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Os limites da linguagem conceitual em


Nietzsche e Bergson
Romano Scroccaro Zattoni

Esse texto tem como objetivo, em primeiro lugar, apresentar os elementos das críticas ao que se
denominará de linguagem conceitual realizadas por Nietzsche e Bergson nos textos “Sobre
verdade e mentira no sentido extramoral” (1873) e “Introdução à metafísica” (1902),
respectivamente. Em seguida, será realizada uma análise das possíveis aproximações e
afastamentos frente a questão comum da oposição entre intuição e intelecto. Conclui-se que os
autores desenvolvem críticas similares ao caráter representacional da linguagem como
ferramenta do intelecto e que ambos preveem um exercício filosófico que se esquiva a esse tipo
de tarefa e se direciona ao uso da linguagem em seu caráter “provocador”.

A crítica de Nietzsche à linguagem em Sobre verdade e


mentira em sentido extramoral
É no ensaio intitulado Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral (1873) que
Nietzsche se endereça pela primeira vez em sua obra de forma direta ao problema do estatuto da
linguagem para a filosofia. Trata-se de um texto que pertence ao primeiro período de produção
filosófica do filósofo, mas que, todavia, contém elementos críticos que perpassarão toda sua obra.
Nietzsche inicia sua abordagem por meio de uma análise da função do intelecto para o
homem, que, como se verá, está estritamente ligado ao uso conceitual da linguagem. Para o
filósofo, o intelecto não identificaria aquilo que é transcendente à existência do homem, pelo
contrário, já no início do texto esse é dotado de uma função bem específica, que é servir de
ferramenta para a conservação do indivíduo e da espécie. Essa conservação ocorre no seguinte
sentido: o homem é caracterizado por Nietzsche como “o mais infeliz, delicado e perecível dos
seres” (VM, p. 45) e a ele é vedada a possibilidade de defender a sua capacidade de existir com
“chifres e presas afiadas” (idem), por isso necessita de uma capacidade intelectual que lhe permita
assegurar sua capacidade de se conservar e se firmar pelo menos um minuto na existência.
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A partir desta discussão acerca da função do intelecto, surge então a questão que apresenta
o problema central do texto, vale dizer: qual a origem do assim denominado impulso à verdade,
uma vez que o intelecto humano serve meramente como um meio de conservação do indivíduo e
da espécie?
Nietzsche inicia sua linha argumentativa explicando que não basta ao indivíduo ser capaz
de manter-se sozinho como existente, deve haver, todavia, uma maneira de assegurar o convívio
social em rebanho fazendo com que as forças de conflito individuais se anulem e a comunidade
consiga assegurar sua conservação. Para então assegurar a possibilidade de convívio social é
necessário que se estipule aquilo que doravante deverá ser denominado de “verdade” que,
segundo Nietzsche, é “a designação uniformemente válida e obrigatória das coisas” (VM, p. 46).
Quando isto ocorre, é possível que o homem se comunique sabendo que os signos de linguagem
que se utiliza ao falar com outro são os mesmos daquele que o escuta e, com isso, evita ser
enganado, o que o faria sofrer as consequências hostis de certos tipos de ilusão. A universalidade
da verdade passa a significar socialmente também a homogeneidade do comportamento. Quando
os homens agem segundo as mesmas concepções acerca do que é verdadeiro passam a se tornar
previsíveis, a serem capazes de se fazer entender tão logo se sobrevenha uma situação de perigo,
o que lhes fornece a possibilidade de não serem prejudicados pelo engano nas ocasiões em que
algo poderia ser prejudicial a eles.
É a partir dessa necessidade de estipular aquilo que é o verdadeiro, que é criada a oposição
entre verdade e mentira. O mentiroso seria aquele que faz uso indevido das concepções
sacramentadas socialmente, e que são necessárias para o entendimento em sociedade, ou ainda,
segundo Nietzsche, “o mentiroso usa as designações válidas, as palavras, para fazer aparecer o
não efetivo como efetivo” (idem). O exemplo que Nietzsche utiliza para exemplificar o processo
da produção da mentira é bastante simples: “ele (o mentiroso) diz, por exemplo: ‘sou rico’,
quando para seu estado seria precisamente ‘pobre’ a designação correta. Ele faz mau uso das
firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões de nomes” (idem).
O intuito Nietzschiano neste ponto é afirmar o caráter eminentemente moralizado da
linguagem e, sobretudo, apontar que não há uma correspondência estrita entre a linguagem e a
realidade. Essa última afirmação visa ressaltar o fato de que a relação que estabelecemos entre as
palavras e as coisas é completamente arbitrária. O argumento que Nietzsche utiliza com relação
a essa questão é muito claro: “O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em
sons. Mas concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é resultado de uma aplicação
falsa e ilegítima do princípio da razão” (VM, p. 47).
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A linguagem é, portanto, colocada como metáfora do real. Nietzsche descreve este


processo da seguinte forma:

Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora.


A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. [...] Acreditamos
saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no entanto
não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo
correspondem às entidades de origem (idem).

Portanto o homem pode somente supor o estabelecimento de uma verdade, no sentido puro
do termo, através do esquecimento. E este esquecimento se dá com relação exatamente a este
processo de metaforização, pois ao esquecer da origem humana da palavra é que é possível
afirmar que ela se refere a “coisa em si”. Esta ideia é central no texto e se refere a este processo
em que a coisa produzida pelo homem passa a se tornar de tal forma comum e familiar que se
começa a pensar que ela já estava lá antes do homem a ter inventado. Neste contexto, advém a
clássica passagem em que Nietzsche estabelece sua definição de verdade:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias,


antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas
poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um
povo, sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu
que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam
sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas (VM,
p. 48).

O antropomorfismo do conhecimento e da verdade é algo que Nietzsche aponta com grande


ênfase desde o início do texto quando escreve que não há nada no conhecimento que não seja
humano. Ao tratar da verdade, através do uso de uma metáfora, ele afirma que ela antes dotada
de uma marca estritamente humana (a efígie na moeda) passou a ser encarada como transcendente
e despersonificada; perdeu sua humanidade, e agora a moeda gasta e sem efígie não é mais vista
como construída pelo homem, mas como um pedaço de metal nunca antes trabalhado.
O caso mais exemplar de metaforização do real abordado por Nietzsche se refere à
formação de conceitos. Os conceitos são aquelas palavras que devem servir para designar tanto
casos particulares quanto para determinadas categorias de situações. As situações a que um
conceito se refere, apesar de semelhantes, são naturalmente diferentes entre si, assim um só
conceito tem de ser capaz de anular as diferenças de um sem número de ocasiões, de modo a
subsumir todas essas diferenças em um conceito unívoco e universal. É nesse contexto que
Nietzsche lança a importante afirmação: “Todo conceito nasce por igualação do desigual” (VM,
p. 48).
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Portanto, é em sua precariedade e incompletude que Nietzsche situa a possibilidade de


estabelecimento de uma relação conceitual com a vida, precariedade diante da qual Nietzsche
reagirá por meio de sua afirmação do tipo psicológico do homem intuitivo, que por meio do
desvirtuamento dos modos convencionais de uso da linguagem, é capaz de estabelecer modos
autênticos de relação com a existência. Todavia, antes de abordar esse tema, se faz necessário
estabelecer o estatuto do conceito de intuição na filosofia de Bergson.

Linguagem conhecimento e intuição em Introdução à


metafísica de Bergson
Um dos traços distintivos da filosofia de Bergson é sua desconfiança com relação à
possibilidade de uso da linguagem para a expressão adequada da verdadeira essência dos
conceitos da metafísica. Trata-se de uma característica que no decorrer do século XX o situou em
oposição à tradição heideggeriana que compreendia a linguagem como a “morada do ser”,
tradição esta da qual fizeram parte também alguns membros da filosofia francesa posterior à
Bergson, como por exemplo, Jacques Derrida.
De fato, para o projeto de reformulação da metafísica para o qual Bergson se dispõe se faz
absolutamente necessário realizar uma análise das propriedades mesmas dos conceitos que se
apresentam na linguagem, uma vez que em qualquer projeto filosófico, será esse o modo de
comunicação a ser elaborado. Trata-se, em partes, de uma espécie semelhante de crítica realizada
por Nietzsche, embora o objetivo teórico de ambos os filósofos termine por ser visivelmente
distinto. Se Nietzsche identificou na linguagem um dos subterfúgios mais imperceptíveis da
moralidade, Bergson por sua vez fez notar que o trabalho analítico em filosofia leva a um
conhecimento sempre relativo e interessado, que possui naturalmente sua utilidade, mas não dá
conta de compreender o que é o real absoluto, objeto da metafísica.
É justamente com a distinção entre conhecimento relativo e absoluto que Bergson inicia
sua Introdução à metafísica:

Se comparamos entre si as definições da metafísica e as concepções do absoluto,


percebemos que os filósofos, a despeito de suas aparentes divergências, concordam em
distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma coisa. A primeira
implica que se deem voltas ao redor dessa coisa; a segunda, que se entre nela. A primeira
depende do ponto de vista no qual nos colocamos e dos símbolos pelos quais nos
exprimimos. A segunda não remete a nenhum ponto de vista e não se apoia em nenhum
símbolo. Do primeiro conhecimento diremos que se detém no relativo; do segundo, ali
onde ele é possível, que atinge o absoluto (IM, p. 184).
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Nota-se que o traço distintivo do conhecimento relativo é sua intermediação por meio de
símbolos. A noção de símbolo aqui, como fica claro na continuidade do ensaio, se refere à
elementos dotados de significado com os quais se faz referência à um objeto; a linguagem escrita
certamente faz parte desta categoria, embora não represente sua totalidade. De fato, a natureza
do conhecimento relativo se delimita tão logo o conhecimento advenha de um ponto de vista
sobre a coisa e não pela ciência de si por ela mesma.
Seria possível aqui estabelecer uma relação entre esta espécie de conhecimento parcial com
o próprio modo como Bergson compreende o mecanismo da percepção. Ao realizarmos uma
breve digressão em direção ao primeiro capítulo de Matéria e memória, é possível compreender
que a percepção é a passagem da imagem em si do mundo para a imagem de uma consciência
que percebe. Em outras palavras, a percepção compreende uma espécie de seleção por parte de
um sujeito com relação à que partes do campo de imagem lhe causarão efeito, desta forma, trata-
se de um modo de relação com a coisa mesma que é interessada e contextual já em sua gênese.
A forma como Bergson descreve o mecanismo de seleção de imagens (cf. MM, p. 40 em diante)
possui diversas semelhanças com o modo como Nietzsche descreve a transformação dos
estímulos nervosos em metáforas em seu texto de 1874, em especial com relação ao fato de que
o produto da percepção é sempre menor do que o objeto que a originou, dito de outra forma, a
percepção é por excelência um processo de subtração de abreviação, ou de acordo com o
vocabulário nietzschiano, uma metaforização do real.
Em retorno ao texto de Introdução à metafísica, outra distinção importante para Bergson
se refere à oposição entre intelecto e intuição com o especial endereçamento à filosofia kantiana,
que se encontra como pano de fundo nos textos de ambos os autores. Bergson, além de ressaltar
o caráter interessado e parcial do conhecimento advindo do intelecto (em relação próxima com o
mecanismo da percepção), ainda realiza uma distinção posterior em relação à intuição, qual seja,
a capacidade de lidar com multiplicidades quantitativas versus multiplicidades qualitativas, em
outras palavras, trata-se da possibilidade de conhecer algo no espaço e no tempo,
respectivamente.
Uma vez que o conhecimento pelo intelecto consiste na superposição de perspectivas
externas ao objeto por meio de um processo de análise (como é o caso da ciência), para Bergson
trata-se de um conhecimento que se dá propriamente no espaço. Para compreender essa afirmação
vale fazer referência ao famoso argumento presente na primeira parte de Ensaio sobre os dados
imediatos da consciência, no qual o filósofo francês chega à conclusão de que todo processo de
enumeração quantitativa só é possível por meio da disposição de representações no espaço. Em
seu exemplo, Bergson afirma que só nos é possível contar além do número 1, pois cada número
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que se enuncia anteriormente se justapõe ao anterior, assim conservando-se e se dispondo à


contagem. Trata-se de um processo que não ocorre na pura duração, pois nessa não há
justaposição possível. Como nos estados de consciência, cada estado sucede o próximo embora
não haja justaposição, em vista do fato de que se trata de uma multiplicidade qualitativa de
estados.
O puro movimento e a pura duração são elementos absolutamente qualitativos, portanto
não podem ser acessados por meio do intelecto. Para Bergson, multiplicidades qualitativas são
acessadas pela intuição, como vimos anteriormente, referente ao conhecimento descrito como
vindo de dentro, ou ainda por meio de uma espécie de “simpatia epistemológica” (LAWLOR and
MOULARD LEONARD, 2016) que leva ao absoluto. O conhecimento intuitivo pode inclusive
ser considerado a base para o "verdadeiro empirismo" (IM, p. 203), no entanto, experiência da
coisa nela mesma, não de uma parcialização a ser reconstruída em um processo de síntese.
Uma vez que Bergson delimita, portanto, os objetos de sua metafísica ele se depara com o
desafio de fazer comunicar o resultado desta espécie de exercício filosófico guiado pelo método
da intuição, dado que isso se realiza primariamente por meio da linguagem. Diante disso, iremos
analisar o que se configura como uma abordagem particular do filósofo em sua expressão de
conceitos qualitativos, qual seja, o uso de exemplos de ordem imagética, mais precisamente,
trataremos de três imagens evocadas por Bergson em Introdução a metafísica na tentativa de
transmitir as diversas qualidades da duração. Embora, tal abordagem não deixe de ser limitada,
como o próprio Bergson faz lembrar, cremos que a utilização deste tipo de abordagem se
direcione a outros objetivos que não àqueles estipulados por processos analíticos: ao invés de
acumular perspectivas em busca de uma coleção completa de conhecimento sobre as coisas, a
evocação de imagens traz a possibilidade de propelir o leitor filosófico ao exercício da intuição,
em direção à um conhecimento que se dá no tempo, próprio de cada leitura.
A primeira imagem evocada por Bergson se endereça à duração do próprio eu e a
acumulação do passado que se dá no andamento da vida. Trata-se da imagem de um fio que se
desenrola de um novelo e passa a enrolar-se em outro. A experiência da duração seria como:

o desenrolamento de um rolo, pois não há ser vivo que não se sinta chegar pouco a
pouco no fim de sua corda; e viver consiste em envelhecer. Mas é igualmente um
enrolamento continuo, como o de um fio num novelo, pois nosso passado nos segue,
avoluma-se incessantemente com o presente que recolhe pelo caminho; e consciência
significa memória (IM, p. 189-90).

Essa imagem é importante para que se possa lançar à intuição de que o decrescimento do
futuro é concomitante ao crescimento do passado, aspecto importante da duração do eu. Não
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obstante, Bergson não pretende com isso dar conta de explicar a duração em sua totalidade, e o
deixa claro ao alertar que esse exemplo traz consigo uma limitação, na medida em que associa a
sucessão de estados de consciência com uma superfície lisa e homogênea (fio de lã) na qual é
possível superposição. O filósofo explicita que, em uma sucessão qualitativa, “não há dois
momentos iguais entre si”, portanto, “uma consciência que tivesse dois momentos idênticos seria
uma consciência sem memória. Portanto, pereceria e renasceria incessantemente” (p. 190).
Para complementar esta limitação Bergson evoca sua segunda imagem, a de um espectro
cromático:

com gradações insensíveis que fazem com que se passe de um matiz para o outro. Uma
corrente de sentimento que atravessasse o espectro tingindo-se sucessivamente de cada
um de seus matizes experimenta nas mudanças graduais, cada uma das quais anunciaria
a seguinte e resumiria em si as que a precedem (idem).

Essa imagem contribui para a elaboração da noção de constante heterogeneidade entre


estados de consciência, uma vez que, ao trafegar por um espectro de infinita resolução, nenhum
ponto é igual a outro. No entanto, Bergson em seu cuidado metodológico prossegue novamente
para a crítica das limitações da imagem, que neste caso se referem ao fato de que “os matizes
sucessivos do espectro permanecerão exteriores uns aos outros, justapõem-se. Ocupam espaço.
Pelo contrário, o que é duração pura exclui toda ideia de justaposição, de exterioridade recíproca
e de extensão” (idem).
Em terceiro lugar, Bergson alude à imagem de um elástico que em seu estado inicial é
infinitamente pequeno, à semelhança de um ponto matemático, em seguida, esse elástico é
esticado ao ponto de gerar uma linha que passa do estado de contração para o de dilatação. No
entanto, o filósofo não busca chamar à atenção para o elástico em si, mas sim para a natureza da
força que o faz esticar:

Consideremos que, a despeito de sua duração, essa ação é indivisível, se supomos que
se realiza sem parar; que,se nela intercalarmos uma parada, faremos dela duas ações ao
invés de uma e que cada uma dessas ações será então o indivisível de que falamos; que
não é nunca a própria ação que é divisível, mas a linha imóvel que ela deposita embaixo
de si como um rastro no espaço. Libertemo-nos por fim do espaço que subtende o
movimento para só levar em conta o próprio movimento, o ato de tensão ou de extensão,
enfim, a mobilidade pura (IM, p. 191).

Como esperado, Bergson indica que a limitação desta imagem jaz na constância do
movimento de progressão da duração que, em realidade, pode consistir em uma multiplicidade
de estados que se “esparramam” em todas as direções.
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Esse peculiar hábito bergsoniano de evocação de uma imagem seguida de sua imediata
crítica leva, à primeira vista, à conclusão de que não há muita utilidade nesta espécie de tentativa
uma vez que a experiência da duração do eu sempre escapa ao processo de representação. No
entanto, como já mencionamos anteriormente, a falha desse projeto imagético se instaura
justamente enquanto seu objetivo final se restringir à representação da natureza da duração, pois
essa última praticamente se define como àquilo que não pode ser experienciado in abstracto. É
diante desse cenário que Bergson enfim apresenta sua reformulação do que seria então o papel
do exercício filosófico, que não é o de restituir a representação da duração, pois:

Aquele que não fosse capaz de dar-se a si mesmo a intuição da duração constitutiva de
seu ser, nunca nada poderia dá-la, nem os conceitos nem tampouco as imagens. O único
objetivo do filósofo deve ser aqui o de provocar um certo trabalho que os hábitos de
espirito mais úteis à vida tendem a entravar na maior parte dos homens (IM, p. 192).

Apesar de se tratar de uma passagem modesta, ao situar o papel do filósofo no âmbito do


“provocar”, Bergson terminar por alinhar-se a um modo de fazer filosofia 1 que instantaneamente
difere-se de uma imensa tradição analítica, para a qual interessa justamente à busca pelo
argumento definitivo não obstante as peculiaridades do tema em questão. O conteúdo de sua obra
passa a poder ser compreendido em seu viés “pedagógico” na medida em que provoca o leitor a
atuar método da intuição que, como tal, implica nos seguintes passos: o primeiro consiste em
uma espécie de salto, o abandono de uma forma analítica de conhecimento, uma imersão na
percepção imediata da consciência. O segundo consiste na expansão da percepção da duração,
em outras palavras, na dilatação ou contração da experiência em direção ou ao espírito ou à
matéria. Em terceiro lugar ocorre uma certa unificação, onde o dualismo entre matéria e espírito
passa a ser compreendido como os modos de apresentação da coisa mesma.
Curiosamente, o texto nietzschiano também se encaminha à sua maneira para a oposição
entre intelecto e intuição 2, embora embarque para além de uma questão epistemológica em
direção a um questionamento moral 3. Como vimos, para Nietzsche o intelecto não é capaz de dar
conta de uma representação absoluta do mundo, pois se trata de uma faculdade com uma função
muito específica para a sobrevivência do homem como indivíduo e espécie. Em oposição a isso

1Se faz necessário aqui ressaltar que isso não implica no esvaziamento da importância do procedimento analítico na
filosofia como um todo, no entanto, queremos fazer notar que as considerações de Bergson acerca dos limites da
linguagem para a metafísica possuem implicações importantes para todo exercício filosófico que se depare com o
que se pode chamar de ‘situações limítrofes’ da existência, também bastante abordados na filosofia nietzschiana.
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Neste caso, consideramos válida a aproximação entre as oposições erigidas por Nietzsche e por Bergson, sobretudo
com relação ao fato de que é provável que ambos tenham Kant como interlocutor no que se refere ao significado dos
conceitos de intelecto e intuição. Sobre isso cf. Moreira (2013).
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Essa também seria a direção tomada por Bergson em sua obra As duas fontes da moral e da religião, embora para
os objetivos deste trabalho nos manteremos sobretudo no escopo abordado em Introdução à metafísica.
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Nietzsche apresenta o conhecimento intuitivo, cuja marca mais proeminente é a não fixidez das
representações, de forma que não são construídas as formações conceituais na linguagem que
essencialmente se colocam em oposição ao vir-a-ser (elemento que, em semelhança à Bergson, é
estabelecido por Nietzsche como traço próprio do real). A partir desta dualidade, Nietzsche
encena dois tipos psicológicos distintos: o homem racional e o homem intuitivo: O homem
racional é, por excelência, conceitual, ou seja, fixa e define conceitos que retiram a
individualidade das diferentes situações e também as tiram de seus contextos. O homem intuitivo,
ou se cala, ou rearranja conceitos e metáforas fazendo com que não se tornem obsoletas frente ao
devir interminável do mundo; para que o mundo não se torne estático os usos de linguagem são
indeterminados, e a cada situação podem se colocar de maneira diferente.
Se em Bergson a intuição é edificada como método por excelência de sua metafísica, para
Nietzsche esse conceito representa um modo distinto de funcionamento ético, que implica
diretamente em usos não convencionais da linguagem em comparação com aqueles referentes ao
tipo psicológico racional:

Aquele descomunal arcabouço e travejamento dos conceitos, ao qual o homem


indigente se agarra, salvando-se assim ao longo da vida, é para o intelecto que se tornou
livre somente um andaime e um joguete para seus mais audazes artifícios: e quando ele
o desmantela, entrecruza, recompõe ironicamente, emparelhando o mais alheio e
separando o mais próximo, ele revela que não precisa daquela tábua de salvação da
indigência e que agora não é guiado por conceitos, mas por intuições (VM, p. 51).

Esse intelecto que “se tornou livre” opera não em favor das construções conceituais, mas
sim das intuições. A linguagem e o intelecto, tal como Nietzsche aponta no início do texto, são
elementos que se tornaram moralizados ao longo do tempo, contudo, a tentativa de se situar em
sentido extramoral, seja na filosofia ou em qualquer outra esfera, não deve passar por um
abandono do intelecto e da linguagem. Isto não seria sequer possível. Nietzsche é capaz de situar
uma discussão em um âmbito extramoral ao deslocar o sentido dos termos que utiliza, fugindo
de suas significações moralizadas e dando a eles a possibilidade de expressar algo de maneira
distinta.
Em semelhança à Bergson, Nietzsche compreende uma espécie de complementaridade
entre o conhecimento intuitivo e o intelectual, uma vez que apenas o primeiro não contempla a
possibilidade da comunicação efetiva, o que embora reflita de forma mais adequada a natureza
tanto da duração para Bergson, quanto da vivência para Nietzsche, não é sustentável diante da
tarefa de elaborar um pensamento filosófico a ser transmitido a leitores.
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Considerações finais
Uma vez que foram estabelecidas diversas relações de aproximação com relação às críticas
de ambos os autores com relação ao uso filosófico da linguagem, é de bom tom que nas
considerações finais sejam elencados alguns breves pontos que demarquem a função particular
que esta crítica possui para os dois projetos filosóficos.
Em primeiro lugar é necessário ressaltar que o projeto bergsoniano de fundamentação de
uma metafísica demanda do filósofo francês uma investigação pormenorizada acerca das
possibilidades epistemológicas do que se pode denominar de “a coisa mesma”. Tal projeto traça,
do mesmo modo, uma separação fundamental com o exercício científico, como o qual se
estabelece uma relação de complementaridade possível, mas nunca de ambiguidade. Nietzsche
por sua vez, tem na moral seu objeto principal de investigação, portanto, toda consideração
epistemológica é evocada com o intuito final de pôr em evidência as necessidades, os sintomas e
os hábitos referentes à diferentes “tipos psicológicos”; a partir disso passa ser possível
compreender o encerramento do texto de 1873 em sua afirmação do tipo intuitivo:

Enquanto o homem guiado por conceitos e abstrações através destes, apenas, apenas se
defende da infelicidade, sem conquistar das abstrações um felicidade para si mesmo,
enquanto ele luta para libertar-se o mais possível da dor; o homem intuitivo, em meio a
uma civilização, colhe desde logo, já de suas intuições, fora a defesa contra o mal, um
constante e torrencial contentamento, entusiasmo, redenção (VM, p. 52).

Outra distinção importante entre os autores se refere aos modos de compreensão acerca da
natureza da dicotomia entre intelecto e intuição. Para Bergson, após um procedimento de
separação de um eventual misto não analisado, matéria e espírito podem ser em um segundo
momento compreendidos como dois modos de apresentação da duração. 4 Todavia, o retorno à
essa unidade somente pode ser realizado pela via da intuição, como dito anteriormente, por meio
da expansão da percepção da duração, na dilatação ou contração da experiência em direção ou
ao espírito ou à matéria; não há um acesso simétrico à essa unificação pela via do conhecimento
analítico, que se encaminha sempre à crescente minuciosidade das perspectivas, mas nunca ao
caráter qualitativo do mundo. Neste sentido, Nietzsche parece não ser radical ao ponto de recusar
uma mudança qualitativa possível do modo de conhecimento pela via da investigação de cunho
analítico. De forma mais clara, Nietzsche parece considerar, por exemplo, que o exercício

4
Infelizmente, não nos cabe aqui desenvolver com profundidade esse argumento que pode ser encontrado, sobretudo
na obra Evolução criadora.
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científico, se levado à suas últimas consequências, pode ao cabo “voltar-se contra si mesmo” e
se tornar palco da criação de novas formas de conhecimento 5.
De fato, ao romper com o modo analítico de se fazer filosofia, ambos os autores passam a
abandonar a lógica da concordância e da compreensibilidade necessária entre dois sistemas
filosóficos. Nietzsche passa, em seus últimos escritos, a experimentar com formas alternativas de
narrativa filosófica, ao exemplo de sua obra Assim falou Zaratustra, sua autogenealogia intitulada
Ecce Homo e de sua reapropriação do poema ditirâmbico grego. Nas Duas fontes, Bergson
direciona-se à investigação das figuras do artista e do místico como aqueles que são capazes de
situar intuitivamente com relação à vida de forma mais intensa. Nas obras de ambos os autores,
tratam-se de desenvolvimentos válidos no interior da multiplicidade por meio da qual se define
a filosofia contemporânea.

Referências
BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

______. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988b.

______. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990b.

______. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LAWLOR, Leonard and MOULARD LEONARD, Valentine, "Henri Bergson", The Stanford
Encyclopedia of Philosophy (Summer 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL =
<https://plato.stanford.edu/archives/sum2016/entries/bergson/>.

MOREIRA, Fernando de Sá. Linguagem e verdade: A relação entre Schopenhauer e Nietzsche


em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. Cadernos Nietzsche, n. 33, p. 273–300,
2013.

NIETZSCHE, F. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral. In: NIETZSCHE.


Obras Incompletas. Nova Cultural: São Paulo, 1983. (Coleção Os Pensadores)

Esse argumento é desenvolvido por Nietzsche, em específico nas últimas sessões da terceira dissertação da obra
5

Genealogia da moral.

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