nó em sua
garganta. Apertando o retrato contra o peito, ela se balançou para frente e
para trás antes de olhar para a pintura novamente. — Oh, Ben, meu querido
Ben! – As lágrimas escorriam em seu rosto e ela rapidamente as enxugou.
— Venha, moça – acalmou Connie. — Venha se sentar.
Kitty girou em seus braços, com o rosto inundado.
— Tenho saudades dele, Connie. Eu sinto falta dele.
— Eu sei, querida, e é por isso que estamos saindo daqui, para que
possa ficar com ele.
— Prometi a Mary que ficaríamos. – Ela tropeçou em uma cadeira e se
sentou, ainda segurando a aquela réplica de Ben.
— Muita coisa aconteceu desde então. – Connie fez uma careta para
Mary, que estava atrás de Kitty.
Mary enxugou uma lágrima. — Sinto muito, Kitty. Eu não deveria tê-
la feito escolher. – Ajoelhando-se diante dela, Mary pegou suas duas mãos.
— Kitty?
Kitty olhou nos olhos de Mary. Lágrimas embaçaram sua visão. —
Sim?
— Vamos começar a fazer as malas pela manhã. Anseio por ver todos
aqueles lindos pássaros sobre os quais Ben escreve tanto, não é? – Mary
sorriu.
— Sim, está na hora de nos mudarmos – Connie respondeu por todos
eles. — Chegou a hora de todos reivindicarmos um pouco de felicidade. Eu
acho que Max também concorda. – Ela limpou uma lágrima solitária da
bochecha.
— Eu sei que preciso de uma mudança de ares – Mary pegou um lenço
no bolso e limpou o rosto de Kitty.
Kitty apertou a mão dela. — Garanto que seremos felizes. Todo dia,
vou me esforçar para que isso aconteça.
Mary se levantou e a beijou. — Eu sei que vai.
Nesse momento. Connie colocou as mãos nos quadris. — É melhor
começarmos a organizar a partida. Vá lavar o rosto e arrumar o cabelo,
moça. Precisa ir até a casa da Sra. Cannon, pois ela já tem um comprador
para os salões de chá.
Kitty recuou. — Um comprador? Já?
— Sim, já faz alguns dias. Nada lhe foi dito por causa de como estava
se sentindo. Kingsley tem alguns papéis para que examine. Então, tem uma
viagem a fazer para casa dele.
— Oh, não, Connie. Não vou chegar perto de Georgina Kingsley.
O pensamento de encarar aquela mulher novamente fez sua pele
arrepiar.
— Está tudo bem, moça, ela está em Londres durante todo o mês. A
Sra. Cannon me contou semana passada. Kingsley está querendo vê-la há
um tempo, mas está mal.
— Está sabendo bastante. – Kitty piscou rapidamente para clarear a
cabeça. — Deve ter estado muito ocupada nas minhas costas, Sra. Spencer.
— Sim, moça, mas sempre foi para seu benefício.
Connie riu, apertando o ombro de Kitty. Ela piscou e foi cuidar dos
bebês.

MOVENDO-SE PELA ESTRADA que levava à Kingsley Manor,


Kitty foi transportada de volta ao dia ensolarado da primavera passada,
quando Ben a levou para conhecer seus pais. Tremendo em seu grosso
casaco preto, não pelo frio, mas pela lembrança daquela primeira reunião
gelada com Georgina, Kitty estava feliz por não ter de enfrentá-la hoje.
Ela olhou pela janela do coche, vendo as camadas de neve que cobriam
o jardim e pensou nas últimas horas que passara com Dorothea no Cannon
Vale Park, nos arredores de York. A velocidade com que os planos estavam
sendo feitos a chocou. Dorothea contou a ela sobre o comprador dos salões
de chá, um amigo de um amigo, e sobre a quantia generosa que ele ofereceu
para os negócios e os alojamentos acima.
Kitty mexeu em sua bolsa no colo. Ela continha uma lista de coisas
que precisavam ser feitas nas próximas semanas, além das informações de
reserva que Dorothea lhe deu sobre um navio respeitado e seu capitão. Tudo
estava à mão e ela permitiu que uma pequena centelha de felicidade
brilhasse em seu coração. Sua nova vida logo começaria.
Parando diante da porta, ela sorriu para o mordomo que a guiou para a
sala de estar. Enquanto ele foi informar o Sr. Kingsley, ela olhou ao redor da
grande sala lindamente ornamentada. Ela caminhou para estudar uma
pintura de um cavaleiro no alto da parede, tirando as luvas ao fazê-lo.
Abruptamente, ouviu a voz de Georgina ecoar no corredor e encolheu-se.
— Era uma carruagem na porta, Ticklewaite?
— Era, um coche, senhora. A Srta. McKenzie está aqui para ver o
patrão.
— Meu marido está ocupado, Ticklewaite. Falarei com a Srta.
McKenzie, continue com seus deveres. – Kitty gemeu e virou-se para a
porta. Ela não queria cumprimentar a mãe de Ben.
— Bem, isso é uma surpresa, devo dizer. – A voz de Georgina
Kingsley percorreu a sala de estar. Seu rosto de alabastro era uma
combinação gritante para seu vestido de rubi profundo. Ela parecia estar
pálida. Kitty endireitou os ombros, pronta para o ataque. Ela inclinou a
cabeça em reconhecimento.
— Eu não esperava vê-la.
— Então, pensou que entraria na minha casa e visitaria meu marido,
não é? – Os olhos dela se estreitaram. — Definiu meu marido como seu
objetivo, é isso? Meu filho não é bom o suficiente? Prefere corromper quem
detém o dinheiro em vez de ficar esperando que ele morra e que Benjamin
herde?
— Suas acusações vis estão abaixo da crítica. Estou aqui simplesmente
para falar com o seu marido sobre questões que não lhe interessam.
— Receio que ele esteja muito ocupado para vê-la no momento. –
Georgina caminhou mais fundo na sala e sentou-se na beira de uma cadeira
estofada em chita de ouro. Todo o seu comportamento mostrava
condenação. Seus lábios haviam afinado em uma linha tensa. — Deveria ter
enviado suas intenções, mas talvez eu possa ajudá-la.
— Não, acho que não, mas agradeço sua oferta. – Kitty calçou as luvas
e caminhou em direção à porta. Ela tinha de sair da casa e da presença dessa
mulher antes de perder completamente a paciência.
— Gostaria de tomar um chá, Srta. McKenzie? Tenho certeza de que
podemos encontrar algo para conversar – disse Georgina com falsa doçura.
Kitty olhou para ela, espantada com sua fácil transformação. Que bela
atriz ela era. De repente, Kitty sorriu. Georgina já não projetava uma
sombra sobre a felicidade dela e de Benjamin. Em breve, eles estariam
juntos, casados e longe da influência dela. A liberdade dessa nova confiança
a revigorou.
— Estou certa de que nós duas temos coisas mais interessantes a tratar.
— Ainda recebe cartas do meu filho? – As palavras foram ditas.
O sorriso de Kitty aumentou. — De fato, sim. Lindas cartas.
— Provavelmente, há uma dúzia de mulheres que recebem essas cartas
do meu filho. – Georgina apertou as mãos. — Ele leva jeito com as
mulheres. Elas simplesmente caem aos seus pés. Ele tem admiradoras em
todo o país.
— Mas apenas uma usa o anel de sua avó.
Georgina ficou de pé. — E acredita que é tudo o que precisa para
garantir meu filho?
— O amor dele é suficiente para mim.
— Está iludida. Nunca permitirei que sua família imunda se junte à
minha.
— Como ousa. Se considera tão superior...
— Eu sou superior! Sua mãe se prostituiu para pagar suas dívidas,
porque seu pai optou por cuidar dos pobres em vez dos de sua classe.
Uma névoa vermelha de raiva nublou os sentidos de Kitty. — O que
sabe dos meus pais? Nunca os conheceu.
— Sim eu os conheci. Eu participei de algumas das mesmas reuniões
sociais que seus pais. Todos sabiam que estavam abaixo de nós. – Georgina
se endireitou e levantou o queixo para zombar. —Seus pais tinham um
apelido, sabia disso?
Kitty balançou a cabeça. — Não ouvirei sua maldade.
— Os pretendentes, esse era o apelido deles. – O olhar de Georgina
percorreu Kitty, fazendo-a sentir algo repulsivo. — Eles fingiam ser de uma
classe que não eram, e parece que você está continuando o negócio, se
prostituindo com meu filho pela riqueza dele.
Kitty se aproximou do dragão em forma de mulher, mas resistiu ao
desejo de arrancar os olhos dela. Em vez disso, ela sorriu lentamente e
levantou o queixo.
— Goste ou não, seu filho me ama. Sou eu que vou criar a próxima
geração de herdeiros da Mansão Kingsley. Deve pensar duas vezes antes de
tornar-se minha inimiga.
A pálpebra de Georgina se contraiu. — Prefiro que ele morra a estar
com você.
— Kitty! – John Kingsley entrou na sala. — Ora, minha querida, que
adorável tê-la aqui. Nós não a vemos o suficiente. Georgina?
A aparência de John assustou Kitty. Ele estava magro e pálido, agora
mais ainda, em comparação à última vez que se viram. Indo até ele, ela
segurou suas mãos e beijou suas bochechas. — Tudo bem, Sr. Kingsley?
— Ficarei muito melhor quando me chamar de pai – ele brincou.
John gentilmente a puxou para o lado e virou-se para a esposa. — Com
licença, minha querida. Tenho alguns assuntos a discutir com Kitty. Não
vamos demorar.
Eles deixaram a Georgina de boca aberta e foram pelo corredor até o
escritório de John, onde ele ofereceu a Kitty uma grande cadeira de couro
marrom escuro perto de sua mesa antes de se sentar do outro lado. — Estou
feliz que tenha vindo. Eu estava pronto para lhe enviar uma mensagem.
— Aconteceu alguma coisa? – Kitty entrou em pânico. — Sabe algo
sobre Ben que eu não sei?
— Não, não, querida. Benjamin estava bem na última vez que ouvi
notícias dele – assegurou John. — Dorothea foi minha informante a seu
respeito, pois meus interesses comerciais me mantêm muito ocupado para
falar com ele regularmente e, é claro, minha saúde também é um fardo
cansativo. Espero que não se importe de que tenhamos discutido a seu
respeito às vezes?
— Não, de maneira alguma. Fico feliz que pense tão bem de mim. –
As bochechas dela ficaram quentes.
John recostou-se na cadeira, sorrindo para ela. — Logo será minha
nora. Sei que Benjamin fez a escolha correta e por isso já me importo com
você.
— Obrigada – disse Kitty, emocionada.
“Como uma mulher como Georgina tem um marido maravilhoso como
John? “
— Agora, vamos ao que interessa. – De uma gaveta, ele puxou folhas
de papel manteiga e rolos de documentos e os separou. Enquanto ele fazia
isso, Kitty olhou ao redor da sala. Móveis de mogno escuro e paredes
cobertas com um rico papel de parede de seda vermelha tornavam o quarto
masculino. Pinturas a óleo de cenas campestres e de caça pendiam a
intervalos entre estantes altas. Um pequeno fogo brilhava na lareira e ela
percebeu que este cômodo era especial para John.
— Gostaria de lhe pedir um favor, minha querida.
Ela assentiu. — Sim, com certeza.
— Esses documentos são preocupações comerciais diferentes, mas
esse documento maior é muito importante, pois é minha última vontade e
testamento. São cópias dos originais mantidos pelo meu advogado. Por
favor, quero que os leve e os entregue a Benjamin. Ele precisa saber o que
eu arranjei para a herança dele.
— Mas, Sr. Kingsley, poderá entregá-las a Ben. Ele... – a voz de Kitty
desapareceu assim que John levantou a mão para silenciá-la.
— Minha querida, se eu pudesse estaria no próximo navio para a
Austrália para ficar com meu filho e testemunhar seu casamento, mas,
infelizmente, minha saúde é tal que tenho sorte de ainda estar vivo hoje.
— Sr. Kingsley, o senhor parece um pouco mais fraco e mais magro,
mas não à beira da morte. – John deu a volta na mesa para pegar uma das
mãos dela.
— Eu tive dois ataques cardíacos maiores e outros pequenos nesse
intervalo. Os médicos me dizem que meu próximo será o último. Então, eu
tenho que organizar meus negócios tendo essa eventualidade em mente.
Ela tentou esconder seu desespero. — Mas isso pode não acontecer por
algum tempo.
— Estou com dores constantes. Já aceitei. – Ele a deixou sentada e foi
para trás de sua mesa. — Está vendo isso? – John puxou um pequeno baú
de aço sobre a mesa. Era comumente simples, medindo aproximadamente
30 por 60 centímetros. Ele tirou um pequeno conjunto de chaves do bolso
do colete. Selecionando uma das chaves, ele abriu a trava do baú e levantou
a tampa.
Os olhos dela se arregalaram com as numerosas sacolas de veludo que
haviam dentro. Cada bolsa de veludo azul escuro estava amarrada com
cordão de ouro. Do lado de cada bolsa estavam as iniciais B.K. costuradas
em fio de ouro. Kitty olhou para John. Todo aquele desempenho a lembrou
do dinheiro que ela e Connie encontraram no sofá de Martha. Sua pele
arrepiou.
— Há vinte sacos nesse baú. Cada saco contém dez soberanos de ouro.
Eles foram coletados para o dia do casamento de Benjamin desde o dia em
que ele nasceu, trinta anos atrás. Aparentemente, é uma tradição em minha
família desde os tempos antigos. Meu pai continuou quando eu nasci e no
dia do meu casamento, ele me deu esse mesmo baú cheio de sacos de
dinheiro. Soberanos são adicionados em dias especiais, como aniversários
ou um primeiro dente, primeiro dia com calças compridas, pela primeira
vez em que escreve seu nome e assim por diante. – John fez uma pausa e
limpou a umidade dos olhos com um lenço de linho. — Não poderei dar
este baú a Benjamin pessoalmente. Peço que pegue este baú e entregue ao
meu filho e diga a ele que o amo e que tenho muito orgulho dele. – A voz
de John tremia de emoção.
Kitty deixou a cadeira e foi até ele. Abraçando-o com força, Kitty
sussurrou sua promessa a ele.

NOVE DIAS DEPOIS, Kitty e a família estavam no meio da


Arrumação das malas. Ela havia vendido os móveis que não queria levar ou
que o novo proprietário não queria. Em seu quarto, Kitty dobrou as roupas
em uma mala. Enquanto ela organizava e embalava, seus olhos desviaram
para o jornal estendido em sua cama. Nas últimas duas semanas, ela
colocou anúncios para Rory entrar em contato com ela. De forma
deprimente, ela não recebeu resposta.
Olhou para cima quando Mary entrou carregando um pedaço de papel
dobrado.
— Isso acabou de chegar pelo cocheiro da Sra. Cannon. – Mary deu a
ela o papel. — Ah, e Alice deseja lhe falar quando terminar aqui. – Ela
pulou de um pé para o outro, animada. — Acho que ela quer ir para a
Austrália conosco.
— É mesmo?
Mary agarrou os pulsos de Kitty. — Acho que ela e Hetta desejam se
juntar a nós. Elas podem?
Surpresa, Kitty sorriu e deu de ombros. — Se elas realmente desejam,
sim, é claro.
Mary gritou e saiu correndo. Sorrindo, Kitty abriu a carta.

Querida Kitty,
Serei breve, pois o tempo está contra mim, sou necessária a cada
passo.
John morreu na noite passada. Seu coração cedeu durante uma
discussão com Georgina. Estou em Kingsley Manor e permanecerei aqui
por ora. Não deve me visitar aqui, pois sinto que as consequências seriam
terríveis com relação a você e Georgina. O médico teme por sua sanidade.
Escreverei novamente em breve com relação aos nossos planos.
D.

Kitty mordeu o lábio. Pobre Sr. Kingsley. Ela olhou para o anel de
noivado e pensou em Ben. Levaria meses para que ele soubesse que seu pai
havia morrido. Ela leu a carta novamente e estremeceu em resposta ao aviso
de Dorothea.
“Não se preocupe, Dorothea, não desejo mais ver Georgina. “

NO PRIMEIRO SÁBADO de março, faixas cor coral iluminavam o


céu sobre York enquanto Kitty acordava a família. O café da manhã foi
apressado e a lavagem da louça ainda mais rápida. Embrulharam os últimos
utensílios de mesa em lençóis e cobertores das camas e os embalaram
firmemente no último baú a ser trancado. Os baús de chá já tinham sido
embalados e enviados para o navio em Liverpool. Todas as outras bagagens
estavam empilhadas nos fundos.
Joe, Clara e Rosie, empolgados, foram levados para o andar de baixo
para vigiar as carruagens de Dorothea.
Às oito horas, os bebês foram alimentados, lavados e trocados com
roupas limpas para mantê-los acomodados no início da viagem de trem a
Liverpool. Hetta chegou carregando uma grande bolsa de viagem e o filho
de seu vizinho carregara um pequeno baú que fora depositado na passarela
em frente aos salões de chá.
Com a ajuda de Hetta e Mary, Kitty guardou todos os itens restantes.
Os livros que leu sobre emigração falavam que eles precisariam de muitos
itens domésticos e até alimentos para complementar a comida do navio,
mesmo viajando na primeira classe e não na segunda ou terceira, graças à
ajuda financeira de Dorothea. No entanto, ela não queria se arriscar e
preferia ter mais do que o suficiente.
As carruagens de Dorothea pararam em frente aos salões de chá pouco
tempo depois. — Bom dia a todos! – Exclamou ela ao descer o degrau da
carruagem. — Estamos a postos. – Voltando-se para os três cocheiros, ela
pediu que começassem a carregar a bagagem. — Isso não é emocionante? –
Ela deu um tapinha na bochecha de Clara.
— Gostaria que a senhora pudesse embarcar no navio conosco, Sra.
Cannon – disse Clara.
— Bem, irei acompanhá-los até o cais, isso já é alguma coisa para uma
mulher da minha idade, não concorda? – Dorothea sorriu.
Joe pulou, incapaz de ficar parado. Nosso navio será o maior, não
acha, Sra. Cannon?
— Oh, sem dúvida, meu amor. – Dorothea riu dele. — Agora
precisamos nos apressar, pois temos um trem para pegar.
Depois que as carruagens foram carregadas e as crianças estavam a
bordo, Kitty fechou a porta da frente dos salões de chá e deslizou a trava
pela última vez. Ela engoliu suas lágrimas. — Bem, chegou ao fim.
— Foi só por um ano, moça. – Connie apertou a mão de Kitty. — Esse
foi o tempo que estivemos aqui, mas parece muito mais tempo.
— Bem, pelo menos conseguimos nos manter de pé. E houve
momentos em que pensei que falharíamos.
— Me enche de orgulho, minha querida. – Dorothea sorriu. — Criou
algo do nada e nem todos podem fazer isso. — Todos se saíram
extremamente bem.
— Não poderia ter acontecido sem você, Dorothea. Sua amizade e
apoio foram inestimáveis para todos nós, e nunca esqueceremos isso. –
Kitty beijou a bochecha da velha senhora.
Ela se virou para Alice, que veio da sala dos fundos. — Bom dia,
Alice. Como foi dizer adeus à sua família? – Os olhos vermelhos de Alice
de tanto chorar eram a resposta, e Kitty deu-lhe um abraço rápido.
— Sua família não irá à estação, querida? – perguntou Dorothea.
O lábio inferior de Alice tremeu. — Deus, não, senhora! Não posso
passar por tudo isso de novo.
Depois de levar todos pela porta dos fundos, Kitty permaneceu nos
salões de chá. Ela estava deixando tudo isso por um futuro desconhecido do
outro lado do mundo. Por um momento, o terror a preencheu. No entanto,
sob o terror, havia um broto de emoção e esperança. — Adeus, queridos
salões. Vocês nos serviram bem. – Entrou na sala dos fundos, um cômodo
geralmente quente pelos fornos e barulhento pela agitação das mulheres que
trabalhavam nele. Agora estava escuro, frio e sem tudo o que o preenchia.
Sorrindo através das lágrimas, olhou ao redor pela última vez antes de
fechar e trancar a porta. Ela atravessou o pátio, passou o portão lateral e
saiu à rua. Os cavalos sacudiam a cabeça enquanto esperavam. No ar fresco
da manhã, suas narinas sopraram vapor.
Sua grande família espiava pelas janelas da carruagem sorrindo para
ela. Ela sorriu e foi para a primeira carruagem, que compartilhava com
Dorothea, Mary e Rosie. O condutor esperou para ajudá-la, mas ela se
conteve por um momento.
Kitty olhou para a frente dos salões de chá e guardou a imagem em sua
memória. De repente, ela esticou o pescoço para olhar ao longo da rua. Por
algum motivo precisava garantir que Rory não estava lá. Algo dentro dela
lhe disse para verificar se ele não a estava chamando para que ela o
esperasse. Imaginou ouvir seus passos nas pedras escuras. Por um momento
ela vacilou. Como poderia deixar York sem falar com ele?
— Kitty, querida, está na hora – disse Dorothea. — Você está bem?
— Sim, estou bem. Foram fantasmas, só isso. – Kitty sentou-se ao lado
dela e sorriu para Mary e Rosie no outro banco.
— Sabe que com meus contatos tentei encontrar Rory para você? –
Dorothea sussurrou.
Kitty assentiu, recostando-se no estofamento do assento da carruagem,
que rodava lentamente para longe dos salões de chá.
— Eu sei. É só que... eu nunca paro de sentir falta dele. – Dorothea
deu um tapinha na mão dela.
— Ele fez a sua escolha, minha querida. Não pode viver a vida dele
por ele, lembre-se disso.
Kitty virou a cabeça para olhar pela janela. A cada rua que percorriam,
ela se despedia silenciosamente. Quem poderia saber o que o futuro
reservava para ela e sua família? Era um pensamento sombrio enquanto
passavam pelo cemitério onde Max, seus pais e a irmã estavam. Eles não
parariam as carruagens para se despedir, após terem feito uma visita no
início da semana. Além disso, foram derramadas lágrimas suficientes. Era
hora de olhar para frente.
Hora de dar adeus a York, cidade de nossos nascimentos, e partir.
Capítulo Quinze

KITTY SE INCLINOU sobre os corrimões de ferro e cheirou o ar


salgado. Abaixo, a água turva do Mersey batia contra as estruturas de
madeira e pedra do cais. Ela se virou e recostou-se no parapeito para
examinar o porto mais movimentado do mundo, Liverpool. A ansiedade
tomou conta dela. Ela estava em polvorosa. As pessoas vinham aqui de toda
a Europa, apenas para partir novamente em navios, deste mesmo porto, e
recomeçar em outros países. Uma caminhada ao longo do cais evidenciava
as diferentes nacionalidades, as raças que se misturavam esperando sua vez
de embarcar nos navios, que os levaria ainda mais longe de suas terras.
Passeando pelo cais, Kitty ouvia as línguas estrangeiras e admirava os
trajes típicos dos países com os quais sonhava. Grupos de cada
nacionalidade se fundiam com seus poucos pertences e falavam em voz
baixa em sua própria língua. O medo tingia a atmosfera. A apreensão do
desconhecido podia ser claramente expressa sem que uma palavra em inglês
fosse pronunciada. Nenhum familiar amoroso viria se despedir desses
pobres grupos, pois seus parentes já estavam a milhares de quilômetros de
distância.
Kitty serpenteara até chegar à agitação em torno do navio construído
em ferro. O Ira Jayne, um navio que continha tanto motor a vapor quanto
velas, levaria ela e sua extensa família das margens da Inglaterra, através
dos grandes oceanos do mundo, para a terra de seu novo começo.
O capitão, Sr. Bartholomew Curtin, era amigo de um amigo de
Dorothea. Portanto, por uma questão de prioridade, Dorothea garantiu
cabines de primeira classe para a viagem de Kitty.
A bagagem deles já havia sido instalada no porão uma semana antes.
Amanhã pela manhã navegariam pelo rio Mersey e pelo mar da Irlanda,
vaporizando ou velejando, conforme o vento permitisse.
Mas, no momento, ela tinha a oportunidade de esticar as pernas mais
uma vez antes de ficar presa no navio por meses. As docas
espetacularmente atacavam todos os seus sentidos. Seu olhar girava para
absorver tudo, seus ouvidos zumbiam com o som. Marinheiros trabalhavam
no cordame do navio em alturas vertiginosas, enquanto outros carregavam
engradados e baús amarrados a polias giratórias e depois subiam para o
navio. Gritos e comandos perfuravam o ar. Para seus olhos destreinados,
parecia ser o caos, um caos organizado, mas mesmo assim o caos.
Uma grande comoção e barulho ocupavam o cais, enquanto os
passageiros seguiam a bordo. Pais, com as sobrancelhas franzidas,
apressavam suas esposas e filhos. Segurando a pouca bagagem que
possuíam, seguiam os marinheiros com confiança. As famílias inglesas
choravam, com o coração partido, acenando com lenços para os entes
queridos que nunca mais veriam.
A garganta de Kitty se contraiu de emoção. Seus pensamentos voaram
para Rory. “Será que o verei novamente? Ele nem sabia que estavam saindo
do país. Ela falhara com seus pais? A promessa que fez no túmulo deles era
falsa? “Apesar de todos os seus esforços, a família se dividira, dividida em
partes, mas não por falha sua, não realmente. Sim, Rory fugiu, partindo seu
coração, mas a escolha foi dele. Assim como tinha sido escolha dele se
manter longe.
Dando de ombros, recolheu sua decepção e se concentrou no futuro.
Ainda era responsável por tantas vidas, por sua felicidade e segurança. No
entanto, ela teria ajuda. Não estava sozinha. Além de Connie, ela tinha Ben,
o homem que a amava.
Ao pé da prancha que levava ao convés, ela parou. Depois que entrasse
no navio, deixaria o solo inglês por um período de tempo incerto, talvez
para sempre. Todos estavam a bordo esperando que ela terminasse de dar
esse último passo, mas ainda assim ela hesitava.
Olhou por cima do ombro para o horizonte de Liverpool e, em algum
lugar no Leste, ficava York. Ela estava se despedindo de sua antiga casa,
seu país, seu irmão e partindo para uma aventura que testaria seu espírito e
coragem.
Ouviu seu nome ser chamado, olhou para o navio e viu Joe acenando
para ela, ao lado dele estava Dorothea, esperando para se despedir de todos.
Respirando fundo, caminhou lentamente até o convés com braços abertos à
espera de Dorothea.
— Sentirei sua falta mais do que pensei ser possível, minha querida –
disse Dorothea. Eles estavam no convés inferior do navio, olhando para a
doca lotada. A família, inquieta e ansiosa, desfilava ao redor do pavimento
acima.
— O que eu teria feito sem você? – Murmurou Kitty. — Não
estaríamos onde estamos hoje, se não fosse por sua influência.
— Bobagem! É muito forte, minha querida. Teria sobrevivido com ou
sem mim.
— Não, Dorothea, não, eu não teria. Sem você, a loja teria afundado,
Joe ainda estaria preso e Georgina teria encontrado uma maneira de me
separar de Ben.
Dorothea deu um tapinha na mão de Kitty e enxugou os olhos com o
lenço.
— Eu te amo muito. – Kitty sorriu por entre as lágrimas, abraçando a
velha senhora.
— Eu sinto o mesmo por você, minha querida. Antes de conhecê-la, eu
vivia uma vida muito chata.
— Acho difícil de acreditar. – Kitty riu, enxugando os olhos. — Pensa
em nos ver algum dia?
— Talvez, mas eu sou velha, querida. No entanto, posso fazer uma
viagem com Georgina, depois que ela se recuperar de sua perda. Sem
dúvida, ela desejará ver Benjamin em breve. Eu também gostaria de vê-lo
novamente.
— Benjamin ficaria muito emocionado se o fizesse. Você significa
muito para ele. – Ela se absteve de mencionar Georgina. A mulher não tinha
calor no coração. Dorothea segurou Kitty pelos ombros.
— Em breve haverá outras coisas para meu neto, como esposa e filhos.
Isso é tudo que um homem precisa. Uma vida familiar feliz e amorosa
supera qualquer outra coisa. Lembre-se disso, minha querida, e vocês dois
serão muito felizes. E prometa que o levará para casa novamente em breve,
certo?
— Sim, prometo.
Um apito soou e um comando ordenou que todos os visitantes
deixassem o navio antes que o capitão embarcasse. Kitty e Dorothea se
juntaram aos outros e as despedidas começaram. Após um último abraço
em Kitty, Dorothea permitiu que um marinheiro a ajudasse a descer. Do
degrau da carruagem, ela acenou e foi embora.
Na brisa flutuante da noite, com o sol descendo no horizonte de listras
alaranjadas, os oficiais fizeram fila para receber o capitão a bordo.
Kitty esperou no convés com os outros enquanto as cordas eram
lançadas. O sol estava se pondo, lançando um brilho laranja sobre a água.
Demorou muito tempo para o navio descer lentamente o rio Mersey.
Kitty devolveu os acenos dos poucos estrangeiros que restavam nas docas, e
seu coração bateu contra as costelas enquanto os prédios escuros ficavam
cada vez mais longe. Todos os passageiros estavam lado a lado nos
conveses, suas lágrimas e despedidas misturadas com a emoção de
testemunhar algo diferente.
Demorou algum tempo para chegar à foz do Mersey, embora nenhum
dos passageiros ingleses se importasse, pois era sua última visão de cidades
e campos ingleses, mesmo que tudo o que enxergassem fossem luzes
cintilantes e contornos escuros. Não obstante, despedir-se de sua terra natal,
talvez pela última vez, não era algo para se desperdiçar. Não importava se
não fossem de Liverpool. Era solo inglês.
Finalmente, o piloto entregou o controle do navio ao capitão e foi
transportado de barco. O vento agitado mantinha as velas enroladas e, sob
vapor, eles entraram no mar da Irlanda e seguiram ao longo da costa do país
de Gales.
Cansada, dolorida e com frio, Connie levou a família exausta para suas
cabines para dormir sua primeira noite sobre a água, deixando Kitty sozinha
na proa.
A escuridão reivindicou terra e mar. Uma lua cheia brilhava nas águas
escuras e negras. A brisa fresca fez pequenos arrepios subirem por sua pele,
mas também lhe trouxe sons à deriva, o bater das velas, cordas chiando ao
vento, uma assombrosa melodia cantada por um marinheiro solitário e as
tábuas do convés rangendo enquanto o navio balançava com o mar. Ela
estremeceu e puxou o xale mais apertado enquanto descansava contra o
parapeito.
Olhou para a extensão negra do céu, enfeitada com as estrelas
cintilantes. Quantas noites ela olharia para as estrelas antes de estar nos
braços de Ben?
Agora que o navio seguia seu rumo, a atividade dos marinheiros
diminuiu. Um marinheiro caminhou carregando uma corda por cima do
ombro e inclinou a cabeça na direção dela.
— Boa noite, senhorita.
— Boa noite. – Ela sorriu.
Seu rosto gentil e castigado pelo tempo vincou-se com preocupação.
— Está ficando frio, a senhorita pode ir lá pra baixo.
— Sim, eu irei.
— Em breve estaremos nos trópicos e o calor nos cozinhará – brincou.
— Já esteve na Austrália antes?
— Ah, sim, muitas vezes, senhorita. – Ele coçou a cabeça sob o boné.
— É um ótimo lugar se deseja começar de novo e seguir em frente. Ouvi
dizer que há muitas oportunidades para as pessoas.
Ela assentiu, com o coração acelerado. — Ouvi o mesmo.
— Bem, senhorita, se tiver coragem de arriscar, vai se sair bem por lá.
— Eu me acostumei a arriscar. – Kitty sorriu e se virou para agarrar o
corrimão, entusiasmada. Com Ben ao seu lado, não haveria nada que eles
não pudessem alcançar.
— Chegarei em breve, Ben – ela sussurrou na brisa. — Logo
estaremos juntos.
Sobre o autor
AnneMarie Brear
ANNEMARIE BREAR nasceu na Austrália, sua ascendência em Yorkshire
remonta a séculos. Seu amor pela leitura de ficção começou muito cedo
com os romances de Enid Blyton, antes de passar para histórias adultas,
como os romances de Catherine Cookson, quando adolescente. Ao morar na
Inglaterra, durante os anos 80, descobriu seu amor pela História, visitando
os muitos e variados lugares de interesse histórico. O caminho para a
publicação foi longo e sinuoso, com algumas intercorrências e percalços,
mas ela finalmente foi publicada em 2006. Desde então, AnneMarie teve
vários romances e contos lançados, com muitos de seus romances históricos
se tornando best-sellers. Seu romance contemporâneo, Hooked on You,
escrito sob o pseudônimo de Anne Whitfield, foi finalista de 2011 para o
prêmio internacional EPIC. Desde então, ela se tornou um best-seller da
Amazon e seu romance, The Slum Angel, ganhou uma medalha de ouro no
Reader's Favorite International Awards. Atualmente, ela escreve apenas
romances históricos, ambientados principalmente em Yorkshire e /ou na
Austrália nas épocas que cobrem do período vitoriano à Segunda Guerra
Mundial.
Próximo lançamento da saga
Em Breve

1866 –
O caminho de Kitty McKenzie a levou das favelas de York para a selva
inóspita da Austrália colonial. No entanto, quando acredita que seus sonhos
nunca serão alcançados, a ela é mostrado que às vezes a vida pode ser ainda
melhor do que o que se deseja.
Kitty McKenzie ganha uma terra privilegiada no extremo norte de
Nova Gales do Sul. Ela enfrenta muitas dificuldades enquanto aprende a se
tornar uma proprietária de terras bem-sucedida. No entanto, sua força de
vontade e crença em si mesma, dão a Kitty uma coragem que a maioria das
mulheres de seu tempo nunca alcançaria.
Mas algo nas proximidades a incomoda.
É o arrogante e paternalista Miles Grayson, determinado conseguir
interromper seu caminho. Ele quer que ela vá embora para que ele possa ter
sua terra. O único problema é que ele quer a ela, ainda mais.
Informações Leabhar Books®

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leabharbooks@leabharbooks.com.br
Próximo lançamento

Phillippa Nefri Clark


9786580754076
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Thomas e Martha acreditavam que seu amor era invencível até que
uma série devastadora de eventos os separou. Para seu encontro final, eles
prometeram se reunir no cais onde se conheceram.

Cinquenta anos depois, Christie Ryan herda uma casa de campo em


ruínas em uma cidade litorânea da qual nunca ouviu falar. Com a descoberta
de um mistério comovente, se torna obcecada para desvendar velhos
segredos de família.

O artista recluso Martin Blake cresceu com seu avô depois de perder os
pais. A chegada em sua cidade de uma garota da metrópole com uma
conexão para o passado desafia tudo o que ele sabe sobre si mesmo.

Em lados opostos de um mistério, dois estranhos têm algo em comum e


correm o risco de ver seus mundos seguros destruídos. Cinquenta anos de
segredos estão prestes a ruir.
Uma história fascinante de amor perdido, coragem e redenção, e de como as
consequências da manipulação de uma mulher se espalha por três gerações.

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Conheça outros Títulos da editora

Jess Michaels
9786580754038
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Durante anos, Serafina McPhee está comprometida a se casar o duque


de Hartholm e, por quase o mesmo tempo, ela luta para encontrar uma
maneira de sair desse noivado. Quando ele morre repentinamente, ela não
chora, mas se emociona com a ideia de que estará livre. Infelizmente, os
melhores planos dão errado quando o próximo na fila para o título, o primo
do duque, Raphael "Rafe" Flynn, é forçado a assumir o compromisso. Mas
Serafina conhece a reputação de Rafe como libertino e também não quer
nada com ele, mesmo ele sendo devastadoramente bonito.
Ela lhe propõe um acordo: ela concorda com o casamento e fornece a
Rafe seu herdeiro e um sobressalente. Depois que cumprir seu dever, ele a
deixará ir.
Rafe está intrigado tanto por sua beleza quanto por seu total desgosto
com a ideia de ser sua noiva. As mulheres normalmente caem aos seus pés,
não o temem.
Como o casamento arranjado não é algo do qual Raphael "Rafe" Flynn
possa escapar, ele concorda com os termos de Serefina McFhee.
Mas quando, na noite de núpcias, descobre a verdade sobre a tortura
que ela sofreu nas mãos de seu antecessor, se vê impelido a não apenas
cumprir sua barganha com sua nova esposa, mas a apresentá-la ao desejo.
Enquanto eles se aproximam, se rendendo a prazeres perversos, emoções
perigosas podem violar todos os acordos que fizeram.

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Mirella Sichirollo Patzer


9786580754021
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Uma mulher prestes a fazer seus votos religiosos.


Uma fuga desesperada de um massacre assassino.
Um homem vem em seu socorro.
Outro se torna seu inimigo e captor.
E uma busca mortal para se reunir com seu único amor verdadeiro.

No século X em Nápoles, os sarracenos correm desenfreados,


aniquilando aldeias, assassinando mulheres e crianças. Morte e desespero
estão por toda parte. Sozinha no mundo, Sara é uma jovem noviça
atormentada com dúvidas sobre os votos finais para se tornar freira. Quando
seu convento é atacado, ela foge para salvar sua vida caindo direto nos
braços de um grupo de sarracenos que a deixam para morrer sozinha na
floresta.

Um Cavaleiro honorável chamado Nicolo vem em seu socorro e se


oferece para levá-la em segurança para Nápoles. Enquanto viajam juntos,
são irresistivelmente atraídos um pelo outro. Acreditando que Sara é freira,
o honorável Nicolo está dividido entre o amor e o dever de respeitar seus
votos. Desolado, ele faz o que a honra exige e a liberta antes que ela possa
lhe dizer a verdade, de que ela não é freira.

Em sua busca de se reunir com Nicolo, ela encontra Umberto, um


homem sombrio e perigoso que tem obsessão por possuí-la. Com seu
intelecto afiado e seu coração, Sara deve confiar em sua própria coragem e
força para escapar de seu agressor e encontrar o único homem que ela
amará.

Uma história que brilha com intensidade, intriga e paixão.

Da autora do romance Órfã da Oliveira, grande sucesso internacional e


nosso futuro lançamento

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Katharine Ashe
9786580754014
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A tentação de seus lábios...

Libby Shaw se recusa a aceitar os ditames da sociedade.


Ela está determinada a se tornar um membro do Royal College de
Cirurgiões – uma Academia exclusivamente masculina de Edimburgo.
Disfarçando-se de homem, ela frequenta a sala de cirurgia e engana a
todos - exceto o homem que nunca esqueceu a forma de seus lábios
deliciosamente sensuais.

...fará um príncipe dizer sim a todos os seus desejos.

Forçado a deixar sua casa quando menino, o famoso retratista


Ziyaeddin é secretamente o príncipe exilado de um reino distante.
Desde que conheceu Libby, memorizou todos os detalhes de seu rosto
e desenhou-a. Mas seus lábios perfeitos deram trabalho a ele - aqueles
mesmos lábios que agora deseja beijar.
Quando Libby pede sua ajuda para esconder sua identidade feminina
do mundo, Ziyaeddin concorda com uma condição: Deveria posar para que
ele a pintasse - como uma mulher.

Mas esse esquema ousado poderia fazer com que ambos fossem
arremessados ao perigo... e a um amor inigualável.

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Kathleen McGurl
9876580754007
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1829
O belo e bem-sucedido Henry Cavell, acaba de retornar à Inglaterra
depois de servir ao exército na Índia, se instala na cidade de Worthing, em
frente ao mar. Ele está de posse de um grande diamante, dado a ele na Índia,
que promete dar à mulher que ama - quando encontrá-la.

Jemima Brown, uma jovem de dezesseis anos e de bom coração, passa


a trabalhar para ele como criada de serviços gerais. Quando o Sr. Cavell a
defende das atenções indesejadas de alguns trabalhadores que prestavam
serviços em sua casa, percebe imediatamente o quanto ele é íntegro e
respeitável.

Mas foi Caroline Simpson, filha de um desses trabalhadores de Henry,


quem chamou a atenção dele. Podia ser socialmente inferior, mas era
bonita, sabia flertar e como usar seus encantos. Ela manipula Henry para
que se case com ela, e apenas a fiel Jemima sabe que ele fora enganado.

Como Jemima poderia lutar contra seus sentimentos crescentes pelo


Sr. Cavell, manter sua moral e permanecer no emprego, apesar do
comportamento cada vez mais errático de sua patroa?
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