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Tecnologia para a

educação,
educação para a
tecnologia

Rui Penha

Bom dia a todos! Permitam-me, antes de mais, agradecer o convite à


organização destas jornadas e à Escola das Artes da Universidade
Católica Portuguesa: é sempre com muito prazer que aqui venho e faço-
o hoje com a particular honra de participar numas jornadas dedicadas a
um assunto que me é tão caro. Seria, claro, mais apropriado dizê-lo caso
estivéssemos de facto juntos. Não estamos: não só vos chego através da
plataforma que se tornou, recentemente, na sala de aulas do mundo
como, infelizmente, não vos chego sequer em directo, já que
compromissos profissionais inadiáveis me obrigam a gravar esta
comunicação uns dias antes da conferência. Como verão, há uma certa
ironia nesta distância acrescida, tendo em conta aquilo que trago para
vos dizer hoje. Ou talvez isso possa servir como lembrança — até, e
porventura sobretudo, para mim próprio — de que é preferível estarmos
juntos em condições sub-ideais do que não estarmos juntos de todo.

Interpreto o convite que me fizeram para estar aqui hoje à luz do


meu percurso profissional mais visível: especializei-me desde cedo na
relação da composição com a tecnologia musical, foco que está há muito
no centro da minha actividade como professor:  primeiro no
Departamento de Comunicação e Arte de Universidade de Aveiro,
minha alma mater, e depois em várias instituições do ensino superior
portuguesas, incluindo alguns anos na Faculdade de Engenharia da
Universidade do Porto e, por fim, na Escola Superior de Música e Artes
do Espectáculo do Politécnico do Porto, onde me encontro agora. Fui
também um dos fundadores e curador da Digitópia, um projecto
liderado pela Casa da Música que há mais de dez anos procura
desenvolver estratégias para colocar a tecnologia ao serviço da música,
tanto na vertente educativa como performativa. Por fim, sou ainda
investigador integrado no INESC TEC. Imagino que este percurso que
aqui resumi possa levar-vos a supor que o que vos trago hoje será uma
sessão de proselitismo tecnológico. Como verão, essa suposição não
poderia estar mais longe da verdade.

Contudo, talvez pudesse ter sido verdade há alguns anos, na altura


em que acreditava que a melhor posição para observar a marcha
inexorável da tecnologia era como ponta de lança. Caso tivessem visto
uma apresentação minha nessa época, era provável que a dada altura vos
mostrasse um vídeo com um robot musical que eu, o Filipe Lopes e um
grupo de adolescentes construímos num workshop chamado OrCA -
Orquestra de Computadores e Autómatos, realizado na Casa da Música em
2008. O robot  — baptizado pelos participantes de Lula, não só para
manter o tema marinho do workshop, como também por causa dos seus
tentáculos tocadores — não era nada de especial, nem do ponto de vista
do hardware, nem do ponto de vista do software. Era um simples
tocador de hang drum feito com cartão, fita-cola e um conjunto de
inadequados motores que tinham sobrado de outra actividade. O
algoritmo era extraordinariamente simples: ao ligar, os “tentáculos”
tocavam duas vezes a escala do hang drum e, de seguida, tocavam notas
escolhidas aleatoriamente, sendo o intervalo temporal entre as notas
proporcional à distância da mão a um sensor de proximidade. Este robot
foi concebido e montado num par de horas e sobreviveu apenas alguns
dias.

Não obstante, foi uma experiência muito importante para mim


naquela altura. Não por causa da construção do robot em si, mas por
causa do que aconteceu assim que o terminámos. Como em quase todas
as actividades que fazíamos na Digitópia, estava planeado que o
workshop terminasse com a apresentação pública de uma performance
musical. Uma das participantes escolheu “tocar” a Lula e foi para um
canto da sala ensaiar, enquanto eu e o Filipe orientávamos os outros
grupos. A certa altura, o que ela estava a fazer chamou-me à atenção
pelo quão musical era o seu gesto, pelo fraseado incrível que ela
conseguia obter com aquele robot. Chamei a atenção de todos para ela e
pedi-lhe para repetir, mas ela não o conseguiu fazer. Interpretei isso
como timidez: afinal, não é qualquer adolescente de 12 ou 13 anos que
gosta de ser posto no centro das atenções. O workshop acabou e, na
primeira oportunidade, gravei eu um vídeo no qual tentei replicar o que
ela tinha feito, que é então o tal vídeo que muitas vezes usei nas minhas
apresentações e que agora vos mostrarei a vós. Relembro que
começaremos por ver o robot a ser ligado e a tocar a escala do hang drum
e que, depois, veremos o resultado de um simples controlo do intervalo
de tempo entre notas escolhidas aleatoriamente.

— vídeo —

Pode não vos parecer nada de especial, mas, na altura, este resultado
deixou-me muitíssimo entusiasmado. Usei este vídeo para tentar
convencer a Casa da Música de que deveríamos construir mais robots
musicais, e foi assim que acabámos, aí já de forma mais séria, por
construir um conjunto apreciável de robots para o gamelão da Casa da
Música, que ainda hoje são usados em apresentações públicas. Uma das
principais motivações para construir estes robots era permitir que
pessoas com necessidades especiais pudessem tocar gamelão, já que o
espaço onde estava o gamelão não era sequer acessível às cadeiras de
rodas. Fizemos ainda um projecto chamado Instrumentos Para Todos, no
qual usámos tecnologias digitais para criar um número apreciável de
instrumentos concebidos especificamente para que pessoas com vários
tipos de necessidades especiais pudessem compor e tocar música ao vivo.
Assim aconteceu, em Abril de 2010, no concerto A Viagem, coordenado
pelo saudoso Rolf Gehlhaar, que nos deixou há pouco mais de um ano, e
que foi apresentado na Sala Suggia da Casa da Música por um grupo de
oitenta músicos com necessidades especiais.

Este trabalho está documentado em vários vídeos e artigos que


publicámos nessa altura e, como podem imaginar, foi um trabalho muito
gratificante. Tornei-me num crente na ideia de que a tecnologia musical
poderia fazer com que a prática musical voltasse a fazer parte da vida de
toda a gente. Sonhava com o dia em que conseguiria encontrar uma
estratégia tecnológica capaz de promover uma frutuosa interacção
musical entre um amador e um profissional. Uma que fosse ao mesmo
tempo divertida e desafiante para ambos. Queria tornar a expressão
musical independente da técnica instrumental e fazer concertos nos
quais não houvesse uma divisão entre músicos e público, mas onde, em
vez disso, todos pudessem participar dessa maravilhosa experiência que é
fazer música em conjunto.

Foi essa a motivação que me levou a outras abordagens como a


Orquestra de iPhones ou, mais recentemente, o concerto a.bel — nova música
interactiva, que juntou centenas de pessoas na Sala Suggia para um
concerto no qual cada elemento do público era convidado a participar
usando o seu smartphone como um instrumento musical. Este concerto
foi o culminar de um desafiante projecto de investigação que coordenei
no INESC TEC e que incluiu tanto o desenvolvimento tecnológico da
plataforma que permitiu o concerto como a criação de quatro
abordagens artísticas diversas ao potencial dessa plataforma. O concerto,
que repetimos na Berklee College of Music, em Boston, foi sob todos os
critérios um sucesso: a tecnologia desenvolvida funcionou sem grandes
sobressaltos, a comunicação social deu muitíssima atenção ao evento e o
público encheu a sala, saindo maioritariamente satisfeito. No entanto, e
como poderão ver nas declarações que fiz à RTP logo após o concerto, o
meu entusiasmo pelo projecto artístico começava a dar sinais de estar a
esmorecer…

— vídeo —

Como acontece frequentemente — e, em particular, numa época


dominada por uma mundividência tecnológica, como veremos mais à
frente —, as muitas resistências e reticências que fui sentindo ao longo
deste percurso não me levaram nunca a questionar o objectivo, mas
apenas a achar que aquela implementação ou aquelas condições não
eram ainda as ideais. A ideia de usar a tecnologia para separar a
expressão musical da técnica instrumental era boa, eu sabia-o, tal como
sabia ser bem intencionada a ideia de democratizar o acesso à
performance musical em conjunto. Simplesmente não tinha conseguido
ainda encontrar a forma certa de o fazer: o problema não só não era
criado pela minha visão tecnológica da questão, como seria resolvido
precisamente através dessa abordagem tecnológica. Também apanágio
da época em que vivemos, o meu entusiasmo raramente era questionado
nas conferências e apresentações que fazia sobre o assunto: mais
tecnologia para resolver um problema bem identificado e, ainda por
cima, com um ímpeto democrático e enquadrado em expressões inglesas
como do it yourself, hardware hacking e open source, o que poderia haver de
errado nisso?

Houve, se bem me lembro, apenas uma excepção a este longo


entusiasmo: uma apresentação sobre o potencial educativo da separação
entre o desenvolvimento da expressão musical e o desenvolvimento da
técnica instrumental na qual um colega me interrompeu para me dizer
algo como:

Que estupidez: se os meus dedos não têm destreza para tocar um


trilo, o que é interessa se me apetece tocar um?

Parecia fácil desvalorizar este comentário, até pela forma algo rude
como foi feito, mas, por alguma razão, nunca me esqueci dele. Parecia
haver alguma verdade óbvia — algum “o rei vai nu” — escondida atrás
desta saída destemperada do meu colega. Demorei uns anos a perceber
que a pergunta inquietante que eu ouvia por detrás daquela era algo
como:

Será possível que alguém consiga ver uma boa oportunidade para
tocar um trilo se não for antes tecnicamente capaz de o fazer?

Ou, de um modo mais genérico e, por isso, mais incómodo para o


meu projecto:

Será possível identificar oportunidades e possíveis caminhos para


uma verdadeira expressão musical sem ter o tipo de envolvimento
profundo com a música que o lento desenvolvimento da técnica
instrumental permite, ainda que não garanta?

Olhando retrospectivamente através desta lente, é constrangedor


pensar na rapidez com que caí no equívoco de atribuir a uma timidez ad
hoc a dificuldade da rapariga que tocava a Lula em replicar o gesto
musical que tinha acabado de a ouvir fazer. Porque razão não me
ocorreu antes a hipótese de que ela poderia muito bem não ter sequer
identificado que tinha feito algo de especial? Não era óbvio que era eu
que estava a projectar no que ela fazia essa suposta expressão? O
concerto do a.bel foi muitíssimo melhor na Berklee do que na Casa da
Música. Na altura, e porque o fiz de acordo com o meu plano, achei que
isso se ficou a dever ao facto de termos feito um ensaio prévio e de
termos colocado o público frente a frente, ao invés de na tradicional
posição de frente para o palco. Mas é-me hoje dolorosamente evidente
que a montante destas diferenças está o muitíssimo mais relevante facto
de que o público do concerto da Berklee, e ao contrário do público da
Casa da Música, era quase todo constituído por músicos.

É certamente verdade que é possível desenvolver uma elevada


técnica instrumental sem desenvolver capacidades de expressão musical:
todos conhecemos certamente exemplos disso. Mas será possível
desenvolver a capacidade de expressão musical sem, ao mesmo tempo,
desenvolver algum tipo de técnica instrumental ou vocal? Por outras
palavras, será mesmo possível aprender a ouvir musicalmente sem o
envolvimento musical com o mundo que é potenciado pelas muitas horas
dedicadas à performance de um instrumento? Este “ouvir
musicalmente” não é, claro, o ouvido de quem aprecia um resultado
final: esse é, apesar de tudo, mais acessível. Falo, sim, do ouvido de quem
identifica e é capaz de concretizar uma hipótese de expressão musical
que de outro modo nunca se materializaria; o ouvido criador; o ouvido
que guia a poiesis musical. Hoje, estou convencido de que não: não é
possível. A invenção, aliás, do compositor que não começa por ser
proficiente na performance com um instrumento é muito recente,
circunscrita a um pequeníssimo meio musical, do qual eu, de resto, faço
parte, e carece porventura ainda de uma validação que só o tempo
poderá trazer.

Mas olhemos para outro contexto mais prosaico e mais distante de


nós. Eu posso educar o gosto pela comida, e faço-o comendo. Mas saber
comer não basta para que saiba cozinhar, sobretudo para que saiba
cozinhar sem uma receita, ou para além de uma receita. Quem não
domina o uso da faca poderá facilmente desperdiçar ou mesmo estragar
uma boa parte dos alimentos: aprender a manejar bem uma faca
acompanha o aprender a seleccionar as melhores partes dos alimentos
ou a cortá-los da forma que melhor potencia o seu contributo para um
dado prato. Já uma receita em papel ou um robot de cozinha são
tecnologias que podem ajudar quem não sabe cozinhar a fazer boas
refeições. Mas a Bimby não ensina ninguém a cozinhar, como uma
máquina Nespresso não ensina ninguém a ser barista. Tenho sérias
dúvidas, aliás, sobre quem é o cozinheiro e quem é o ajudante quando
vejo alguém a cozinhar com uma Bimby.

Podemos aqui observar uma diferença substancial — e que será


muito importante na discussão subsequente — entre, por um lado, a
tecnologia que podemos aprender a usar como uma extensão do nosso
corpo  — uma tecnologia que agudiza o nosso envolvimento com o
mundo — e, por outro lado, a tecnologia que nos torna mais
independentes das particularidades de cada situação e que, por isso,
contribui para um progressivo afastamento do mundo. De um lado
temos a tecnologia que aprendemos a usar sem pensar porque a
controlamos da mesma forma como controlamos a nossa própria mão
— o exemplo, neste caso, é a faca. Do outro lado, temos a tecnologia que
podemos usar sem grande curva de aprendizagem porque ela, de modo
explícito ou implícito, constitui a expressão material de métodos
genéricos para a resolução de um dado tipo de problemas — o exemplo,
neste caso, é então a Bimby. Não há, claro, uma verdadeira dicotomia,
mas sim um contínuo entre as duas. E as tecnologias digitais — e por
razões que não poderei detalhar hoje — continuam a inaugurar novos
extremos no segundo lado. Continuarão a inaugurar novos extremos no
lado que nos afasta de um verdadeiro envolvimento com o mundo.

Como em tantas outras coisas, parece-me que foi Martin Heidegger


quem melhor percebeu as implicações da relação que estabelecemos com
a tecnologia. Fá-lo sobretudo numa lição de 1949, intitulada A Questão da
Tecnologia, cujo resumo não poderei fazer aqui inteiramente, mas cuja
leitura não poderia recomendar mais a quem tem interesse por estas
questões. Até porque a questão da tecnologia, di-lo, é levantada para que
possamos preparar uma relação livre com ela. Nesta lição, Heidegger
começa por aceitar aquilo que chama “a definição instrumental de
tecnologia”: tecnologia é um instrumento, um meio para atingir um fim.
No entanto, chama-nos desde logo à atenção para o facto de que
vivemos — e hoje muitíssimo mais do que há setenta anos — amarrados
à tecnologia, quer tenhamos dela uma aceitação acrítica, uma visão
salvífica ou mesmo uma total rejeição. A nossa mundividência é
tecnológica e os riscos dessa mundividência tecnológica são
particularmente perigosos quando ignoramos este facto ou quando
alimentamos a tão ingénua quanto errada ideia de que a tecnologia em
si mesma é neutra. A simples visão instrumental da tecnologia, que
mantém fora de foco a essência dessa mesma tecnologia, leva-nos a
acreditar que ao melhorar a tecnologia — ao torná-la mais capaz de
fazer mais coisas de forma mais eficiente — nos tornaremos
tecnologicamente mais proficientes e que por isso resolveremos todos os
problemas criados pelas tecnologias anteriores.

Não poderei, como disse, ambicionar resumir todo o artigo, cuja


complexidade ainda estou, de resto, a tentar desbravar. Mas o cerne da
questão que Heidegger mostra de forma magistral e que importa trazer
aqui hoje é a de que a mundividência tecnológica nos leva num caminho
inexorável para a voraz tentação de tornar tudo cada vez mais eficiente,
de olhar para o mundo apenas como uma colecção de recursos à espera
de serem optimizados. Leva-nos à vontade de generalizar soluções para
problemas e de tornar cada acção tecnológica menos dependente das
idiossincrasias de cada aplicação em particular. Um exemplo claro disso
será a comparação entre a madeira de uma árvore e o MDF, que é, no
fundo, uma versão tecnológica da madeira. As placas de MDF são
sempre iguais, pelo menos quando as diferenças entre elas são
comparadas com as diferenças que encontramos entre placas de madeira
natural. O potencial para que do MDF possamos “extrair” uma peça de
mobiliário não é reconhecido através da cuidadosa análise e do olhar
sábio de um artesão, mas sim através da leitura de uma folha de
especificações fornecida pelo fabricante e válida para um número
virtualmente ilimitado de placas que podemos produzir. Esta
uniformização é obviamente uma vantagem para a produção em massa
— ou seja, para a produção altamente tecnológica — de móveis ou até
de instrumentos musicais.

A escolha do MDF aumenta a eficiência do fabrico, produzindo


menos desperdício e tornando-o menos dependente de pessoas capazes
de escolher e de trabalhar a madeira conforme as características de cada
placa. Mas façamos o exercício de acreditar que as características médias
das placas de MDF são melhores para a construção de guitarras do que
as características médias das placas de pau-santo. Ainda assim, tenho
dúvidas de que haja muitos guitarristas que prefiram contentar-se com
uma guitarra em MDF — ou até em kevlar — do que percorrer as
oficinas dos grandes luthiers à espera do dia em que vão encontrar aquela
guitarra especial. Tal como um pianista preferirá sempre um piano
acústico feito e mantido por artesãos de excelência do que o melhor,
mais confiável e mais estável piano digital que alguém poderá algum dia
inventar.

Porquê? Será simplesmente por snobismo, como o da pessoa que


compra um Bösendorfer para decorar a sala de estar de uma casa em
que ninguém toca? Eu acho que não. Acho que é sobretudo porque o
artesão que escolhe a madeira para construir uma dada parte de um
instrumento põe nessa escolha toda a sua sabedoria e todo o seu
envolvimento com o mundo. Cada um daqueles instrumentos será único,
porque única é também cada peça de madeira trabalhada que o
constitui. Não há propriedades isoladamente perfeitas, porque, como
muito bem nos ensinou Merleau-Ponty, a divisão em diferentes
propriedades ignora o facto de que todas as propriedades se contaminam
mutuamente para construir um todo que só podemos conhecer
verdadeiramente de forma holística: o vermelho felpudo de um peluche
não é igual ao vermelho brilhante de um carro de bombeiros, por mais
que em condições normalizadas um espectrómetro identifique neles a
presença do mesmo comprimento de onda.

Cada instrumento que sai das mãos de um artesão é então resultado


de um compromisso único, que é a expressão dessa profunda sabedoria
que se revela precisamente no envolvimento do artesão com os materiais
e com as suas ferramentas. Não é uma atitude comparável à de quem
escolhe tratar placas de MDF por igual, mesmo que rejeite à partida os
instrumentos que não cumpram determinados critérios normalizadores.
Mesmo que, neste último caso, cada instrumento seja de facto
materialmente único, ele é-o apesar da forma como foi feito, não por causa
dela. A sua idiossincrasia é resultado de factores aleatórios que escapam
ao controlo de qualidade, não de uma série de escolhas conscientes, de
um compromisso de artesão. Imagino que alguns já possam estar a ver
onde quero chegar na relação de tudo isto com o ensino, mas antes de lá
ir vou ainda mostrar-vos um pequeno excerto do filme Being in the world,
de Tao Ruspoli, no qual podemos ouvir o carpinteiro japonês Hiroshi
Sakaguchi a falar precisamente sobre a escolha da madeira.

— vídeo —
É difícil perceber o que ele diz, como imagino que seja difícil para
ele tentar explicar por palavras o que lhe surge de forma tão clara no seu
envolvimento com o mundo enquanto artesão. O que ele tem não é
conhecimento no tradicional sentido de crença verdadeira e justificada. Não se
pode, por isso, aprender o que é uma boa madeira apenas escutando
estas suas palavras, ainda que esse saber possa ser convocado através
destas mesmas palavras, mas quando ouvidas por alguém que já possui
de antemão esse saber. Mas, e aqui está um ponto importante para
Heidegger, o conhecimento que o carpinteiro tem da madeira foi
desenvolvido através da tecnologia. Foi o aprender a trabalhar como
carpinteiro, a usar o martelo, a serra e a plaina que o levaram a
compreender — e a ter respeito e até carinho — pela madeira. É este o
carácter ambivalente da tecnologia. Por um lado, quando temos dela
uma visão acrítica, levar-nos-á a olhar para todo o mundo, incluindo nós
próprios, como recursos à espera de serem optimizados e, com isso,
espoliados das suas verdadeiras particularidades. Por outro, é através da
tecnologia —  e de uma educação para a tecnologia —  que podemos
compreender a importância de aprofundarmos o nosso envolvimento
com o mundo.

O ensino da música é, em grande medida, um exemplo


paradigmático de uma educação para a tecnologia. Um piano não é uma
mera tecnologia educativa para ensinar música. Mas as aulas de piano
não são uma educação para a tecnologia no sentido em que têm como
objectivo essa eterna optimização do mundo e das pessoas. São, sim,
uma educação para a tecnologia no sentido em que são capazes de nos
revelar aos poucos um tipo de envolvimento profundo com o mundo que
simplesmente não nos é acessível de outro modo: o envolvimento da
poiesis, da criação.
Podemos ver esta diferença de forma mais clara se olharmos para a
diferença entre a ambição e a aspiração, tal como é estabelecida pela
filósofa americana Agnes Callard num recente livro que, acredito,
estabelece bases importantes para repensarmos algumas ideias actuais
sobre a educação. O título é: Aspiration: the agency of becoming. Grosso
modo, a ambição é uma vontade de conquistar algo que é guiada por
valores que estão adquiridos à partida; a aspiração, por outro lado, é
uma vontade de conquistar novos valores, que vão por fim, e
retrospectivamente, oferecer um sentido ao caminho feito para lá chegar.
Na ambição, segundo Callard, não há um processo de transformação
pessoal, de aquisição de novos valores: a pessoa que conquistou aquilo
que ambicionava fê-lo à luz dos valores que guiaram essa mesma
ambição. Se esses valores não foram adquiridos por um processo de
aspiração, então eles são mera consequência do contexto da pessoa e,
como tal, não tornam essa pessoa, enquanto agente, responsável pelos
resultados dessa ambição. Na aspiração, pelo contrário, a pessoa que
chega ao final do percurso já não é a mesma pessoa que o iniciou nem, e
isto é muito importante, o resultado desse processo é inteiramente
justificado quer pelos seus valores iniciais, quer pelos valores das pessoas,
como os professores, que acompanharam esse processo de aspiração. O
processo de aspiração é um processo de descoberta pessoal cujo sentido é
dado à luz dos valores adquiridos apenas no final do processo.

Não posso aqui replicar a detalhada explicação que Callard oferece


sobre as razões pelas quais a plausibilidade da aspiração não é inquinada
pelos problemas que commumente associamos às explicações
teleológicas; ou sequer resumir a sua brilhante explicação sobre como é
possível que a aspiração dependa do contexto sem ser inteiramente
determinada por ele. Vale bem a pena ler o livro todo. Mas retomemos,
por agora, o exemplo das aulas de piano. Estas não devem ser uma
educação para a tecnologia no sentido de procurarem a forma mais
eficiente de cumprir a ambição do aluno de tocar como o Glenn Gould
ou a ambição do professor de ver no aluno uma versão renovada de si
próprio ou do programa que lhe impuseram. Elas devem, a meu ver, ser
uma educação para a tecnologia no sentido de serem, na feliz expressão
de Callard, um “teatro de aspiração” no qual um professor que é capaz
de ouvir musicalmente o mundo através do piano ajuda um aluno a
encontrar — a pouco e pouco, e tornando para isso o piano numa
extensão do seu próprio corpo — a sua forma de se envolver
musicalmente com o mundo. É a chegada a este fim que justifica o
percurso, mesmo se — aliás, sobretudo se —  as particularidades deste
fim não puderem ser inteiramente antecipadas sob a forma de objectivos
claros a atingir da forma mais eficiente possível.

O professor de piano tem de ser um virtuoso do piano, claro, mas


também deve, a meu ver, aspirar a ser um virtuoso do ensino. Não um
virtuoso no sentido em que conhece e domina os melhores métodos e
tecnologias para ajudar o maior número possível de alunos a atingir
objectivos e cumprir critérios apriorísticos num curtíssimo espaço de
tempo. O virtuosismo não equivale à eficiência. E o especialista em
ensino não é necessariamente um bom professor, tal como o especialista
em gramática não é necessariamente uma pessoa eloquente e o
especialista em organologia não é necessariamente um bom clarinetista.
Isto não significa que o especialista em educação não tenha
conhecimentos profundos sobre educação, significa apenas que este saber
sobre não implica necessariamente — mas também não exclui — um saber
como. Então como podemos aprender a ser bons professores? Por sorte,
todos fomos alunos nalgum momento das nossas vidas. E tal como o
ouvido que reconhece os resultados é mais imediato e acessível do que o
ouvido que é capaz de criar, é mais fácil para um aluno reconhecer um
bom professor do que é para o professor sê-lo.

Todos nos recordamos certamente dos bons professores que tivemos


e do impacto que eles tiveram em nós. Não podemos nem devemos
imitá-los, claro, mas podemos deixar que a admiração e o
reconhecimento que lhes devotamos nos sirvam como mote para
aspirarmos a ter junto dos nossos alunos uma presença igualmente
inspiradora. Como o carpinteiro que sabe reconhecer o potencial
particular de cada pedaço de madeira e que faz uso de todos os meios ao
seu alcance para levar essa madeira a cumprir o seu potencial, o virtuoso
do ensino é o professor que é capaz de ajudar cada aluno a percorrer o
seu próprio percurso de aspiração e a cumprir plenamente o seu
potencial. É o professor que é capaz de transformar o aluno ambicioso
num aluno aspirante. E é, porque não, o professor que é capaz de alertar
o aluno perdido para a necessidade de procurar noutro local uma
aspiração capaz de, por fim, dar um sentido à sua existência.

Mas um virtuoso só o é quando se sente confortável com os


instrumentos que usa. É capaz, claro, de se adaptar às idiossincrasias de
cada instrumento em particular e de delas extrair o seu melhor potencial.
Pode até fazer uso das suas capacidades para descobrir rapidamente
pequenos virtuosismos excêntricos em instrumentos que lhe eram, até
então, desconhecidos. Mas é a sua capacidade de reconhecer o como é que
é ser um virtuoso que lhe mostra de forma particularmente clara os limites
do seu próprio virtuosismo, que encontrará sempre perante outros
instrumentos cuja estranheza seja mais difícil de debelar.
A tecnologia para a educação visa tornar o ensino mais eficiente. É,
aliás, aí que, nesta época dominada pela mundividência tecnológica,
reside o âmago do seu carácter apelativo. Cada nova tecnologia vem
resolver um problema, não o nego, mas esse problema foi quase sempre
criado por uma tecnologia do passado, ou, mais genericamente, pela
nossa abordagem tecnológica ao mundo. E, portanto, com cada aparente
solução chega sempre um novo agudizar do problema inicial. Seduz-nos
a perspectiva de poupar tempo, de chegar a mais alunos com menos
esforço, de nos tornarmos de um dia para o outro capazes de fazer
piruetas técnicas que, de outro modo, nem sequer saberíamos que eram
possíveis. Mas se virmos bem, percebemos que “tornar o ensino mais
eficiente” equivale a dizer “tornar o ensino menos atento às necessidades
de cada aluno, de cada professor e de cada encontro educativo em
particular”. Percebemos então que o nosso dever enquanto professores é
resistir à tecnologia para a educação, até porque se não tivermos um
grande domínio crítico sobre essa tecnologia, ela reduzir-nos-á, como a
Bimby, ao papel de ajudantes descartáveis.

Do mesmo modo, e pela mesma razão, não devemos cair no erro de


pensar que os bons resultados conseguidos no passado com
determinados métodos e tecnologias oferecem qualquer garantia sobre o
seu potencial sucesso no futuro. Um professor bem preparado não é o
que sabe exactamente o que irá fazer independentemente dos alunos que
encontrar pela frente, da temperatura da sala de aula ou da qualidade da
luz no céu nesse dia, mas sim o professor que faz uso da sua preparação
para aproveitar com destreza qualquer oportunidade para criar com os
seus alunos um teatro de aspiração colectiva. Tal como o pianista de jazz
virtuoso não é o que vai para a sala de concertos replicar as sequências
de motivos que preparou em casa, por mais irrepreensível que seja a
forma como o faz. O pianista virtuoso é o que sabe responder no fio da
navalha a cada oportunidade com soluções que não raras vezes nem ele
próprio sabe explicar muito bem de onde surgiram.

O professor virtuoso não é então o que rejeita as alterações


tecnológicas apenas por uma questão de princípio. Ter uma aula via
zoom é pior do que ter uma aula presencial, mas será porventura melhor
do que não ter aula nenhuma. Isto não é de agora, aliás: ler uma aula de
Heidegger setenta anos depois e através de uma tradução em inglês é
pior do que ter a oportunidade de ter aulas com ele, mas é claramente
melhor do que nunca poder ter acesso às suas ideias. Cada professor, no
contacto com cada aluno, tem de encontrar os meios com os quais sente
que melhor consegue chegar a esse aluno. Para os músicos é
particularmente fácil saber como escolher quais as tecnologias educativas
que podemos trazer para a sala de aula, já que o processo é em tudo
idêntico ao que temos com os instrumentos musicais. Se só tenho este
piano na sala e me sinto confortável a usá-lo, então é este o piano que eu
vou usar. Se tenho a hipótese de ir tocar naquele piano, então devo ir a
correr fazê-lo! Mas, se não sei tocar piano, então talvez seja melhor
escolher outro instrumento. Se, no entanto, intuo que o piano é o melhor
instrumento para mim, devo ir estudá-lo a fundo até que possa ouvir
musicalmente o mundo através dele. Se souber manter-me, enquanto
professor, aspirante e atento, não é assim tão difícil aprender novos
envolvimentos com o mundo e levá-los a bom porto.

Lamento a desilusão dos que porventura esperavam que desta minha


comunicação resultasse uma lista de métodos e recursos tecnológicos
capazes de tornar um qualquer ensino da música mais eficiente. Mas,
como espero ter tornado tão claro quanto possível, eu acredito que o
melhor ensino é precisamente aquele que recusa uma visão puramente
eficiente e tecnocrata da educação, um ensino que respeita a
individualidade de cada aluno e de cada professor e que não segue
métodos ou tecnologias escolhidos com base em critérios apriorísticos.
Isto é particularmente importante no caso do ensino artístico, no qual
devemos estar menos preocupados em certificar a aquisição de
conhecimentos e mais centrados na missão de fazer das nossas escolas
palcos férteis em oportunidades para que os nossos alunos possam
cumprir o seu desígnio de oferecer novos mundos ao mundo. Muito
obrigado pela vossa atenção.

Comunicação oral apresentada nas VII Jornadas de Pedagogia no


Ensino Artístico Especializado da Música, Universidade
Católica Portuguesa, 24 de Setembro de 2020

Referências

Callard, Agnes. Aspiration : the agency of becoming. New York: Oxford


University Press, 2018.

Gehlhaar, Rolf, Paulo Maria Rodrigues, Luis Miguel Girão, and Rui
Penha. ‘Instruments for Everyone: Designing New Means of Musical
Expression for Disabled Creators’. In Studies in Computational Intelligence,
167–96. Springer Berlin Heidelberg, 2014.

Heidegger, Martin. The question concerning technology, and other essays.


New York: HarperCollins Publishers, 2013.

Ruspoli, Tao. Being in the World. 2010; USA: Mangusta Productions.


Film.

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