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Reflexão

Teatro e Educação
Leandro Senna

Recordo-me de receber repreensões do professor Alexandre Mate, anos atrás, sobre o uso de
gírias na apresentação de seminários. O argumento positivo e claro convenceu-me: é preciso
aprender a língua do inimigo para combatê-lo, para combatê-lo em seu campo. Hoje a ideia
ainda me faz sentido, porém já não tiro daí as mesmas conclusões, nem a mesma linha de
ação.

“(...) não podemos pedir portanto que você abandone você


o que queremos pedir é que você se divida,
que você lute consigo mesmo
à sua psicologia de vida presente
queremos apresentar uma psicologia de aspiração de um mundo melhor
e o queremos dividido, mais dividido.
Não o queremos uno, inteiro, soberbo.
Nós o queremos dividido.
A única maneira de negar a nós mesmos
é negar o mundo que nos obriga a ser contra nós
e negar o mundo não é virar-lhes as costas
esta é uma maneira de confirmá-lo
nem é inventar um novo homem neste mundo velho
a única maneira de negar o mundo
é nos dividirmos, dolorosamente, sofrer nossa divisão
usarmos um homem para sobreviver e outro para lutar contra essa sobrevivência (...)”
(Prólogo de Rasga Coração de Oduvaldo Vianna Filho)

Este trecho do prólogo de Rasga Coração me acompanha já há algum tempo, como objeto de
reflexão. Embora não se refira estritamente ao mesmo assunto, acho que cabe aqui, invertendo
o vetor, pois aqui trata-se ainda do que fazer com esse que sobrevive, este que apresenta
seminários. Reproduzo o trecho aqui também em referência a uma conversa que peguei de
orelhada durante a aula, conversa que caminhava no mesmo sentido e fez-me voltar o olhar
novamente sobre a questão. É preciso que nos dividamos. Mas, divididos, o quão estanques
ficam nossas duas metades? As duas tem razão absoluta? É possível que convivam? Tentei
com afinco fazer brotar um acadêmico pra sobreviver à academia e combatê-la num futuro
indefinido, mas me deparava com um problema: além de ter que penar para me expressar
nesta outra língua, ao final o que é dito não é a mesma coisa, não há tradução que dê conta.
Organizadas analiticamente as ideias viram outra coisa. Na treta/união ancestral entre forma e
conteúdo, o que eu digo é como eu digo. A bagunça do raciocínio é seu conteúdo. Fora que na
língua da academia as ideias perdem a graça, não dá vontade de pensar mais nada. É sem
desejo, logo é sem sentido. E aí, pra já emendar uma coisa na outra, tem essa categoria
deleuziana do desejo, e se tem Deleuze tem “pós-modernidade”, e “contemporâneo” e os
cambaus. A partir daqui vou birfurcar. De um lado segue a jornada da gíria, do outro o papo
novo. Vamos ver no quê que dá. Ainda sobre o primeiro ponto, há a interiorização dessa fala
acadêmica. A gente começa a falar como acadêmico e vai virando acadêmico. As pálpebras
descem um pouco, o rosto perde tônus e se desenvolve a fobia de bobagem. Chega a ser
melhor dizer algo que ninguém entenda do que dizer algo que entendam como bobagem. A
melhor maneira de evitar a bobagem é se distanciar daquilo que se fala, a citação. “Segundo
fulano”. Já começa com segundo para não correr o risco de ser o primeiro. Quem diz algo pela
primeira vez corre o grande risco de estar falando bobagem. Mesmo que muitos digam que
tudo já foi dito. Na academia, pra dizer algo novo, só com patente alta. No autoproclamado
espaço da construção de conhecimento a prática é o silêncio e o “segundo fulano”. E qual o
resultado disso? O apagamento da polêmica, a fobia de barraco. Se dois lados se digladiam
um deles deve estar falando bobagem. Deus me livre falar bobagem! Na dúvida é melhor ficar
quieto. A biopolítica agindo logo aqui, no nosso couro. E por quê estou dizendo isso? Pra falar
do nosso próprio processo durante esse semestre. Recebemos um monte de ideias lindas e
ótimos textos sobre os caminhos de uma educação libertária, tão bons e tão coerentes que
nada tínhamos a acrescentar (por favor não se assustem, farei a mea culpa lá no fim). Muito
silêncio. E eu sentindo uma puta falta da polêmica, do barraco. Um consenso espesso demais
pairando, a ponto de eu me perguntar se gostava mesmo do que tinha lido. Mas o texto não
chama pedagogia do conflito? Isto me leva de volta à primeira questão. É necessário se dividir
sim, mas as duas metades não tem o mesmo peso. Se você abraça a academia distraído ela
se enrola em você como uma jibóia, e daqui a pouco você se esquece como era pensar. O
primeiro passo pra ganhar o jogo, é evitar jogar, o quanto for possível, no tabuleiro do inimigo.
Se der pra sair daqui com o canudo, nem que seja pela porta dos fundo, com meus mano,
meus baguio e minhas bobagem, já era, estourei. Como o próprio Boaventura falou
(segundo!) : abre aspas, cultura é pau a pau. Disputemos a academia, mas deixemos o peso
do corpo no pé que está fora. Voltando àquele atalho que tinha deixado pendente, tem a pós-
modernidade, e de forma totalmente arbitrária associo pós-modernidade, Deleuze, arte
contemporânea, performance... e meio que viro a cara logo de cara. Mas isso é só em parte
verdade. Demorei anos para ler Deleuze por preconceito e quando li acabei gostando, no fim
das contas o que ele diz é muito pertinente e não tem a ver exatamente com a prática que eu
reconhecia como pós-moderna. Mas levantei a questão para falar dos dois últimos termos, arte
contemporânea e performance, pois apareceram nas aulas e não consegui relacioná-los
imediatamente com as práticas de educação que discutíamos. O que me deu o gancho foi uma
fala da Carminda: “(...)quando estamos dando aula e de repente percebemos que não é teatro
o que estamos trabalhando”. Esta fala me remeteu à minha própria experiência como
educador. De fato tive muitas vezes a consciência de que o que eu estava fazendo não era
uma aula de teatro, a despeito de ter sido contratado para esta função. Mas o nome que eu
dava a isso era outro: militância, formação de quadros, no melhor estilo esquerdopata. Mesmo
quando o assunto não era a luta de classes ou similar, enxergava ali uma militância pela
sensibilidade, pelo afeto, pela expressão, que julgava e julgo revolucionárias. Nunca pensei em
chamar isso de arte contemporânea ou performance, por dois motivos: o primeiro é que estas
palavras me chegam carregadas de uma conotação elitista. Em uma outra disciplina deste
semestre alguém falou sobre o caráter marginal da performance e rebati: como é marginal se
estou tendo três disciplinas ao mesmo tempo sobre isso?! Daqui do meu ponto de vista vejo a
academia abraçando a performance. Miliano de faculdade e nunca ouvi falar de Plínio Marcos.
Mas esse não é o ponto. O segundo motivo é continuação do primeiro, e na real nem sei mais
se eram dois. Quando falamos arte contemporânea, têm-se a impressão de algo estável. A arte
renascentista, a arte moderna, a arte contemporânea. Se o objetivo é fomentar práticas
transformadoras por quê se associar com essa estabilidade? Vou formar quadros ou
performers para o mercado da performance?(tô ligado que esse negócio de formar quadros
não soa muito emancipador, mas vou deixar passar como força de expressão...). Quer dizer, o
objetivo é corroer as brechas encontradas no sistema ou compor com uma “cultura marginal
oficial”, sendo nós mesmos a massa corrida daquelas brechas que pretendíamos corroer?
“Cultura marginal oficial”, pois não é à toa que a academia abraça a performance. A lógica da
quebra sucessiva de paradigmas é o que norteia uma concepção linear da história da arte. E é
preciso que esta seja linear para que surja o novo. E é preciso que surja o novo! Vou meter um
segundo. “Segundo” Guy Debord: “cada nova mentira da publicidade é também a confissão da
mentira anterior.” E é disso que se trata. Tem tudo a ver inclusive com a fala do Boaventura
sobre o passado e o futuro. O sistema precisa passar a impressão de que estamos indo
rapidamente rumo a algum lugar, e não atolados. A academia a mesma coisa. No pique profeta
eu diria: ao ato subversivo deve acompanhar o desamparo institucional. Neste sentido acho
que faz mais sentido se associar à arte popular. Esta pelo menos remete a um passado infinito
e a um desdobramento futuro também infinito, deixando esse papo de novo no chinelo. Mas aí
o bicho pega. Arte popular não é a tradição? E eu não tô falando aqui de revolução? Mas a
revolução então é o novo, ou é a tradição? Vamos inventar a “arte popular contemporânea”?
Vixi, pra quê...? Fato é que aquilo que permanece, a tradição, têm-se mostrado algo mais
contra-hegemônico que o vanguardismo, a meu ver. Vanguardismo este que parece nascer lá
junto com a modernidade, revolução francesa, romantismo.. e tanto tempo depois, tanta
vanguarda depois, e continuamos românticos do mesmo jeito, com esses papo de revolução, e
aqui eu tinha a obrigação de meter um segundo, mas como não me lembro quem disse isso
fica elas por elas.
Agora a mea culpa. Tenho consciência de que no que escrevi tem muita bobagem (oxalá!) e
uma arrogância meio infantil, mas achei que essa forma e esse conteúdo seriam a minha
melhor contribuição para este processo que me foi muito rico e pelo qual sou infinitamente
grato, apesar de minhas ausências e atrasos. Tamo junto!

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